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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS (HELENISMO E IDADE MÉDIA) (IV)

DRAFT!


    

 

 

IV

A FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS

 

A morte de Alexandre em 323 a.C. deu origem a um período conturbado e instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte do mundo conhecido, mas como não deixou herdeiros, de modo que as diferentes regiões conquistadas acabaram por ser governadas por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro cultural. Nessa última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande maioria destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente acabou se deslocando para Roma.

   As escolas filosóficas mais bem sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si mesmo cercado de poderes que era incapaz de influenciar.[1] Com efeito, há em todas elas um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de autoajuda. Há certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos a um nível filosoficamente tolerável, vale dizer, ao menos tão bem articulado e consistente a ponto de não destoar com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece que existam pontos de corte claros e definitivos).

    Com isso quero dizer que essas filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada, encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e curta.

 

1

 

Epicurismo. As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo eram seguidas por tribos humanas diversas, formadas por membros que encontravam afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro (341-270 a.C.) foi um materialista atomista, fortemente influenciado por Demócrito e Leucipo e preocupado com questões práticas.[2] Para ele não precisamos temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós... Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo causal dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos mais finos que constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen) capazes de romper as cadeias causais do mundo natural.[3]

   Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela filosofia cristã e ainda hoje é comum. A dificuldade com ela é que ao introduzirmos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não parece que com isso estamos aumentando nossa liberdade. Para exemplificar, imagine que uma pessoa comece a se comportar de maneira, imprevisível, errática, absurda. Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que ela deixou de se comportar de forma racional. E como designamos como sendo livres somente seres racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não somos mais capazes de aplicar o conceito de liberdade a semelhante indivíduo.

   A filosofia da vida de Epicuro ainda possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar ações, como a de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso dos prazeres da alimentação e do sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento, de tranquilidade e de serenidade, alcançados pela ausência de perturbações físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo. Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os prazeres estáticos.

   Como os prazeres dependem da satisfação dos desejos, ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e necessários, os naturais e desnecessários e os não-naturais e desnecessários. Exemplos de desejos naturais e necessários são os de alimento e de companhia. Esses desejos são essenciais à felicidade, razão pela qual sua satisfação deve ser sempre buscada. Os desejos naturais e desnecessários são os de coisas como o consumo de pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos buscar satisfazê-los, mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo em risco a tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há os desejos não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras. Eles são os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana, mas subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos, logo nos acostumamos a eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao satisfazê-los passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se adicionando a animosidade e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes, o que destrói os nossos prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da satisfação desses desejos devem ser evitados a todo custo!

   O pensamento de Epicuro é importante no sentido de dar ao prazer o lugar apropriado. Durante a Idade Média e mesmo quase até nossos dias, como resultado do ascetismo cristão, o hedonismo epicurista foi desvirtuado como se o prazer devesse ser reduzido a prazeres físicos e como se tudo o que Epicuro defendesse fosse a indulgência neles. Mas o conceito de prazer possuía para ele uma aplicação bem mais ampla e suas reflexões acerca do assunto eram muito mais elaboradas e matizadas do que se possa pensar à primeira vista.

  Não obstante, há coisas a serem criticadas. Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos, dado que eles se diferenciam uns dos outros naquilo de que naturalmente necessitam e na dependência de inúmeros fatores externos. A Grécia não teria tido o brilhantismo de um governante como Péricles, nem a ousadia e astúcia de um general como Temístocles se prazeres sociais como os do poder, da honra e da glória não fossem em medida saudável apreciados. Além disso, se compararmos o epicurismo com a filosofia dos gregos mais antigos seremos capazes de discernir sintomas de decadência: a perda da audácia especulativa da filosofia de outrora se fazia sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros, como a busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para Aristóteles um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não um prazer estático. O prazer sublimado da criação e da descoberta deixou aqui de ter prioridade.

 

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Estoicismo. Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso foi o estoicismo. Ele começou com Zeno de Citium (335-263 a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus (279-206 a.C.). O sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras como Sêneca (4 a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco Aurélio (121-189 d.C.).[4]

   Os estoicos dividiam a filosofia em lógica, física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística aristotélica.

   A contribuição para a física consistiu em uma visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos. O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se encontra em simpatia consigo mesmo, vale dizer, harmonicamente interconectado de maneira determinista.

   A parte mais influente do estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem. Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria...

