Draft
para o livro “Uma introdução histórica à filosofia”
XI
HUME: DESAFIOS CÉTICOS
Já
foi dito que a filosofia é um método para se inventar muitos problemas com base
em algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766)
parece tê-lo exemplificado de maneira irrepreensível. A conclusão inaceitável
de sua filosofia é a de que não há razões para se acreditar nem na existência
de um mundo externo, nem em sujeitos humanos espirituais, nem, obviamente, em
Deus. Tudo o que a razão nos permite atestar é a existência de bandos de ideias
rapidamente se sucedendo umas às outras.
O que importa, obviamente, não é essa
conclusão absurda, mas os caminhos argumentativos que Hume percorreu para
chegar até ela. Os desafios céticos por ele desenvolvidos possuem a marca da
profundidade, posto que ainda hoje nos incitam a buscar respostas.
1
A
maior ambição de Hume era a de tornar-se famoso por sua contribuição para o
progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e honestamente admitiu.
Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O caráter imaginativo de
sua argumentação na produção de grandes ardis metafísicos que até hoje ocupam
as mentes dos filósofos e sua argumentação desafiadora, que fez escola na
filosofia de língua inglesa, tem algo a ver com a criação artística. Nisso ele
era oposto a Locke, uma pessoa com treinamento científico, que preferia
deter-se diante de qualquer resultado que lhe parecesse absurdo demais para ser
verdadeiro, fazendo exceção apenas para aquilo que de algum modo vindicasse
suas crenças religiosas.
Para ganhar a vida Hume precisou aceitar
vários empregos, desde tutor de um marquês insano até secretário de um general
que queria fazer uma expedição ao Canadá para ajudar a expulsar os franceses.
Quando tinha 23 anos deixou a Escócia para trabalhar como escrivão em Bristol.
Curiosamente, logo depois disso uma criada local o processou por ter tido um
filho ilegítimo com ela. Na época não havia teste de DNA, nada foi provado e a
reputação de Hume permaneceu ilesa.
Hume passou a vida estudando. Sua obra
principal, planejada desde a adolescência e escrita durante três anos de
recolhimento na França, foi o Tratado da natureza humana, publicado
quando ele tinha 28 anos e considerado por muitos a mais genial obra filosófica
escrita em língua inglesa. Para sua grande decepção, ela não encontrou
acolhimento algum, além de três resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais
tarde, após a publicação de uma história da Inglaterra em seis volumes, ele se
tornou um escritor conhecido e venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra
e na França. Essa última obra deu-lhe liberdade econômica, possibilitando-lhe
viver para escrever.
As outras obras filosóficas mais importantes
de Hume, como as Investigações sobre o intelecto humano e a
Investigação sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que
importantes exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra
principal.
Hume tentou ser aceito como professor nas
Universidades de Edimburgo e Bristol, mas foi rejeitado por suspeita de
ateísmo. Nisso seus críticos tinham razão. Em seu livro intitulado Diálogos
sobre a religião natural, que teve o cuidado de não publicar em vida, ele
apresentou argumentos rejeitando a imortalidade da alma e sugerindo que só um
Deus cruel poderia ter criado um mundo tão injusto como o nosso. Ele não
aceitou a presença de um ministro religioso para consolá-lo no leito de morte.
Em sua “oração funeral para si mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois
afinal “ao morrer aos sessenta e cinco um homem não faz mais do que abreviar
alguns anos de enfermidade”.
Hume era conhecido como uma pessoa bondosa,
com um temperamento brando e agradável, acompanhado de um inexaurível otimismo,
o que torna verdadeiras as palavras de seu amigo Adam Smith, que o considerava
“um homem perfeitamente sábio e virtuoso, tanto quanto o admite a frágil
natureza humana”.
2
Do
mesmo modo que Locke, Hume também queria estabelecer os limites do conhecimento
humano de modo a obstar uma metafísica e uma teologia destituídas de sentido.
Mas, enquanto a obra de Locke era construtiva, a obra de Hume foi
desafiadoramente cética em sua exploração dos pontos fracos das filosofias de
seus antecessores. Enquanto Locke tinha a humilde intenção de arrumar a sala,
Hume era ambicioso o suficiente para querer construir por meios indutivos uma
nova ciência da natureza humana com base na experiência reflexiva e observação
comportamental, do mesmo modo que Newton havia construído uma ciência do mundo
natural resultante da experiência externa. Mais do que isso, Hume via a ciência
que ele pretendia estar construindo como ainda mais importante, uma vez que só
conhecendo melhor nossa própria natureza saberemos como é possível construir
qualquer outra ciência!
Hume começou o Tratado reeditando
sumariamente a teoria das ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o
que chamou de percepções. A palavra ‘percepção’ está simplesmente no
lugar de qualquer conteúdo da mente humana. As percepções dividem-se em impressões
e ideias. As impressões distinguem-se das ideias pela
vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e consciência,
como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as impressões
possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos. As ideias,
por sua vez, são imagens evanescentes das impressões, tanto no pensar quanto no
raciocinar. Sua tese empirista é a de que todas as nossas ideias são, em sua
origem, cópias enfraquecidas das impressões sensíveis ou emocionais.
As impressões podem ser simples ou complexas.
As impressões simples são de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as
impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa
que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas.
As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias simples
aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória, sendo,
portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser decompostas em
ideias simples.
Ideias
complexas podem ser recordações ou ideias da imaginação. As recordações são consideradas por Hume
cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa
vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e a sua
ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade,
de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a
ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um
corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de
minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão.
Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação
costumam ser mais tênues.
Ao chamar as ideias recordadas de cópias das
impressões Hume recai na velha simplificação do empirismo inglês, que é o de
reduzir conceitos a imagens. Pode parecer que não existam cópias imagéticas de
ideias auditivas, táteis e gustativas, posto que elas não possuem formas
espaciais, o que parece livrar Hume do imagismo. Mas isso é incorreto, pois por
imagem devemos entender aqui qualquer reprodução ou réplica de impressões
sensíveis. A memória do som de uma explosão é como sua audição, só que muito
enfraquecida, do mesmo modo que a memória de uma dor ou de um certo gosto.
Reduzir conceitos a reproduções ou cópias pode parecer razoável quando
consideramos cores e sons, mas se torna problemático quando consideramos ideias
mais complexas como as de triângulo ou de homem. Aqui precisaremos nos valer de
conceitos e, como a partir de Kant veremos, de regras conceituais.
Hume também possui um conceito semelhante ao
das ideias de reflexão de Locke, embora sua gênese seja diferente.
Para Locke as ideias de reflexão resultam de uma espécie de introspecção sobre
atividades da mente, como a do pensamento, do juízo e da crença, formando então
as ideias de reflexão de pensamento, de juízo e de crença. Mas para Hume,
primeiro temos as impressões que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber
coisas como o calor e o frio, a fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente
produz cópias dessas impressões, que são as ideias de calor, frio, fome,
prazer e dor. Essas ideias continuam existindo, mesmo depois de cessadas as
impressões. Mas quando essas ideias retornam à mente, associamos a elas novas
impressões, como as de desejo ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são
do que impressões de reflexão. Essas impressões podem ser copiadas sob
forma de ideias com base na memória ou imaginação. Cabe notar que os exemplos
dados por Locke e Hume são diferentes e pode bem ser que eles estejam tratando
de operações diversas, ambas possíveis.
