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terça-feira, 30 de julho de 2024

ORIGENS DO EMPIRISMO INGLÊS: BACON E HOBBES (VIII)

  DRAFT para o livro "Introdução histórica..." (A SER PUBLICADO)

 

 

   

 

VIII

ORIGENS DO EMPIRISMO INGLÊS

 

 

Assim como no continente os filósofos foram influenciados pelas matemáticas, produzindo sistemas especulativos racionalistas, os filósofos ingleses foram influenciados pelo desenvolvimento das ciências empíricas como a física newtoniana e de suas implicações, desenvolvendo sistemas empiristas de pensamento.

 

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Bacon. O primeiro grande defensor do empirismo foi Sir Francis Bacon (1561-1626).[1] Ele pode ser considerado o primeiro filósofo especializado em filosofia da ciência. Bacon desdenhava o método dedutivo da silogística aristotélica, pondo em seu lugar o método indutivo próprio das ciências empíricas. Para ele a ciência empírica deveria se desenvolver pela contínua adição e seleção de observações em busca de invariantes e suas causas. Ele valorizava não tanto a indução enumerativa, que apenas probabiliza uma generalização científica, mas principalmente a indução excludente, uma vez que ela é capaz de falsear decisivamente uma generalização.

   Essa última ideia foi retomada e desenvolvida com outro nome no século XX por Karl Popper. Para esse último, a característica fundamental da ciência é que suas teorias sejam susceptíveis de refutação por meio de testes empíricos.[2] Uma hipótese resultante de indução enumerativa nunca é garantida. Um exemplo é a generalização “Todos os cisnes são brancos”, que era considerada certa pelos europeus antes que eles descobrissem a Austrália. Afinal, todos os cisnes já enumerados eram brancos. Contudo, depois que foram divisados cisnes negros na Austrália a generalização antes dada como certa foi decisivamente refutada.

   Para ganharmos certeza da verdade de uma generalização científica precisaremos verificar todas as suas instâncias, o que costuma ser praticamente impossível. Como Popper notou, mesmo que alcancemos a verdade empírica última e absoluta, jamais poderemos saber que realmente a alcançamos. Mas o mesmo não acontece quando apelamos para o falseamento, pois basta uma única instância contrária ao que foi previsto pela hipótese para que ela seja falseada.

   O exemplo predileto de Popper foi a prova da teoria da relatividade generalizada, realizada pela expedição de Arthur Eddington em 1919. Segundo a teoria newtoniana, a gravidade seria uma força agindo sobre objetos que possuem massa. Como a luz não possui massa, ela não pode ser atraída pela gravidade. Mas segundo a teoria da relatividade, a gravidade não é mais uma força agindo à distância, mas um encurvamento do espaço-tempo próximo aos corpos massivos. Como consequência, mesmo as ondas de luz precisam nesse caso seguir uma trajetória curva, em conformidade com a curvatura do espaço-tempo. Daí que, em um eclipse solar, quando as estrelas anteriores ao sol podem ser vistas, ao observador situado na terra elas aparecem como se estivessem mais distanciadas do sol, pelo fato de seus raios de luz serem encurvados ao passarem próximos dele. No eclipse solar de 1919 essa deflexão da luz foi comprovada por meio de fotografias. Esse foi um teste crucial para a teoria, tornando-a mundialmente conhecida. Se nenhuma deflexão fosse encontrada, a teoria da relatividade generalizada teria caído por terra. Assim, podemos não saber se a teoria relativista da gravitação é absolutamente verdadeira, ou mesmo se ela vale para todo o universo; mas sabemos que ela se demonstrou suficientemente confiável para resistir a um teste de falseamento crucial.

   A ideia de que a possibilidade de falseamento experimental estabelece um limite entre ciência e não-ciência pode valer em boa medida para a física. Mas ela não vale para muitas outras ciências, como a biologia evolutiva, a história, a antropologia, a linguística, a economia… ciências nas quais a produção de experimentos falseadores é geralmente impossível. Afora isso, por influência das ideias de Hume, por toda sua vida Popper defendeu a ideia implausível de que a generalização por indução enumerativa não existe. Por isso ele pensava que as novas teorias científicas devem ser baseadas somente no método hipotético-dedutivo e que nossas hipóteses científicas devem se resumir a produtos da imaginação e criatividade humanas.

   No que concerne à ciência avançada de nossa época podemos aceitar as hipóteses imaginativas propostas por Popper. Esse pode ter sido o famoso caso da hipótese da equivalência entre gravidade e movimento acelerado da qual resultou a nova teoria da gravitação de Einstein: um insight genial que produziu resultados fabulosos. Mas se nos ativermos somente a isso estaremos esquecendo que em suas bases essas ciências maduras já haviam sido construídas sobre o sustentáculo de uma infinidade de inferências indutivas enumerativas originárias. Encontrando-se ainda em um momento inicial do desenvolvimento das ciências empíricas, Bacon estava imune ao radicalismo anti-indutivista de Popper que ele com razão consideraria absurdo.

 

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Hobbes. Um outro filósofo que ajudou a preparar o caminho para Locke foi Thomas Hobbes (1588-1679). Ele viveu em tempos de grande convulsão social. A Europa Continental estava sendo devastada pela Guerra dos Trinta Anos, que durou de 1618 a 1648 e da qual resultaram mais de quatro milhões de mortes. Por esse tempo aconteceu na Inglaterra uma guerra civil com duração de seis anos, terminando com a decapitação do rei Charles I em 1649. Ela foi seguida da ditadura de Oliver Cromwell, eleito pelo parlamento, que só acabou com a sua morte e que foi seguida pelo coroamento de um novo rei, Charles II, que era secretamente um católico, privilegiando os católicos enquanto a maioria do parlamento era protestante, o que gerou novos conflitos...

   Hobbes não viveu para assistir à revolução gloriosa de 1688, pela qual Mary, que era protestante, destronaria seu pai, James II, o sucessor de Charles II. Ela tornou-se rainha junto a seu esposo, William de Orange, ambos cedendo poder ao parlamento – uma solução que foi aos poucos aperfeiçoada até tomar a sua forma democrática atual.

   Ter testemunhado tempos tão sombrios foi certamente a maior razão do pessimismo de Hobbes. Ele foi levado a pensar que só um governo com poderes absolutos seria capaz de manter a ordem em uma sociedade, prevenindo a anarquia. Essa é a tese de sua obra máxima, O Leviatã. (Leviathan 1651)[3]. John Locke, que viveu a revolução gloriosa, moderou as ideias de Hobbes na forma de um liberalismo político.

   Como filósofo teórico, Hobbes não criou um sistema original, mas atualizou o materialismo naturalista com base na emergência das novas ciências. Ele viajou pela Europa, foi amigo de Bacon, conheceu Galileu e Gassendi, um discípulo de Descartes, tendo sido influenciado pelos escritos desse último. Vou expor algumas ideias.

   Para Hobbes quando o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito nós temos um enunciado necessário. Por exemplo: “Triângulos tem três lados”. Afinal, o triângulo é uma figura plana, fechada, com três lados. Mas quando o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, temos um enunciado contingente. Por exemplo: “O carvão tem cor preta.” Como não é parte da definição de carvão que ele seja preto, o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito e o enunciado é contingente. Já vimos algo assim em Leibniz...

   Hobbes esposava um mecanicismo materialista e um determinismo universal. Mesmo a substância deveria ser material. Como determinista, ele via o livre arbítrio como a mera ausência de limitação ou coerção externa. Assim, o escravo liberto, o rio que rompeu a barragem e agora corre livremente, o jovem que atingiu a maioridade e agora pode fazer o que quiser, todos eles são livres porque não tem mais impedimento e não porque deixaram de ser causalmente determinados. Com esse novo conceito de liberdade, Hobbes rompeu definitivamente com o libertarismo sustentado por filósofos atomistas como Epicuro e Lucrécio, além dos filósofos católicos da Idade Média, segundo os quais ao decidir livremente precisamos ser capazes de transcender o determinismo causal presente no mundo físico. Hobbes foi o primeiro filósofo claramente compatibilista. Para ele o livre arbítrio é perfeitamente compatível com o determinismo causal, tendo um sentido meramente negativo (ver cap. XVI, sec. 7).

   Ele entendia as sensações como movimentos no cérebro e a percepção do mundo pelos dados sensíveis como resultado de uma tendência natural da mente de projetar para fora o que lhe é dado na independência da vontade. A imaginação é resultado da combinação de imagens já experienciadas. Assim, imaginamos um centauro combinando a figura de um homem com a de um cavalo. E a memória é uma imagem adicionada à consciência de que ela foi anteriormente percebida.

   Acusaram Hobbes de ser ateu, mas injustamente. Hobbes foi educado por um pastor calvinista depois da perda dos pais, o que fez dele uma pessoa de fé religiosa. Ele acreditava ser o próprio Deus também constituído de matéria. Ele seria o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo. (O entendimento materialista da divindade é ao menos tão problemático quanto seu paralelo idealista.)

   Quanto ao problema dos universais, Hobbes defendeu o nominalismo seguindo William Ockham. Para ele um termo geral não é mais do que um nome que se aplica a todo um grupo de objetos individuais, sem maior discriminação.

   O importante em Hobbes é a sua filosofia social e política, tal como foi exposta no Leviatã. O contraste maior foi com Rousseau, que idealizou o ser humano natural como um “nobre selvagem”: bom por natureza e tornado mau pela sociedade.[4] Para Hobbes era o contrário: o ser humano é mau por natureza. Mesmo quando faz algo de bom, ele o faz por egoísmo. Se faz caridade é para demonstrar seu poder. Se sente piedade é por temer um desastre similar consigo mesmo. Se busca o poder é para desfrutar da glória de dominar outras pessoas… “Os homens”, escreveu ele, “são tomados de um perpétuo e incansável desejo de poder sobre poder, que só cessa com a morte”.[5]

   Devido à natureza egoísta do ser humano e dada a inevitável escassez de recursos, os homens estão sempre competindo entre si. O resultado disso é a guerra, a luta de todos contra todos, pois só a morte de uns tornará possível a sobrevivência de outros: “homo homini lupus”. Disso Hobbes concluiu que a condição natural da humanidade é a da guerra. E o destino do ser humano em sua condição natural é o de ter uma vida “solitária, pobre, suja, bruta e curta”. Para Hobbes, só a sociedade pode educar o egoísmo humano, fazendo do homem um ser civilizado. Não é de admirar que, com uma concepção tão pessimista da natureza humana, ele tenha sido levado a conclusões um tanto insólitas. (Não parece que Hobbes tenha sido um ser humano adorável.)