   Para os estoicos há duas espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais, as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia) quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita.[5] Como consequência o estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.

   O mundo romano, vão e cruel, fez com que muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina, com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e destruiu as provas, de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada. Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que, tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele, enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos. Esses exemplos nos fornecem uma luz sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no mundo romano.

   Não quero negar que existe um elemento de verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira através da fé em uma razão petrificadora das paixões.[6] Parece claro que muito do estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida em concordância com a natureza? Não há uma resposta clara. Para Marco Aurélio isso significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação virtuosa teria sido com certeza muito diferente. Explicar a virtude em termos de harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.

 

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Ceticismo. Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava pela desconfiança de tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do ceticismo foi Pirro de Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles. Pirro nada escreveu. Também, para que escrever quando não se acredita em nada? Disseram os pósteros que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam alimentá-lo e vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois conseguiu viver quase 90 anos.

   Se Pirro nada escreveu, seu discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que devemos muito dos que sabemos acerca do ceticismo antigo. O método dos céticos para alcançar a paz de espírito era o seguinte:

1)    Argumente por uma tese (por exemplo: viveremos após a morte).

2)    Argumente por uma antítese (por exemplo: não viveremos após a morte).

3)    Perceba que, após o acúmulo de argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.

4)    Uma vez percebido isso você chega à epoché, à suspensão da crença.

5)    Uma vez chegado à epoché você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.

 

A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é muito difícil na areia movediça da argumentação filosófica.

  O sucesso do ceticismo no mundo antigo deveu-se em boa parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso ela tenha sido a mais rejeitada nos ainda mais difíceis tempos que se seguiram.

 

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Plotino. O filósofo mais original do período romano foi Plotino (204-270 d.C.), um neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a do Bem. Mas o bem é Deus, o Uno, que é totalmente incognoscível. Embora o Uno não tenha criado o mundo conscientemente, como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento espiritual. Deus produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume que sai do frasco. Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações espirituais, esses eflúvios, somos nós e tudo o que se encontra ao nosso redor. Há vários níveis de emanações, as que constituem princípios intelectuais, as que produzem os movimentos da alma e as que constituem a natureza visível. Tal como as ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis. Para além delas só existe um fundo escuro de matéria incognoscível.

   A doutrina das emanações teve importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, uma relação que no cristianismo se estabelece entre o Deus pessoal criador do mundo e o próprio mundo.

 

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Alta Idade Média. A Idade Média começou no século V d.C., com a queda do Império Romano Ocidental (476 d.C.) e acabou no século XV d.C. A filosofia medieval acabou por recuperar o nível e as temáticas das filosofias de Platão e Aristóteles, mas sem alterar o paradigma por eles definido. Os dois mais importantes filósofos cristãos, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as estruturas teóricas desenvolvidas por Platão e Aristóteles e as cristianizaram: Agostinho batizou Platão e Tomás de Aquino batizou Aristóteles. As archai, a ideia do bem, a Substância Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão, criador e pessoal, enquanto o núcleo central da filosofia medieval continuou sendo a metafísica, principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado ao pensamento contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das escrituras sagradas. Não foram poucos os que foram proibidos de escrever por terem infringido essa norma. E o filósofo Giordano Bruno acabou sendo queimado vivo por reincidir.

   O pensador mais importante no início do cristianismo foi seguramente Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele nasceu no que é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, seu pai pagão. Devo lembrar que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com a tomada de Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410 a.C. e o império decadente por essa época já havia sido praticamente convertido ao cristianismo. Por isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo medieval.

   Em seu livro Confissões ele descreveu a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual sentimento e razão entravam em conflito com a paixão física, o constrangia ao extremo. Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele se interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo… Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando por converter-se ao cristianismo.

   A principal marca do pensamento agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação. É Deus quem ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a verdade.

   Após Agostinho a Idade Média bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de mercadoria que funcionava provendo as mais diferentes necessidades em locais os mais diversos desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império não sabiam governar: eram desorganizados e lutavam uns contra os outros. O próprio Agostinho, que morreu quando sua cidade estava sendo sitiada pelos vândalos, escreveu:

 

Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado pela cruz de cristo.[7]

 

A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período muito duro em que a Europa foi aos poucos retalhada em pequenos feudos com duas classes principais: a dos nobres e a dos servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a monastérios cuja função era apenas a de conservar o que restou do que os antigos já haviam feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o responsável ideológico pelo silencioso, mas imenso, avanço civilizatório que acabou por dar fim à escravidão na Europa. A Idade Média firmou-se como um período de despojamento, de pobreza e analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de resto podia esperar.

