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terça-feira, 30 de julho de 2024

Origens do empirismo inglês: Bacon e Hobbes

  para o livro "Introdução histórica..."

 

 

VIII

ORIGENS DO EMPIRISMO INGLÊS

 

Assim como no continente os filósofos foram influenciados pelas matemáticas, produzindo sistemas especulativos racionalistas, os filósofos ingleses foram influenciados pelo desenvolvimento das ciências empíricas como a física newtoniana, desenvolvendo sistemas empiristas de pensamento.

 

1

 

O primeiro grande defensor do empirismo foi Sir Francis Bacon (1561-1626).[1] Ele pode ser considerado o primeiro filósofo especializado em filosofia da ciência. Bacon desdenhava o método dedutivo da silogística aristotélica, pondo em seu lugar o método indutivo próprio das ciências empíricas. Para ele a ciência empírica deveria se desenvolver pela continua adição e seleção de observações em busca de invariantes e suas causas. Ele valorizava não tanto a indução enumerativa, que apenas probabiliza uma generalização científica, mas principalmente a indução excludente, uma vez que esta é capaz de falsear decisivamente uma generalização.

   Essa última ideia foi retomada e desenvolvida com outro nome no século XX por Karl Popper. Para este último, a característica fundamental da ciência é que ela deva ser susceptível de refutação por meio de testes empíricos.[2] Uma hipótese resultante de indução enumerativa nunca é garantida. Um exemplo é a generalização “Todos os cisnes são brancos”, que era considerada certa pelos europeus antes que eles descobrissem a Austrália. Afinal, todos os cisnes já enumerados eram brancos. Mas uma vez que foram divisados cisnes negros na Austrália, a generalização antes dada como certa foi refutada.

   Para ganharmos certeza da verdade de uma generalização científica precisaremos verificar todas as suas instâncias, o que costuma ser praticamente impossível. Como Popper notou, mesmo que alcancemos a verdade empírica última e absoluta, jamais poderemos saber se realmente a alcançamos. Mas o mesmo não acontece quando apelamos para o falseamento, pois basta uma única instância contrária ao que foi previsto pela hipótese para que ela seja falseada.

   O exemplo predileto de Popper foi a prova da teoria da relatividade generalizada realizada pela expedição de Arthur Eddington em 1919. Segundo a teoria newtoniana, a gravidade seria uma força agindo sobre objetos que possuem massa (FG = g(M1 . M2)/d2). Como a luz não possui massa, ela não poderia ser atraída pela gravidade. Mas segundo a teoria da relatividade, a gravidade não é mais uma força agindo à distância, mas uma curvatura do espaço-tempo próximo aos corpos massivos (G = 8pg/c2 . T). Como consequência, as próprias ondas de luz precisam seguir uma trajetória curva em conformidade com a curvatura espaço-temporal. Daí que, em um eclipse solar, quando as estrelas que se encontram próxima e por detrás do sol podem ser vistas, elas parecerão ao observador situado na terra aparentemente mais distantes do sol pelo fato de seus raios de luz serem encurvados ao passarem próximos do sol. No eclipse solar de 1919 essa deflexão da luz foi comprovada por meio de fotografias. Esse foi um teste crucial para a teoria, que a tornou mundialmente famosa. Se nenhuma deflexão fosse encontrada a teoria da relatividade generalizada teria sido demonstrada falsa. Assim, podemos não saber se a teoria relativista da gravitação é absolutamente verdadeira, ou mesmo se ela vale para todo o universo; mas sabemos que ela se demonstrou suficientemente confiável para resistir a um teste de falseamento crucial.

   A ideia de que a possibilidade de falseamento estabelece um limite entre ciência e não-ciência vale em boa medida para a física. Mas ela não vale para muitas outras ciências, como a biologia evolutiva, a história, a linguística, a economia… ciências nas quais a produção de experimentos falseadores pode se demonstrar impossível. Afora isso, baseado em Hume por toda sua vida Popper defendeu a ideia absurda de que a indução enumerativa não existe. Por isso ele pensava que as novas teorias científicas devem ser baseadas somente no método hipotético-dedutivo e que nossas hipóteses científicas devem se resumir a produtos da imaginação e criatividade humanas.

   No que concerne à ciência avançada de nossa época podemos aceitar as hipóteses imaginativas propostas por Popper. Mas se ativermos-nos somente a isso estaremos esquecendo que em suas bases essas ciências já foram construídas sobre o sustentáculo de uma infinidade de inferências indutivas enumerativas originárias. Encontrando-se ainda em um momento inicial do desenvolvimento das ciências empíricas, Bacon encontrava-se imune ao radicalismo anti-indutivista de Popper que ele com razão consideraria absurdo.

 

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Um outro filósofo que ajudou a preparar o caminho para Locke foi Thomas Hobbes (1588-1679). Hobbes viveu em tempos de grande convulsão social. A Europa Continental estava sendo devastada pela Guerra dos Trinta Anos, que durou de 1618 a 1648, tendo dela resultado, mais de quatro milhões de mortes. Por esse tempo aconteceu na Inglaterra uma guerra civil com duração de seis anos, terminando com a decapitação do rei Charles I em 1649. Ela foi seguida da ditadura de Oliver Cromwell, eleito pelo parlamento, que acabou com sua morte seguida do coroamento de um novo rei, Charles II, que era secretamente um católico, privilegiando os católicos enquanto a maioria do parlamento era protestante.

   Hobbes não viveu para assistir a revolução gloriosa de 1688, pela qual Mary, que era protestante, destronaria seu pai, James II, o sucessor de Charles II. Ela tornou-se rainha junto a seu esposo, William de Orange, ambos cedendo o poder ao parlamento e aceitando se tornarem figuras mais decorativas, uma solução que perdura até os dias de hoje.

   Ter testemunhado tempos tão sombrios foi certamente a maior razão do pessimismo de Hobbes. Ele foi levado a pensar que só um governo com poderes absolutos seria capaz de manter a ordem em uma sociedade, prevenindo a anarquia. Essa é a tese de sua obra máxima, O Leviatã.[3] John Locke, que viveu a revolução gloriosa, moderou as ideias de Hobbes na forma de um liberalismo político.

   Como filósofo teórico Hobbes não criou um sistema original, mas atualizou o materialismo naturalista com base na emergência das novas ciências. Ele viajou pela Europa, foi amigo de Bacon, conheceu Galileu e Gassendi, um discípulo de Descartes, tendo sido influenciado pelos escritos desse último. Vou expor algumas ideias.

   Para Hobbes quando o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito nós temos um enunciado necessário. Por exemplo: “Triângulos tem três lados”. Afinal, o triângulo é uma figura plana, fechada, com três lados. Mas quando o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, temos um enunciado contingente. Por exemplo: “O carvão tem cor preta”. Como não é parte da definição de carvão que ele seja preto, o conceito do predicado não está contido no do sujeito e o enunciado é contingente. Kant tomou de empréstimo essa ideia em sua definição de juízos analíticos e sintéticos.

   Hobbes esposava um mecanicismo materialista e um determinismo universal. Mesmo a substância deveria ser material. Como determinista, ele via o livre arbítrio como a mera ausência de limitação ou coerção externa. Assim, o escravo liberto, o rio que rompeu a barragem e agora corre livremente, a pessoa que atingiu a maioridade e agora pode fazer o que quiser, todos são livres porque não tem mais impedimento, mas não porque deixaram de ser causalmente determinados. Com isso ele rompeu com o libertarismo sustentado por filósofos atomistas como Epicuro e Lucrécio, além dos filósofos católicos da Idade Média, segundo os quais ao decidir livremente precisamos ser capazes de transcender o determinismo causal presente no mundo físico. Hobbes foi um compatibilista. Para ele o livre arbítrio é perfeitamente compatível com o determinismo causal, tendo um sentido meramente negativo. (ver cap. VI, sec. 7)

   Ele entendia as sensações como movimentos no cérebro e a percepção do mundo pelos dados sensíveis como resultado de uma tendência natural da mente de projetar para fora o que lhe é dado na independência da vontade. A imaginação é resultado da combinação de imagens já experienciadas. Assim, imaginamos um centauro combinando a figura de um homem com a de um cavalo. E a memória é uma imagem à qual é adicionada a consciência de que ela foi anteriormente percebida. Acusaram Hobbes de ateu, mas injustamente. Hobbes foi educado por um pastor calvinista depois da perda dos pais, o que fez dele uma pessoa de fé religiosa. Ele acreditava ser Deus também constituído de matéria. Ele seria “o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo.

   Quanto ao problema dos universais, Hobbes defendeu o nominalismo, seguindo William Ockham. Para ele um termo geral não é mais do que um nome que se aplica a todo um grupo de objetos individuais sem maior discriminação.

   O importante em Hobbes é a sua filosofia social e política, tal como foi exposta no Leviatã. O contraste maior foi com Rousseau, que idealizava o ser humano natural como um “nobre selvagem”: bom por natureza e tornado mau pela sociedade. Para Hobbes era o contrário: o ser humano é mau por natureza. Mesmo quando faz algo de bom, ele o faz por egoísmo. Se faz caridade é para demonstrar seu poder. Se sente Piedade é por temer um desastre similar consigo mesmo. Se busca o poder é para desfrutar da glória de dominar outras pessoas… “Os homens”, escreveu ele, “são tomados de um perpétuo e incansável desejo de poder sobre poder, que só cessa com a morte”.[4]

   Dada a natureza egoísta do ser humano e dada a inevitável escassez de recursos, os homens estão sempre competindo entre si. O resultado disso é a guerra, a luta de todos contra todos, pois só a morte de uns tornará possível a sobrevivência de outros: “homo homini lupus”. Disso Hobbes concluiu que a condição natural da humanidade é a da guerra. E o destino do ser humano em sua condição natural é o de ter uma vida “solitária, pobre, suja, bruta e curta”. Para Hobbes, só a sociedade pode educar o egoísmo humano, fazendo do homem um ser civilizado. Não é de admirar que, com uma concepção tão pessimista da natureza humana, ele tenha sido levado a conclusões um tanto insólitas. (Não parece que Hobbes tenha sido um ser humano adorável.)