   A solução proposta no Leviatã foi que a única maneira de evitar a guerra de todos contra todos é que o povo ceda o poder a uma autoridade absoluta. Para ele, um governo precisa ser formado através de um pacto (covenant), que é uma espécie de contrato através do qual os indivíduos transferem os seus direitos naturais de fazerem o que quiserem para sobreviver, inclusive matarem seus semelhantes... para um poder soberano, em troca de paz e segurança.[6]

   Esse pacto é sustentado por certas leis da natureza (divinas ou morais), as quais nos dizem que os indivíduos sentem que têm as obrigações de buscarem a paz, sempre que possível, de dispor de seus direitos naturais e de manter-se no acordo, conquanto os outros também o façam. Essas leis asseguram o mantenimento do pacto cuja existência é devida aos interesses individuais de realização dos direitos naturais. Com isso é criada uma sociedade civil através da qual são estabelecidas leis que nos dizem quais são as ações humanas justas ou injustas. E através dele são garantidos os direitos individuais dos cidadãos, que se tornam livres na medida em que sua liberdade não seja transgressora da liberdade alheia.

   Ainda que o soberano esteja acima das leis, e ainda que seus poderes de vida e morte sobre os cidadãos sejam absolutos, uma vez que foi agraciado pela soberania ele tem o dever de não decepcionar aqueles que lhe cederam tais direitos. Fica claro que se o soberano agir de modo a tornar a vida das pessoas insuportável, elas terão pleno direito de destituí-lo do poder. E a razão disso é que se foi o desejo de autopreservação que fez com que as pessoas realizassem o pacto, de modo que se o soberano não souber zelar por essa autopreservação, as pessoas terão pleno direito de dissolver o pacto.

   Contra Hobbes é para ser notado que geralmente, quando a espécie de pacto sugerida por Hobbes é feita sem que reste controle algum por parte das pessoas que deram ao soberano poder de vida e morte sobre elas, o resultado fica na dependência das circunstâncias e humores do soberano. Em tal contexto ele pode facilmente degenerar-se em um tirano que com seu poder absoluto escraviza seu povo sem que o povo possa fazer qualquer coisa para impedi-lo. Hobbes não tinha qualquer remédio contra esse tipo de problema.

   A favor de Hobbes deve ser notado que embora ele preferisse que o poder soberano fosse exercido por um monarca absolutista, ele admitia que esse poder pudesse ser exercido por um corpo ou uma assembleia de pessoas. Ele provavelmente teria aceito o modelo parlamentarista resultante da revolução gloriosa se tivesse vivido o suficiente para vê-lo surgir. Mas como filósofo ele foi refém de seu tempo. O grande mérito do Leviatã foi o de ter, pela força de seus argumentos, construído o palco sobre o qual seriam encenadas as discussões da filosofia política nos séculos seguintes.

 

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O fator social. Nos dias de hoje há boas razões para se rejeitar tanto a tese de Rousseau, de que o homem é naturalmente bom, quanto a de Hobbes, de que o homem é naturalmente mau. Antes de postular a sua implausível pulsão de morte[7] Freud fez uma importante distinção entre duas espécies de pulsões (trieb) ou instintos: a pulsão de sobrevivência do indivíduo e a pulsão de sobrevivência da espécie. A primeira é por definição egoísta. Mas a pulsão de sobrevivência da espécie não pode enquanto tal ser egoísta, dado que sua satisfação deve servir a outros membros da espécie, mesmo que em detrimento do indivíduo. Em meu juízo a distinção entre essas duas pulsões básicas é por demais bem fundada na sociobiologia para ser desconsiderada. Entre os animais isso é muito bem documentado. Mas também é fácil encontrar exemplos entre os humanos, como o caso de um pai que morreu tentando salvar os filhos pequenos do afogamento em uma situação na qual as chances de ele mesmo sobreviver eram mínimas. (Seria ridiculamente falacioso dizer que o pai que se afogou tentando salvar os filhos fez isso por qualquer razão que não fosse o desespero de vê-los se afogarem...) Ambos, egoísmo e altruísmo são, pois, intrínsecos à natureza humana, encontrando-se geralmente misturados em nossas ações. Nosso comportamento social é biologicamente motivado por essa natureza bipolar e amiúde conflitiva. E a ele devem ser acrescentadas variáveis individuais e socioambientais.

   Ao que foi dito acima deve ser adicionado que a natureza humana é individualmente variável e com isso também as medidas de egoísmo e altruísmo que dela dependem. Psiquiatras que estudaram psicopatias desenvolveram meios confiáveis e sofisticados para diagnosticá-la. Embora menos de 1% sejam psicopatas graves, é fácil identificá-los, dado que muitos deles acabam cometendo homicídios, sendo pegos e levados à prisão. Mas há os psicopatas leves, que constituem 3-4% da população. Esses sentem prazer em fazer o mal, conquanto não sejam descobertos. Se o escore do teste em um extremo identifica psicopatas é porque deve existir o extremo oposto, digamos, o das “criaturas angelicais” – os antipsicopatas – pessoas naturalmente altruístas e inclinadas para o bem, também existe. Combinações genéticas casuais devem originar ambas as tendências e também os extremos, posto que a sociedade humana precisa de uma diversidade de personalidades como meio de produzir uma divisão de trabalho organizadora e coordenadora das ações humanas e facilitadora da sobrevivência da comunidade como um todo. Casos mais próximos do extremo da psicopatia, quando duramente educados, podem se tornar bons líderes (vide o caso do general George Patton ou mesmo de Winston Churchill, particularmente úteis durante a Segunda Guerra Mundial, mas depois não mais). Já os mais próximos do extremo de altruísmo também podem se demonstrar úteis (vide Martin Luther King e Mahatma Gandhi, que acabaram sendo assassinados pela ofensa que suas existências representavam aos amor próprio dos mais beligerantes).

   Junto aos fatores genéticos temos igualmente os fatores socioambientais a modelar o comportamento. O cão preso a uma corrente se torna agressivo, o cão tratado com mimos se torna dócil e confiante. Ora, assim também é com os seres humanos. Os rigores da educação espartana produziam seres humanos desmedidamente propensos à agressão. Isso era necessário já que os hilotas (os habitantes originários) reduzidos à condição de escravos do estado, formavam a vasta maioria da população e precisavam ser subjugados. Os homens das civilizações pré-cristãs eram geralmente capazes de feitos de coragem e brutalidade impensáveis para nós. A educação e a cultura são, pois, fatores tão fundamentais quanto os genéticos no balanço entre o comportamento egoísta e altruísta.

   Tudo considerado, tanto o mito do altruísmo quanto o do egoísmo inatos ficam desfeitos. O ser humano não nasce bom ou mau por definição, sendo apenas geneticamente predisposto, como indivíduo, mais para um ou para o outro extremo. Em adição a isso o meio (a educação, a sociedade) é capaz de modelar o comportamento humano tanto mais em uma quanto mais em outra direção.

 

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A escassez. Voltemos agora a Hobbes. Vimos que no que concerne ao egoísmo inato ele estava simplesmente errado. Mas no que concerne à escassez de provimentos e recursos somos forçados a lhe dar razão, dado que na história da espécie humana a guerra e a violência sempre foram uma constante e que a principal causa, em uma reprodução do que acontece em populações animais, é a conjunção do aumento da população com a escassez de alimentos e, particularmente no caso humano, a falta de recursos que facilitem a vida.

   O paralelo com os animais é esclarecedor. As espécies tendem a se reproduzir sempre mais do que seus meios de subsistência o permitem, sendo o limite geralmente imposto pelas outras espécies concorrentes dentro do ecossistema. Considere o caso dos guanacos na Patagônia. Existem ainda muitos milhares desses simpáticos herbívoros, que depois de se tornarem uma espécie protegida tendem a se reproduzir como coelhos. Entre seus predadores naturais estavam o homem e o puma. Esses predadores limitavam o número de guanacos. Os condores, por sua vez, se alimentavam das carcaças dos guanacos mortos. Com a limitação do número de guanacos, o capim dos desertos da Patagônia podia crescer outra vez... Um ecossistema funciona através de limitações mútuas entre as espécies. A isso é preciso acrescentar a competição intraespecífica. Os guanacos são territorialistas, reunindo-se em grupos de fêmeas liderados por um macho que é o responsável pela segurança do grupo, por manter o território e perseguir os oponentes.

   Ora, algo semelhante aconteceu com os grupamentos humanos ao longo da história. Relatos de grupos humanos de caçadores-coletores que viveram em um estado comparável ao do paleolítico, como os onas na Terra do Fogo, mostram seres humanos geralmente capazes de profunda empatia, que cuidavam de seus doentes e que recebiam bem os estrangeiros. Antes da chegada dos europeus, as pequenas tribos onas lutavam umas contra as outras em uma competição intraespecífica pela sobrevivência em territórios cuja principal fonte de alimento, os guanacos, era limitada.[8]

   A condição humana por muito tempo não foi muito diferente. A melhor explicação que conheço encontra-se na filosofia do humanitismo de Quincas Borba, personagem do romance homônimo de Machado de Assis. Eis como ele explica o mote “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor as batatas”:

 

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

 

Historicamente, entre os humanos também foi sempre assim. Era inevitável que as tribos indígenas guerreassem entre si na competição territorial por alimentos. Para se perceber a diferença entre os modos geralmente corteses e amenos do homem contemporâneo e a por vezes inacreditável violência, crueldade, coragem e resiliência física do homem pré-cristão, basta ler os historiadores antigos. Eis dois breves trechos de Plutarco em seu livro sobre a vida de César:

 

Acílio, na batalha naval frente a Massala, ao subir num barco inimigo teve a mão direita arrancada por um golpe de espada. Ele não largou o escudo que segurava na mão esquerda, acertando os inimigos na cara, pondo todos em fuga e tomando o barco.[9]

Na África Cipião escravizou todos os passageiros do barco que havia tomado, mas ofereceu poupar a vida do questor Petro. Este declarou que os soldados de Cesar não tinham o costume de receber o perdão, mas sim de concedê-lo, matando-se com um golpe de espada.[10]

 

Hoje, entre as pessoas civilizadas, o comportamento humano costuma ser muito mais brando. Mas esse verniz de civilização não chega a ser mérito nosso. A civilização foi acima de tudo o resultado do desenvolvimento da ciência e da técnica, que tornaram a vida humana muito mais fácil e em muitos casos acabou com a escassez de recursos, principalmente a de alimentos. Isso significa que se ocorresse algo como uma guerra atômica nós perderíamos rapidamente nossos valores humanos. No filme The Day After, que retrata uma guerra nuclear entre as grandes potências, em uma cena final aparecem na escuridão cinzenta grupos de pessoas portando armas, invasores prontos a se defender e a se apossar de tudo o que puderem encontrar.