O seguinte esquema resume as diferentes
espécies de percepções distinguidas por Hume:
Percepção
Impressão
Ideia
de
sensação de reflexão da memória da imaginação
As
impressões de sensação simples e complexas, assim como as ideias de reflexão,
são fatores causais na produção de mais tênues ideias da memória simples e
complexas. E nossa imaginação combina ideias de memória na produção das ideias
complexas da imaginação.
3
Leis
da associação. Uma importante
descoberta de Hume diz respeito a suave força que faz nossas mentes se moverem
de uma ideia a outra por meio do que ele chamou de princípios de associação.
Eles são três: semelhança, contiguidade espaço-temporal e causalidade.
Uma ideia se associa a outra por semelhança, por exemplo, a lembrança de uma
cena de perseguição vista em um filme faz com que uma pessoa se recorde de um
incidente ocorrido em sua adolescência. Também há associações por contiguidade
espaciotemporal, por exemplo, quando alguém se recorda da casa de seu avô e a
seguir se recorda da igreja na praça à frente da casa e, em seguida, das
cerimônias religiosas nos finais de semana. Há, principalmente, associações
entre causa e efeito, por exemplo, quando alguém associa a vista de um
ferimento à dor (causa para efeito), ou quando associa a fumaça escura que sobe
ao céu a um incêndio (efeito para a causa).
4
Substância
e modo. Hume tem algo a dizer sobre as
fundamentais ideias de substância e de modo (acidentes). Elas se
resumem a coleções de ideias simples que são unidas pela imaginação e
designadas por um nome convencionalmente estabelecido.
As coleções de ideias que designam substâncias podem estar ligadas a algo
desconhecido a que são supostamente inerentes. Mas geralmente estão conectadas
por estreitas e inseparáveis relações de contiguidade e causalidade, de modo
que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples com a mesma conexão com
as restantes, nós a adicionamos, enriquecendo o conceito. O exemplo por ele
dado é o do ouro como metal amarelo, maleável, com certo peso e fusibilidade,
ao qual se veio a adicionar a propriedade de solubilidade em uma solução ácida
chamada de acqua regia. Nesse último sentido a substância é entendida
como uma espécie natural, algo como a substância segunda de Aristóteles,
analisada por Hume como um feixe de qualidades. Por fim, exemplos de modos
(acidentes) são para ele as ideias complexas de dança e de beleza.
5
Universais.
Hume atribuiu grande mérito à sugestão de Berkeley de
que embora existam ideias gerais, elas não são abstratas no sentido de deixarem
de ser empíricas. Segundo Berkeley “uma palavra deve ser geral quando se faz
dela o signo, não de uma ideia geral abstrata, mas de várias ideias
particulares, qualquer das quais, indiferentemente, é sugerida à mente pelo
dito signo”. Hume
esclarece melhor a sugestão de Berkeley. De acordo com ele, por termos
impressões sensíveis de diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto,
formamos então, por costume, um grupo de ideias-imagens idênticas a esses
objetos, embora mais enfraquecidas, contendo aquilo que nos despertou atenção.
Dessa maneira formamos um grupo (um conjunto) de ideias-imagens diferentes às
quais associamos uma palavra. Por exemplo: associamos à palavra ‘cão’ a um
grupo de ideias-imagens mais fracas, mas idênticas às suas impressões sensíveis,
digamos, a de um pastor alemão, de um puddle, de um labrador, de um
chihuahua... Assim, quando vemos um novo cão, digamos, um collie, somos capazes
de atualizar uma imagem semelhante de modo a reconhecê-lo pelas
particularidades que nos chamam atenção. Podemos fazer a mesma coisa com ideias
como as de governo, igreja, negociação, conquista. Essas últimas, escreve ele,
são ideias muito complexas e pouco distintas, de modo que raramente somos
capazes de fazer explícitas as ideias simples que as compõem; mesmo assim somos
capazes de atribuir a quem perde uma guerra a ideia de negociação e não,
digamos, a de conquista…
A solução exposta por Hume não é suficiente
para resolver o problema. Quando ele se pergunta por que certas ideias-imagens
devem ser escolhidas, ele recorre a noções pragmáticas como as de utilidade e
adequação ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que
reconhecemos um triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixa sem
explicar aquilo que faz com que sejamos capazes de unir uma certa variedade de
ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto.
O passo adiante no entendimento das ideias
gerais só será dado mais tarde por Kant, que irá prescindir de um discurso
meramente imagético e escrever sobre conceitos como sendo habilidades
governadas por regras que, sem dúvida, podem incluir a produção de modelos
imagéticos, mas que não se restringem a eles e nem sempre dependem deles. Kant
nota que o conceito de cão é uma regra através da qual somos capazes de
delinear a imagem de um cão... Mas isso não é sempre necessário: ao
identificarmos o número 56 como sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8,
não precisamos recorrer à imagem alguma.
Ainda no século passado Michael Dummett
entendeu o sentido de uma palavra conceitual como uma regra que
estabelece critérios para a sua aplicação. Ernst Tugendhat chamou-a de regra de aplicação
do termo geral, a qual também pode ser abstraída da experiência. Por
exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma figura plana
fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três
pontos diferentes do plano euclidiano. Se implicitamente dominamos essa
definição então parece que possuímos uma regra para a construção de qualquer
triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero, retângulo,
isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um triângulo,
seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com base em
nosso domínio implícito da regra definitória, produzir uma ideia-imagem
correspondente ao que nos for dado, explica-se porque somos capazes de
identificar triângulos no plano euclidiano. É a regra conceitual que nos
permite produzir imagens que se correspondem aproximadamente àquilo que a palavra
conceitual está servindo para designar.
O que Berkeley e Hume demonstraram foi que
não somos capazes de construir imagens abstratas, embora possuamos termos
gerais, imagens concretas e, sem dúvida, capacidades inatas para seu
aprendizado. Mas eles não demonstraram que não podemos associar a termos gerais
conceitos entendidos como regras de aplicação conceituais baseadas em critérios
de satisfação eventualmente imagéticos. Tais regras poderiam, por suposição,
ser capazes de reproduzir impressões em nossas mentes, reproduções
identificadoras similares às impressões sensíveis realmente percebidas. A
hipótese é a de que pela correlação dessas imagens reproduzidas com as
impressões sensíveis percebidas teríamos satisfeito o critério para o
reconhecimento da imagem sensível como exemplo para a aplicação da regra de
identificação de um termo geral, por exemplo, no enunciado “Isso é um
triângulo.”
6
Analiticidade.
Uma distinção fundamental é a que Hume faz entre relações
de ideias e questões de fato. As relações entre as ideias (correspondentes aos
juízos analíticos de Kant) são as que encontramos na geometria, na álgebra e na
aritmética. Exemplos são enunciados como:
1. Um círculo não é um quadrado.
2. A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano
é de 1800.
3. O quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado
dos dois lados de um triângulo retângulo.
4. A multiplicação de três por cinco é idêntica à
divisão de trinta por dois.
Se
as relações de ideias não forem intuitivamente certas (como em 1), elas serão
ao menos demonstrativamente certas (como em 2, 3 e 4). Elas são necessariamente
verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo,
que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das
próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias
saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.