   A conclusão de Hobbes foi que a única maneira de evitar a guerra de todos contra todos é que o povo ceda o poder a uma autoridade absoluta. Para ele, um governo precisa ser formado através de um pacto (covenant), que é um contrato pelo qual os indivíduos transferem os seus direitos naturais (de fazerem o que quiserem para sobreviver, inclusive matarem seus semelhantes…) para um poder soberano em troca de paz e segurança.[5]

   Esse pacto é sustentado por certas leis da natureza (divinas, morais): os indivíduos sentem que têm (i) a obrigação de buscarem a paz, sempre que possível, (ii) que devem dispor de seus direitos naturais sempre que os outros também o fazem, (iii) que devem manter o pacto se os outros também o fazem. Essas leis asseguram o mantenimento do pacto. E os direitos naturais de realização dos interesses individuais justificam, em última análise, a existência do pacto. Com isso é criada uma sociedade civil através da qual são estabelecidas leis que nos dizem quais são as ações humanas justas ou injustas. E através dele são garantidos os direitos individuais dos cidadãos, que se tornam livres na medida em que tal liberdade não transgredir a liberdade alheia.

   Ainda que o soberano esteja acima das leis, e ainda que seus poderes de vida e morte sobre os cidadãos sejam absolutos, uma vez que foi agraciado pela soberania ele tem o dever de não decepcionar aqueles que lhe cederam tais direitos. Fica claro que se o soberano agir de modo a tornar a vida das pessoas insuportável, elas terão pleno direito de destitui-lo do poder. E a razão disso é que se foi o desejo de autopreservação que fez com que as pessoas realizassem o pacto e se o soberano não souber zelar pela autopreservação, as pessoas terão pleno direito de dissolverem o pacto.

   Contra Hobbes é para ser notado que geralmente, quando a espécie de pacto sugerida por Hobbes é feita sem que reste controle algum por parte das pessoas que deram ao soberano poder de vida e morte sobre elas, o resultado fica na dependência das circunstâncias e humores do soberano. Em tal contexto ele pode facilmente degenerar-se em um tirano que pelo seu poder absoluto escraviza seu povo sem que o povo possa fazer qualquer coisa para impedi-lo. Hobbes não tinha qualquer remédio para esse tipo de problema.

   A favor de Hobbes deve ser notado que embora ele preferisse que o poder soberano fosse exercido por um monarca absolutista, ele admitia que esse poder pudesse ser exercido por um corpo ou uma assembleia de pessoas. Ele teria aceito (creio que com alguma relutância) o modelo de parlamentarista resultante da revolução gloriosa se tivesse vivido o suficiente para vê-lo surgir. Mas como filósofo ele foi refém de seu tempo. O grande mérito do Leviatã foi o de ter, pela força de seus argumentos, construído o palco sobre o qual seriam encenadas as discussões da filosofia política nos séculos seguintes.

 

3

 

Nos dias de hoje há boas razões para se rejeitar tanto a tese de Rousseau, de que o homem é um ser naturalmente bom, quanto a de Hobbes, de que o homem é um ser naturalmente mau. Antes de postular a sua implausível pulsão de morte Freud fez uma importante distinção entre duas espécies de pulsões (trieb) ou instintos: as pulsões de sobrevivência do indivíduo e as pulsões de sobrevivência da espécie. As primeiras são, de fato, egoístas. Mas as pulsões de sobrevivência da espécie por definição não podem ser egoístas, dado que sua satisfação deve servir à espécie, mesmo que em detrimento do indivíduo. Entre os animais isso é rem relatado. Mas também é fácil encontrar exemplos entre os humanos, como o caso de pais que se sacrificam pelos filhos a ponto de pagarem com isso a própria vida. Tais gestos de altruísmo puro são derivado de pulsões que visam a sobrevivência da espécie mais que deles mesmos. (Seria ridiculamente falacioso dizer que o pai que sacrificou sua vida tentando salvar os filhos de afogamento fez isso buscando o prazer egoísta de tentar fazer o bem a outros...) Ambos, egoísmo e altruísmo são, pois, intrínsecos à natureza humana, encontrando-se geralmente misturados em nossas ações. Nosso comportamento social é biologicamente motivado por essa natureza bipolar e muitas vezes conflitiva. E a ela devem ser acrescentadas as variáveis individuais e sócio-ambientais.

   A natureza humana é individualmente variável e com isso também as medidas de egoísmo e altruísmo que dela dependem. Psicólogos que estudaram psicopatias desenvolveram meios confiáveis e sofisticados para diagnosticá-la, que foram inicialmente aplicados em presídios nos Estados Unidos e no Canadá. Embora menos de 1% sejam psicopatas graves, é fácil identificá-los, dado que muitos deles acabam cometendo homicídios, sendo pegos e levados à prisão. Mas há os psicopatas leves, que constituem 3-4% da população. Esses sentem prazer em fazer o mal, conquanto não sejam descobertos. Se o escore do teste em um extremo identifica psicopatas é porque deve existir o extremo oposto, digamos, o das “criaturas angelicais”: pessoas naturalmente altruístas e inclinadas para o bem. Provavelmente ambos os tipos (com exceção dos extremos) são resultados da seleção natural, posto que a sociedade humana precisa de uma diversidade genética como meio de produzir uma divisão de trabalho organizadora e coordenadora das ações humanas que facilite a sobrevivência de todos. Os casos mais próximos do extremo da psicopatia, quando duramente educados, podem se tornar bons líderes (vide o caso do general George Patton ou mesmo de Winston Churchill, particularmente úteis durante a Segunda Guerra Mundial, mas depois não mais). Já os mais próximos do extremo de altruísmo também podem se demonstrar úteis (vide Martin Luther King ou Mahatma Gandhi).

   Junto aos fatores genéticos temos igualmente os fatores sócio-ambientais a modelar o comportamento. O cão preso a uma corrente se torna agressivo, o cão tratado com mimos se torna dócil e confiante – o mesmo com os seres humanos. Os rigores da educação espartana produziam seres humanos desmedidamente propensos à agressão. Isso era necessário já que os hilotas (os habitantes originários) reduzidos à condição de servos do estado, formavam mais de 90% da população e precisavam ser subjugados. Os homens das civilizações pré-cristãs eram geralmente capazes de feitos de coragem e brutalidade impensáveis para nós. A educação e a cultura são, pois, fatores tão fundamentais quanto os genéticos no balanço entre o comportamento egoísta e altruísta.

   Tudo considerado, tanto o mito do altruísmo quanto o do egoísmo inatos ficam desfeitos. O ser humano não nasce bom ou mau por definição, mas é geneticamente predisposto como indivíduo mais para um ou para o outro extremo; em adição a isso o meio (a educação, a sociedade) é capaz de modelar o comportamento humano tanto em uma quanto em outra direção.

 

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Voltemos agora a Hobbes. Vimos que no que concerne ao egoísmo inato ele estava simplesmente errado. Mas no que concerne à escassez de provimentos e recursos somos forçados a lhe dar razão, dado que na história da espécie humana a guerra e a violência sempre foram uma constante, e que a principal causa, em uma reprodução do que acontece em populações animais, é a conjunção do aumento da população com a escassez de alimentos e (no caso humano) a falta de recursos que facilitem a vida.

   O paralelo com os animais é esclarecedor. As espécies tendem a se reproduzir sempre mais do que seus meios de subsistência o permitem, sendo o limite geralmente imposto pelas outras espécies concorrentes dentro do ecossistema. Considere o caso dos guanacos na Patagônia. Existem ainda muitos milhares desses simpáticos herbívoros, que hoje tendem a se reproduzir como coelhos. Entre seus predadores naturais estavam o homem e o puma. Esses predadores limitavam o número de guanacos. Os condores, por sua vez, se alimentavam das carcaças dos guanacos mortos. Com a limitação do número de guanacos, o capim dos desertos da Patagônia podia crescer outra vez... Um ecossistema funciona através de limitações mútuas das espécies. A isso é preciso acrescentar a competição intraespecífica. Os guanacos são territorialistas, reunindo-se em grupos de fêmeas liderados por um macho que é o responsável pela segurança do grupo e por manter o território e perseguir os oponentes.

   Ora, o mesmo tem acontecido com os grupamentos humanos ao longo da história. Relatos de grupos humanos de caçadores-coletores que viveram em um estado comparável ao do paleolítico, como os onas na Terra do Fogo, mostram seres humanos capazes de profunda empatia, que cuidavam de seus doentes e recebiam bem os estrangeiros. Mas as pequenas tribos onas lutavam umas contra as outras em uma competição intraespecífica pela sobrevivência em territórios cuja principal fonte de alimento, os guanacos, era limitada.[6]

   A condição humana por muito tempo não foi muito diferente. A melhor explicação que conheço encontra-se na filosofia do humanitismo de Quincas Borba, personagem do romance homônimo de Machado de Assis. Eis como ele explica o mote “ao vencido, ódio e compaixão; ao vencedor as batatas”:

 

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

 

Entre os humanos, historicamente, também foi sempre assim. As tribos indígenas guerreavam entre si na competição territorial por alimentos. Para se ver a diferença entre os modos geralmente corteses e amenos do homem contemporâneo e a por vezes inacreditável violência, crueldade, coragem e resiliência física do homem pré-cristão, basta ler os historiadores antigos. Eis dois breves trechos de Plutarco em seu livro sobre a vida de César:

 

Acílio, na batalha naval frente a Massala, ao subir num barco inimigo teve a mão direita arrancada por um golpe de espada. Ele não largou o escudo que segurava na mão esquerda, acertando os inimigos na cara, pondo todos em fuga e tomando o barco.[7]

Na África Cipião escravizou todos os passageiros do barco que havia tomado, mas ofereceu poupar a vida do questor Petro. Este declarou que os soldados de Cesar não tinham o costume de receber o perdão, mas sim de concedê-lo, matando-se com um golpe de espada.[8]

 

Hoje, ao menos nas partes mais civilizadas do globo, o comportamento humano costuma ser muito mais brando. Mas esse verniz de civilização pode não ser tanto um mérito nosso. Como bem notou George Orwell, a civilização foi resultado do desenvolvimento da ciência e da técnica, que tornaram a vida humana muito mais fácil e em muitos casos acabou com a escassez de recursos, principalmente a de alimentos.[9] Isso significa que se ocorresse algo como uma guerra atômica nós perderíamos rapidamente nossos valores humanos. No filme The Day After, que retrata uma guerra nuclear entre as grandes potências, em uma cena final aparecem na escuridão cinzenta grupos de pessoas portando armas, invasores prontos a se defender e a se apossar de tudo o que puderem encontrar.