   Usando conceitos freudianos costumamos caracterizar a civilização como sendo proporcional ao nível de repressão pulsional, geralmente expresso na capacidade de postergação racional de sua satisfação por meio de mecanismos como o da sublimação. Se, ao invés disso, nosso comportamento civilizado só é alcançado devido às facilidades de um mundo tecnológico, então estamos longe de sermos tão civilizados quanto gostaríamos de supor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Francis Bacon: Novo Organon [instauratio magna] (São Paulo: Edipro 2014).

[2] Karl Popper: A Lógica da Pesquisa Científica (São Paulo: Cultrix 2013).

 

[3] Thomas Hobbes: Leviathan (1651) Trad. port. Leviatã: Matéria, palavra e poder de uma República eclesiástica e civil. (Petrópolis: Vozes 2020)

[4] Jean-Jacques Rousseau: O contrato social. (Edipro: 2017)

[5] Leviatã parte I, cap. 11.

[6] Leviatã, parte II, cap. XVII.

[7] Freud postulou mais para o final de sua vida uma pulsão de morte (Thanatos) versus uma pulsão erótica (Eros), a primeira sendo capaz de explicar o elemento destrutivo presente na natureza humana. Contudo, é mais fácil pensar que a cultura germânica repressiva na qual Freud foi criado o tenha feito exagerar o elemento de agressão e auto-agressão no comportamento humano, perfeitamente explicáveis sem essa alternativa metafísica.

[8] Menos civilizados foram os europeus que acharam por bem exterminar os Onas (ver o documentário: “Los Onas”, por Anne Chapman, 1967).

[9] Plutarco: Vidas Paralelas: Alexandre e Cesar. (São Paulo: L&PM, 2006) p. 127.

[10] Plutarco, Ibid, 128.

 



HUME: INTRODUÇÃO E CRÍTICA (XI)

 Draft para o livro “Uma introdução histórica à filosofia”

 

 

 

 

XI

HUME: DESAFIOS CÉTICOS

 

A vida de um homem não é de maior importância para o universo do que a de uma ostra.

Hume

 

 

Já foi dito que a filosofia é um método para se inventar muitos problemas com base em algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766) exemplificou-o de maneira incomparável. A conclusão inaceitável de sua filosofia é que não há razão para se acreditar nem na existência de um mundo externo, nem em sujeitos humanos espirituais, nem, certamente, em Deus. Tudo o que a razão nos permite atestar é a existência de bandos de ideias se sucedendo umas às outras.

   O que importa, obviamente, não é essa conclusão absurda, mas os extraordinários caminhos argumentativos que Hume percorreu para chegar a ela. Os desafios céticos por ele desenvolvidos possuem a marca da profundidade, posto que ainda hoje nos incitam a buscar respostas.

 

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Vida. A maior ambição de Hume era tornar-se famoso por sua contribuição para o progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e honestamente admitiu. Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O caráter imaginativo e desafiador de sua argumentação não deixa de nos lembrar da criação artística. Nisso ele era oposto a Locke, uma pessoa com treinamento científico, que preferia deter-se diante de qualquer resultado que lhe parecesse absurdo demais para ser verdadeiro, fazendo exceção apenas para aquilo que de algum modo vindicasse sua crença religiosa.

   Hume veio de uma família de poucas posses, seu pai era advogado. Para ganhar a vida ele precisou trabalhar para a nobreza da época nos mais diversos empregos, até alcançar independência financeira. Ele nunca se casou. Mas era susceptível às mulheres. A. J. Ayer conta que aos 23 anos, pouco depois de deixar a Escócia para trabalhar como escrivão em Bristol, ele foi citado em um processo movido por uma criada local por ter tido um filho ilegítimo com ela – uma acusação que nunca foi provada.[1]

   Hume passou a vida estudando. Sua obra principal, planejada desde a adolescência e escrita durante três anos de recolhimento na França, foi o Tratado da natureza humana,[2] publicado quando ele tinha 28 anos.  Esse estudo é considerado, com boas razões, a mais genial obra filosófica até hoje escrita em língua inglesa. Para sua grande decepção, ela não encontrou acolhimento algum, além de três resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais tarde, após a publicação de uma história da Inglaterra em seis volumes, ele se tornou um escritor conhecido e venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra e na França. Essa última obra permitiu-lhe viver para escrever.

   As outras obras filosóficas mais importantes de Hume, como as Investigações sobre o entendimento humano e a Investigação sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que importantes exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra principal.

   Hume tentou ser aceito como professor nas Universidades de Edimburg e Bristol, mas foi rejeitado por suspeita de ateísmo. Nisso seus críticos tinham razão. Em seu livro intitulado Diálogos sobre a religião natural, que teve o cuidado de não publicar em vida, ele apresentou argumentos rejeitando a imortalidade da alma e sugerindo que só um Deus cruel poderia ter criado um mundo tão injusto como o nosso. Ele não aceitou a presença de um ministro religioso para consolá-lo no leito de morte. Em sua “oração funeral para si mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois afinal “ao morrer aos sessenta e cinco um homem não faz mais do que abreviar alguns anos de enfermidade”.[3]

   Hume era conhecido como uma pessoa bondosa, com um temperamento brando e agradável, acompanhado de um inexaurível otimismo, o que torna verdadeiras as palavras de seu amigo Adam Smith, que o considerava “um homem perfeitamente sábio e virtuoso, tanto quanto o admite a frágil natureza humana”.[4]

 

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Impressões e ideias. Do mesmo modo que Locke, Hume também queria estabelecer os limites do conhecimento humano de modo a obstar uma metafísica e uma teologia destituídas de sentido. Mas, enquanto a obra de Locke era construtiva, a obra de Hume foi desafiadoramente cética em sua exploração dos pontos fracos das filosofias de seus antecessores. Enquanto Locke tinha a humilde intenção de “arrumar a sala”, Hume era ambicioso o suficiente para querer construir uma nova ciência da natureza humana com base na reflexão introspectiva e observação comportamental, do mesmo modo que Newton havia construído uma ciência do mundo natural resultante da experiência externa. Ele via a ciência que pretendia estar construindo como ainda mais importante, uma vez que somente conhecendo melhor nossa própria natureza saberemos como é possível construir qualquer outra ciência!

   Hume começou o Tratado reeditando sumariamente a teoria das ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o que chamou de percepções. A palavra ‘percepção’ está simplesmente no lugar de qualquer conteúdo da mente humana. As percepções dividem-se em impressões ideias.[5] As ideias são cópias mnêmicas das impressões sensíveis ou emocionais, imagens evanescentes das últimas, tanto no pensar quanto no raciocinar. As impressões distinguem-se das ideias pela vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e consciência, como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as impressões possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos. Ele admitiu que por vezes as ideias possam ser mais intensas que as impressões, mas a exceção apenas confirma a regra.

   As impressões podem ser simples ou complexas. As impressões simples são de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas. As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias simples aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória, sendo, portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser decompostas em ideias simples.

   Ideias complexas podem ser recordações ou ideias da imaginação.  As recordações são consideradas por Hume cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e a sua ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade, de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão. Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação costumam ser mais tênues.

   Ao chamar as ideias recordadas de cópias das impressões Hume recai na velha simplificação do empirismo inglês, que é o de reduzir conceitos a imagens. Pode parecer que não existam cópias imagéticas de ideias auditivas, táteis e gustativas, posto que elas não possuem formas espaciais, o que parece livrar Hume do imagismo. Mas isso é incorreto, pois por imagem devemos entender aqui qualquer reprodução ou réplica de impressões sensíveis. A memória do som de uma explosão é como sua audição, só que muito enfraquecida, do mesmo modo que a memória de uma dor ou de um certo gosto. Reduzir ideias a reproduções ou cópias pode parecer razoável quando consideramos impressões visuais, auditivas e táteis. Mas isso se torna problemático quando temos em mente ideias mais complexas, como as de triângulo ou homem. Aqui precisaremos nos valer de conceitos e a partir de Kant, como veremos, de regras conceituais.

   Hume também possui um conceito semelhante ao das ideias de reflexão de Locke, embora sua gênese seja diferente.[6] Para Locke as ideias de reflexão resultam de uma espécie de introspecção sobre atividades da mente, como as do pensamento, do juízo e da crença, formando então as ideias de reflexão de pensamento, de juízo e de crença. Mas para Hume, primeiro temos as impressões que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber coisas como o calor e o frio, a fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente produz cópias dessas impressões, que são as ideias de calor, frio, fome, prazer e dor. Essas ideias continuam existindo, mesmo depois de cessadas as impressões. Mas quando essas ideias retornam à mente, associamos a elas novas impressões, como as de desejo ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são do que impressões de reflexão. Essas impressões podem ser copiadas sob forma de ideias com base na memória ou imaginação.

