Draft para Introdução histórica à filosofia...
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BERKELEY: IMATERIALISMO
A mesa na qual
escrevo digo existir, isto é, eu a vejo e sinto. E se estando fora do meu
estúdio eu dissesse que ela existe, o que estaria querendo dizer com isso é que
se estivesse em meu estúdio eu poderia percebê-la.
Berkeley
George Berkeley (1685-1753) foi um bispo anglicano nascido na Irlanda
que defendeu um idealismo imaterialista segundo o qual tudo o que existe são
ideias, almas e Deus. Seus conhecidos em Londres acharam seu livro tão
constrangedoramente absurdo que preferiam não o mencionar diante do autor. Só
bem mais tarde é que veio a ser percebida a coerência e profundidade filosófica
de seus argumentos.
Os dois livros pelos quais Berkeley se tornou conhecido
foram escritos antes de ele ter feito 28 anos: o Tratado concernente
aos princípios do conhecimento humano seguido de uma bela peça
literária chamada Os três diálogos entre Hylas e Philonous.
Berkeley leu com admiração o Ensaio de Locke, mas concluiu que
aquela forma de empirismo só poderia conduzir ao ceticismo e ao ateísmo.
Afinal, Deus tinha um papel meramente decorativo na obra de Locke.
Depois desses
escritos Berkeley desinteressou-se da filosofia, concentrando-se em sua
atividade pastoral. Casou-se, teve sete filhos dos quais apenas três
sobreviveram. Morreu aos 78 anos enquanto sua esposa estava lendo a bíblia para
ele.
1
Ideias gerais. A obra filosófica de Berkeley
tomou como ponto de partida uma crítica a alguns pontos mais fracos da
filosofia de Locke, como a admissão da existência de um mundo material,
independente da mente. Para Berkeley essa crença conduz ao ateísmo, razão pela
qual em sua filosofia ele argumentou a favor de um idealismo imaterialista.
Há duas objeções fundamentais
feitas por Berkeley contra Locke. A primeira delas diz respeito às ideias gerais
e abstratas.[1] Para
Berkeley existem ideias gerais no sentido de elas poderem se aplicar a um
número indefinido de coisas, mas não existem ideias gerais que também sejam
abstratas da maneira como pensava Locke. Não é possível, por exemplo, imaginar
a ideia do movimento em geral sem ser a de algo que se movimenta. Ele cita
textualmente uma tentativa de Locke de demonstrar possível a ideia geral e
abstrata de um triângulo:
…não requer muita dor nem habilidade formar a ideia
[geral e abstrata] de um triângulo, pois ele nem deve ser oblíquo, nem
retângulo, nem isósceles, nem equilátero, nem escaleno; mas tudo e nada disso
de uma vez.[2]
Para
Berkeley, a construção desse triângulo só não requer dor nem habilidade na
fantasia de Locke, pois ela é inimaginável e impossível. Essa, como outras
ideias abstratas, não podem existir, pois ideias possuem um caráter imagético,
não podendo ser abstratas.[3] Para Berkeley, a maneira
como representamos a generalidade consiste em separar ideias de indivíduos –
digamos, a de um triângulo equilátero, a de um movimento particular, a de um
homem particular – e as tratarmos como modelos comparativos para
a identificação de quaisquer indivíduos das classes correspondentes. Como ele
escreveu:
Acredito que devemos reconhecer que uma ideia, que
considerada em si mesma é particular, torna-se geral por ser feita para
representar ou ser posta no lugar de todas as outras ideias particulares da
mesma espécie.[4]
Para
Berkeley nós percebemos tal capacidade de generalização quando decidimos provar
um teorema usando linhas em um quadro negro. Usamos um triângulo particular
como modelo para a demonstração de que a soma dos ângulos internos de um
triângulo é de 1800 e logo percebemos que esse resultado vale
não só para o triângulo desenhado, mas para todo e qualquer triângulo da
geometria euclidiana. Berkeley é um particularista acerca das
ideias, melhor dizendo, um nominalista radical.
2
Idealismo. A Segunda objeção de Berkeley à Locke é central e de
considerável importância filosófica, pois teve repercussão na filosofia de
Hume, que influenciou Kant e, através de Kant, no próprio idealismo alemão. Ela
diz respeito ao que hoje chamamos de o problema da percepção: como
a mente pode ter acesso a um mundo externo que lhe é basicamente heterogêneo?