Como os enunciados acima apenas afirmam as
relações vigentes entre conceitos mentais, eles também não podem ser falsos,
sendo contraditório negá-los. Assim, que a soma dos ângulos internos de um
triângulo é de 1800 no sistema da geometria euclidiana continuará
sendo uma verdade mesmo em um mundo no qual não existam triângulos euclidianos.
Note-se que Hume não está falando da aplicação desses enunciados ao mundo real!
Sabemos que o espaço físico onde há gravidade é não-euclidiano, e que nele a
soma dos ângulos de um triângulo é maior do que 1800. Isso torna
falsa a aplicação da geometria euclidiana a esse espaço, mas Hume está considerando
apenas o sistema conceitual que constitui uma certa geometria.
Diversamente do caso das relações de ideias,
juízos sobre questões de fato (correspondentes aos juízos sintéticos em Kant)
dependem das circunstâncias reais do mundo. Sua negação não conduz à
contradição e sua verdade não pode ser estabelecida por demonstração. Tanto sua
afirmação quanto sua negação pode ser em princípio verdadeira. Exemplos são
inúmeros. Eis alguns:
1. O dia está chuvoso.
2. A terra é redonda.
3. O calor dilata os metais.
4. O sol nascerá amanhã.
Considere
o último enunciado: “O sol nascerá amanhã.” Estamos bem certos de que o sol
nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento inesperado, digamos, uma
catástrofe atômica, impeça isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã
não resulta em contradição. Esse também é o caso, naturalmente, dos outros
enunciados acima.
Para Hume as ideias metafisicas resultam da
confusão entre relações de ideias e questões de fato. A base da filosofia de
Kant consiste na suposta descoberta de juízos sintéticos a priori que
embora sendo sobre questões de fato são necessariamente verdadeiros. Neles as
ideias-conceitos não se encontram logicamente relacionadas, pois esses juízos
nos dizem algo sobre o mundo (eles são sintéticos); mas eles são impostos pela
mente humana à natureza como verdades necessárias e universais (eles são a
priori).
Para Hume o sintético a priori de Kant seria
entendido como uma absurdidade metafísica. Diante da Crítica da Razão Pura,
um livro fundamentado em princípios sintéticos a priori, Hume provavelmente
reagiria repetindo a frase do final de suas Investigações sobre o intelecto
humano:
Esse livro contém algum raciocínio abstrato sobre
quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões
de fato ou existência? Não. Então para o fogo com ele, pois outra coisa não
pode encerrar senão sofismas e ilusões.
7
Ceticismo causal. O mais famoso argumento de Hume diz respeito à natureza da causalidade
e, por extensão, à possibilidade de inferência indutiva. Para ele a causalidade
é fundamental pois:
Todo raciocínio
concernente à matéria de fato parece ser fundado na relação de causa e efeito.
Só por meio dessa relação nós vamos além das evidências da memória e dos
sentidos.
Em um exemplo seu, uma pessoa perdida em uma ilha
deserta encontra um relógio e conclui que não está só. Essa inferência resulta
da conhecida relação causal entre um artefato e a existência de um usuário.
Embora muitas inferências sejam de fato causais, essa generalização de Hume
parece excessiva.
Por exemplo: sei que o abacate que vejo na feira tem um grande caroço. Essa
inferência se baseia no fato de ter aberto outros abacates e de ter encontrado
neles sempre grandes caroços. Mas essa não é uma inferência fundada em uma
relação de causa e efeito, mas de contiguidade.
Certo ou
errado, sobre esse pressuposto Hume procede sua famosa análise da causalidade.
De acordo com a tradição racionalista de filósofos como Descartes, Spinoza, e
Leibniz, e mesmo no caso de um empirista como Locke, a causa é razão suficiente
para o seu efeito, ou seja, toda causa logicamente necessita seu
efeito, do mesmo modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume
discordava. Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo
da experiência. Adão, escreveu ele, ao ver pela primeira vez a água não poderia
saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela primeira vez o
fogo que este tinha o poder causal de queimá-lo.
Ao analisar a relação causal Hume encontra
três critérios perceptuais para a identificação da relação entre causa e
efeito. Eles são:
1.
Contiguidade
espaço-temporal,
2.
A causa
vem antes do efeito,
3.
Deve haver
união constante entre causa e efeito.
Quando
uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há uma contiguidade
no espaço e no tempo. Além disso, o movimento da primeira bola vem antes
do movimento da segunda. Finalmente, a mesma coisa acontece sempre que
uma bola de bilhar nas circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa
análise pode ser definida como a teoria da causalidade como regularidade.
Ela está de acordo com o empirismo humiano, uma vez que as propriedades (1),
(2) e (3) são as que a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora
existam objeções contra essa análise, elas parecem contornáveis.
A questão importante que Hume então se coloca é: “cadê a experiência da
necessidade causal?” Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos
filósofos racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.
Hume imagina ainda uma maneira de garantir a
necessidade causal, que seria assumir um princípio da uniformidade da
natureza. Se a natureza é uniforme então o futuro se assemelha ao
passado. Se o futuro for como o passado, como no passado, quando uma bola
de bilhar se chocava com uma outra, ela sempre fazia a outra se mover, então
quando uma bola de bilhar se chocar com uma outra no futuro essa outra também
deverá se mover! Há, porém, um problema: nada nos garante que a natureza seja
uniforme de modo que o futuro seja semelhante ao passado, pois essa também é
uma questão de fato. Podemos perfeitamente imaginar que o futuro venha a ser diferente
do passado. Como ele notou, é possível que da próxima vez que a neve cair os
seus flocos queimem como fogo ou que as árvores floresçam em pleno inverno...
Um princípio da uniformidade da natureza não pode ser provado e não é
intuitivamente certo. Como ele escreveu:
A suposição de que o futuro se assemelha ao passado
não é fundada em nenhuma espécie de argumento, sendo antes derivada
inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma
sequência de objetos com a que já estamos acostumados.
Não
é, pois, a razão, que nos leva a acreditar que o futuro será semelhante ao
passado, mas um simples hábito ou costume. O resultado é que não temos
meio racional de garantir a necessidade causal.
Se nenhum desses argumentos funciona, então
como explicar nossa convicção de que existe uma necessidade causal? A solução de
Hume foi observar que quando a mente percebe uma união espaço-temporal regular
entre dois eventos, um ocorrendo antes do outro, ela forma um costume ou hábito
através do qual sempre que ela experiencia o primeiro evento ela cria a
expectativa de que o outro se seguirá. Mas esse hábito nos confunde,
fazendo-nos pensar que existe uma relação de necessitação de um
evento-causa para um evento-efeito, quando na verdade não temos experiência
alguma disso. Somos levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal
quando na verdade tudo o que experienciamos é uma expectativa psicológica de
que após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem
psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.
Sob a suposição de que todo o nosso
conhecimento de questões de fato se baseia em relações causais, o resultado ao
qual Hume chega é desalentadoramente cético. Como não há necessidade causal,
nossa convicção de que no futuro as relações causais permanecerão as mesmas é
destituída de qualquer fundamento racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo
aquece e que a água apaga o fogo. Essas são relações causais. Mas como não
existe uma verdadeira necessidade causal, nada nos garante que no futuro o fogo
continuará a aquecer ou que a água será capaz de apagá-lo. Na formação de
nossas expectativas sobre questões de fato, tanto do senso comum quanto da
ciência empírica, somos como insetos voando em direção à luz, determinados
apenas pela nossa natureza instintiva.