   O seguinte esquema resume as diferentes espécies de percepções distinguidas por Hume:

 

                                            Percepção

 

              Impressão                                                     Ideia

                           

de sensação     de reflexão                    da memória           da imaginação     

 

As impressões de sensação simples ou complexas, assim como as ideias de reflexão, são fatores causais na produção de mais tênues ideias da memória que são suas cópias respectivamente simples ou complexas. E nossa imaginação combina ideias de memória na produção das ideias complexas da imaginação.

 

3

 

Leis da associação. Uma importante descoberta de Hume diz respeito a suave força que faz nossas mentes se moverem de uma ideia a outra por meio do que ele chamou de princípios de associação. Eles são três: semelhançacontiguidade espaço-temporal e causalidade.[7] Uma ideia se associa a outra por semelhança, por exemplo, a lembrança de minha casa me faz lembrar da casa do meu avô. Essa última lembrança, por sua vez, por contiguidade espaço-temporal me faz lembrar da igreja na praça à frente daquela casa. A mais importante é a associação entre causa e efeito, por exemplo, quando alguém associa a vista de um incêndio à destruição que ele irá produzir (causa para efeito), ou quando associa a fumaça escura que sobe ao céu a um incêndio (efeito para a causa).

 

4

 

Substância e modo. Hume tem algo a dizer sobre as importantes ideias de substância e de modo (acidentes). Para ele essas ideias se resumem a coleções de ideias simples que são unidas pela imaginação e designadas por um nome convencionalmente estabelecido.[8] As coleções de ideias que designam substâncias podem estar ligadas a algo desconhecido a que são supostamente inerentes (o que não significa que essa algo deva ser, como em Locke, incognoscível). Contudo, elas geralmente estão conectadas por estreitas e inseparáveis relações de contiguidade e causalidade, de modo que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples com a mesma conexão com as restantes, nós a adicionamos, enriquecendo o conceito. O exemplo por ele dado é o do ouro como metal amarelo, maleável, com certo peso e fusibilidade, ao qual se veio a adicionar a propriedade de solubilidade em uma solução ácida chamada de acqua regia. Nesse último sentido a substância é entendida como uma espécie natural, algo como a substância segunda de Aristóteles, analisada por Hume em termos de um feixe de qualidades. Exemplos de modos são para ele as ideias complexas de dança e de beleza.[9]

 

5

Universais. Como vimos, segundo Berkeley uma ideia geral nada mais é do que uma ideia particular que é usada para representar quaisquer outras ideias particulares da mesma classe.[10] Hume considera esse um grande insight filosófico, que resolve o velho problema dos universais de maneira particularista. Não existem ideias gerais no sentido de misturarem confusamente ideias de coisas particulares muito diversas, podendo por isso representá-las. Pelo contrário, nós usamos uma ideia particular bem definida, como a do triângulo equilátero e associando essa ideia a palavra ‘triângulo’ tornamo-nos capazes de reconhecer figuras semelhantes como sendo triângulos, como no caso de um triângulo escaleno e isósceles. Hume acrescenta que nós somos capazes, por costume, de apreender as semelhanças e identificar prontamente aquilo que se parece com a ideia. Como ele escreveu:

 

Uma ideia particular se torna geral quando a vinculamos a um termo geral – isto é, a um termo que, por uma conjunção habitual, relaciona-se a muitas outras ideias particulares, evocando-as prontamente à imaginação.[11]

 

Expondo a sugestão de Hume de modo mais claro: por termos impressões sensíveis de diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto, formamos por costume, um grupo de ideias-imagens idênticas a esses objetos, embora mais enfraquecidas, contendo aquilo que nos despertou atenção. Por exemplo: aprendo primeiro a associar à palavra ‘cão’ à ideia de um labrador (o cão do meu avô), mas por hábito com o tempo aprendo a associar à palavra também um grupo de ideias-imagens mais fracas, mas idênticas às suas impressões sensíveis, digamos, a de um pastor alemão, de um poodle, de um chihuahua... Assim, quando vejo um novo cão, digamos, um collie, sou capaz de imediatamente atualizar imagens semelhantes de modo a reconhecê-lo pelas particularidades que me chamam atenção. Certamente essas associações habituais dependem do aprendizado convencional da relação entre a palavra e grupos de ideias semelhantes através de exemplos interpessoalmente confirmados.

   Hume também percebeu que podemos fazer o mesmo com ideias muito complexas, as de governo, igreja, negociação e conquista. Essas últimas, escreve ele, são ideias muito complexas e pouco distintas, de modo que raramente somos capazes de tornar explícitas as ideias simples que as compõem; mesmo assim somos capazes de atribuir a quem perde uma guerra a ideia de negociação e não, digamos, a de conquista…[12]

   A solução proposta por Hume é interessante embora insuficiente para resolver o problema. Quando ele se perguntou por que certas ideias-imagens devem ser escolhidas, ele recorreu a noções pragmáticas como as de utilidade e adequação ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que reconhecemos um triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixou insuficientemente explicado aquilo que faz com que sejamos capazes de unir uma certa variedade de ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto, considerando isso como que “uma faculdade mágica da alma”.

   O que faltava a um filósofo empirista como Hume, que concebia as ideias de modo puramente imagético, era a noção de regra conceitual que só foi introduzida mais tarde por Kant, que prescindiu de um discurso meramente imagético e escreveu sobre conceitos em termos de habilidades governadas por regras. Essas habilidades podem certamente incluir a produção de modelos imagéticos, mas não se restringem a eles e nem sempre dependem deles. Kant notou que o conceito de cão é uma regra através da qual somos capazes de delinear a imagem de um cão... Mas o recurso a imagens não é sempre necessário: ao identificarmos o número 56 como sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8, não precisamos recorrer à imagem alguma.

   Ainda no século passado Michael Dummett entendeu o sentido de uma palavra conceitual como uma regra que estabelece critérios para a sua aplicação.[13] Ernst Tugendhat chamou-a de regra de aplicação do termo geral,[14] a qual também pode ser abstraída da experiência. Por exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma figura plana fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três pontos diferentes do plano euclidiano. Se tacitamente dominamos essa definição, então parece que possuímos uma regra para a construção de qualquer triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero, retângulo, isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um triângulo, seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com base em nosso domínio implícito da regra definitória, produzir uma ideia-imagem correspondente ao que nos for dado, explica-se porque somos capazes de identificar triângulos no plano euclidiano. Aqui temos a regra conceitual que nos permite produzir imagens que correspondem aproximadamente àquilo que um termo conceitual está servindo para designar.

   O que Berkeley e Hume realmente demonstraram foi que não somos capazes de construir ideias como imagens abstratas, embora possuamos termos gerais que associamos a imagens particulares e, sem dúvida, capacidades inatas para seu aprendizado. Mas eles não demonstraram que não podemos associar termos gerais a conceitos entendidos como regras de aplicação baseadas em critérios de satisfação eventualmente imagéticos. Tais regras poderiam, por suposto, ser capazes de produzir ideias-imagens em nossas mentes que funcionem como reproduções identificadoras similares às impressões sensíveis realmente percebidas na identificação de coisas no mundo real. A hipótese é a de que pela correlação dessas imagens reproduzidas com conteúdos sensivelmente perceptíveis teríamos satisfeito o critério para o reconhecimento das imagens sensíveis justificadora da aplicação da regra de identificação de um termo geral, por exemplo, ‘triângulo’ no enunciado “Isso é um triângulo.”

 

6

 

A forquilha humiana. Uma distinção fundamental é a que Hume faz entre relações de ideias (relations of ideas) questões de fato (matters of fact).[15] As relações entre as ideias (correspondentes aos juízos analíticos de Kant) são as que encontramos na geometria, na álgebra e na aritmética. Exemplos são enunciados como:

 

1.    Um círculo não é um quadrado.

2.    A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é de 1800.

3.    O quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados de um triângulo retângulo.

4.    A multiplicação de três por cinco é idêntica à divisão de trinta por dois.

 

Se as relações de ideias não forem intuitivamente certas (como em 1), elas serão ao menos demonstrativamente certas (como em 2, 3 e 4). Elas são necessariamente verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo, que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.

   Como os enunciados acima apenas afirmam as relações vigentes entre conceitos mentais, eles também não podem ser falsos, sendo contraditório negá-los. Por isso a soma dos ângulos internos de um triângulo é 1800 no sistema da geometria euclidiana e isso continuará sendo uma verdade, mesmo em um mundo no qual não existam triângulos euclidianos. Note-se que Hume não está falando da aplicação de suas relações de ideias ao mundo real! Sabemos que onde há gravidade o espaço físico não é euclidiano, de modo que nele a soma dos ângulos de um triângulo é maior do que 1800. Isso torna falsa a aplicação da geometria euclidiana a esse espaço. Mas como Hume está considerando apenas as relações entre as ideias constitutivas do sistema conceitual da geometria euclidiana, o enunciado acima se torna verdadeiro em qualquer caso.

   Diversamente do caso das relações de ideias, juízos sobre questões de fato (correspondentes aos juízos sintéticos em Kant) dependem das circunstâncias reais do mundo. Sua negação não conduz à contradição e sua verdade não pode ser estabelecida por demonstração. Tanto sua afirmação quanto sua negação podem ser em princípio verdadeiras. Exemplos são inúmeros. Eis alguns:

 

1.        Estou de pé.

2.        O dia está chuvoso.

3.        A terra é redonda.

4.        O calor dilata os metais.

5.        O sol nascerá amanhã.

 

Considere o último enunciado: “O sol nascerá amanhã.” Estamos bem certos de que o sol nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento catastrófico inesperado impeça isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã não resulta em contradição. Esse também é o caso, obviamente, dos outros enunciados acima.

   Hume utilizou a sua distinção entre relações de ideias e questões de fato como uma arma contra a metafísica, a chamada forquilha humiana, segundo a qual as ideias metafisicas resultam da confusão entre relações de ideias e questões de fato. É curioso fazermos aqui uma comparação antecipadora entre Hume e Kant. A base da filosofia de Kant consiste na suposta descoberta de juízos sintéticos a priori, que embora sendo sobre questões de fato, são necessariamente verdadeiros e universais. Neles as ideias-conceitos não se encontram apenas logicamente relacionadas, dado que esses juízos nos dizem algo sobre o mundo. Eles são verdades necessárias sobre matérias de fato, posto que são sintéticos: mesmo assim, eles devem ser impostos pela mente humana à natureza como verdades necessárias e universais.