   Usando conceitos freudianos costumamos caracterizar a civilização pela capacidade de repressão pulsional, principalmente na forma de postergação racional de sua satisfação e sublimação. Se nosso comportamento cortês só é alcançado devido às facilidades de um mundo tecnológico, não parece que sejamos tão civilizados quanto gostaríamos de supor.

 

 

 

 

 



[1] Francis Bacon: Novo Organon [instauratio magna] (São Paulo: Edipro 2014).

[2] Karl Popper: A Lógica da Pesquisa Científica (São Paulo: Cultrix 2013).

[3]  Thomas Hobbes: Leviathan – With Selected Variants from the Latin Edition of 1668. Indianapolis: Hackett, 1994.

[4] Leviatã parte I, cap. 11.

[5] Leviatã, parte II, cap. XVII, p. 109.

[6] Menos civilizados foram os europeus que decidiram exterminar os Onas (ver o documentário: “Los Onas”, por Anne Chapman, 1967).

[7] Plutarco: Vidas Paralelas: Alexandre e Cesar. (São Paulo: L&PM, 2006) p. 127.

[8] Ibid, 128.

[9] George Orwell: Seeing Things as They Are. Ed. Peter Davison. London: Harvill Seeker, 2014.

HUME: INTRODUÇÃO E CRÍTICA

 Draft para o livro “Uma introdução histórica à filosofia”

 

 

 

 

XI

HUME: DESAFIOS CÉTICOS

 

Já foi dito que a filosofia é um método para se inventar muitos problemas com base em algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766) parece tê-lo exemplificado de maneira irrepreensível. A conclusão inaceitável de sua filosofia é a de que não há razões para se acreditar nem na existência de um mundo externo, nem em sujeitos humanos espirituais, nem, obviamente, em Deus. Tudo o que a razão nos permite atestar é a existência de bandos de ideias rapidamente se sucedendo umas às outras.

   O que importa, obviamente, não é essa conclusão absurda, mas os caminhos argumentativos que Hume percorreu para chegar até ela. Os desafios céticos por ele desenvolvidos possuem a marca da profundidade, posto que ainda hoje nos incitam a buscar respostas.

 

1

 

A maior ambição de Hume era a de tornar-se famoso por sua contribuição para o progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e honestamente admitiu. Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O caráter imaginativo de sua argumentação na produção de grandes ardis metafísicos que até hoje ocupam as mentes dos filósofos e sua argumentação desafiadora, que fez escola na filosofia de língua inglesa, tem algo a ver com a criação artística. Nisso ele era oposto a Locke, uma pessoa com treinamento científico, que preferia deter-se diante de qualquer resultado que lhe parecesse absurdo demais para ser verdadeiro, fazendo exceção apenas para aquilo que de algum modo vindicasse suas crenças religiosas.

   Para ganhar a vida Hume precisou aceitar vários empregos, desde tutor de um marquês insano até secretário de um general que queria fazer uma expedição ao Canadá para ajudar a expulsar os franceses. Quando tinha 23 anos deixou a Escócia para trabalhar como escrivão em Bristol. Curiosamente, logo depois disso uma criada local o processou por ter tido um filho ilegítimo com ela. Na época não havia teste de DNA, nada foi provado e a reputação de Hume permaneceu ilesa.

   Hume passou a vida estudando. Sua obra principal, planejada desde a adolescência e escrita durante três anos de recolhimento na França, foi o Tratado da natureza humana, publicado quando ele tinha 28 anos e considerado por muitos a mais genial obra filosófica escrita em língua inglesa. Para sua grande decepção, ela não encontrou acolhimento algum, além de três resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais tarde, após a publicação de uma história da Inglaterra em seis volumes, ele se tornou um escritor conhecido e venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra e na França. Essa última obra deu-lhe liberdade econômica, possibilitando-lhe viver para escrever.

   As outras obras filosóficas mais importantes de Hume, como as Investigações sobre o intelecto humano e a Investigação sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que importantes exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra principal.

   Hume tentou ser aceito como professor nas Universidades de Edimburgo e Bristol, mas foi rejeitado por suspeita de ateísmo. Nisso seus críticos tinham razão. Em seu livro intitulado Diálogos sobre a religião natural, que teve o cuidado de não publicar em vida, ele apresentou argumentos rejeitando a imortalidade da alma e sugerindo que só um Deus cruel poderia ter criado um mundo tão injusto como o nosso. Ele não aceitou a presença de um ministro religioso para consolá-lo no leito de morte. Em sua “oração funeral para si mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois afinal “ao morrer aos sessenta e cinco um homem não faz mais do que abreviar alguns anos de enfermidade”.[1]

   Hume era conhecido como uma pessoa bondosa, com um temperamento brando e agradável, acompanhado de um inexaurível otimismo, o que torna verdadeiras as palavras de seu amigo Adam Smith, que o considerava “um homem perfeitamente sábio e virtuoso, tanto quanto o admite a frágil natureza humana”.[2]

 

2

 

Do mesmo modo que Locke, Hume também queria estabelecer os limites do conhecimento humano de modo a obstar uma metafísica e uma teologia destituídas de sentido. Mas, enquanto a obra de Locke era construtiva, a obra de Hume foi desafiadoramente cética em sua exploração dos pontos fracos das filosofias de seus antecessores. Enquanto Locke tinha a humilde intenção de arrumar a sala, Hume era ambicioso o suficiente para querer construir por meios indutivos uma nova ciência da natureza humana com base na experiência reflexiva e observação comportamental, do mesmo modo que Newton havia construído uma ciência do mundo natural resultante da experiência externa. Mais do que isso, Hume via a ciência que ele pretendia estar construindo como ainda mais importante, uma vez que só conhecendo melhor nossa própria natureza saberemos como é possível construir qualquer outra ciência!

   Hume começou o Tratado reeditando sumariamente a teoria das ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o que chamou de percepções. A palavra ‘percepção’ está simplesmente no lugar de qualquer conteúdo da mente humana. As percepções dividem-se em impressões e ideias.[3] As impressões distinguem-se das ideias pela vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e consciência, como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as impressões possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos. As ideias, por sua vez, são imagens evanescentes das impressões, tanto no pensar quanto no raciocinar. Sua tese empirista é a de que todas as nossas ideias são, em sua origem, cópias enfraquecidas das impressões sensíveis ou emocionais.

   As impressões podem ser simples ou complexas. As impressões simples são de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas. As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias simples aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória, sendo, portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser decompostas em ideias simples.

   Ideias complexas podem ser recordações ou ideias da imaginação.  As recordações são consideradas por Hume cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e a sua ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade, de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão. Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação costumam ser mais tênues.

   Ao chamar as ideias recordadas de cópias das impressões Hume recai na velha simplificação do empirismo inglês, que é o de reduzir conceitos a imagens. Pode parecer que não existam cópias imagéticas de ideias auditivas, táteis e gustativas, posto que elas não possuem formas espaciais, o que parece livrar Hume do imagismo. Mas isso é incorreto, pois por imagem devemos entender aqui qualquer reprodução ou réplica de impressões sensíveis. A memória do som de uma explosão é como sua audição, só que muito enfraquecida, do mesmo modo que a memória de uma dor ou de um certo gosto. Reduzir conceitos a reproduções ou cópias pode parecer razoável quando consideramos cores e sons, mas se torna problemático quando consideramos ideias mais complexas como as de triângulo ou de homem. Aqui precisaremos nos valer de conceitos e, como a partir de Kant veremos, de regras conceituais.

   Hume também possui um conceito semelhante ao das ideias de reflexão de Locke, embora sua gênese seja diferente.[4] Para Locke as ideias de reflexão resultam de uma espécie de introspecção sobre atividades da mente, como a do pensamento, do juízo e da crença, formando então as ideias de reflexão de pensamento, de juízo e de crença. Mas para Hume, primeiro temos as impressões que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber coisas como o calor e o frio, a fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente produz cópias dessas impressões, que são as ideias de calor, frio, fome, prazer e dor. Essas ideias continuam existindo, mesmo depois de cessadas as impressões. Mas quando essas ideias retornam à mente, associamos a elas novas impressões, como as de desejo ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são do que impressões de reflexão. Essas impressões podem ser copiadas sob forma de ideias com base na memória ou imaginação. Cabe notar que os exemplos dados por Locke e Hume são diferentes e pode bem ser que eles estejam tratando de operações diversas, ambas possíveis.

   O seguinte esquema resume as diferentes espécies de percepções distinguidas por Hume:

 

                                            Percepção

 

              Impressão                                                     Ideia

                           

de sensação     de reflexão                    da memória           da imaginação     

 

As impressões de sensação simples e complexas, assim como as ideias de reflexão, são fatores causais na produção de mais tênues ideias da memória simples e complexas. E nossa imaginação combina ideias de memória na produção das ideias complexas da imaginação.

 

3

 

Leis da associação. Uma importante descoberta de Hume diz respeito a suave força que faz nossas mentes se moverem de uma ideia a outra por meio do que ele chamou de princípios de associação. Eles são três: semelhança, contiguidade espaço-temporal e causalidade.[5] Uma ideia se associa a outra por semelhança, por exemplo, a lembrança de uma cena de perseguição vista em um filme faz com que uma pessoa se recorde de um incidente ocorrido em sua adolescência. Também há associações por contiguidade espaciotemporal, por exemplo, quando alguém se recorda da casa de seu avô e a seguir se recorda da igreja na praça à frente da casa e, em seguida, das cerimônias religiosas nos finais de semana. Há, principalmente, associações entre causa e efeito, por exemplo, quando alguém associa a vista de um ferimento à dor (causa para efeito), ou quando associa a fumaça escura que sobe ao céu a um incêndio (efeito para a causa).