8
Essas
famosas conclusões céticas podem ser problematizadas. Uma importante
dificuldade na análise da causalidade como regularidade feita por Hume, por ele
mesmo notada, é que os critérios por ele propostos não parecem suficientes.
Eles não explicam por que as regularidades entre eventos contíguos que se dão
por pura coincidência não são causais. Considere, por exemplo, o caso de um
ônibus que todos os dias às 12 horas para diante de uma igreja e que logo a
seguir os sinos começam a repicar. Há aqui contiguidade espaço-temporal: o ônibus
para diante do edifício e logo a seguir os sinos começarem a bater. Além disso
há união constante: isso ocorre todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há
relação causal alguma entre uma coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente
nascimento dos cabelos nos bebês antes do crescimento dos dentes de leite.
Ninguém estaria disposto a dizer que o crescimento dos cabelos é a causa do
nascimento dos dentes. Aparentemente, aquilo que está faltando nesses exemplos
é um nexo de necessidade entre causa e efeito. O parar do ônibus não necessita
o badalar dos sinos, nem o crescimento dos cabelos necessita o nascimento dos
dentes de leite.
Tentando um caminho menos pessimista para
lidar com o problema podemos apelar para uma relação de necessidade mais fraca
do que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume e defendida pelos
racionalistas. Dizemos que alguém necessita ir à cidade comprar mantimentos,
que é necessário chover para que a pastagem cresça, que o diabético precisa
tomar injeções de insulina... Essas não são necessidades lógicas. Ora, uma
maneira de entendermos a necessidade causal de maneira mais fraca parece ser a
de a identificarmos com o bom entrincheiramento (good
entrenchment) da regularidade dita causal.
Podemos definir o bom entrincheiramento de uma regularidade causal como:
(i)
sua
complementação com outros fatores causais do conjunto de fatores envolvidos e
(ii)
sua
complementação com as outras regularidades pressupostas pelo nosso sistema de
crenças.
Não há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo
o parar do ônibus diante da igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do
bom entrincheiramento que existe entre o ponteiro do relógio da igreja a marcar
12 horas e o repicar dos sinos logo a seguir. Afinal, o martelo do relógio bate
no sino fazendo esse tocar por causa de um complexo mecanismo ligando o relógio
a ele, o que satisfaz a condição (i), enquanto o parar do ônibus defronte à
Igreja não tem nada a ver com esse mecanismo. Além disso, nosso sistema de crenças
inclui leis físicas que nos fazem pressupor correlações entre movimentos de
objetos físicos contíguos devidamente ajustados uns aos outros de modo a
produzir o repicar dos sinos, satisfazendo a condição (ii), enquanto a
correlação entre o parar do ônibus em frente à igreja e o repicar dos sinos não
recebe nenhuma confirmação por parte de nosso sistema de crenças. Quanto ao
segundo exemplo, não há nenhum entrincheiramento entre o crescimento dos
cabelos e o nascimento dos dentes de uma criança, pois não encontramos outros
fatores causais associados, nem encontramos razões biológicas pertencentes ao
nosso sistema de crenças que justifiquem uma expectativa de que essas duas
coisas possam se relacionar.
A diferença fica mais clara quando
comparamos os casos acima com o bom entrincheiramento que existe entre o raio e
o trovão. Que o raio causa o trovão é algo sabido desde a antiguidade, quando
não havia ciência para explicá-lo. Podemos começar daí. Que o raio causa o
trovão é um bom exemplo, dado que fenômenos atmosféricos são independentes da
ação humana, o que o torna menos sujeitos a um grande número de fatores
intervenientes que demandem uma análise mais extensa. O bom entrincheiramento
se demonstra primeiro nos fatores causais acompanhantes. Raios e trovões
ocorrem sob um pano de fundo de nuvens tormentosas e, geralmente, vento e
chuva. Há também outras correlações, como o fato de que quanto mais longe cai o
raio, mais tempo levamos para perceber o trovão. Sempre foi conhecida uma
diversidade de correlações fenomênicas que em nosso sistema de crenças
reforçavam aquela relação de regularidade de modo a lhe conferir certa
necessidade causal.
Vejamos agora como é isso hoje, quando o bom
entrincheiramento conceitual desses fenômenos é muito mais detalhado conhecido.
Sabemos que os raios resultam de cargas elétricas provenientes do atrito
causado pelos ventos entre as partículas de água e gelo que formam as nuvens.
As partículas mais pesadas e com carga de gelo positiva se acumulam na parte
inferior da nuvem, enquanto as partículas mais leves e com carga negativa se
concentram em sua parte superior. Quando a diferença de cargas entre uma nuvem
e outra ou entre a nuvem e o solo é grande demais, o ar não é mais capaz de
isolá-las e acontece a descarga elétrica chamada de raio. O relâmpago é para
nós hoje algo diferente do raio: ele é a luz emitida pelo superaquecimento do
ar pelo raio. Quando o ar é superaquecido ele também se expande rapidamente,
produzindo uma onda de choque sonora que ouvimos sempre após vermos a luz do
relâmpago, uma vez que o som do trovão caminha a 340 metros por segundo
enquanto a luz do relâmpago caminha à 300.000 km por segundo. Temos assim
melhor e mais precisamente explicadas relações de intensidade entre o relâmpago
e o trovão, assim como a relação de sucessão temporal do raio para o trovão.
Podemos agora com muito mais razão dizer que a relação entre o raio e o trovão
é de necessitação em termos de um grande entrincheiramento entre esses dois
fatores causais e nosso sistema de crenças da física e da química aplicado às
condições meteorológicas específicas.
A conclusão não se faz esperar. O que
chamamos de necessitação causal nada mais é do que o bom entrincheiramento
entre os múltiplos fatores causais envolvidos na relação ente causa e efeito
sob o suposto de nosso sistema de crenças. O erro dos filósofos
racionalistas estaria em confundir uma necessidade empírica, a do bom
entrincheiramento, com uma necessidade lógico-convencional. E o erro de Hume
está em não se ter dado conta da existência de uma necessitação definida
por um bom entrincheiramento conceitual, tanto com os outros fatores envolvidos
na relação causal quanto com nosso sistema de crenças.
Um defensor do ceticismo humiano poderia não
se dar por vencido. Eis como ele poderia argumentar: Mesmo que seja intuitivo
que o bom entrincheiramento pareça conferir certo grau de necessitação à uma
regularidade causal, dirá ele, como as associações envolvidas no
entrincheiramento também são regularidades, parece que o mesmo argumento
aplicado contra a necessidade causal de uma regularidade particular deve poder
ser aplicado ao conjunto total das regularidades entrincheirantes. Assim,
embora a suspensão de uma ou outra regularidade possa ser tornada improvável
pela permanência de todas as outras regularidades entrincheirantes associadas,
o mesmo não acontecerá no caso em que todas as regularidades forem
imediatamente suspensas, posto que não restará mais nada para entrincheirá-las.
Isso parece ser o caso se todos os elementos causais e o mesmo o próprio
sistema de crenças que entrincheira uma certa regularidade forem repentinamente
suspensos! Por exemplo: suponha que daqui a cinco minutos o mundo inteiro perca
as suas regularidades. Isso parece logicamente concebível. Mas se essa suspensão
de todo o sistema entrincheirante for concebível, então o sistema como um todo
não envolve necessitação, a não ser aquela resultante de uma mera expectativa
psicológica, o que nos leva de volta ao problema humiano inicial.