Ele tomou como ponto de partida a teoria de Locke, segundo
a qual aquilo que diretamente percebemos são as ideias. Como Locke teria
demonstrado, tudo o que percebemos são ideias que só existem nas mentes dos
sujeitos percipientes. As ideias, por sua vez, devem ser capazes de representar
qualidades ou poderes constitutivos de entidades materiais que existem na
independência de quaisquer mentes. Isso fez de Locke um realista indireto, um
representacionalista. A pergunta que Berkeley se fez é: que sentido há em se
falar de um mundo material externo independente das ideias, uma vez que tudo o
que percebemos pela visão, pelo tato, pela audição, pelo olfato, pelo paladar…
não são mais do que ideias pertencentes a nossas mentes? Afinal, só podemos
comparar duas coisas quando somos capazes de perceber ambas. Como só percebemos
ideias, só podemos comparar ideias com ideias. Mas então, como nos pode ser
possível saltar fora de nossos cinco sentidos para perceber um mundo material
tal como ele é, para além do veu das sensações mental onde as ideias nos são
apresentadas? Com que autoridade pode Locke afirmar que as ideais das
qualidades primárias são semelhantes às próprias qualidades
primárias? Trata-se de uma hipótese despropositada, inútil, vazia de qualquer
sentido, posto que completamente inverificável.
Berkeley põe o argumento da ilusão para trabalhar a seu
favor. Ele considera o caso de algumas ideias de qualidades secundárias como as
de calor, frio e som. A ideia do calor não é diferente da ideia do calor forte,
que arde e queima. Mas se o calor forte também é uma ideia, o mesmo acontece
com qualquer grau de calor, assim como com as ideias do arder e do queimar.
Considere o caso do frio: se eu colocar meu indicador da mão direita dentro de
um copo de água com gelo e depois colocar os indicadores de ambas as mãos em um
copo de água à temperatura ambiente, a água que cobre meu indicador direito
parecerá quente se comparada com a água que cobre o indicador da mão esquerda.
Isso, pensa Berkeley, apenas demonstra que as ideias percebidas não tem
existência senão nas mentes. Considere agora o caso do som. Como no caso do
calor, o som é uma ideia subjetiva. Sabemos, pela física, que o som é
constituído de ondas de ar. Mas essas ondas de ar são medidas através de
vibrações que são movimentos dos quais não possuímos mais do que ideias. Logo,
o som, mesmo se considerado como onda, é uma ideia: uma ideia secundária
exprimindo-se por meio de uma ideia primária de movimento.
O mesmo relativismo pode ser obtido na consideração de
ideias de qualidades primárias: um mesmo objeto pode parecer pequeno ou grande,
de acordo com a distância a partir da qual o vemos. Mas coisas assim também
acontecem em sonhos, indicando outra vez que os objetos imediatos de nossa
percepção, as ideias, não podem ser mais do que criaturas da mente.
Como vimos, Locke defendeu que as ideias de qualidades
primárias são semelhantes às qualidades primárias dos objetos
materiais, enquanto as ideias das qualidades secundárias são produtos de
qualidades primárias imperceptíveis da matéria, não possuindo qualquer
semelhança com as qualidades secundárias que as produziram. Mas Berkeley
observou que as qualidades primárias existem sempre em conjunção com
qualidades secundárias. Um triângulo tem sempre uma cor, mesmo que seja branca
ou cinzenta. É verdade que objetos coloridos deixam de ser percebidos como tais
no escuro, como Locke observou. Mas as qualidades primárias também são sujeitas
a mudanças circunstanciais: um bloco de gelo pode se liquefazer e mais tarde se
transformar em vapor d’água, perdendo a qualidade primária da dureza e depois a
da extensão. Ou seja, para Berkeley as ideias das qualidades secundárias estão
de par em par com as ideias das qualidades primárias. Logo, não há razão para
privilegiarmos as primeiras como sendo semelhantes a supostas qualidades
primárias externas ao sujeito percipiente.
A grande conclusão de Berkeley é que ser é ser percebido
(esse est percipi). Não é possível encontrar nenhuma evidência de que
exista um mundo material inerte, independente do mundo das ideias. A sugestão
de Locke de que existe uma substância material incognoscível, um suporte
subjacente ao feixe de qualidades externas apenas complica inutilmente as
coisas: trata-se de uma outra hipótese vazia, visto que inverificável pelos
sentidos. Se quisermos torná-la inteligível teremos de tratar a substância como
sendo extensa, tornando-a uma ideia de extensão.