 

4

 

Substância e modo. Hume tem algo a dizer sobre as fundamentais ideias de substância e de modo (acidentes). Elas se resumem a coleções de ideias simples que são unidas pela imaginação e designadas por um nome convencionalmente estabelecido.[6] As coleções de ideias que designam substâncias podem estar ligadas a algo desconhecido a que são supostamente inerentes. Mas geralmente estão conectadas por estreitas e inseparáveis relações de contiguidade e causalidade, de modo que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples com a mesma conexão com as restantes, nós a adicionamos, enriquecendo o conceito. O exemplo por ele dado é o do ouro como metal amarelo, maleável, com certo peso e fusibilidade, ao qual se veio a adicionar a propriedade de solubilidade em uma solução ácida chamada de acqua regia. Nesse último sentido a substância é entendida como uma espécie natural, algo como a substância segunda de Aristóteles, analisada por Hume como um feixe de qualidades. Por fim, exemplos de modos (acidentes) são para ele as ideias complexas de dança e de beleza.[7]

 

5

 

Universais. Hume atribuiu grande mérito à sugestão de Berkeley de que embora existam ideias gerais, elas não são abstratas no sentido de deixarem de ser empíricas. Segundo Berkeley “uma palavra deve ser geral quando se faz dela o signo, não de uma ideia geral abstrata, mas de várias ideias particulares, qualquer das quais, indiferentemente, é sugerida à mente pelo dito signo”.[8] Hume esclarece melhor a sugestão de Berkeley. De acordo com ele, por termos impressões sensíveis de diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto, formamos então, por costume, um grupo de ideias-imagens idênticas a esses objetos, embora mais enfraquecidas, contendo aquilo que nos despertou atenção. Dessa maneira formamos um grupo (um conjunto) de ideias-imagens diferentes às quais associamos uma palavra. Por exemplo: associamos à palavra ‘cão’ a um grupo de ideias-imagens mais fracas, mas idênticas às suas impressões sensíveis, digamos, a de um pastor alemão, de um puddle, de um labrador, de um chihuahua... Assim, quando vemos um novo cão, digamos, um collie, somos capazes de atualizar uma imagem semelhante de modo a reconhecê-lo pelas particularidades que nos chamam atenção. Podemos fazer a mesma coisa com ideias como as de governo, igreja, negociação, conquista. Essas últimas, escreve ele, são ideias muito complexas e pouco distintas, de modo que raramente somos capazes de fazer explícitas as ideias simples que as compõem; mesmo assim somos capazes de atribuir a quem perde uma guerra a ideia de negociação e não, digamos, a de conquista…[9]

   A solução exposta por Hume não é suficiente para resolver o problema. Quando ele se pergunta por que certas ideias-imagens devem ser escolhidas, ele recorre a noções pragmáticas como as de utilidade e adequação ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que reconhecemos um triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixa sem explicar aquilo que faz com que sejamos capazes de unir uma certa variedade de ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto.

   O passo adiante no entendimento das ideias gerais só será dado mais tarde por Kant, que irá prescindir de um discurso meramente imagético e escrever sobre conceitos como sendo habilidades governadas por regras que, sem dúvida, podem incluir a produção de modelos imagéticos, mas que não se restringem a eles e nem sempre dependem deles. Kant nota que o conceito de cão é uma regra através da qual somos capazes de delinear a imagem de um cão... Mas isso não é sempre necessário: ao identificarmos o número 56 como sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8, não precisamos recorrer à imagem alguma.

   Ainda no século passado Michael Dummett entendeu o sentido de uma palavra conceitual como uma regra que estabelece critérios para a sua aplicação.[10] Ernst Tugendhat chamou-a de regra de aplicação do termo geral,[11] a qual também pode ser abstraída da experiência. Por exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma figura plana fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três pontos diferentes do plano euclidiano. Se implicitamente dominamos essa definição então parece que possuímos uma regra para a construção de qualquer triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero, retângulo, isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um triângulo, seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com base em nosso domínio implícito da regra definitória, produzir uma ideia-imagem correspondente ao que nos for dado, explica-se porque somos capazes de identificar triângulos no plano euclidiano. É a regra conceitual que nos permite produzir imagens que se correspondem aproximadamente àquilo que a palavra conceitual está servindo para designar.

   O que Berkeley e Hume demonstraram foi que não somos capazes de construir imagens abstratas, embora possuamos termos gerais, imagens concretas e, sem dúvida, capacidades inatas para seu aprendizado. Mas eles não demonstraram que não podemos associar a termos gerais conceitos entendidos como regras de aplicação conceituais baseadas em critérios de satisfação eventualmente imagéticos. Tais regras poderiam, por suposição, ser capazes de reproduzir impressões em nossas mentes, reproduções identificadoras similares às impressões sensíveis realmente percebidas. A hipótese é a de que pela correlação dessas imagens reproduzidas com as impressões sensíveis percebidas teríamos satisfeito o critério para o reconhecimento da imagem sensível como exemplo para a aplicação da regra de identificação de um termo geral, por exemplo, no enunciado “Isso é um triângulo.”

 

6

 

Analiticidade. Uma distinção fundamental é a que Hume faz entre relações de ideias e questões de fato.[12] As relações entre as ideias (correspondentes aos juízos analíticos de Kant) são as que encontramos na geometria, na álgebra e na aritmética. Exemplos são enunciados como:

 

1.    Um círculo não é um quadrado.

2.    A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é de 1800.

3.    O quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados de um triângulo retângulo.

4.    A multiplicação de três por cinco é idêntica à divisão de trinta por dois.

 

Se as relações de ideias não forem intuitivamente certas (como em 1), elas serão ao menos demonstrativamente certas (como em 2, 3 e 4). Elas são necessariamente verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo, que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.

   Como os enunciados acima apenas afirmam as relações vigentes entre conceitos mentais, eles também não podem ser falsos, sendo contraditório negá-los. Assim, que a soma dos ângulos internos de um triângulo é de 1800 no sistema da geometria euclidiana continuará sendo uma verdade mesmo em um mundo no qual não existam triângulos euclidianos. Note-se que Hume não está falando da aplicação desses enunciados ao mundo real! Sabemos que o espaço físico onde há gravidade é não-euclidiano, e que nele a soma dos ângulos de um triângulo é maior do que 1800. Isso torna falsa a aplicação da geometria euclidiana a esse espaço, mas Hume está considerando apenas o sistema conceitual que constitui uma certa geometria.

   Diversamente do caso das relações de ideias, juízos sobre questões de fato (correspondentes aos juízos sintéticos em Kant) dependem das circunstâncias reais do mundo. Sua negação não conduz à contradição e sua verdade não pode ser estabelecida por demonstração. Tanto sua afirmação quanto sua negação pode ser em princípio verdadeira. Exemplos são inúmeros. Eis alguns:

 

1.    O dia está chuvoso.

2.    A terra é redonda.

3.    O calor dilata os metais.

4.    O sol nascerá amanhã.

 

Considere o último enunciado: “O sol nascerá amanhã.” Estamos bem certos de que o sol nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento inesperado, digamos, uma catástrofe atômica, impeça isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã não resulta em contradição. Esse também é o caso, naturalmente, dos outros enunciados acima.

   Para Hume as ideias metafisicas resultam da confusão entre relações de ideias e questões de fato. A base da filosofia de Kant consiste na suposta descoberta de juízos sintéticos a priori que embora sendo sobre questões de fato são necessariamente verdadeiros. Neles as ideias-conceitos não se encontram logicamente relacionadas, pois esses juízos nos dizem algo sobre o mundo (eles são sintéticos); mas eles são impostos pela mente humana à natureza como verdades necessárias e universais (eles são a priori).

   Para Hume o sintético a priori de Kant seria entendido como uma absurdidade metafísica. Diante da Crítica da Razão Pura, um livro fundamentado em princípios sintéticos a priori, Hume provavelmente reagiria repetindo a frase do final de suas Investigações sobre o intelecto humano:

 

Esse livro contém algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou existência? Não. Então para o fogo com ele, pois outra coisa não pode encerrar senão sofismas e ilusões.

 

7

 

Ceticismo causal. O mais famoso argumento de Hume diz respeito à natureza da causalidade e, por extensão, à possibilidade de inferência indutiva. Para ele a causalidade é fundamental pois:

 

Todo raciocínio concernente à matéria de fato parece ser fundado na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação nós vamos além das evidências da memória e dos sentidos.[13]

 

Em um exemplo seu, uma pessoa perdida em uma ilha deserta encontra um relógio e conclui que não está só. Essa inferência resulta da conhecida relação causal entre um artefato e a existência de um usuário. Embora muitas inferências sejam de fato causais, essa generalização de Hume parece excessiva.[14] Por exemplo: sei que o abacate que vejo na feira tem um grande caroço. Essa inferência se baseia no fato de ter aberto outros abacates e de ter encontrado neles sempre grandes caroços. Mas essa não é uma inferência fundada em uma relação de causa e efeito, mas de contiguidade.

   Certo ou errado, sobre esse pressuposto Hume procede sua famosa análise da causalidade. De acordo com a tradição racionalista de filósofos como Descartes, Spinoza, e Leibniz, e mesmo no caso de um empirista como Locke, a causa é razão suficiente para o seu efeito, ou seja, toda causa logicamente necessita seu efeito, do mesmo modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume discordava. Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo da experiência. Adão, escreveu ele, ao ver pela primeira vez a água não poderia saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela primeira vez o fogo que este tinha o poder causal de queimá-lo.[15]

   Ao analisar a relação causal Hume encontra três critérios perceptuais para a identificação da relação entre causa e efeito. Eles são:

 

1.    Contiguidade espaço-temporal,

2.    A causa vem antes do efeito,

3.    Deve haver união constante entre causa e efeito.

 

Quando uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há uma contiguidade no espaço e no tempo. Além disso, o movimento da primeira bola vem antes do movimento da segunda. Finalmente, a mesma coisa acontece sempre que uma bola de bilhar nas circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa análise pode ser definida como a teoria da causalidade como regularidade. Ela está de acordo com o empirismo humiano, uma vez que as propriedades (1), (2) e (3) são as que a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora existam objeções contra essa análise, elas parecem contornáveis.[16] A questão importante que Hume então se coloca é: “cadê a experiência da necessidade causal?” Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos filósofos racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.