A resposta é que uma suspensão de todo nosso
sistema de regularidades não pode ser realmente concebida. A razão é a
seguinte: Quando imaginamos uma suspensão de todas as regularidades em nosso
mundo, nós precisamos nos imaginar como se estivéssemos fora do mundo,
observando a sua completa perda de regularidades. Mas para fazer isso estaremos
nos fiando em um sistema de crenças total, que inclui as regularidades e
entrincheiramentos de nossas crenças de fora do mundo observado. Mas como o
mundo como um todo precisa incluir a nós mesmos e o lugar de nossa avaliação,
não podemos nunca conceber uma repentina desaparição completa de todas as
regularidades, posto que ela envolveria a nós mesmos como sujeitos da
observação. Mas se não somos capazes de imaginar o desaparecimento repentino do
sistema completo de regularidades que constitui nosso mundo com a inclusão de
nós mesmos, então não podemos imaginar o desaparecimento da espécie de
necessidade causal constituída pelo bom entrincheiramento. Não podemos, pois,
conceber como a espécie de necessidade que constitui o bom entrincheiramento
possa cair vítima de uma dúvida cética radical.
9
O
problema humiano da causalidade foi conjuntamente (e de forma algo equívoca)
aplicado a inferências ampliativas gerando o ominoso problema da indução.
Inferências indutivas são aquelas que vão do observado para o não observado,
sendo capazes de ampliar nosso conhecimento. Por exemplo: “O sol sempre nasceu
a cada dia. Logo: o sol também nascerá amanhã”. Como garantir tais inferências?
Para Hume a solução parece se encontrar na admissão do princípio metafísico da
regularidade ou uniformidade da natureza. Para o caso
em questão o princípio pode ser formulado como:
PF:
O futuro será semelhante ao passado.
Admitindo-se
essa versão do princípio da uniformidade o exemplo acima será justificado como
se segue:
O sol sempre nasceu a cada dia
O futuro será semelhante ao passado. (PF)
Logo: o sol nascerá amanhã.
À
primeira vista a solução parece convincente. O problema surge quando nos
perguntamos pela justificação de um princípio da uniformidade como PF. Afinal,
como sabemos que o futuro deve ser semelhante ao passado? Essa é uma verdade de
fato, podendo ser negada sem contradição, não sendo, pois, garantida. Não temos
como garantir princípios de uniformidade, dado que eles não são verdades da
razão.
Podemos
recorrer a um raciocínio assegurador de PF, que seria o seguinte:
Os futuros do passado sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.
Logo: o futuro (do presente) será semelhante ao passado.
O
problema é que esse argumento também é indutivo, tornando a resposta circular!
Não faz sentido tentarmos justificar a indução através de uma premissa que
resulta ela própria de uma inferência indutiva.
A conclusão é que também quanto às
inferências indutivas a conclusão de Hume é extremamente pessimista: não temos
como justificá-las. Mas como a ciência empírica e mesmo o senso comum se
fundamentam em inferências indutivas, a conclusão é que não temos como
justificar nosso conhecimento empírico. O que nos faz crer que o sol nascerá
amanhã resulta de uma cega fé animal resultante de disposições psicológicas
para a formação de hábitos.
10
Há
uma variedade de tentativas de solucionar o problema, todas elas prenhas de
dificuldades. A única salvação, que posso apresentar aqui apenas de maneira
muito esquemática,
consiste ao que me parece em refinar os princípios de uniformidade de tal
maneira que eles se tornem claramente analíticos. Eis uma versão mais adequada
do princípio de que o futuro será semelhante ao passado:
PF*: Quanto mais próximo estiver o futuro de seu
passado, mais tendencialmente semelhante ele precisará ser com esse passado,
tornando-se idêntico a ele no ponto de junção dos dois (o presente).
Um
futuro, para ser o futuro se seu próprio passado, precisa ao menos tender
a assemelhar-se a ele na razão de sua proximidade dele, tornando-se ambos
indefectivelmente idênticos no momento presente.
Se considerarmos com suficiente atenção o
que PF* nos diz, veremos que essa versão do princípio é intuitiva e não resulta
de nenhuma inferência indutiva. Trata-se simplesmente de uma condição de
possibilidade do conhecimento empírico que, diversamente de um juízo sintético
a priori, pode ser considerada uma verdade da razão (analítica) que, além de
ser intuitiva não pode ser negada sem contradição. Afinal, negar que na
aproximação com o presente, futuro e passado se tornem ao menos tendencialmente
cada vez mais semelhantes, tornando-se idênticos no momento presente, não faz
sentido. Se um futuro pudesse não ser tendencialmente mais semelhante ao
seu passado tornando-se idêntico a ele no ponto de junção (no presente), ele
poderia ser totalmente diferente de seu passado. Mas nesse caso ele não poderia
ser reconhecido como sendo o futuro de seu próprio passado. Não me é concebível
colar o futuro de meu presente nesse mesmo lugar onde me encontro com como ele
era há 1 milhão de anos e imaginá-lo como sua continuação. Como já havia
percebido Leibniz, “a natureza não dá saltos.” Se temos vários mundos possíveis
W1, W2... Wn, o futuro de W1, digamos W1f deve ser uma continuação de seu
passado, digamos W1p. Não pode ser que W1f seja uma continuação de W2p, ou que
W2f seja uma continuação de Wnp. Temos, pois, por meio de PF*, uma versão do
princípio da uniformidade analiticamente assegurada. E só isso já deve bastar
para garantir a nossas inferências indutivas do passado para um futuro
suficientemente próximo alguma plausibilidade.
Ainda um testemunho dessa versão analítica
do princípio de que o futuro deverá ser semelhante ao passado é o fato de que
quanto mais distante for o futuro, menos provável será a inferência indutiva.
Por exemplo: a inferência indutiva de que o sol também nascerá no próximo dia
daqui a 5 bilhões de anos é refutada pela cosmologia atual, uma vez que por
essa época ele já terá se transformado em uma gigante vermelha, engolindo a
terra.
11
Vejamos
agora os argumentos pelos quais Hume foi levado a rejeitar tanto o mundo
externo independente quanto um eu permanente.
Comecemos com o tratamento que Hume dá às
coisas do mundo externo. Como sabemos que os objetos materiais externos existem
separados de nós? A resposta seria que as impressões de figura, extensão, cor e
som advindas do mundo externo são muito mais intensas (“mais fortes e
violentas”), além de serem constantes, coerentes e independentes da vontade.
Mas isso é insuficiente. Afinal, nossas dores e prazeres, assim como nossas
paixões, mesmo sendo internas, são igualmente intensas e involuntárias. Mesmo
as percepções de máxima intensidade das coisas que observamos com os olhos
abertos e que tocamos e ouvimos não passam de percepções idênticas, em sua
natureza, às ideias de Locke, tornando impossível para nós transpormos o abismo
que separa tais percepções de um suposto mundo externo sem supor a uma
continuidade.