   Para Hume o sintético a priori de Kant seria entendido como uma ficção metafísica que não passa pela sua forquilha. Diante da Crítica da Razão Pura, um livro fundamentado em princípios sintéticos a priori, Hume certamente reagiria repetindo a frase que aparece no final de sua Investigação sobre o entendimento humano:

 

Esse livro contém algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou existência? Não. Então para o fogo com ele, pois outra coisa não pode encerrar senão sofismas e ilusões.

 

No próximo capítulo veremos que apesar da admissão de que a filosofia teórica de Kant possui um grande número de insights de imensa importância, há razões para se pensar que seu projeto geral não tenha logrado atravessar ileso a forquilha humiana.

 

7

 

Ceticismo causal. O mais famoso argumento de Hume diz respeito à natureza da causalidade e, por extensão, à possibilidade de inferência indutiva. Para ele a causalidade é fundamental, pois:

 

Todo raciocínio concernente à matéria de fato parece ser fundado na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação nós vamos além das evidências da memória e dos sentidos.[16]

 

Em um exemplo seu, uma pessoa perdida em uma ilha deserta encontra um relógio e conclui que não está só. Essa inferência resulta da conhecida relação causal entre um artefato e a existência de um usuário. Embora muitas inferências sejam de fato causais, essa generalização de Hume tem a muitos parecido excessiva. Por exemplo: sei que o abacate que vejo na feira tem um grande caroço. Essa inferência se baseia no fato de ter aberto outros abacates e de ter encontrado neles sempre grandes caroços. Mas essa não é uma inferência fundada em uma relação de causa e efeito, mas de contiguidade entre o abacate e seu caroço. Essa é uma grave deficiência, pois exclui as regularidades sincrônicas, ou seja, as que devem permanecer no tempo para que o mundo possua estrutura.

   Apesar dessa deficiência é sobre esse pressuposto que Hume produziu a sua famosa análise da causalidade. De acordo com a tradição racionalista de filósofos como Descartes, Spinoza e Leibniz, e mesmo no caso de um empirista como Locke, a causa é razão suficiente para o seu efeito, ou seja, toda causa logicamente necessita seu efeito, do mesmo modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume discordava. Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo da experiência. Como ele escreveu, Ao ver pela primeira vez a água, Adão não poderia saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela primeira vez o fogo poderia saber que este tinha o poder causal de queimá-lo.[17]

   Ao analisar a relação causal Hume encontrou três critérios perceptuais para a identificação da relação entre causa e efeito. Eles são:

 

1.    Contiguidade espaço-temporal,

2.    A causa vem antes do efeito,

3.    Deve haver união constante entre causa e efeito.

 

Com efeito, quando uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há uma contiguidade no espaço e no tempo; além disso, o movimento da primeira bola vem antes do movimento da segunda[18]; finalmente, a mesma coisa acontece sempre que uma bola de bilhar nas circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa análise pode ser definida como a teoria da causalidade como regularidade. Ela está de acordo com o empirismo humiano, uma vez que as propriedades (1), (2) e (3) são as que a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora existam objeções contra essa análise, elas parecem a princípio contornáveis. A questão importante que Hume então se coloca é: “cadê a experiência da necessidade causal?” Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos filósofos racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.

   A única maneira que Hume encontrou para supostamente garantir a necessidade causal foi assumir um princípio da uniformidade da natureza. Se a natureza for uniforme então o futuro deve se assemelhar ao seu passado. Se o futuro for semelhante ao seu passado, então o que vale para o passado tem boa chance de também valer para o futuro: assim, como no passado sempre que uma bola de bilhar ao se chocar com outra ela fazia a outra se mover, então quando uma bola de bilhar se chocar com uma outra no futuro essa outra também haverá de se mover! Essa resposta parece à primeira vista bem razoável. Só que Hume encontra nela uma dificuldade incontornável. Ele começou por notar que nada nos garante que a natureza deva ser uniforme, de modo que o futuro deva assemelhar-se ao seu passado, uma vez que essa também é uma questão de fato. Podemos perfeitamente imaginar que o futuro venha a ser diferente do passado. Como ele notou, é possível que da próxima vez que a neve cair os seus flocos queimem como fogo e que as árvores floresçam em pleno inverno... O princípio da uniformidade da natureza nem pode ser provado nem é intuitivamente garantido. Como ele escreveu:

 

A suposição de que o futuro se assemelha ao passado não é fundada em nenhuma espécie de argumento, sendo antes derivada inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma sequência de objetos com a que já estamos acostumados.[19]

 

Não é, pois, a razão, que nos leva a acreditar que o futuro será semelhante ao passado, mas um simples hábito ou costume.

   Mas se é assim, então como explicar nossa convicção de que existe uma necessidade causal? A solução de Hume foi observar que quando a mente percebe uma união espaço-temporal regular entre dois eventos, um ocorrendo antes do outro, ela forma um hábito ou costume através do qual sempre que ela experiencia o primeiro evento ela cria a expectativa de que o outro o seguirá. Mas esse hábito nos confunde, fazendo-nos pensar que existe uma relação de necessitação de um evento-causa para um evento-efeito, quando na verdade não temos experiência alguma disso. Somos levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal quando na verdade tudo o que experienciamos é uma simples expectativa psicológica de que após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.

   Sob a suposição de que todo o nosso conhecimento de questões de fato se baseia em relações causais, o resultado ao qual Hume chegou é desalentadoramente cético. Como não há necessidade causal, nossa convicção de que no futuro as relações causais permanecerão as mesmas é destituída de qualquer fundamento racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo aquece e que a água apaga o fogo. Essas são relações causais. Contudo, como não existe uma verdadeira necessidade causal, nada garante que no futuro o fogo continuará a aquecer ou que a água será capaz de apagá-lo. Nada no passado garante ou probabiliza coisa alguma no futuro. Na formação de nossas expectativas sobre questões de fato, tanto do senso comum quanto da ciência empírica, somos como insetos voando em direção à luz, determinados apenas pela nossa natureza instintiva.

 

8

 

Entrincheiramento. Essas famosas conclusões céticas podem ser problematizadas. Uma importante dificuldade na análise da causalidade como regularidade feita por Hume, por ele mesmo notada, é que os critérios por ele propostos não parecem suficientes. Eles não explicam por que regularidades entre eventos contíguos que se dão por pura coincidência não são causais. Considere, por exemplo, o caso de um ônibus que todos os dias às 12 horas para diante de uma igreja e que logo a seguir os sinos começam a repicar. Há aqui contiguidade espaço-temporal... Além disso há uma união constante: isso ocorre todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há relação causal alguma entre uma coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente nascimento dos cabelos nos bebês antes do crescimento dos dentes de leite. Ninguém estaria disposto a dizer que o crescimento dos cabelos é a causa do nascimento dos dentes. Aparentemente, aquilo que está faltando nesses exemplos é um nexo de necessidade entre causa e efeito. O parar do ônibus não necessita o badalar dos sinos, nem o crescimento dos cabelos necessita o nascimento dos dentes.

   O problema não me parece tão desanimador. Tentando um caminho menos pessimista para lidar com ele, gostaria de apelar para uma relação de necessidade mais fraca do que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume e defendida pelos racionalistas. Dizemos que alguém precisa ir à cidade comprar mantimentos, que é necessário chover para que a pastagem cresça, que a insulina é necessária ao diabético... mas essas não são necessidades lógicas. Ora, uma maneira de entendermos a necessidade causal de maneira mais fraca parece ser a de a identificarmos com o bom entrincheiramento (good entrenchment) da regularidade dita causal.[20] Podemos definir o bom entrincheiramento de uma regularidade causal como:

 

(i)             sua complementação com outros fatores causais do conjunto de fatores causais envolvidos[21]  e

(ii)           sua complementação com as outras regularidades pressupostas pelo sistema de crenças como um todo.

 

Não há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo o parar do ônibus diante da igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do bom entrincheiramento que existe entre o ponteiro do relógio da igreja a marcar 12 horas e o repicar dos sinos logo a seguir. Afinal, tanto o ponteiro quanto o martelo do relógio que bate no sino fazendo esse último tocar se encontram entrelaçados em um complexo mecanismo causal que satisfaz a condição (i). Mas a parada do ônibus defronte à Igreja não tem nada a ver com esse conjunto de interconexões causais. Além disso, nosso sistema de crenças inclui leis físicas que nos fazem pressupor correlações entre movimentos de objetos físicos contíguos devidamente ajustados uns aos outros de modo a produzir o repicar dos sinos, satisfazendo a condição (ii), enquanto a correlação entre o parar do ônibus em frente à igreja e o repicar dos sinos não recebe nenhuma confirmação por parte de nosso sistema de crenças. Quanto ao segundo exemplo dado, não há nenhum entrincheiramento entre o crescimento dos cabelos e o nascimento dos dentes de uma criança, pois não encontramos outros fatores causais associados, nem encontramos razões biológicas pertencentes ao nosso sistema de crenças que justifiquem a expectativa de que essas duas coisas precisem se relacionar da maneira especificada.

   A conclusão não se faz esperar: o que chamamos de necessitação causal nada mais é do que o bom entrincheiramento entre os múltiplos fatores causais envolvidos na relação ente causa e efeito e o sistema de crenças por nós aceito. Além disso a relação é proporcional: quanto mais forte for o entrincheiramento, mais forte nos parecerá a necessitação causal. E quanto mais bem entrincheirada for a relação causal, mais provável ela nos parecerá. Segundo esse raciocínio, o erro dos filósofos racionalistas estava em confundir uma necessidade empírica – a do bom entrincheiramento – com uma necessidade lógico-conceitual. E o erro de Hume teria sido o de não se ter dado conta da existência de uma necessitação que fosse definida por um bom entrincheiramento conceitual, tanto com os outros fatores envolvidos na relação causal quanto com nosso sistema de crenças.