   Hume imagina ainda uma maneira de garantir a necessidade causal, que seria assumir um princípio da uniformidade da natureza. Se a natureza é uniforme então o futuro se assemelha ao passado. Se o futuro for como o passado, como no passado, quando uma bola de bilhar se chocava com uma outra, ela sempre fazia a outra se mover, então quando uma bola de bilhar se chocar com uma outra no futuro essa outra também deverá se mover! Há, porém, um problema: nada nos garante que a natureza seja uniforme de modo que o futuro seja semelhante ao passado, pois essa também é uma questão de fato. Podemos perfeitamente imaginar que o futuro venha a ser diferente do passado. Como ele notou, é possível que da próxima vez que a neve cair os seus flocos queimem como fogo ou que as árvores floresçam em pleno inverno... Um princípio da uniformidade da natureza não pode ser provado e não é intuitivamente certo. Como ele escreveu:

 

A suposição de que o futuro se assemelha ao passado não é fundada em nenhuma espécie de argumento, sendo antes derivada inteiramente do hábito, que nos determina a esperar, para o futuro, a mesma sequência de objetos com a que já estamos acostumados.[17]

 

Não é, pois, a razão, que nos leva a acreditar que o futuro será semelhante ao passado, mas um simples hábito ou costume. O resultado é que não temos meio racional de garantir a necessidade causal.

   Se nenhum desses argumentos funciona, então como explicar nossa convicção de que existe uma necessidade causal? A solução de Hume foi observar que quando a mente percebe uma união espaço-temporal regular entre dois eventos, um ocorrendo antes do outro, ela forma um costume ou hábito através do qual sempre que ela experiencia o primeiro evento ela cria a expectativa de que o outro se seguirá. Mas esse hábito nos confunde, fazendo-nos pensar que existe uma relação de necessitação de um evento-causa para um evento-efeito, quando na verdade não temos experiência alguma disso. Somos levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal quando na verdade tudo o que experienciamos é uma expectativa psicológica de que após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.

   Sob a suposição de que todo o nosso conhecimento de questões de fato se baseia em relações causais, o resultado ao qual Hume chega é desalentadoramente cético. Como não há necessidade causal, nossa convicção de que no futuro as relações causais permanecerão as mesmas é destituída de qualquer fundamento racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo aquece e que a água apaga o fogo. Essas são relações causais. Mas como não existe uma verdadeira necessidade causal, nada nos garante que no futuro o fogo continuará a aquecer ou que a água será capaz de apagá-lo. Na formação de nossas expectativas sobre questões de fato, tanto do senso comum quanto da ciência empírica, somos como insetos voando em direção à luz, determinados apenas pela nossa natureza instintiva.

 

8

 

Essas famosas conclusões céticas podem ser problematizadas. Uma importante dificuldade na análise da causalidade como regularidade feita por Hume, por ele mesmo notada, é que os critérios por ele propostos não parecem suficientes. Eles não explicam por que as regularidades entre eventos contíguos que se dão por pura coincidência não são causais. Considere, por exemplo, o caso de um ônibus que todos os dias às 12 horas para diante de uma igreja e que logo a seguir os sinos começam a repicar. Há aqui contiguidade espaço-temporal: o ônibus para diante do edifício e logo a seguir os sinos começarem a bater. Além disso há união constante: isso ocorre todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há relação causal alguma entre uma coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente nascimento dos cabelos nos bebês antes do crescimento dos dentes de leite. Ninguém estaria disposto a dizer que o crescimento dos cabelos é a causa do nascimento dos dentes. Aparentemente, aquilo que está faltando nesses exemplos é um nexo de necessidade entre causa e efeito. O parar do ônibus não necessita o badalar dos sinos, nem o crescimento dos cabelos necessita o nascimento dos dentes de leite.

   Tentando um caminho menos pessimista para lidar com o problema podemos apelar para uma relação de necessidade mais fraca do que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume e defendida pelos racionalistas. Dizemos que alguém necessita ir à cidade comprar mantimentos, que é necessário chover para que a pastagem cresça, que o diabético precisa tomar injeções de insulina... Essas não são necessidades lógicas. Ora, uma maneira de entendermos a necessidade causal de maneira mais fraca parece ser a de a identificarmos com o bom entrincheiramento (good entrenchment) da regularidade dita causal.[18] Podemos definir o bom entrincheiramento de uma regularidade causal como:

 

(i)             sua complementação com outros fatores causais do conjunto de fatores envolvidos[19] e

(ii)           sua complementação com as outras regularidades pressupostas pelo nosso sistema de crenças.

 

Não há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo o parar do ônibus diante da igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do bom entrincheiramento que existe entre o ponteiro do relógio da igreja a marcar 12 horas e o repicar dos sinos logo a seguir. Afinal, o martelo do relógio bate no sino fazendo esse tocar por causa de um complexo mecanismo ligando o relógio a ele, o que satisfaz a condição (i), enquanto o parar do ônibus defronte à Igreja não tem nada a ver com esse mecanismo. Além disso, nosso sistema de crenças inclui leis físicas que nos fazem pressupor correlações entre movimentos de objetos físicos contíguos devidamente ajustados uns aos outros de modo a produzir o repicar dos sinos, satisfazendo a condição (ii), enquanto a correlação entre o parar do ônibus em frente à igreja e o repicar dos sinos não recebe nenhuma confirmação por parte de nosso sistema de crenças. Quanto ao segundo exemplo, não há nenhum entrincheiramento entre o crescimento dos cabelos e o nascimento dos dentes de uma criança, pois não encontramos outros fatores causais associados, nem encontramos razões biológicas pertencentes ao nosso sistema de crenças que justifiquem uma expectativa de que essas duas coisas possam se relacionar.

   A diferença fica mais clara quando comparamos os casos acima com o bom entrincheiramento que existe entre o raio e o trovão. Que o raio causa o trovão é algo sabido desde a antiguidade, quando não havia ciência para explicá-lo. Podemos começar daí. Que o raio causa o trovão é um bom exemplo, dado que fenômenos atmosféricos são independentes da ação humana, o que o torna menos sujeitos a um grande número de fatores intervenientes que demandem uma análise mais extensa. O bom entrincheiramento se demonstra primeiro nos fatores causais acompanhantes. Raios e trovões ocorrem sob um pano de fundo de nuvens tormentosas e, geralmente, vento e chuva. Há também outras correlações, como o fato de que quanto mais longe cai o raio, mais tempo levamos para perceber o trovão. Sempre foi conhecida uma diversidade de correlações fenomênicas que em nosso sistema de crenças reforçavam aquela relação de regularidade de modo a lhe conferir certa necessidade causal.

   Vejamos agora como é isso hoje, quando o bom entrincheiramento conceitual desses fenômenos é muito mais detalhado conhecido. Sabemos que os raios resultam de cargas elétricas provenientes do atrito causado pelos ventos entre as partículas de água e gelo que formam as nuvens. As partículas mais pesadas e com carga de gelo positiva se acumulam na parte inferior da nuvem, enquanto as partículas mais leves e com carga negativa se concentram em sua parte superior. Quando a diferença de cargas entre uma nuvem e outra ou entre a nuvem e o solo é grande demais, o ar não é mais capaz de isolá-las e acontece a descarga elétrica chamada de raio. O relâmpago é para nós hoje algo diferente do raio: ele é a luz emitida pelo superaquecimento do ar pelo raio. Quando o ar é superaquecido ele também se expande rapidamente, produzindo uma onda de choque sonora que ouvimos sempre após vermos a luz do relâmpago, uma vez que o som do trovão caminha a 340 metros por segundo enquanto a luz do relâmpago caminha à 300.000 km por segundo. Temos assim melhor e mais precisamente explicadas relações de intensidade entre o relâmpago e o trovão, assim como a relação de sucessão temporal do raio para o trovão. Podemos agora com muito mais razão dizer que a relação entre o raio e o trovão é de necessitação em termos de um grande entrincheiramento entre esses dois fatores causais e nosso sistema de crenças da física e da química aplicado às condições meteorológicas específicas.

   A conclusão não se faz esperar. O que chamamos de necessitação causal nada mais é do que o bom entrincheiramento entre os múltiplos fatores causais envolvidos na relação ente causa e efeito sob o suposto de nosso sistema de crenças. O erro dos filósofos racionalistas estaria em confundir uma necessidade empírica, a do bom entrincheiramento, com uma necessidade lógico-convencional. E o erro de Hume está em não se ter dado conta da existência de uma necessitação definida por um bom entrincheiramento conceitual, tanto com os outros fatores envolvidos na relação causal quanto com nosso sistema de crenças.

   Um defensor do ceticismo humiano poderia não se dar por vencido. Eis como ele poderia argumentar: Mesmo que seja intuitivo que o bom entrincheiramento pareça conferir certo grau de necessitação à uma regularidade causal, dirá ele, como as associações envolvidas no entrincheiramento também são regularidades, parece que o mesmo argumento aplicado contra a necessidade causal de uma regularidade particular deve poder ser aplicado ao conjunto total das regularidades entrincheirantes. Assim, embora a suspensão de uma ou outra regularidade possa ser tornada improvável pela permanência de todas as outras regularidades entrincheirantes associadas, o mesmo não acontecerá no caso em que todas as regularidades forem imediatamente suspensas, posto que não restará mais nada para entrincheirá-las. Isso parece ser o caso se todos os elementos causais e o mesmo o próprio sistema de crenças que entrincheira uma certa regularidade forem repentinamente suspensos! Por exemplo: suponha que daqui a cinco minutos o mundo inteiro perca as suas regularidades. Isso parece logicamente concebível. Mas se essa suspensão de todo o sistema entrincheirante for concebível, então o sistema como um todo não envolve necessitação, a não ser aquela resultante de uma mera expectativa psicológica, o que nos leva de volta ao problema humiano inicial.