Para Hume só existem três causas possíveis
de nossa crença na existência de coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos,
a razão e a imaginação. Mas os sentidos não nos podem atestar nem
a existência de uma substância entendida como um substrato não-perceptível das
ideias, nem a existência continuada das coisas quando não percebidas, pois
cessando a sensação os objetos deixariam de estar presentes aos sentidos. A
crença na existência continuada dos objetos também não pode ser produzida pela
razão porque também as crianças e os rudes tem essa crença, apesar de não
possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume é que a nossa crença na
existência de uma substância entendida como substrato incognoscível das ideias,
assim como nossa crença na existência continuada dos objetos do mundo externo
ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação. Para ele o mesmo
hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal é aquele que nos
leva a imaginar que deva existir uma substância permanente como se ela fosse
observável. Eis seu argumento no Tratado:
Quando nos acostumamos a observar uma constância em
certas impressões, quando descobrimos, por exemplo, que nossa visão do sol e do
oceano retorna depois de um período de ausência ou aniquilação, com as mesmas
partes na mesma ordem que da primeira vez, não somos mais capazes de considerar
essas percepções interrompidas como distintas (como de fato o são), mas pelo
contrário, as consideramos como individualmente as mesmas de modo a explicar
sua semelhança. Mas como a interrupção de sua existência é contrária à sua
perfeita identidade e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi
aniquilada e que a segunda foi criada de novo, encontramo-nos algo perdidos,
envolvidos em uma espécie de contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade
disfarçamos tanto quanto possível a interrupção, antes removendo-a
inteiramente, supondo que essas percepções interrompidas sejam conectadas por
uma existência real, à qual somos insensíveis.
Ou
seja, nossa crença na existência continuada dos objetos externos resulta de
nossa imaginação. Nós temos a propensão de cobrir os vazios entre nossas
percepções imaginando que eles sejam preenchidos, como se existisse um sujeito
percipiente acompanhando os objetos quando não os percebemos. Assim, repetindo
um exemplo de Barry Stroud,
suponha que eu esteja com os olhos abertos observando uma mesa de jantar com
tudo o que se encontra sobre ela. Suponha agora que eu feche os olhos por uns
três segundos, depois eu os abro de novo e, mais adiante, eu os feche outra vez
e assim por diante. Chamando de A à percepção que tenho com os olhos abertos e
F a percepção com os olhos fechados, o resultado no curso do tempo será:
AAAAAAFFFAAAAAAFFFFFAAA...
Para
Hume minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos
vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto
percebido, como se a percepção tivesse a forma de:
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA...
A
conclusão à qual ele chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e
nunca a um mundo real externo.
12
Que
dizer dos argumentos de Hume contra nosso conhecimento de um mundo externo que
permanece, mesmo na independência de ser percebido por nós? Na verdade, não há
nada neles de tão decisivo que não possa ser questionado. Consideremos o caso
da existência de um mundo externo. Hume considera os critérios de realidade
externa que ele mesmo expõe como sendo o da máxima intensidade perceptual e
coerência, como insuficientes. Já consideramos esse ponto brevemente ao
examinarmos o argumento de Berkeley contra a existência da substância material.
Contudo, os critérios de realidade externa expostos por Hume e Berkeley só
parecem insuficientes enquanto forem considerados isoladamente. Suponhamos,
porém, que as impressões humianas satisfaçam conjuntamente todos os
critérios de realidade externa apontados não só por Hume, mas também por
Berkeley e mesmo por outros filósofos que trataram do assunto, de Descartes a
Frege.
Não seremos então forçados a admitir que estamos considerando um mundo de
coisas externas?
Para testar melhor essa hipótese,
consideremos mais de perto os critérios mais fundamentais:
1.
Máxima
intensidade perceptual: a
intensidade perceptual de uma percepção táctil ou auditiva ou visual é
incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela memória ou pela
imaginação. Hume dá o exemplo de uma dor extrema, como algo interno tão intenso
quanto a percepção táctil ou visual. Mas esse é um exemplo enganoso. Primeiro
porque a dor não é uma ideia, mas uma impressão. Depois porque a dor pode ser
considerada uma percepção externa, ainda que subjetiva (não interpessoalmente
acessível), dado que localizada no corpo físico de um ser humano. O mesmo pode
acontecer com a fome intensa ou com o desejo sexual.
2.
Independência
da vontade: posso fazer o que
quiser com os produtos de minha imaginação, mas o que pertence ao mundo externo
é independente do meu querer.
3.
Co-sensorialidade.
Não precisa estar presente, mas é indispensável às qualidades primárias de
Locke.
4.
Intersubjetividade
virtual do que é apresentado à percepção. As percepções do que é objetivamente real são passíveis de acesso
intersubjetivo ou interpessoal. Se uma pessoa está só no chuveiro e tem nas
mãos um sabonete ela sabe que é real em parte porque sabe, por experiência, que
qualquer outra pessoa que estivesse ali teria as mesmas percepções.
5.
Coerência
com o contexto espacial e temporal. Se uma pessoa acorda todas as manhãs em seu aposento e vai para o
trabalho, tudo acontece ao seu redor de forma coerente com as suas
expectativas. Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas
propriedades e pelas relações entre elas e outros objetos. (Se, como em uma
estória contada por Marco Polo,
uma pessoa tomasse uma droga que a fizesse dormir, fosse levada para um jardim
cheio de maravilhas, e lá fosse acordada por alguns minutos, devendo então
beber algo que lhe fizesse dormir outra vez, sendo então retornada para onde estava
antes, essa pessoa poderia encontrar dificuldade em saber se o que vivenciou
foi realidade ou se esteve delirando ou se não estava apenas sonhando; a razão
é a falta de continuidade e coerência com toda a sua história passada e
presente.)
6.
Seguimento
de leis naturais. Quando
sonhamos, coisas incríveis podem acontecer: uma pedra pode rolar montanha
acima. Mas quando no mundo real soltamos um objeto pesado no ar ele certamente
cairá.
7.
Seguimento
de regularidades perspectivista no campo da percepção. Por exemplo, quando movimento meus olhos ou
quando me aproximo de um objeto ocorrem mudanças bem determináveis em meu campo
perceptual. O mesmo ocorre com a audição e com o tato. Mas isso não precisa
acontecer na imaginação.
Individualmente cada um desses critérios podem falhar. Se tomarmos um ou
dois desses critérios isoladamente isso não será suficiente para considerarmos
o que percebemos como pertencente a um mundo externo. Quanto a (1), podemos
conceber uma alucinação que pareça ao indivíduo absolutamente real, como é
relatado em casos de alucinose alcoólica. Quanto a (2) há hoje meios pelos
quais um tetraplégico pode aprender a movimentar objetos externos pela simples
ativação do córtex motor. O critério (3) de co-sensorialidade é satisfeito
facilmente nos sonhos. Quanto a (4), em um sonho vemo-nos frequentemente
conversando com outras pessoas cuja presença deveria nos assegurar a realidade
daquilo que estamos vivenciando. Além disso, alucinações coletivas são
possíveis por força da sugestão, por exemplo, quando várias pessoas tomam
juntas um mesmo alucinógeno. Quanto a (5), podemos imaginar um sonho tedioso,
mas perfeitamente coerente... Eis um exemplo real: um homem precisava acordar
cedo, seu despertador tocou, mas ele dormiu outra vez; sonhou então que tinha
se levantado, que entrou no banheiro... Quando estava escovando os dentes sua
esposa o acordou e o fez perceber que estava sonhando. Quanto a (6), sonhos
realistas nos quais as leis naturais e expectativas são seguidas são
perfeitamente possíveis. Quanto a (7), regularidades perspectivistas também
podem ser dadas em sonhos.