 

9

 

Indução. O problema humiano da causalidade foi conjuntamente (e de forma algo equívoca) aplicado a inferências ampliativas, o que gerou o ominoso problema da indução. Inferências indutivas são aquelas que vão do observado para o não observado, sendo capazes de ampliar nosso conhecimento. Por exemplo: “O sol sempre nasceu a cada dia. Logo: o sol também nascerá amanhã”. Como garantir tais inferências? Para Hume a solução também aqui parece se encontrar na admissão de um princípio metafísico da regularidade ou uniformidade da natureza.[22] Para o caso em questão, o princípio pode ser formulado como:

 

PF: O futuro será semelhante ao passado.

 

Admitindo-se essa versão do princípio da uniformidade, o exemplo acima será justificado como se segue:

 

O sol sempre nasceu a cada dia

O futuro será semelhante ao passado. (PF)

Logo: o sol nascerá amanhã.

 

À primeira vista a solução parece convincente. O problema surge quando nos perguntamos pela justificação de um princípio da uniformidade como PF. Afinal, como sabemos que o futuro deve ser semelhante ao passado? Essa é uma verdade de fato, pois ela não é garantida, podendo ser negada sem contradição. Não temos como garantir princípios de uniformidade, dado que eles não são verdades da razão.

Podemos com efeito recorrer a um raciocínio assegurador de PF, que seria o seguinte:

 

Os futuros do passado sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.

Logo: o futuro (do presente) será semelhante ao (seu) passado.

 

O problema é que esse argumento também é indutivo, o que apenas confirma a circularidade da justificação: não faz sentido tentarmos justificar a indução através de uma premissa que resulta ela própria de uma inferência indutiva.

   O que daí resulta é que também no que concerne às inferências indutivas a conclusão de Hume é extremamente pessimista: não temos como justificá-las. Mas como a ciência empírica e mesmo o senso comum se fundamentam em inferências indutivas, a conclusão é que não temos como justificar nosso conhecimento empírico. O que nos faz crer que o sol nascerá amanhã resulta de uma cega fé animal resultante de disposições psicológicas para a formação de hábitos.

 

10

 

Resposta. Há uma variedade de tentativas de solucionar o problema da indução, todas elas prenhas de dificuldades. A única salvação me parece ser a de refinar os princípios de uniformidade de tal maneira que eles se tornem claramente analíticos. Considere a seguinte formulação minimalista do princípio:

 

          PF1: Alguma coisa no futuro será semelhante ao passado.

 

A negação de PF1, “Nada no futuro será semelhante ao passado”, é incoerente. O futuro, entendido como um todo, para ser o futuro de seu próprio passado, precisa possuir alguma semelhança com ele. Considere o futuro Fw como o futuro de um mundo possível w. Ele precisará ser distinguido do futuro de outros mundos possíveis: w1, w2, w3... A única maneira pela qual isso pode acontecer é no caso em que Fw é o futuro de seu passado Pw e não o futuro de Pw1, nem de Pw2, nem de Pw3... Mas para que isso aconteça precisamos encontrar em Fw um mínimo de semelhança com Pw. Essa versão minimalista de PF é obviamente insuficiente. Mas já serve para tornar plausível a impossibilidade de se conceber um futuro que (como um todo) seja completamente diverso de seu próprio passado. E serve para tornar plausível que um princípio analítico condicionado a uma relação entre qualquer futuro e seu próprio passado é possível. Essa relação é conceitual, mas também serve à aplicação de seus conceitos tanto quanto, digamos, sabendo que hoje é um dia já sei por razões analíticas, que hoje é o primeiro dia do resto de minha vida.

   Com base nisso uma versão mais adequada do princípio de que o futuro será semelhante ao passado pode ser proposta. Aqui está:

 

PF*: Quanto mais próximo estiver o futuro de seu passado, mais tendencialmente semelhante a esse seu passado ele precisará ser, tornando-se idêntico a ele no ponto de junção entre os dois, ou seja, no presente.

 

Um futuro, para ser o futuro se seu próprio passado, precisa ao menos tender a assemelhar-se a ele na razão de sua proximidade dele, tornando-se ambos inevitavelmente idênticos no momento presente.

   Se considerarmos com suficiente atenção o que PF* nos diz, veremos que essa versão do princípio é intuitiva e não resulta de nenhuma inferência indutiva. Trata-se simplesmente de uma condição de possibilidade do conhecimento empírico. Mas essa condição, diversamente de um juízo necessário sobre uma questão de fato (um juízo sintético a priori), pode ser considerada uma relação de ideias (analítica) que, além de ser intuitiva não pode ser negada sem incoerência. Afinal, não faz sentido negar que na aproximação com o presente, futuro e passado se tornem ao menos tendencialmente cada vez mais semelhantes. Se um futuro pudesse não ser tendencialmente mais semelhante ao seu passado, tornando-se idêntico a ele no ponto de junção – no presente – ele poderia ser considerado como totalmente rompido com o seu passado. Mas nesse caso ele não poderia ser reconhecido como sendo o futuro de seu próprio passado. Como já havia percebido Leibniz, “a natureza não dá saltos” (natura non facit saltus).

   A inevitabilidade de PF* pode ser multiplamente exemplificada. Considere as mudanças resultantes do aquecimento de um pedaço de cera a partir de T0. Primeiro temos a mudança do estado sólido para o estado líquido em T1. Com maior aquecimento temos a mudança da cera líquida para a cinza de carbono em T2. Se essa cinza for aquecida a muitos milhões de graus Celsius teremos, enfim, a dissolução dos átomos de carbono e a formação de um plasma de partículas subatômicas em T3. Eis um esquema mostrando como as mudanças tipicamente pressupõem maior permanência quanto mais parciais e mais breves elas forem:

 

    Entidades físicas:                              Curso do tempo:

                                                               T0             T1:             T2:            T3:

     Cera (sólida):                                     XXXXXX

     Cera (líquida):                                   XXXXXXXXXX

     Átomos de carbono (cinza):              XXXXXXXXXXXXXXXX

     Partículas subatômicas (plasma):      XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

 

Note-se como as regularidades sincrônicas se perdem no curso do tempo. Do momento T0 ao momento T1 pressupõe-se como permanente a cera e os seus constituintes atômicos, que são átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio, além dos constituintes subatômicos. Já do momento T1 ao momento T2 mantém-se como pressuposto permanente apenas os átomos de carbono e seus constituintes subatômicos. Finalmente, do momento T1 ao momento T3 tudo o que permanece são certos constituintes subatômicos. A mudança é gradual aqui em sua perda de regularidades.

   Ainda um testemunho da versão analítica do princípio de que o futuro deverá ser semelhante ao passado é o fato de que quanto mais distante for o futuro, menos provável será a inferência indutiva. Por exemplo: a inferência indutiva de que o sol também nascerá no próximo dia daqui a 5 bilhões de anos é refutada pela cosmologia atual, uma vez que por essa época ele já terá se transformado em uma gigante vermelha, engolindo a terra.[23]

 

11

 

Mundo externo. Vejamos agora os argumentos pelos quais Hume foi levado a rejeitar tanto o mundo externo independente quanto um eu permanente. Para ele só existem três causas possíveis de nossa crença na existência de coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos, a razão e a imaginação. Contudo, os sentidos não nos podem atestar nem a existência de uma substância entendida como um substrato não-perceptível das ideias, nem a existência continuada das coisas quando não percebidas, pois cessando a sensação os objetos deixariam de estar presentes aos sentidos. Também a crença na existência continuada dos objetos não pode ser produzida pela razão porque mesmo as crianças e os rudes tem essa crença, apesar de não possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume foi que a nossa crença na existência de uma substância entendida como substrato incognoscível das ideias, assim como nossa crença na existência continuada dos objetos do mundo externo ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação. Para ele o mesmo hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal é aquele que nos leva a imaginar que deva existir uma substância permanente como se ela fosse observável. Eis seu argumento no Tratado:

 

Quando nos acostumamos a observar uma constância em certas impressões, quando descobrimos, por exemplo, que nossa visão do sol e do oceano retorna depois de um período de ausência ou aniquilação, com as mesmas partes na mesma ordem que da primeira vez, não somos mais capazes de considerar essas percepções interrompidas como distintas (como de fato o são), mas, pelo contrário, as consideramos como individualmente as mesmas de modo a explicar sua semelhança. Mas como a interrupção de sua existência é contrária à sua perfeita identidade e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi aniquilada e que a segunda foi criada de novo, encontramo-nos algo perdidos, envolvidos em uma espécie de contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade disfarçamos tanto quanto possível a interrupção, antes removendo-a inteiramente, supondo que essas percepções interrompidas sejam conectadas por uma existência real, à qual somos insensíveis.[24]

 

Ou seja: nossa crença na existência continuada dos objetos externos resulta apenas de nossa imaginação! Nós temos a propensão de cobrir os vazios entre nossas percepções imaginando que eles sejam preenchidos, como se existisse um sujeito percipiente acompanhando os objetos quando não os percebemos. Assim, repetindo um exemplo de Barry Stroud,[25] suponha que eu esteja com os olhos abertos observando uma mesa de jantar com tudo o que se encontra sobre ela. Suponha agora que eu feche os olhos por uns três segundos, depois eu os abro de novo por mais alguns segundos e que eu repita essa operação várias vezes. Chamando de A à percepção que tenho com os olhos abertos e F a percepção com os olhos fechados, o resultado no curso do tempo será, digamos:

 

 AAAFFFAAAFFFAAA...

 

Para Hume minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto percebido, como se a percepção tivesse a forma de:

 

AAAAAAAAAAAAAAA...

 

A conclusão a que ele chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e nunca a um suposto mundo real externo.