   A resposta é que uma suspensão de todo nosso sistema de regularidades não pode ser realmente concebida. A razão é a seguinte: Quando imaginamos uma suspensão de todas as regularidades em nosso mundo, nós precisamos nos imaginar como se estivéssemos fora do mundo, observando a sua completa perda de regularidades. Mas para fazer isso estaremos nos fiando em um sistema de crenças total, que inclui as regularidades e entrincheiramentos de nossas crenças de fora do mundo observado. Mas como o mundo como um todo precisa incluir a nós mesmos e o lugar de nossa avaliação, não podemos nunca conceber uma repentina desaparição completa de todas as regularidades, posto que ela envolveria a nós mesmos como sujeitos da observação. Mas se não somos capazes de imaginar o desaparecimento repentino do sistema completo de regularidades que constitui nosso mundo com a inclusão de nós mesmos, então não podemos imaginar o desaparecimento da espécie de necessidade causal constituída pelo bom entrincheiramento. Não podemos, pois, conceber como a espécie de necessidade que constitui o bom entrincheiramento possa cair vítima de uma dúvida cética radical.

 

9

 

O problema humiano da causalidade foi conjuntamente (e de forma algo equívoca) aplicado a inferências ampliativas gerando o ominoso problema da indução. Inferências indutivas são aquelas que vão do observado para o não observado, sendo capazes de ampliar nosso conhecimento. Por exemplo: “O sol sempre nasceu a cada dia. Logo: o sol também nascerá amanhã”. Como garantir tais inferências? Para Hume a solução parece se encontrar na admissão do princípio metafísico da regularidade ou uniformidade da natureza.[20] Para o caso em questão o princípio pode ser formulado como:

 

PF: O futuro será semelhante ao passado.

 

Admitindo-se essa versão do princípio da uniformidade o exemplo acima será justificado como se segue:

 

O sol sempre nasceu a cada dia

O futuro será semelhante ao passado. (PF)

Logo: o sol nascerá amanhã.

 

À primeira vista a solução parece convincente. O problema surge quando nos perguntamos pela justificação de um princípio da uniformidade como PF. Afinal, como sabemos que o futuro deve ser semelhante ao passado? Essa é uma verdade de fato, podendo ser negada sem contradição, não sendo, pois, garantida. Não temos como garantir princípios de uniformidade, dado que eles não são verdades da razão.

Podemos recorrer a um raciocínio assegurador de PF, que seria o seguinte:

 

Os futuros do passado sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.

Logo: o futuro (do presente) será semelhante ao passado.

 

O problema é que esse argumento também é indutivo, tornando a resposta circular! Não faz sentido tentarmos justificar a indução através de uma premissa que resulta ela própria de uma inferência indutiva.

   A conclusão é que também quanto às inferências indutivas a conclusão de Hume é extremamente pessimista: não temos como justificá-las. Mas como a ciência empírica e mesmo o senso comum se fundamentam em inferências indutivas, a conclusão é que não temos como justificar nosso conhecimento empírico. O que nos faz crer que o sol nascerá amanhã resulta de uma cega fé animal resultante de disposições psicológicas para a formação de hábitos.

 

10

 

Há uma variedade de tentativas de solucionar o problema, todas elas prenhas de dificuldades. A única salvação, que posso apresentar aqui apenas de maneira muito esquemática,[21] consiste ao que me parece em refinar os princípios de uniformidade de tal maneira que eles se tornem claramente analíticos. Eis uma versão mais adequada do princípio de que o futuro será semelhante ao passado:

 

PF*: Quanto mais próximo estiver o futuro de seu passado, mais tendencialmente semelhante ele precisará ser com esse passado, tornando-se idêntico a ele no ponto de junção dos dois (o presente).

 

Um futuro, para ser o futuro se seu próprio passado, precisa ao menos tender a assemelhar-se a ele na razão de sua proximidade dele, tornando-se ambos indefectivelmente idênticos no momento presente.

   Se considerarmos com suficiente atenção o que PF* nos diz, veremos que essa versão do princípio é intuitiva e não resulta de nenhuma inferência indutiva. Trata-se simplesmente de uma condição de possibilidade do conhecimento empírico que, diversamente de um juízo sintético a priori, pode ser considerada uma verdade da razão (analítica) que, além de ser intuitiva não pode ser negada sem contradição. Afinal, negar que na aproximação com o presente, futuro e passado se tornem ao menos tendencialmente cada vez mais semelhantes, tornando-se idênticos no momento presente, não faz sentido. Se um futuro pudesse não ser tendencialmente mais semelhante ao seu passado tornando-se idêntico a ele no ponto de junção (no presente), ele poderia ser totalmente diferente de seu passado. Mas nesse caso ele não poderia ser reconhecido como sendo o futuro de seu próprio passado. Não me é concebível colar o futuro de meu presente nesse mesmo lugar onde me encontro com como ele era há 1 milhão de anos e imaginá-lo como sua continuação. Como já havia percebido Leibniz, “a natureza não dá saltos.” Se temos vários mundos possíveis W1, W2... Wn, o futuro de W1, digamos W1f deve ser uma continuação de seu passado, digamos W1p. Não pode ser que W1f seja uma continuação de W2p, ou que W2f seja uma continuação de Wnp. Temos, pois, por meio de PF*, uma versão do princípio da uniformidade analiticamente assegurada. E só isso já deve bastar para garantir a nossas inferências indutivas do passado para um futuro suficientemente próximo alguma plausibilidade.

   Ainda um testemunho dessa versão analítica do princípio de que o futuro deverá ser semelhante ao passado é o fato de que quanto mais distante for o futuro, menos provável será a inferência indutiva. Por exemplo: a inferência indutiva de que o sol também nascerá no próximo dia daqui a 5 bilhões de anos é refutada pela cosmologia atual, uma vez que por essa época ele já terá se transformado em uma gigante vermelha, engolindo a terra.

 

11

 

Vejamos agora os argumentos pelos quais Hume foi levado a rejeitar tanto o mundo externo independente quanto um eu permanente.

   Comecemos com o tratamento que Hume dá às coisas do mundo externo. Como sabemos que os objetos materiais externos existem separados de nós? A resposta seria que as impressões de figura, extensão, cor e som advindas do mundo externo são muito mais intensas (“mais fortes e violentas”), além de serem constantes, coerentes e independentes da vontade. Mas isso é insuficiente. Afinal, nossas dores e prazeres, assim como nossas paixões, mesmo sendo internas, são igualmente intensas e involuntárias. Mesmo as percepções de máxima intensidade das coisas que observamos com os olhos abertos e que tocamos e ouvimos não passam de percepções idênticas, em sua natureza, às ideias de Locke, tornando impossível para nós transpormos o abismo que separa tais percepções de um suposto mundo externo sem supor a uma continuidade.

   Para Hume só existem três causas possíveis de nossa crença na existência de coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos, a razão e a imaginação. Mas os sentidos não nos podem atestar nem a existência de uma substância entendida como um substrato não-perceptível das ideias, nem a existência continuada das coisas quando não percebidas, pois cessando a sensação os objetos deixariam de estar presentes aos sentidos. A crença na existência continuada dos objetos também não pode ser produzida pela razão porque também as crianças e os rudes tem essa crença, apesar de não possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume é que a nossa crença na existência de uma substância entendida como substrato incognoscível das ideias, assim como nossa crença na existência continuada dos objetos do mundo externo ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação. Para ele o mesmo hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal é aquele que nos leva a imaginar que deva existir uma substância permanente como se ela fosse observável. Eis seu argumento no Tratado:

 

Quando nos acostumamos a observar uma constância em certas impressões, quando descobrimos, por exemplo, que nossa visão do sol e do oceano retorna depois de um período de ausência ou aniquilação, com as mesmas partes na mesma ordem que da primeira vez, não somos mais capazes de considerar essas percepções interrompidas como distintas (como de fato o são), mas pelo contrário, as consideramos como individualmente as mesmas de modo a explicar sua semelhança. Mas como a interrupção de sua existência é contrária à sua perfeita identidade e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi aniquilada e que a segunda foi criada de novo, encontramo-nos algo perdidos, envolvidos em uma espécie de contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade disfarçamos tanto quanto possível a interrupção, antes removendo-a inteiramente, supondo que essas percepções interrompidas sejam conectadas por uma existência real, à qual somos insensíveis.[22]

 

Ou seja, nossa crença na existência continuada dos objetos externos resulta de nossa imaginação. Nós temos a propensão de cobrir os vazios entre nossas percepções imaginando que eles sejam preenchidos, como se existisse um sujeito percipiente acompanhando os objetos quando não os percebemos. Assim, repetindo um exemplo de Barry Stroud,[23] suponha que eu esteja com os olhos abertos observando uma mesa de jantar com tudo o que se encontra sobre ela. Suponha agora que eu feche os olhos por uns três segundos, depois eu os abro de novo e, mais adiante, eu os feche outra vez e assim por diante. Chamando de A à percepção que tenho com os olhos abertos e F a percepção com os olhos fechados, o resultado no curso do tempo será:

 

 AAAAAAFFFAAAAAAFFFFFAAA...

 

Para Hume minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto percebido, como se a percepção tivesse a forma de:

 

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA...

 

A conclusão à qual ele chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e nunca a um mundo real externo.

 

12

 

Que dizer dos argumentos de Hume contra nosso conhecimento de um mundo externo que permanece, mesmo na independência de ser percebido por nós? Na verdade, não há nada neles de tão decisivo que não possa ser questionado. Consideremos o caso da existência de um mundo externo. Hume considera os critérios de realidade externa que ele mesmo expõe como sendo o da máxima intensidade perceptual e coerência, como insuficientes. Já consideramos esse ponto brevemente ao examinarmos o argumento de Berkeley contra a existência da substância material. Contudo, os critérios de realidade externa expostos por Hume e Berkeley só parecem insuficientes enquanto forem considerados isoladamente. Suponhamos, porém, que as impressões humianas satisfaçam conjuntamente todos os critérios de realidade externa apontados não só por Hume, mas também por Berkeley e mesmo por outros filósofos que trataram do assunto, de Descartes a Frege.[24] Não seremos então forçados a admitir que estamos considerando um mundo de coisas externas?