Há várias objeções mais ou menos óbvias a
essa primeira carga argumentativa. A primeira é que as coisas continuam a
existir, mesmo quando não as estamos percebendo. A árvore que cai na Floresta
faz barulho, mesmo que não haja ninguém por perto para observá-la. Aqui
Berkeley recorre a uma solução original e em perfeita concordância com seus
objetivos. Como todas as ideias precisam ser percebidas por algum espírito e
Deus se encontra em todo lugar, Deus é aquele espírito que sustenta as ideias
constitutivas daquilo que chamamos de mundo externo ao percebê-las.[5] Ele as sustenta, tanto em
nossa presença quanto na falta dela. Quando não percebidas por nós, elas estão
sendo sustentadas, senão por outros espíritos, certamente por Deus. Assim, se é
noite e o escritório de Berkeley está fechado, ele sabe que lá se encontra sua
escrivaninha cheia de livros, uma vez que Deus contém e suporta essa ideia por
todo esse tempo.[6]
Por isso Berkeley sabe que pode percebê-la (esse est percipi possi).[7] O mesmo acontece com o fato de que sabemos que a
terra se move ao redor do sol, embora não sejamos capazes de perceber isso.
Berkeley responde que Deus faz com que, se estivéssemos postados nas circunstâncias
adequadas, nós seriamos capazes de perceber a terra girando ao redor do sol.[8] Para ele todas essas
coisas existem e são reais na mente de Deus,[9] o que nos leva a pensar
que ao aprendermos sobre mundo, quer pela experiência comum quer pela ciência,
estamos tendo acesso à mente divina.
Mas então, como distinguimos as ideias da imaginação das
ideias que são aquilo que dizemos perceber? A resposta de Berkeley consistiu no
apelo a certos critérios pelos quais distinguimos as ideias constitutivas do
que chamamos de mundo externo das ideias da imaginação. Ele fez um razoável
catálogo desses critérios no parágrafo 30 do Tratado:
As ideias dos sentidos são mais fortes, vívidas e
distintas do que as da imaginação; tem estabilidade, ordem e coerência, e não
são randomicamente produzidas, como em geral ocorre com as que são efeitos da
vontade humana, mas em cadeias e series de admirável conexão, como testemunhas
suficientes da sabedoria e benevolência de seu autor [Deus]. Ora, o conjunto de
regras ou métodos estabelecidos pelos quais a Mente da qual dependemos excita
em nós as ideias do sentido são chamadas leis da natureza. E isso
nós aprendemos pela experiência, que nos ensina que tais e tais ideias são
acompanhadas por tais e tais outras ideias no curso ordinário das coisas.
Devido a tais propriedades das ideias sustentadas por Deus nós podemos,
conhecendo-as, fazer previsões e sustentar a vida. É pela bondade do espírito
divino que as ideias constitutivas do mundo são conformes ao que chamamos de
leis naturais, permitindo-nos conhecê-las e usá-las em nosso proveito. A
inesperada conclusão de Berkeley é de que seu imaterialismo, além de estar em
conformidade com o teísmo, encontra-se em plena conformidade com o senso comum
e que sua filosofia é apenas uma maneira mais elevada de interpretá-lo.
Mas que dizer de nós mesmos e de Deus? O “ser é ser
percebido” não vale para tais casos. Percipi conduz ao percipere,
que conduz ao percipiens. Ao percebermos as ideias notamos que
existe um sujeito da percepção, um eu, que não pode ser reduzido a
ideias. O eu (percipiens) é um espírito, uma alma dotada de vontade e
totalmente diferente daquilo que percebe. Ele é uno, indiviso e ativo, enquanto
as ideias são passivas. Por não ser como as ideias, não podemos ter ideia do eu,
mas apenas uma noção. O mesmo se dá com Deus. As ideias que se
impõem a nós e que existem mesmo em nossa ausência apenas demonstram a
existência de um Deus invisível e onipresente, mas não nos permitem perscrutar
sua natureza. De maneira semelhante, concluímos pela existência de outras almas,
por obra de Deus, capazes de ter idênticas ideias de sensação...
Ainda uma questão diz respeito à real diferença entre as
ideias em Berkeley e a matéria ou substância material dos filósofos. Ora, é que
a matéria deveria existir sem um espírito para percebê-la. E a noção de um
substrato substancial indizível aventada por Locke nada faz para justificar sua
existência. Berkeley substituiu a matéria por ideias dependentes de um espírito
que as produz, um espírito que é Deus e que a todo momento contém e suporta
todo o universo em sua existência. O imaterialismo está em perfeita consonância
com o objetivo apologético de Berkeley e mesmo com a fé religiosa em geral.