   O único filósofo realmente original surgido na Alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena (810-877). Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma história cíclica do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final retornam a Deus. O universo passa por quatro fases:

 

1.    A da natureza não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.

2.    A da natureza criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo sensível.

3.    A da natureza criada e não criadora. É o mundo no qual vivemos, criado no espaço e no tempo. Essa natureza não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os outros seres, mas a espécie, a qual só se determina nos indivíduos em virtude do Espírito.

4.    A da natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado original e retorna a Deus como alma separada do corpo.

 

O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através dele todas as coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que às transcende.

 

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Baixa Idade Média. Após o século X a filosofia começou novamente a florescer na Europa medieval com o surgimento da escolástica. No ápice desse desenvolvimento encontra-se Tomás de Aquino (1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do conhecimento em obras imensas como a Summa Theologica e a Summa contra Gentiles. O gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra teológica, tornando-o pouco acessível a não iniciados.

   No tempo de Aquino a Metafísica de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e autoridades religiosas torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o primo motor – não se parecia em nada com um Deus pessoal preocupado com seres humanos que ele havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia. Aquino conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou a obra de Aristóteles. Ele fez isso ao introduzir a distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação estava nas escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu erros. Mas a filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo natural. O mundo visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é um mundo real e efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo natural foi criado por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo ao nosso redor nós ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última da adoção por Aquino da metafísica aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo natural através dos olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do próprio Deus.

   Essa maneira de ver inovadora foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.

   Tomás de Aquino costuma ser lembrado pelos seus argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus. Argumentos para provar a existência de Deus podem ser lógicos ou empíricos. O Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109 d.C.) visando provar a existência de Deus foi um argumento lógico. Segundo esse filósofo, Deus deve ser definido como o que de maior pode ser pensado. O tolo (i.é., o ateu) afirma que Deus não existe. Mas ao dizer isso ele pressupõe a possibilidade de que exista algo maior do que o que de maior pode ser pensado, ou seja, o Deus existente. Mas isso é contraditório. Logo, Deus existe.[8] Tomás discordava desse argumento por pensar que não somos capazes de conhecer a natureza de Deus a ponto de dar sentido à definição de Anselmo.

   Resumidamente, os argumentos empíricos que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são: (1) Tudo o que se move deve ser movido por outro. Mas isso não pode continuar indefinidamente. Logo, deve haver um motor imóvel que seja a causa eficiente de todo movimento a ser chamado de Deus. (2) se percorrermos retrospectivamente as causas eficientes compreenderemos que essa regressão não pode ser infinita: deve existir uma causa incausada de todas as causas, que é Deus. (3) Tudo é contingente, podendo não ter sido, logo deve haver um ser necessário, ou seja, Deus. (4) As criaturas tem diversos graus de bondade e de outras perfeições. Mas se é assim, deve haver algo que possua as perfeições em grau absoluto: Deus. (5) No mundo as coisas são organizadas em direção a fins. Assim, o arco e a flexa servem a um fim, mas precisam de um arqueiro que justifique esse fim. Do mesmo modo, deve existir um ser que organizou o mundo, ou seja, Deus.[9]

    Todos esses argumentos parecem-nos hoje suspeitos. Não precisamos mais desse horror ao infinito. Não é certo que tudo o que se move precise de algo que o mova e não há nada que nos force a pensar que deva haver um primeiro motor imóvel que seja causa eficiente de tudo o que se move, pois uma sequência potencialmente infinita de causas eficientes parece-nos perfeitamente concebível, até mais do que uma causa da qual nada pode ser sua causa (negação de 1 e 2). Pelo simples fato de existir, o todo do universo parece justificar a contingência de suas partes, não demandando um ser necessário externo (negação de 3). Para Aquino a existência do imperfeito demanda a existência da perfeição: o quente existe porque existe o fogo, que era para ele o máximo de calor. Mas, tanto quanto isso é falso também é falso que para existir o bem precise existir factualmente o bem supremo. (negação de 4). A ciência nos mostra que a grande organização teleológica do mundo vivo nesse minúsculo ponto do universo onde nos encontramos se explica hoje por milhões de anos de evolução natural, que embora tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra, tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo (negação de 5).