   Para testar melhor essa hipótese, consideremos mais de perto os critérios mais fundamentais:

 

1.    Máxima intensidade perceptual: a intensidade perceptual de uma percepção táctil ou auditiva ou visual é incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela memória ou pela imaginação. Hume dá o exemplo de uma dor extrema, como algo interno tão intenso quanto a percepção táctil ou visual. Mas esse é um exemplo enganoso. Primeiro porque a dor não é uma ideia, mas uma impressão. Depois porque a dor pode ser considerada uma percepção externa, ainda que subjetiva (não interpessoalmente acessível), dado que localizada no corpo físico de um ser humano. O mesmo pode acontecer com a fome intensa ou com o desejo sexual.

2.    Independência da vontade: posso fazer o que quiser com os produtos de minha imaginação, mas o que pertence ao mundo externo é independente do meu querer.

3.    Co-sensorialidade. Não precisa estar presente, mas é indispensável às qualidades primárias de Locke.

4.    Intersubjetividade virtual do que é apresentado à percepção. As percepções do que é objetivamente real são passíveis de acesso intersubjetivo ou interpessoal. Se uma pessoa está só no chuveiro e tem nas mãos um sabonete ela sabe que é real em parte porque sabe, por experiência, que qualquer outra pessoa que estivesse ali teria as mesmas percepções.

5.    Coerência com o contexto espacial e temporal. Se uma pessoa acorda todas as manhãs em seu aposento e vai para o trabalho, tudo acontece ao seu redor de forma coerente com as suas expectativas. Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas propriedades e pelas relações entre elas e outros objetos. (Se, como em uma estória contada por Marco Polo,[25] uma pessoa tomasse uma droga que a fizesse dormir, fosse levada para um jardim cheio de maravilhas, e lá fosse acordada por alguns minutos, devendo então beber algo que lhe fizesse dormir outra vez, sendo então retornada para onde estava antes, essa pessoa poderia encontrar dificuldade em saber se o que vivenciou foi realidade ou se esteve delirando ou se não estava apenas sonhando; a razão é a falta de continuidade e coerência com toda a sua história passada e presente.)

6.    Seguimento de leis naturais. Quando sonhamos, coisas incríveis podem acontecer: uma pedra pode rolar montanha acima. Mas quando no mundo real soltamos um objeto pesado no ar ele certamente cairá.

7.    Seguimento de regularidades perspectivista no campo da percepção. Por exemplo, quando movimento meus olhos ou quando me aproximo de um objeto ocorrem mudanças bem determináveis em meu campo perceptual. O mesmo ocorre com a audição e com o tato. Mas isso não precisa acontecer na imaginação.

 

Individualmente cada um desses critérios podem falhar. Se tomarmos um ou dois desses critérios isoladamente isso não será suficiente para considerarmos o que percebemos como pertencente a um mundo externo. Quanto a (1), podemos conceber uma alucinação que pareça ao indivíduo absolutamente real, como é relatado em casos de alucinose alcoólica. Quanto a (2) há hoje meios pelos quais um tetraplégico pode aprender a movimentar objetos externos pela simples ativação do córtex motor. O critério (3) de co-sensorialidade é satisfeito facilmente nos sonhos. Quanto a (4), em um sonho vemo-nos frequentemente conversando com outras pessoas cuja presença deveria nos assegurar a realidade daquilo que estamos vivenciando. Além disso, alucinações coletivas são possíveis por força da sugestão, por exemplo, quando várias pessoas tomam juntas um mesmo alucinógeno. Quanto a (5), podemos imaginar um sonho tedioso, mas perfeitamente coerente... Eis um exemplo real: um homem precisava acordar cedo, seu despertador tocou, mas ele dormiu outra vez; sonhou então que tinha se levantado, que entrou no banheiro... Quando estava escovando os dentes sua esposa o acordou e o fez perceber que estava sonhando. Quanto a (6), sonhos realistas nos quais as leis naturais e expectativas são seguidas são perfeitamente possíveis. Quanto a (7), regularidades perspectivistas também podem ser dadas em sonhos.

   A pergunta é se todos esses critérios podem conjuntamente falhar e mesmo assim o mundo que experienciamos como externo não ser real. Ou seja: se, no caso em que todos esses critérios de realidade externa estiverem sendo satisfeitos, ainda assim é possível que as coisas que compõem a realidade externa não existam. A resposta, como veremos, é que se estivermos considerando o que chamei de realidade inerente (cap. V, sec. 4), isto é, aquela que é considerada na exclusão de cenários céticos, a satisfação conjunta dos critérios de (1) a (7) será plenamente suficiente para garantir que aquilo que é dado a experiência é externamente real, não se tratando apenas de sense-data internos, ocorrentes em nossos cérebros.

   Note-se que a escolha da conjunção de todos os critérios acima é compatível com a ideia de que a todos os nossos perceptos correspondem aos sense-data que ocorrem no cérebro. Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais usando fMRI e modelos computacionais não deixam margem para dúvida: eles reconstituem imagens visuais (os sense data) que ocorrem no cérebro do observador de modo a torná-las visíveis para outros e para ele mesmo![26] Contudo, é possível argumentar que a satisfação conjunta de todos esses critérios de realidade externa é o que basta para definir o conteúdo percebido como pertencente ao mundo externo real, entendendo-se aqui realidade no sentido inerente e não aderente da palavra, o que exclui os cenários céticos como um caso à parte (ver próxima seção). O conteúdo mental, os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui interpretados projetivamente em suas relações, como componentes do que chamamos de realidade externa, sendo então definidos como a parte percebida dela, na medida em que conjuntamente satisfizerem os critérios de realidade externa acima expostos. Estamos agora de posse de uma paráfrase da afirmação de Hobbes de que a mente tem a tendência a projetar para fora o que lhe é dado na independência da vontade.

   Ainda uma objeção poderia ser que os dados sensíveis, mesmo que interpretados projetivamente como propriedades das coisas externas, continuam sendo fenômenos psicológicos internos, o que facilmente nos reconduz ao idealismo de Berkeley ou ao ceticismo de Hume. Não me parece que essa conclusão seja inevitável. Considere a comparação feita no capítulo anterior entre os dados sensíveis e a pequena imagem projetada pela ocular de uma luneta. Se por um lado, o que é projetado na retina é uma pequena imagem do disco lunar, por outro o que realmente vemos é a própria superfície da Lua com suas áreas internas mais claras e mais escuras. De modo similar, quando olhamos para uma imagem em um espelho e a vemos como simples imagem, ela se encontra lá no fundo do espelho; mas quando nós a interpretamos projetivamente como aquilo que realmente vemos, ela é vista como um conjunto de propriedades físicas que se encontram em frente ao espelho, as quais não possuem mais nada de imagético. Não diremos nunca que a Lua é uma imagem projetada por uma lente ocular, nem que as propriedades daquilo que vemos espelhado não passam de imagens de espelho. Ora, por que então nos recusarmos a fazer uma distinção similar com relação aos sense data que sabemos serem dados em nosso sistema nervoso e sua interpretação projetiva em termos de propriedades externamente observadas?

   Resta ainda explicar o que nos faz supor que a ideia mental possa ser considerada fenomenalmente similar à qualidade física externa cujo nome usual é “aparência física”.  Afinal, meu sense datum do vermelho é algo subjetivo! Como é possível saber que o vermelho de uma superfície é similar a ele? A resposta é que escolhemos dizer assim porque, como foi notado no capítulo anterior, o conteúdo da percepção tanto pode ser interpretado em termos de aparência física externa quanto em termos de sense data. A imagem mental do disco lunar repete as mesmas variações de luz e sombra do disco lunar real. Uma pessoa pode hoje em dia comparar a aparência física de algo com a imagem dessa aparência produzida sem seu cérebro como sense data e reconstruída computacionalmente com auxílio de fMRI de maneira a verificar objetivamente que elas são similares. Não podemos ao certo saber se outra pessoa que vê o vermelho está tendo a mesma experiência fenomenal que nós, mas podemos nos aproximar disso. É verdade que seres vivos muito diversos tem acesso a qualidades fenomenais diferentes. Mas suas relações tanto internas (digamos, diferentes tonalidades de vermelho em uma mancha vermelha) quanto externas (as relações da mancha com as outras coisas e com o observador) devem permanecer as mesmas enquanto existirem. Uma águia diferencia melhor certas cores e tem visão mais aguçada, adicionando propriedades ao fenômeno, mas, sem com isso alterar as propriedades fenomenais já distinguidas por nós, incluindo os critérios de realidade através das quais distinguimos o fenômeno como sense datum do fenômeno como a aparência física externamente dada.

 

 

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A satisfação conjunta dos critérios de realidade externa recém apresentadas não é imune às assim chamadas hipóteses céticas, como a de que a pessoa está sonhando, de que ela está sendo enganada por um gênio maligno, ou de que ela não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um programa encenando a vida em um planeta inexistente chamado Terra...

   Hipóteses céticas radicais são ao menos logicamente possíveis. Não é absurdo pensar que eu possa certa noite acordar em um lugar estranho, rodeado por pessoas com um aspecto estranho com o qual não estou acostumado, meu próprio corpo sendo curiosamente semelhante ao delas. Elas me explicam em bom português que eu havia sido até aqui um cérebro na cuba, no qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia no planeta terra”. Me informam que esse é um experimento comum no planeta Ômega, feito para estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que de agora em diante eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha vida no suposto planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado em um saudável corpo de um habitante de Ômega. Embora talvez precisando de algumas seções de psicoterapia eu acabo me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados, especialmente o de coerência. Nesse caso, tanto agora quanto em minha vida anterior, os critérios de realidade externa estavam sendo conjuntamente satisfeitos! Mas está claro para nós que a única realidade externa verdadeiramente real é a do habitante do planeta Ômega, enquanto a realidade externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em cenários céticos os critérios de realidade externa falham!