 

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Permanência e perceptibilidade. Não é difícil desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de que nós precisamos preencher os vazios entre as percepções por imaginarmos que os objetos do mundo externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o problema é com a ideia de permanência. A ideia que fazemos da permanência dos objetos externos pode bem não ser a sugerida por Hume. Quando o homem de Java ao voltar da caça observou que tanto a sua caverna, quanto sua mulher e seus filhos, permaneceram onde se encontravam quando ele saiu para caçar, ele não queria dizer que eles permaneceram lá por recurso à imaginação, tal como Hume pretende. Ele queria dizer apenas que os encontrou no mesmo lugar onde esperava encontrá-los. Se for mais refinado ele dirá que se ele ou qualquer outra pessoa fossem postados nas circunstâncias adequadas, ou seja, à frente da caverna, eles a veriam e poderiam entrar nela, encontrando então sua mulher e filhos, e que esse experimento poderia em princípio ser feito em qualquer tempo durante o período em que ele estava caçando. Ele poderia mesmo dizer que se no tempo em que estava caçando um visitante estivesse o tempo todo presente na caverna, ele observaria tanto a caverna quanto a sua família. A objetividade empírica e permanência daquilo que não está sendo observado não significa nada mais do que uma garantida possibilidade de observação sob condições adequadas. Trata-se aqui, ao que parece, também da verdadeira definição do que se constitui a permanência de algo que não está sendo observado, a qual foi ignorada por Hume. Eis como podemos definir o conceito de permanência que efetivamente usamos:

 

Um objeto permanece (Df.): quando sempre que condições adequadas para a sua percepção por um sujeito perceptual forem dadas, ele é percebido.

 

A permanência é aqui definida como perceptibilidade experiencialmente certa ou garantida (a qual se dá através da satisfação conjunta dos critérios de realidade externa). Assim, não precisamos imaginar que o objeto se encontra o tempo todo acessível aos sentidos para ser atestado como permanente, uma vez que aquilo que entendemos por permanência é apenas a sua perceptibilidade virtualmente interpessoal sob condições adequadas, o que só alcançamos através da experiência. Dessa definição deduzimos que se existisse um observador em condições adequadas disposto a observar o objeto por todo o tempo de sua existência, ele seria por todo esse tempo observado. Mas isso não nos faz exigir que a permanência do objeto dependa de que ele esteja sendo sempre observado, como Hume sugere. O engano é proveniente do fato de que ele nos induz a confundir a ideia da permanência do objeto com a ideia de seu acompanhamento perceptual.

   A permanência das coisas quando não observadas, entendida como a garantida possibilidade de observação, é algo aprendido por inúmeras e variadas inferências indutivas anteriores acerca das regularidades do mundo em que vivemos. Eis porque não precisamos, como Hume, imaginar algo parecido com um olho mágico invisível, que está permanentemente percebendo as coisas enquanto não as percebemos, para com isso nos certificarmos de sua permanência.

 

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Critérios de realidade. Que dizer dos argumentos de Hume contra nosso conhecimento de um mundo externo que possui existência permanente, mesmo na independência de ser percebido por nós? Não parece haver nada neles de tão decisivo que não mereça questionamento. Consideremos o caso da existência de um mundo externo. Hume considerou os critérios de realidade externa que ele mesmo expôs como sendo os da máxima intensidade perceptual e coerência, como insuficientes. Já considerei esse ponto brevemente ao examinar o ceticismo cartesiano e o argumento de Berkeley contra a existência da substância material. Quero fazê-lo agora mais detalhadamente. Como tenho insistido em dizer, os critérios de realidade externa expostos por Hume e Berkeley só parecem insuficientes enquanto forem considerados isoladamente. Mas se supormos que as impressões humianas satisfazem conjuntamente todos os critérios de realidade externa apontados não só por Hume, mas também por Berkeley e mesmo por outros filósofos que trataram do assunto, de Descartes a Frege, então seremos forçados a admitir que estamos falando de um mundo de coisas externas ao menos na exclusão dos cenários céticos (ver a distinção entre os conceitos de realidade inerente e aderente introduzida no capítulo V, sec. 4).

   Para testar melhor essa hipótese, consideremos agora em maior detalhes os critérios mais fundamentais:

 

1. Máxima intensidade perceptual: a intensidade perceptual de uma percepção táctil ou auditiva ou visual é incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela memória ou pela imaginação. Hume ofereceu como exemplo o caso de uma dor extrema, como algo interno tão intenso quanto a percepção táctil ou visual. Mas esse seria um contraexemplo enganoso. Primeiro porque a dor não é uma ideia, mas uma impressão. Depois porque a dor pode ser considerada uma percepção externa, ainda que subjetiva (não interpessoalmente acessível), dado que localizada no corpo físico de um ser humano. O mesmo pode acontecer com a fome intensa ou com o desejo sexual.

2. Independência da vontade: posso fazer o que quiser com os produtos de minha imaginação, mas o que pertence ao mundo externo é independente do meu querer.

3. Intersubjetividade virtual do que é apresentado à percepção. As percepções daquilo que é objetivamente real são passíveis de acesso interpessoal. Se uma pessoa se encontra só em um quarto ela sabe que os objetos ao seu redor são reais porque sabe, por experiência, que qualquer outra pessoa que estivesse ali sob as mesmas condições teria as mesmas percepções.

4. Seguimento de leis naturais. Quando sonhamos, coisas absurdas podem acontecer: uma pedra pode rolar montanha acima. Mas quando no mundo real soltamos um objeto pesado no ar ele certamente cairá.

5. Coerência com o contexto. Se uma pessoa acorda todas as manhãs em seu aposento e vai para o trabalho, as coisas acontecem ao seu redor de forma coerente, de acordo com as suas expectativas. Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas propriedades e pelas relações entre elas e outros objetos. (Imagine, lembrando uma estória contada por Marco Polo, que uma pessoa sem saber toma uma poção que a faz dormir e que ela é então levada para um jardim cheio de maravilhas, onde acorda por alguns minutos até que tenha de beber algo que a faz dormir outra vez. Mais tarde ela acorda onde se encontrava antes... Essa pessoa poderá ter dificuldade em saber se o que vivenciou foi realidade ou se não estava apenas sonhando ou delirando. A razão disso é a falta de continuidade e coerência daquela experiência única com toda a sua história passada e presente.)

6. Co-sensorialidade. Em muitos casos não precisa estar presente, mas é distintiva das qualidades primárias de Locke.

 

Retiro essa lista da filosofia moderna, de Descartes a Kant, sem estabelecer conexões entre seus itens. Contudo, é claro que os primeiros cinco critérios são fundamentais, enquanto o último é meramente suplementar.

   O importante é notar que individualmente cada um desses critérios pode falhar sem que o mundo externo perca sua realidade. Se tomarmos um ou dois desses critérios isoladamente isso não será suficiente para considerarmos o que percebemos como pertencente a um mundo externo. Quanto a (1) nós podemos conceber uma alucinação que pareça ao indivíduo absolutamente real, como é relatado em casos de alucinose alcoólica. Quanto a (2) há hoje meios pelos quais um tetraplégico pode aprender a movimentar objetos externos pela simples ativação do córtex motor... Quanto a (3), em um sonho vemo-nos por vezes conversando com outras pessoas cuja presença deveria nos assegurar a realidade daquilo que estamos vivenciando. Quanto a (4), existem sonhos realistas nos quais as leis naturais e expectativas seguidas são perfeitamente possíveis. Quanto a (5), podemos imaginar um longo e tedioso sonho que é perfeitamente coerente... (Me recordo de um sonho que eu mesmo tive. Eu precisava acordar cedo, o despertador tocou, eu continuei dormindo, mas sonhei que tinha ido ao banheiro, lavei o rosto e escovava os dentes, até que percebi que na verdade continuava deitado. Aqui as expectativas contextuais foram preservadas, mas nada era real.) O critério (6) de co-sensorialidade é satisfeito facilmente nos sonhos.

   A pergunta agora é a seguinte: podem todos esses critérios conjuntamente falhar e mesmo assim o mundo que experienciamos como externo não ser real? Ou seja: a questão é saber se, no caso em que todos esses critérios de realidade externa estarem sendo completamente satisfeitos, ainda assim é possível que as coisas que compõem a realidade externa não existam. A resposta, como veremos na próxima seção é que o conceito de realidade que estivemos usando até agora é o de realidade inerente (cap. V, sec. 4), que não se aplica na explicação do que acontece em cenários céticos. O que os cenários céticos exigem, como veremos, é o uso de um conceito aderente de realidade, que é muito mais de ordem coerencial.

   Note-se que a escolha da conjunção de todos os critérios acima é compatível com a ideia de que a todos os nossos perceptos correspondem a sense-data que ocorrem no cérebro. Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais usando fMRI e modelos computacionais não deixam margem para dúvida: eles reconstituem imagens visuais (os sense data) que ocorrem no cérebro do observador de modo a torná-las visíveis para outros e até mesmo, em princípio, para o próprio observador! (Ver cap. IX, sec. 8) Contudo, é bastante plausível pensar que a satisfação conjunta de todos esses critérios de realidade externa é o que basta para definir o conteúdo percebido como pertencente ao mundo externo real, conquanto se entenda aqui a palavra ‘realidade’ em seu sentido inerente e não aderente, o que exclui os cenários céticos como um caso à parte (ver próxima seção). O conteúdo mental, os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui interpretados projetivamente em suas relações, como componentes do que chamamos de realidade externa, sendo então definidos como a parte percebida dela, na medida em que conjuntamente satisfizerem os critérios de realidade externa já exaustivamente expostos. Essa seria a versão mais precisa da sugestão hobbesiana de que a mente tem a tendência a “projetar para fora” o que lhe é dado na independência da vontade.

   Ainda uma objeção poderia ser a de que os dados sensíveis, mesmo que interpretados projetivamente como propriedades das coisas externas, continuam sendo fenômenos de ordem mental, o que facilmente nos reconduz ao idealismo de Berkeley ou ao ceticismo de Hume. Essa conclusão parece, porém, evitável. Considere a comparação feita no capítulo anterior entre os dados sensíveis e a pequena imagem projetada pela ocular de uma luneta. Se por um lado, o que é projetado na retina é uma pequena imagem do disco lunar, por outro o que realmente vemos é a própria superfície da Lua com seus mares e crateras. De modo similar, considere o caso de um vaso de flores postado diante de um espelho. Quando olhamos para sua imagem no espelho e a vemos como simples imagem, ela se encontra lá no fundo do espelho, sua distância sendo duplicada; mas quando nós a interpretamos projetivamente como aquilo que realmente vemos, o que antes era uma imagem é agora visto como um conjunto de propriedades físicas que se encontram em frente ao espelho. Não diremos nunca que as propriedades daquilo que vemos espelhado não passam de imagens de espelho, assim como não diremos que a Lua é uma imagem projetada por uma lente ocular. Ora, por que então nos recusaríamos a fazer uma distinção similar com relação aos sense data que sabemos serem dados em nosso sistema nervoso e sua reinterpretação projetiva em termos de propriedades externamente observadas?