   É certo que nossa atual imagem científica do mundo não precisa ser definitiva. Mas as respostas negativas baseadas na ciência são agora as melhores que temos e a fé advinda da mera vontade de crer não parece uma boa alternativa. Aquino se deixa compreender: afinal, se vivêssemos na atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo, sem a teoria darwiniana da evolução das espécies, sem nossa atual cosmologia, e sem os esclarecimentos culturais advindos da sociologia (Durkheim) e da psicologia profunda (sobretudo sem o ainda hoje inigualável trabalho de Sigmund Freud), dificilmente nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos sagrados. Não temos hoje a mesma desculpa.

   Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia.[10] Embora, como Aristóteles, ele fosse um empirista que não acreditava em ideias inatas, ele também não era um empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um mero recipiente passivo. Ou seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que vai se enchendo de conhecimento de modo aleatório, pois ele punha ênfase em suas capacidades inatas de aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da iluminação, mas defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma luz natural da razão capaz de transformar um dado objeto no mundo, que é apenas potencialmente pensável, em um objeto atualmente pensável na mente. Contudo, esse intelecto ativo não é mais do que uma faculdade natural criada por Deus para nos permitir conhecer a natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, também para Aquino o conhecimento começa com a sensação. As coisas particulares são compostas de matéria e forma. Ao conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos formalmente idênticos a eles, produzindo cópias das formas substanciais e acidentais em nossos órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele chamou de “espécies sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória como phantasmas (imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que entra em ação o intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os conceitos imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo, que é o quadro negro no qual os conceitos são inscritos.

   Ainda mencionáveis (entre outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao escolasticismo tardio: Duns Scotus e William de Ockham. A filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que quer dizer em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.

   Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de Aquino de que a identidade de uma coisa particular depende de sua matéria. A matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na água, ou a matéria de uma certa mesa, sendo em todos esses casos madeira, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a árvore. Quanto à matéria prima comum a todas as coisas, além de indeterminada, não é sequer cognitivamente acessível. Já a forma específica, por exemplo, a forma de uma árvore de pertencer a espécie Pinus sylvestris, também não é capaz de individuar a árvore, uma vez que existem inúmeros exemplares pertencentes a essa espécie. A conclusão é que nem a matéria nem a forma específica são capazes de individuar coisa alguma. Aquilo que identifica um particular precisa ser uma forma própria do indivíduo em questão, uma diferença individualizante, a haecceitas capaz de distinguir essa árvore das outras árvores. Assim, além de Sócrates possuir a forma específica de um ser humano, ele deve possuir uma diferença individualizante que consiste em sua socraticidade.[11]

   William de Ockham (1285-1347), o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne (1050-1125), teria sustentado a ideia radical de que os universais nada mais são do que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo proferimento de termos conceptuais como ‘vermelho’ ou ‘sábio’. A única coisa que realmente existe são os indivíduos, como essa árvore e aquele homem. Ockham também rejeitava a existência de universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de apreender quididades ou formas gerais.[12] Ele admitia a existência do universal como um conceito mental (conceptus mentis) e, de modo derivado, como um termo geral, mas em qualquer dos casos ele não possui nenhuma existência metafísica, não passando de um particular. Em sua filosofia madura ele veio a entender o universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez. Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.

 

7

 

Nominalismo. Uma versão contemporânea do nominalismo é aquela segundo a qual termos gerais como ‘o bem’ e ‘a justiça’ se referem a classes de objetos. Assim, se dizemos que Aristóteles é branco e que Platão é branco, ambos os predicados nos dizem o mesmo porque eles se referem a uma mesma classe de objetos – os objetos brancos.[13]

   Um problema encontrado nesse assim chamado nominalismo de classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes podem ter a mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo: o termo geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal com coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão, ou seja, deveriam significar ou dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros exemplos não é o caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação da noção de mundo possível ao problema dos universais.[14] Um mundo possível é como um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto em outros mundos possíveis, então a extensão das acima consideradas expressões conceituais com sentidos diferentes pode diferir. Por exemplo: existem mundos possíveis nos quais animais com rins não possuem coração e vice-versa, o que justificaria a diferença na intensão ou sentido dos termos.