   A solução do problema não é difícil de ser encontrada. Basta distinguirmos entre dois conceitos de realidade externa, que chamei de conceito inerente e aderente de realidade (cap. V, sec. 4). Os critérios de realidade até agora expostos dizem respeito ao conceito de realidade inerente. Nesse sentido, tanto a minha vida anterior como cérebro na cuba quanto a minha vida atual como habitante do planeta Ômega são perfeitamente reais, posto que ambas satisfazem conjuntamente os critérios de realidade externa. Mas no sentido aderente do conceito de realidade externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não era real, pois real é meu mundo em Ômega. Sou capaz de dizer isso porque o conceito de realidade aderente só é aplicado em cenários céticos, quando precisamos comparar duas realidades inerentes. Nesse caso prefiro chamar de aderentemente real ao mundo que inclui o outro como um produto ficcional de si mesmo. No caso em questão, o mundo da terra, no qual vivi como cérebro na cuba pode ser explicado como tendo sido claramente um produto ficcional do mundo no qual vivo agora. Como consequência, o mundo no qual vivo agora é não só aderentemente real, mas também inerentemente real, enquanto o mundo no qual eu pensava estar vivendo como professor de filosofia no planeta terra não era aderentemente real; ele era aderentemente irreal, mesmo que inerentemente real.

   O critério de realidade externa aderente é a coerência do mundo com a hipótese cética. Enquanto nenhum cenário radicalmente cético ocorre nós assumimos que tanto o critério de realidade inerente quanto o critério de realidade aderente estejam sendo satisfeitos. Mas no implausível caso do aparecimento de um cenário cético seremos forçados a fazer a comparação e tomar uma decisão quanto a qual dos mundos é aderentemente real. Assim, suponha que após ter me acostumado com a vida em Ômega uma noite dessas eu acorde no sádico mundo do planeta Zeta, no qual seres monstruosos me dizem que eles haviam feito apenas uma brincadeira de mau gosto e que o mundo do planeta Ômega também não existe, pois eu verdade sou apenas um cidadão menos afortunado do planeta Zeta... Nesse caso talvez eu acredite que sim, ou então terei dúvidas, suspenderei o juízo ou (mais provavelmente) perca de vez a razão.

 

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Não é difícil desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de que nós preenchemos os vazios entre as percepções imaginando que os objetos do mundo externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o problema é com a ideia de permanência. A gramática lógica do conceito de permanência dos objetos externos não parece ser precisamente aquela sugerida por Hume. Quando o homem de Java ao voltar da caça pela primeira vez observou que tanto a sua caverna, quanto sua mulher e seus filhos, permaneceram onde estavam desde que ele saiu para caçar, ele não queria dizer que eles permaneceram lá por recurso à imaginação, tal como Hume entende. Ele queria dizer apenas que os encontrou no mesmo lugar onde esperava encontrá-los. Se for mais refinado ele dirá que se ele ou qualquer outra pessoa fossem postados nas circunstâncias adequadas, ou seja, de frente à caverna, eles a veriam e poderiam entrar nela, e que então poderiam encontrar sua mulher e filhos e que esse experimento poderia em princípio ser feito em qualquer tempo enquanto ele estava caçando. Ele poderia dizer que se no tempo em que estava caçando um visitante estivesse o tempo todo presente na caverna, ele observaria tanto a caverna quanto a sua família. A objetividade empírica e permanência daquilo que não está sendo observado não significa nada mais do que a garantida possibilidade de observação sob condições adequadas. Trata-se aqui também da simples e verdadeira definição do que se constitui a permanência de algo sem estar sendo observado, ignorada por Hume. Eis como podemos definir o conceito de permanência realmente usado:

 

Um objeto permanece (Df.): quando sempre que condições adequadas para a sua percepção por um sujeito perceptual forem dadas, ele é percebido.

 

A permanência é aqui definida como perceptibilidade (a qual se dá através da satisfação conjunta dos critérios de realidade externa). Assim, não precisamos pensar que o objeto precise estar presente para ser atestado como permanente, uma vez que aquilo que entendemos por permanência é a sua perceptibilidade virtualmente interpessoal sob condições adequadas de percepção, o que só alcançamos através da experiência. Dessa definição deduzimos que se existisse um observador em condições adequadas disposto a observar o objeto por todo o tempo de sua existência, ele seria por todo esse tempo observado. Mas isso não nos faz exigir que a permanência do objeto dependa de este estar sendo sempre observado, como Hume sugere. O engano é proveniente do fato de que ele nos leva a imaginar uma espécie de observador invisível que está sempre acompanhando a existência do objeto, fazendo-nos confundir a ideia da permanência com a ideia desse acompanhamento.

   A permanência das coisas quando não observadas, entendida como a garantida possibilidade de observação é algo aprendido por inúmeras e variadas inferências indutivas anteriores acerca das regularidades do mundo em que vivemos. Não precisamos, como Hume, imaginar algo parecido com um olho mágico e invisível, que está permanentemente percebendo as coisas enquanto não as percebemos, para com isso nos certificar de sua permanência.

 

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A maneira como Hume se liberta do eu dos racionalistas, entendido como uma substância contínua, simples e sempre idêntica a si mesma (a “alma”), segue a mesma linha. Para ele, quando voltamos para nós mesmos, tudo o que percebemos é:

 

...um feixe ou coleção de percepções diferentes, que se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas sem variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão. E todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há na alma uma única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer por um instante. (...) Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo, nem identidade em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão natural em imaginar essa simplicidade e identidade. (...) As percepções sucessivas são as únicas que constituem a mente...[27]

 

Aqui também para ele é a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito contínuo e simples, identificável com a alma.

   Hume também rejeita a sugestão de Locke, segundo a qual a identidade do eu depende da memória. Ao contrário, a memória deve pressupor o eu de modo a poder identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar no fato de que não podemos ter memória de cada instante vivido. (Pense, por exemplo, na ausência de memória que temos de nós mesmos enquanto dormimos).

   Note-se que Hume está querendo refutar o eu tradicional de Descartes e da maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja, uma alma simples, imutável e eterna, demostrando que não temos acesso experiencial a essa espécie de sujeito. Contudo, ele também tem uma concepção positiva do eu psicológico que poucas vezes é notada. É quando ele campara o eu a uma república ou coletividade (republic or commonwealth)...

 

cujos diversos membros encontram-se unidos por laços recíprocos de governo e subordinação, dando lugar a outras pessoas que propagam a mesma república em incessante mudança das partes. E assim como a mesma república individual pode mudar não só seus membros, mas suas leis e constituição, da mesma maneira uma mesma pessoa pode mudar seu caráter e disposição, tanto quanto suas impressões e ideias, sem perder sua identidade. [28]

 

Em meu juízo essa passagem contém o insight fundamental sobre o que podemos verdadeiramente chamar de eu empírico. A sugestão de que o eu possa ser comparado a uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu como algo que somos capazes de conhecer pela formação de uma autoimagem, entendida como a ideia que fazemos de nós mesmos. Uma pessoa não pode ter acesso imediato a tudo aquilo que caracteriza o seu eu, pois isso seria pura mágica. Mas ela pode sempre aprender mais e mais acerca de si mesma. Ela pode ter a experiência reflexiva de seus estados mentais e paralelamente a isso identificar suas reações comportamentais diante de circunstâncias que se repetem. Ela também pode comparar essa experiência com os comportamentos e supostos estados mentais de outras pessoas em circunstâncias similares. E pode, comparativamente e aos poucos aprender quais são as características de si mesma como sujeito, em contraste com as de outras pessoas. A auto-imagem que a pessoa dessa maneira cria deve ser a de uma classe de propriedades mentais cujos membros não precisam ser definitivos e se encontram mais ou menos interconectados. Uma pessoa pode certamente formar uma auto-imagem distorcida de si mesma e isso acontece frequentemente. Mas outras pessoas, analisando seu comportamento, poderão chegar a conclusões concordantes ou discordantes sobre quem ela realmente é.

 



[1] David Hume: My own Life (1766) Econlib. Internet.

[2] Apud. A. J. Ayer: Hume (São Paulo: Loyola 2003), p. 25.

[3] Tratado I, 1. 1. O algarismo romano indica o livro, o primeiro número a parte e o segundo a seção.

[4] Treatise I, 1, 2.

[5] Treatise I, 1, 4.

[6] Treatise I, 1, 6.

[7] Ibid., I, 1, 6, 3.

[8] Berkeley: Treatise, Intr. 11.

[9] Treatise I, 1, 7.

[10] Frege: Philosophy of Language (London: Duckworth) 1981, p. 229.

[11] Ernst Tugendhat & Ursula Wolff: Logische-Semantik Propädeutik (Stuttgart: Reclam 1983), pp. 235-6.

[12] An Enquiry Concerning Human Understanding, IV, I, 20.

[13] Enquiry IV, I, 22.

[14] ffff

[15] Enquiry IV, I, sec. 23.

[17]  Treatise: I, 3, 12, 9.

[18] Sobre o conceito geral de bom entrincheiramento ver P. F. Strawson: Introduction to Logical Theory (London: Methuen & Co. 1952), p. 245. Ver também W. V-O. Quine: “Necessary Truths” in The Ways of Paradox (New York: Random House 1966).

[19] A condição (i) busca resgatar o que se encontra envolvido na condição INUS, segundo a qual o que escolhemos chamar de causa é uma “insuficiente, mas necessária parte de uma desnecessária, mas suficiente condição”. A condição foi introduzida por J. L. Mackie em The Cement of Universe: A Study of Causation (Oxford: Oxford University Press 1980), cap. 3.

[20] Treatise, I, 3, 6

[21] Uma versão mais detalhada dessa solução foi apresentada no capítulo 5 de meu livro intitulado Textos Esparsos de filosofia teórica e prática (Belo Horizonte: Dialética 2002).

[22] Treatise I, 4, 2

[23] Barry Stroud, Hume (London: Routledge 1988), p. 101.

[24] Ver distinção entre os conceitos de realidade inerente e aderente no capítulo V, sec. 3.

[25] Il Milione (Roma: Mondadori 1982), XLI-XLIII, p. 45 ss.  Embora o conto seja inverossimil, situações similares são facilmente concebíveis..

[26] Para uma versão sumária, ver o artigo de Yasmin Anwar, “Scientists use brain imaging to reveal the movies in our mind,” in Berkeley News, 9. 22. 2011.

[27] Treatise I, 4, 6.

[28] Treatise I, 4, 6.