A pergunta é se todos esses
critérios podem conjuntamente falhar e mesmo assim o mundo que experienciamos
como externo não ser real. Ou seja: se, no caso em que todos esses critérios de
realidade externa estiverem sendo satisfeitos, ainda assim é possível que as
coisas que compõem a realidade externa não existam. A resposta, como veremos, é
que se estivermos considerando o que chamei de realidade inerente (cap.
V, sec. 4), isto é, aquela que é considerada na exclusão de cenários céticos, a
satisfação conjunta dos critérios de (1) a (7) será plenamente suficiente para
garantir que aquilo que é dado a experiência é externamente real, não se
tratando apenas de sense-data internos, ocorrentes em nossos cérebros.
Note-se que a escolha da
conjunção de todos os critérios acima é compatível com a ideia de que a todos
os nossos perceptos correspondem aos sense-data que ocorrem no cérebro.
Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais usando fMRI e modelos
computacionais não deixam margem para dúvida: eles reconstituem imagens visuais
(os sense data) que ocorrem no cérebro do observador de modo a torná-las
visíveis para outros e para ele mesmo!
Contudo, é possível argumentar que a satisfação conjunta de todos esses
critérios de realidade externa é o que basta para definir o conteúdo
percebido como pertencente ao mundo externo real, entendendo-se aqui realidade
no sentido inerente e não aderente da palavra, o que exclui os
cenários céticos como um caso à parte (ver próxima seção). O conteúdo mental,
os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui interpretados
projetivamente em suas relações, como componentes do que chamamos de
realidade externa, sendo então definidos como a parte percebida dela, na
medida em que conjuntamente satisfizerem os critérios de realidade externa
acima expostos. Estamos agora de posse de uma paráfrase da afirmação de Hobbes
de que a mente tem a tendência a projetar para fora o que lhe é dado na
independência da vontade.
Ainda uma objeção poderia ser
que os dados sensíveis, mesmo que interpretados projetivamente como
propriedades das coisas externas, continuam sendo fenômenos psicológicos
internos, o que facilmente nos reconduz ao idealismo de Berkeley ou ao
ceticismo de Hume. Não me parece que essa conclusão seja inevitável. Considere
a comparação feita no capítulo anterior entre os dados sensíveis e a pequena
imagem projetada pela ocular de uma luneta. Se por um lado, o que é projetado
na retina é uma pequena imagem do disco lunar, por outro o que realmente vemos
é a própria superfície da Lua com suas áreas internas mais claras e mais
escuras. De modo similar, quando olhamos para uma imagem em um espelho e a
vemos como simples imagem, ela se encontra lá no fundo do espelho; mas quando
nós a interpretamos projetivamente como aquilo que realmente vemos, ela é vista
como um conjunto de propriedades físicas que se encontram em frente ao espelho,
as quais não possuem mais nada de imagético. Não diremos nunca que a Lua é uma
imagem projetada por uma lente ocular, nem que as propriedades daquilo que
vemos espelhado não passam de imagens de espelho. Ora, por que então nos
recusarmos a fazer uma distinção similar com relação aos sense data que
sabemos serem dados em nosso sistema nervoso e sua interpretação projetiva em
termos de propriedades externamente observadas?
Resta ainda explicar o que nos faz supor que
a ideia mental possa ser considerada fenomenalmente similar à qualidade
física externa cujo nome usual é “aparência física”. Afinal, meu sense datum do vermelho é
algo subjetivo! Como é possível saber que o vermelho de uma superfície é
similar a ele? A resposta é que escolhemos dizer assim porque, como foi notado
no capítulo anterior, o conteúdo da percepção tanto pode ser
interpretado em termos de aparência física externa quanto em termos de sense
data. A imagem mental do disco lunar repete as mesmas variações de luz e
sombra do disco lunar real. Uma pessoa pode hoje em dia comparar a aparência
física de algo com a imagem dessa aparência produzida sem seu cérebro como
sense data e reconstruída computacionalmente com auxílio de fMRI de maneira a
verificar objetivamente que elas são similares. Não podemos ao certo saber se
outra pessoa que vê o vermelho está tendo a mesma experiência fenomenal que
nós, mas podemos nos aproximar disso. É verdade que seres vivos muito diversos
tem acesso a qualidades fenomenais diferentes. Mas suas relações tanto
internas (digamos, diferentes tonalidades de vermelho em uma mancha vermelha)
quanto externas (as relações da mancha com as outras coisas e com o observador)
devem permanecer as mesmas enquanto existirem. Uma águia diferencia melhor
certas cores e tem visão mais aguçada, adicionando propriedades ao fenômeno,
mas, sem com isso alterar as propriedades fenomenais já distinguidas por nós,
incluindo os critérios de realidade através das quais distinguimos o fenômeno
como sense datum do fenômeno como a aparência física externamente dada.
13
A satisfação conjunta dos critérios de realidade externa recém
apresentadas não é imune às assim chamadas hipóteses céticas, como a de que a
pessoa está sonhando, de que ela está sendo enganada por um gênio maligno, ou
de que ela não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um programa
encenando a vida em um planeta inexistente chamado Terra...
Hipóteses céticas radicais são
ao menos logicamente possíveis. Não é absurdo pensar que eu possa certa noite
acordar em um lugar estranho, rodeado por pessoas com um aspecto estranho com o
qual não estou acostumado, meu próprio corpo sendo curiosamente semelhante ao
delas. Elas me explicam em bom português que eu havia sido até aqui um cérebro
na cuba, no qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia no
planeta terra”. Me informam que esse é um experimento comum no planeta Ômega,
feito para estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que de agora
em diante eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha vida no
suposto planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado em um saudável corpo
de um habitante de Ômega. Embora talvez precisando de algumas seções de psicoterapia
eu acabo me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela
satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados,
especialmente o de coerência. Nesse caso, tanto agora quanto em minha vida
anterior, os critérios de realidade externa estavam sendo conjuntamente
satisfeitos! Mas está claro para nós que a única realidade externa
verdadeiramente real é a do habitante do planeta Ômega, enquanto a realidade
externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em cenários céticos os
critérios de realidade externa falham!
A solução do problema não é
difícil de ser encontrada. Basta distinguirmos entre dois conceitos de
realidade externa, que chamei de conceito inerente e aderente de
realidade (cap. V, sec. 4). Os critérios de realidade até agora expostos dizem
respeito ao conceito de realidade inerente. Nesse sentido, tanto a minha
vida anterior como cérebro na cuba quanto a minha vida atual como habitante do
planeta Ômega são perfeitamente reais, posto que ambas satisfazem conjuntamente
os critérios de realidade externa. Mas no sentido aderente do conceito de
realidade externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não era real, pois
real é meu mundo em Ômega. Sou capaz de dizer isso porque o conceito de
realidade aderente só é aplicado em cenários céticos, quando precisamos
comparar duas realidades inerentes. Nesse caso prefiro chamar de aderentemente
real ao mundo que inclui o outro como um produto ficcional de si mesmo. No caso
em questão, o mundo da terra, no qual vivi como cérebro na cuba pode ser
explicado como tendo sido claramente um produto ficcional do mundo no qual vivo
agora. Como consequência, o mundo no qual vivo agora é não só aderentemente
real, mas também inerentemente real, enquanto o mundo no qual eu pensava estar
vivendo como professor de filosofia no planeta terra não era aderentemente
real; ele era aderentemente irreal, mesmo que inerentemente real.