   Um problema é que para ser assim parece ser necessário que os mundos possíveis pertençam ao mesmo domínio referencial dos mundos atuais, ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi calorosamente defendida por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual, com o único problema que eles são completamente inacessíveis a nós. Em que pese a originalidade da posição de Lewis, a teoria a ser exposta no capítulo XIX terá a vantagem de não nos comprometer com posições especulativas de todo inescrutáveis.

 

 



[1] G. W. F. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Dritter Teil: Die Römische Welt (1833)

[2] Epicuro: Cartas e máximas principais (Penguin-Companhia 2021).

[3] Lucrecio: Sobre a natureza das coisas (De rerum natura) (Autêntica 2021), 2.256-2.263.

 

[4]  Ver Sêneca e Marco Aurélio in Grandes Mestres do Estoicismo. Trad. Artur Costrino  (Edipro 2021).

[5] As Meditações foi um livro escrito por Marco Aurélio quando ele defendia o império nas fronteiras do norte: ele é repleto de alusões à morte, como se ao invocar a sua presença ele melhor pudesse dominar seu receio de encontrá-la.

[6] Ver James A. Mollison: “Nietzsche Contra Stoicism: Naturalism and Value, Suffering and Amor Fati.” In Inquiry, 2019, 61: 1, 93-115.

[7]  Comentário ao evangelho de João (2, 2).

[8] Anselmo de Aosta: Proslógio, cap. II. In col. Os pensadores, vol. VII  (São Paulo: Abril Cultural 1973).

[9] Suma Teológica (São Paulo: Fonte Editorial) Parte Primeira, questão 2, a existência de Deus, artigo 3, pp. 21-22.

[10] Suma Teológica, Ibid., vol. I, Questões 84-88, pp. 751-807.

[11] Em meu livro sobre a referência dos nomes próprios espero ter investigado essa diferença individualizante em detalhes, apelando a uma regra conceitual de identificação do nome próprio. Ver How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.

[12] Wilhelm of Ockham: Opera Philosophica et Theologica, G. Gál. et al. eds., NY: The Franciscan Institute, 1977-88, Vol. II-2.

[13] D. E. Armstrong: Universals: An Opinionated Introduction. Boulder: Westview Press 1989, pp. 8-14.

[14] D. K. Lewis, On the Plurality of the Worlds (Oxford: Oxford University Press 1986).

 



terça-feira, 27 de agosto de 2024

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO (XX)

  DRAFT para um capítulo do livro a ser publicado com o título de "Introdução histórica à filosofia".

 

  

  

 

XX

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO

 

A necessidade da filosofia só pode nascer em épocas de crise, quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens, e as oposições, perdendo a sua viva semelhança e reação recíproca, se tornam independentes.

Hegel

 

 

Há quem diga que vivemos uma época de escolasticismo filosófico que dificulta desenvolvimentos disruptivos.[1] Ao que parece, nos últimos anos esse escolasticismo tem sido vítima de uma brutal racionalização e burocratização do trabalho filosófico, que promove interpretações acuradas, desenvolvimentos pontuais e filosofia popular, mas que se arrisca a paralisar a possibilidade de inovações profundas. Segundo alguns isso pode estar acontecendo não só com a filosofia, mas até mesmo com a própria ciência.[2] Nesse último capítulo – assumindo a justeza dessa constatação – quero esforçar-me para trazer algum esclarecimento sobre as raízes das presentes dificuldades, além de mostrar alternativas. Contudo, receio não ter sido capaz de fazer mais do que organizar um pot-pourri de ideias esparsas tomadas de fontes diversas.[3]

 

1

 

Quero começar considerando um fenômeno sociocultural importante e pervasivo no curso do desenvolvimento da civilização, que Max Weber chamou de Entzauberung der Welt: a demagificação do mundo.[4] Embora Weber tenha se concentrado no exame de processos sociais advindos da reforma protestante e do desenvolvimento das economias capitalistas, sua origem foi bem mais remota. No início do processo civilizatório o mundo que nos rodeia era visto como algo vivo, capaz de possuir entendimento e paixão e de responder aos apelos humanos. Como complemento, as práticas culturais que presidiam as comunidades humanas eram elas próprias organicamente construídas com base nas interações sociais do assim chamado mundo da vida (Lebenswelt) – o mundo do agir quotidiano. Assim era o mundo que pode ser descrito como “mágico”. Mesmo após a emergência do monoteísmo judaico-cristão, quando as comunidades eram administradas em associação com lideranças religiosas, quando ainda existiam santos e milagres, quando a vida humana ainda era controlada pela religião, o universo humano era repleto de magia.