   Resta ainda explicar o que nos faz supor que a ideia mental possa ser considerada fenomenalmente similar à qualidade física externa, cujo nome usual é “aparência física”.  Afinal, meus sense data de um círculo vermelho são subjetivos! Como é possível saber que o círculo vermelho que apontamos em uma superfície seja correspondente e de algum modo similar aos seus sense data? A resposta é que escolhemos dizer assim porque, como foi notado no capítulo anterior, o conteúdo da percepção tanto pode ser interpretado em termos de aparência física externa quanto em termos de sense data, conquanto guardem a mesma estrutura. A imagem mental do disco lunar repete estruturalmente as mesmas variações de luz e sombra do disco lunar real. Uma pessoa poderia em princípio comparar a aparência física de algo com a imagem dessa aparência produzida em seu cérebro como sense data e reconstruída computacionalmente com auxílio de fMRI, de maneira a verificar objetivamente e mesmo interpessoalmente que ambas são similares ponto a ponto. Não podemos ao certo saber se outra pessoa que vê o círculo vermelho está tendo a mesma experiência fenomenal que nós, mas podemos nos aproximar disso. É verdade que seres vivos muito diversos tem acesso a qualidades fenomenais diferentes. Mas suas relações, tanto internas (digamos, diferentes tonalidades em uma mancha vermelha) quanto externas (as relações da mancha com as outras coisas e com o observador), devem permanecer as mesmas enquanto existirem. Outros seres vivos podem ter visão mais aguçada, adicionando propriedades ao fenômeno, mas sem com isso alterar as propriedades estruturais já mencionadas.

 

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Ceticismo. A satisfação conjunta dos critérios de realidade externa recém apresentadas não é imune às assim chamadas hipóteses céticas, como a de que a pessoa não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um programa encenando a vida em um planeta inexistente chamado Terra...

   Hipóteses céticas radicais são ao menos logicamente possíveis. Não é absurdo pensar que eu possa certa noite acordar em um lugar estranho, rodeado por pessoas com um aspecto bizarro com o qual não estou nem um pouco familiarizado, meu próprio corpo sendo curiosamente semelhante ao delas. Elas me explicam em bom português que eu havia sido até aqui um cérebro na cuba ligado a um supercomputador no qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia no planeta terra”. Me informam que esse é um experimento comum no planeta Ômega, feito para estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que de agora em diante eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha vida no suposto planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado no saudável corpo de um habitante de Ômega. Digamos que após algumas seções de psicoterapia eu acabe me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados. Nesse caso, tanto agora quanto em minha vida anterior, os critérios de realidade externa continuam sendo conjuntamente satisfeitos! Ambos os mundos, o do presente e o do passado, são inerentemente reais. Mas acabou se tornando claro que a única realidade externa verdadeiramente real é a do habitante do planeta Ômega, enquanto a realidade externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em cenários céticos os critérios usuais de realidade externa (inerentes) não são suficientes para possibilitar a distinção entre o mundo atual e o mundo ficcional.

   A solução do problema não é difícil de ser encontrada e já foi indicada no capítulo V (sec. 4). Basta distinguirmos entre os conceitos de realidade inerente e aderente. Os critérios de realidade até agora expostos dizem respeito ao conceito de realidade inerente. Nesse sentido, tanto a minha vida anterior como cérebro na cuba quanto a minha vida atual como habitante do planeta Ômega são perfeitamente reais, posto que ambas satisfazem conjuntamente os critérios de realidade externa. Mas no sentido aderente do conceito de realidade externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não era real, pois real é meu mundo em Ômega. Sou capaz de dizer isso porque o conceito de realidade aderente só é aplicado em cenários céticos, quando precisamos comparar duas realidades inerentes. Nesse caso, prefiro chamar de aderentemente real ao mundo que inclui o outro como um produto ficcional de si mesmo. No caso em questão, o mundo da terra, no qual vivi como cérebro na cuba pode ser explicado como tendo sido claramente um produto ficcional do mundo no qual vivo agora. Como consequência, o mundo no qual vivo agora é não só inerentemente real, mas também aderentemente real, enquanto o mundo no qual eu pensava estar vivendo como professor de filosofia no planeta terra não era aderentemente real, mesmo que fosse inerentemente real.

   O critério aderente de realidade externa é a coerência do mundo em consideração com a hipótese cética. Enquanto nenhum cenário radicalmente cético ocorre, nós assumimos que tanto o critério de realidade inerente quanto o critério de realidade aderente estão sendo satisfeitos; trata-se aqui de uma postulação semântica fundamental, que só admite questionamento na descoberta de um cenário cético (cap. V, sec. 4). Assim, só no implausível caso do aparecimento de cenários céticos seremos forçados a fazer a comparação e tomar uma decisão quanto a qual dos mundos é aderentemente real.

 

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O sujeito empírico. A maneira como Hume se libertou do eu dos racionalistas, entendido como uma substância contínua, simples e sempre idêntica a si mesma (a “alma”), segue a mesma linha. Para ele, quando voltamos para nós mesmos, tudo o que percebemos é:

 

...um feixe ou coleção de percepções diferentes, que se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas sem variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão. E todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há na alma uma única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer por um instante. (...) Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo, nem identidade em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão natural em imaginar essa simplicidade e identidade. (...) As percepções sucessivas são as únicas que constituem a mente...[26]

 

Aqui também é para ele a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito contínuo e simples, identificável com a alma.

   Hume também rejeitou a sugestão de Locke segundo a qual a identidade do eu depende da memória. Ao contrário, a memória deve pressupor o eu de modo a poder identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar no fato de que não podemos ter memória de cada instante vivido. (Pense, por exemplo, na ausência de memória que temos de nós mesmos no tempo em que estávamos dormindo).

   Note-se que Hume estava querendo refutar o eu tradicional de Descartes e da maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja, uma alma simples, imutável e eterna, demostrando que não temos acesso experiencial àquela espécie de sujeito. Contudo, ele também esboçou uma concepção positiva do eu psicológico que poucas vezes é lembrada. É quando ele camparou o eu a uma república ou coletividade (republic or commonwealth)...

 

cujos diversos membros encontram-se unidos por laços recíprocos de governo e subordinação, dando lugar a outras pessoas que propagam a mesma república em incessante mudança das partes. E assim como a mesma república individual pode mudar não só seus membros, mas suas leis e constituição, da mesma maneira uma mesma pessoa pode mudar seu caráter e disposição, tanto quanto suas impressões e ideias, sem perder sua identidade.[27]

 

Em meu juízo essa passagem contém o insight fundamental sobre o que podemos em um sentido verdadeiramente apropriado chamar de eu empírico. Chamá-lo-ei de eu comunitário no sentido de que se trata de uma comunhão de estados mentais geralmente disposicional. Ele será outra vez considerado quando tratarmos do Eu transcendental de Kant e do Eu puro de Fichte, uma vez que ele pode servir de base para o entendimento e refutação dessas estranhas entidades metafísicas.

 

 

 

 



[1] A. J. Ayer: Hume (São Paulo: Loyola 1980), p. 11.

[2] A Treatise of Human Nature (1739-40). Trad. port. Tratado da Natureza Humana (São Paulo: UNESP 2000).

[3] David Hume: My own Life (1766) Econlib. Internet.

[4] Apud. A. J. Ayer: Hume (São Paulo: Loyola 2003), p. 25.

[5] Tratado I, 1. 1. O algarismo romano indica o livro, o primeiro número indica a parte e o segundo a seção.

[6] Tratado I, 1, 2.

[7] Tratado I, 1, 4.

[8] Tratado I, 1, 6.

[9] Tratado I, 1, 6, 3.

[10] Tratado Intr. sec. 12.

[11] Tratado I, 1, 7, 10.

[12] Tratado I, 1, 7.

[13] Frege: Philosophy of Language (London: Duckworth) 1981, p. 229

[14] Ernst Tugendhat & Ursula Wolff: Logische-Semantik Propädeutik (Stuttgart: Reclam 1983), pp. 235-6.

[15] An Enquiry Concerning Human Understanding (1748), IV, I, 20. Trad. port. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral (Unesp 2024).

[16] Investigação IV, I, 22

[17] Investigação IV, I, sec. 23.

[18] Em alguns casos dizemos que eventos simultâneos são causalmente relacionados. Mas nós o fazemos em um sentido derivado, quando eles podem ser desacoplados, como no caso da locomotiva que empurra os vagões, causando seu movimento.

[19] Tratado: I, 3, 12, 9.

 

[20] Sobre o conceito geral de entrincheiramento ver P. F. Strawson: Introduction to Logical Theory (London: Methuen & Co. 1952), p. 245.

[21] A condição (i) busca resgatar o que se encontra envolvido na condição INUS, segundo a qual o que escolhemos chamar de causa é uma “insuficiente, mas necessária parte de uma desnecessária, mas suficiente condição”. Essa importante condição foi introduzida por J. L. Mackie em The Cement of Universe: A Study of Causation (Oxford: Oxford University Press 1980), cap. 3.

[22] Tratado, I, 3, 6.

[23] Uma versão mais detalhada (e ainda assim insuficiente) dessa solução foi apresentada no capítulo 5 de meu livro intitulado Textos Esparsos de filosofia teórica e prática (Belo Horizonte: Dialética 2002). A razão pela qual eu a apresento aqui é que outras soluções são muito menos plausíveis. Cf. Richard Swinburne (ed.): The Justification of Induction (Oxford: Oxford University Press 1974).

[24] Tratado I, 4, 2.

[25] Barry Stroud, Hume (London: Routledge 1988), p. 101.

[26] Tratado I, 4, 6.

[27] Tratado I, 4, 6.