3
Crítica. Para uma pessoa de fé religiosa a filosofia de
Berkeley parece defensável. Mas há problemas que ainda assim merecem ser
considerados. Vejamos alguns. O seu “ser é ser percebido” é um lema arbitrário:
nada sugere que ao percebermos qualquer coisa nós lhe outorgamos qualquer
espécie de existência ou ser. A insistência de que sua filosofia é plenamente
confirmada pelo senso comum também é excessiva: ninguém diz que as propriedades
que encontramos no mundo ao nosso redor são ideias. Thomas Reid (1710-1796) foi
um persistente e rigoroso crítico da filosofia da percepção de Locke, Berkeley
e Hume. Ele notou que nós jamais dizemos que percebemos ideias,
a não ser quando elas nos aparecem sob formas enganosas, como nos sonhos e
alucinações. E chamar as ideias de percepções, como mais tarde Hume o fez, é um
brutal abuso da linguagem. Reid via as ideias como parte do modo como a mente
opera: o esquema correto para ele não é: “o sujeito percebe a ideia como coisa
externa”, mas “o sujeito através da ideia percebe uma coisa externa.”
Por oposição a Berkeley é possível propor que os conteúdos
de sensação por ele chamados de ideias tenham uma face de Janus, podendo
ser ora entendidos como (a) propriedades e grupamentos de propriedades no mundo
externo e ora como (b) ideias mentais internas dessas propriedades e
configurações de propriedades. A escolha entre (a) e (b) depende do contexto no
qual as situamos.
Uma analogia torna essa distinção plausível. Considere a
imagem projetada pela lente ocular de uma luneta. Postando um olho na projeção
da ocular nós vemos um corpo celeste, digamos, a Lua. Mas a projeção é uma mera
imagem que reproduz o disco lunar. É fácil demonstrar isso colocando uma tela
em seu lugar: nela veremos a reprodução do disco lunar. Ora, ninguém dirá que o
objeto de nossa visão da Lua é sua projeção feita pela lente ocular em nossa
retina ou na tela. O que dizemos é que vemos a Lua diretamente por
intermédio dessa projeção. O mesmo podemos dizer de nossas ideias ou sense
data. Elas não são objetos da percepção, mas o meio pelo qual os
percebemos. E do mesmo modo que a imagem projetada, ela é similar ao objeto
percebido.
Ora, assim como temos critérios físicos contextuais que nos
permitem distinguir a imagem projetada pela lente ocular das configurações de
propriedades que constituem o que vemos como sendo a Lua, mesmo sendo ambas
semelhantes, há também critérios para distinguirmos a ideia ou sense
datum que temos de uma configuração de propriedades que constitutivas do
próprio objeto percebido. Incidentalmente, o próprio Berkeley catalogou no
parágrafo 30 do Tratado os principais critérios de realidade externa como
sendo o de ideias que se apresentam como (i) as mais intensas e distintas, (ii)
as mais estáveis, organizadas e coerentes, (iii) as que não dependem de nossa
vontade e ainda (iv) as que seguem as leis da natureza. Como já notei (Cap. V,
sec. 4), a satisfação conjunta de todas essas condições simplesmente define aquilo
que chamamos de existência externa de uma configuração de propriedades como,
digamos, a do disco lunar visto a olho nu. Mais ainda: quando sob tais
condições é dada uma combinação de propriedades como as de forma e cor, as
quais se adiciona dureza, massa e peso, diremos que se trata de um corpo ou
substância material. Isso é o que o senso comum realmente nos diz.
Mas então, o que permite a Berkeley insistir que
configurações de propriedades visíveis não sejam na verdade propriedades de
corpos materiais, mas ideias mentais? A resposta está na face de Janus do
conteúdo da percepção e no apelo a Deus.
No que diz respeito à face de Janus, trata-se do fato de
que as propriedades espaço-temporalmente dadas à percepção costumam ser
fenomenalmente idênticas a suas ideias mentais. Elas são idênticas da mesma
forma que a projeção da imagem da Lua é idêntica ao disco lunar que vemos no
céu. Há, porém, critérios para distingui-los. No caso da luneta temos que a
localização da projeção é muito diversa da localização do disco lunar projetado,
além de seguirem regras diversas. Em nosso caso temos que a localização de uma
ideia no interior de nosso aparelho perceptual é muito diversa de sua
localização como propriedade lá fora, além de cada coisa seguir critérios de
realidade próprios.