O critério de realidade externa
aderente é a coerência do mundo com a hipótese cética. Enquanto nenhum
cenário radicalmente cético ocorre nós assumimos que tanto o critério de
realidade inerente quanto o critério de realidade aderente estejam sendo
satisfeitos. Mas no implausível caso do aparecimento de um cenário cético
seremos forçados a fazer a comparação e tomar uma decisão quanto a qual dos
mundos é aderentemente real. Assim, suponha que após ter me acostumado com a
vida em Ômega uma noite dessas eu acorde no sádico mundo do planeta Zeta, no
qual seres monstruosos me dizem que eles haviam feito apenas uma brincadeira de
mau gosto e que o mundo do planeta Ômega também não existe, pois eu verdade sou
apenas um cidadão menos afortunado do planeta Zeta... Nesse caso talvez eu
acredite que sim, ou então terei dúvidas, suspenderei o juízo ou (mais provavelmente)
perca de vez a razão.
14
Não
é difícil desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de
que nós preenchemos os vazios entre as percepções imaginando que os objetos do
mundo externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o
problema é com a ideia de permanência. A gramática lógica do conceito de
permanência dos objetos externos não parece ser precisamente aquela sugerida
por Hume. Quando o homem de Java ao voltar da caça pela primeira vez observou
que tanto a sua caverna, quanto sua mulher e seus filhos, permaneceram onde
estavam desde que ele saiu para caçar, ele não queria dizer que eles
permaneceram lá por recurso à imaginação, tal como Hume entende. Ele queria
dizer apenas que os encontrou no mesmo lugar onde esperava encontrá-los. Se for
mais refinado ele dirá que se ele ou qualquer outra pessoa fossem postados nas
circunstâncias adequadas, ou seja, de frente à caverna, eles a veriam e
poderiam entrar nela, e que então poderiam encontrar sua mulher e filhos e que
esse experimento poderia em princípio ser feito em qualquer tempo enquanto ele
estava caçando. Ele poderia dizer que se no tempo em que estava caçando um
visitante estivesse o tempo todo presente na caverna, ele observaria tanto a
caverna quanto a sua família. A objetividade empírica e permanência daquilo que
não está sendo observado não significa nada mais do que a garantida
possibilidade de observação sob condições adequadas. Trata-se aqui também
da simples e verdadeira definição do que se constitui a permanência de
algo sem estar sendo observado, ignorada por Hume. Eis como podemos definir o
conceito de permanência realmente usado:
Um objeto permanece (Df.): quando sempre que
condições adequadas para a sua percepção por um sujeito perceptual forem dadas,
ele é percebido.
A
permanência é aqui definida como perceptibilidade (a qual se dá através
da satisfação conjunta dos critérios de realidade externa). Assim, não
precisamos pensar que o objeto precise estar presente para ser atestado como
permanente, uma vez que aquilo que entendemos por permanência é a sua perceptibilidade
virtualmente interpessoal sob condições adequadas de percepção, o
que só alcançamos através da experiência. Dessa definição deduzimos que se
existisse um observador em condições adequadas disposto a observar o objeto por
todo o tempo de sua existência, ele seria por todo esse tempo observado. Mas
isso não nos faz exigir que a permanência do objeto dependa de este estar sendo
sempre observado, como Hume sugere. O engano é proveniente do fato de que ele
nos leva a imaginar uma espécie de observador invisível que está sempre
acompanhando a existência do objeto, fazendo-nos confundir a ideia da
permanência com a ideia desse acompanhamento.
A permanência das coisas quando não
observadas, entendida como a garantida possibilidade de observação é algo
aprendido por inúmeras e variadas inferências indutivas anteriores acerca das
regularidades do mundo em que vivemos. Não precisamos, como Hume, imaginar algo
parecido com um olho mágico e invisível, que está permanentemente percebendo as
coisas enquanto não as percebemos, para com isso nos certificar de sua
permanência.
15
A
maneira como Hume se liberta do eu dos racionalistas, entendido como uma
substância contínua, simples e sempre idêntica a si mesma (a “alma”), segue a mesma
linha. Para ele, quando voltamos para nós mesmos, tudo o que percebemos é:
...um feixe ou coleção de percepções diferentes, que
se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram em perpétuo fluxo e
movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas sem variar nossas
percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão. E todos os
nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há na alma uma
única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer por um instante.
(...) Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo, nem identidade
em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão natural em imaginar
essa simplicidade e identidade. (...) As percepções sucessivas são as únicas
que constituem a mente...
Aqui
também para ele é a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito
contínuo e simples, identificável com a alma.
Hume também rejeita a sugestão de Locke,
segundo a qual a identidade do eu depende da memória. Ao contrário, a memória
deve pressupor o eu de modo a poder identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar
no fato de que não podemos ter memória de cada instante vivido. (Pense, por
exemplo, na ausência de memória que temos de nós mesmos enquanto dormimos).
Note-se que Hume está querendo refutar o eu
tradicional de Descartes e da maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja,
uma alma simples, imutável e eterna, demostrando que não temos acesso
experiencial a essa espécie de sujeito. Contudo, ele também tem uma concepção
positiva do eu psicológico que poucas vezes é notada. É quando ele campara o eu
a uma república ou coletividade (republic or commonwealth)...
cujos diversos membros encontram-se unidos por laços
recíprocos de governo e subordinação, dando lugar a outras pessoas que propagam
a mesma república em incessante mudança das partes. E assim como a mesma
república individual pode mudar não só seus membros, mas suas leis e
constituição, da mesma maneira uma mesma pessoa pode mudar seu caráter e
disposição, tanto quanto suas impressões e ideias, sem perder sua identidade.
Em
meu juízo essa passagem contém o insight fundamental sobre o que podemos
verdadeiramente chamar de eu empírico. A sugestão de que o eu possa ser
comparado a uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu como algo
que somos capazes de conhecer pela formação de uma autoimagem, entendida
como a ideia que fazemos de nós mesmos. Uma pessoa não pode ter acesso imediato
a tudo aquilo que caracteriza o seu eu, pois isso seria pura mágica. Mas
ela pode sempre aprender mais e mais acerca de si mesma. Ela pode ter a
experiência reflexiva de seus estados mentais e paralelamente a isso
identificar suas reações comportamentais diante de circunstâncias que se
repetem. Ela também pode comparar essa experiência com os comportamentos e
supostos estados mentais de outras pessoas em circunstâncias similares. E pode,
comparativamente e aos poucos aprender quais são as características de si mesma
como sujeito, em contraste com as de outras pessoas. A auto-imagem que a pessoa
dessa maneira cria deve ser a de uma classe de propriedades mentais cujos
membros não precisam ser definitivos e se encontram mais ou menos
interconectados. Uma pessoa pode certamente formar uma auto-imagem distorcida
de si mesma e isso acontece frequentemente. Mas outras pessoas, analisando seu comportamento,
poderão chegar a conclusões concordantes ou discordantes sobre quem ela
realmente é.