O segundo ponto é o apelo a Deus como aquele que possui as
ideias que temos como sendo propriedades reais externas. O Deus de Berkeley
está no lugar da substância de Locke e, por isso mesmo, sujeito ao mesmo tipo
de objeção feita por ele mesmo à substância, como uma hipótese sem qualquer
fundamento experiencial. Se tivermos em mente esses dois pontos, o argumento de
Berkeley perde muito de sua força persuasiva.
Resta ainda explicar o que faz com que a ideia mental possa
ser considerada fenomenalmente idêntica à qualidade física externa (uma “ideia”
para Berkeley). A resposta se assemelha aqui ao que já consideramos ao
comentar a objetividade das qualidades em Locke. A ideia repete as propriedades
da aparência física. O vermelho é uma cor oposta ao verde, quente, agressiva,
sensual. Não podemos ao certo saber se outra pessoa que vê o vermelho está
tendo a mesma experiência fenomenal. Um outro ser vivo, até mesmo uma outra
pessoa, poderá ter acesso a qualidades fenomenais diferentes. Uma pessoa com
daltonismo vê menos cores. Uma águia diferencia melhor certas cores e tem visão
mais aguçada, adicionando propriedades ao fenômeno. Contudo, o essencial é que
as estruturas comuns aos perceptos das mesmas coisas por esses diferentes seres
vivos permaneçam idênticas, o que basta para confirmar sua intersubjetividade e
com isso sua objetividade. E são as relações dadas pelos critérios de realidade
externa resumidos pelo próprio Berkeley que garantem o que o senso comum nos
permite chamar de “materialidade” da aparência física externa das coisas.
Finalmente, não é impossível
que Berkeley esteja essencialmente certo. Basta que alguma hipótese cética
radical seja verdadeira. Basta imaginar que podemos ser prisioneiros de um
supercomputador que produz em nós a ilusão holográfica sistemática de um
universo inteiro ou alguma outra hipótese cética. A diferença é que a hipótese
de Berkeley, substituindo a ilusão holográfica pelas ideias no interior da
mente divina é mais agradável e auspiciosa.
[1] A Treatise
Concerning the Principles of Human Knowledge (1740). Trad. port. Tratado sobre os
princípios do conhecimento humano. In Berkeley: obras filosóficas
(São Paulo: Unesp 2010), Intr. sec. 6-16.
[2] John Locke: Ensaio sobre o entendimento humano IV,
7, 9.
[3] Um defensor de Locke poderia responder que ele estava
apenas sendo retórico: ele estava se referindo à ideia abstrata do triângulo, a
dizer, ao conceito não imagético de triângulo, o qual é realmente capaz
de conduzir à formação de ideias-imagens de formas triangulares incongruentes
umas com as outras. Cf. J. O. Urmson: Berkeley (Oxford: Oxford
University Press 1982) p. 28.
[4] Tratado, Intr. sec. 12.
[5] Three Dialogues
Between Hylas and Philonous (Chicago: Open Court 1906), p. 65. A palavra ‘perceive’ usada aqui por Berkeley
não tem o sentido usual, uma vez que ele concorda que Deus não possui órgãos
sensíveis (p. 106).
[6] Tratado, sec. 3.
[7] Para J. P. Urmson existem dois Berkeleys: o oficial,
defendendo que ser é ser percebido, e um Berkeley oculto, segundo o qual
ser é poder ser percebido, que pode ser reencontrado nos cadernos
de notas, onde encontramos frases como “o cavalo está na estrebaria, como
havia sido percebido antes”. Essa última ideia é mais plausível, pois sugere
que nossa certeza da existência permanente das coisas pertencentes ao mundo
externo consiste em tê-las percebido, quer pessoalmente, quer por inferência a
partir de outras percepções, quer por testemunho. Ver J. O. Urmson: Berkeley (Oxford:
Oxford University Press 1982), cap. 3. John Stuart Mill mais tarde defendeu
algo semelhante: para este último, a matéria é a permanente ou garantida possibilidade
de sensações. Ver Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy (London:
Forgoten Books 2018), cap. IX.
[8] Tratado, sec. 58.
[9] “Mas então para um
cristão não pode seguramente ser chocante dizer que a árvore real, existindo
sem a sua mente, é verdadeiramente conhecida e compreendida (isto é, existe
na) pela infinita mente de Deus.” Three Dialogues Between Hylas and
Philonous, p. 97.
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