   Contudo, especialmente com o desenvolvimento da economia capitalista no final do século XIX e com o desenvolvimento da ciência e tecnologia que a acompanhou, produziu-se um rompimento muito mais profundo com a visão religiosa antes existente. Ainda que as religiões permaneçam influentes, elas hoje muito mais acompanham do que presidem a vida humana. O que vemos é a gradual e hoje acelerada substituição do mundo animista por um mundo cada vez mais secular, cada vez mais “mundanizado”. O desenvolvimento da ciência e da técnica faz com que a magia e a força institucional do mundo místico percam seu poder. O que ao nível da organização social promove essa substituição é a introdução do que Weber chamou de processos de racionalização e burocratização da sociedade, que tornam a produção de bens muito mais eficaz, mas que se instalam muitas vezes em detrimento da ação valorativa. Sob essas condições a alienação é inevitável: o indivíduo passa a ser uma peça em um mecanismo que ele mesmo desconhece, ao mesmo tempo em que perde seu enraizamento naturalmente construído no mundo da vida. Isso produz um aumento do individualismo acompanhado de um empobrecimento alienador de sua subjetividade reflexiva.

   Hoje, quando a ciência e a técnica conquistam cada vez mais a vida humana, vivemos sob a égide dessa forma de demagificação. Como Jürgen Habermas tentou sumarizar: a patologia do mundo contemporâneo consiste na “colonização do mundo da vida pelo sistema” (entendendo-se por sistema as instituições de poder econômico e político).[5] Uma razão para ser assim poderia ser que os sistemas são “autopoiéticos” no sentido de que uma vez estabelecidos, eles se organizam e desenvolvem de modo autônomo, ao menos enquanto deixados à revelia de um controle social suficientemente crítico no sentido de assegurar que eles permanecem vantajosos para a sociedade que os criou. Mas essa não parece ser a única razão.

   Weber introduziu o conceito de demagificação sob a influência de Nietzsche, o que nos faz pensar na questão do niilismo. Como vimos, uma consequência da perda do papel fundacional da crença religiosa na sociedade pode ser o niilismo, que tanto pode levar à perda dos valores morais quanto a ideologias simplificadoras, como no caso de seitas místicas degeneradas ou de sistemas totalitários, a exemplo do comunismo marxista-leninista em sua versão estalinista ou do nazifascismo. Trata-se nos dois últimos casos de patologias sociais profundamente perturbadoras, que sob outros nomes ainda hoje nos assediam.

   Embora Weber admitisse a inestimável importância social da racionalização e da burocratização na melhoria do desempenho da sociedade como um todo, ele também foi um crítico enérgico de suas limitações e do risco de comportarem efeitos colaterais socialmente e culturalmente patológicos. Vale citar aqui a famosa passagem em que ele usou a metáfora da jaula de ferro para expor a perda da autenticidade da vida interior em um mundo cientificamente racionalizado e burocratizado:

 

Ninguém sabe quem irá viver nessa jaula no futuro, ou se no final desse tremendo desenvolvimento profetas inteiramente novos surgirão, ou se haverá um grande renascimento de velhas ideias e ideais, ou, se nada disso, petrificação mecanizada, embelezada por uma espécie convulsiva de auto importância. Para o “último homem” desse desenvolvimento cultural pode ser bem verdadeiramente dito: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração; essa nulidade imagina que conquistou um nível de humanidade nunca antes alcançado”.[6]

 

O moderno sistema econômico-institucional voltado para os fins (Zwecksorientiert) desfaz os modos de apreensão e domínio da realidade míticos, nascidos e elaborados organicamente a partir de formas de vida sociais passadas, substituindo-os por um sistema frequentemente alienador, que se apresenta na forma de instituições burocráticas que modelam ideologicamente os interesses dos seres humanos a elas pertencentes. Quando o efeito dessas instituições se torna verdadeiramente alienador, os seres humanos passam cada vez mais a funcionar como pequenas peças cuja única ambição é a de se tornarem peças maiores no interior de um imenso maquinismo dentro do qual, sem perceber, trilham um caminho que só poderá conduzi-los, segundo Weber, à “noite polar da mais gélida escuridão”[7]. Esse diagnóstico só não é mais pessimista porque, como notei, ele acreditava que a sociedade que produz as jaulas de ferro tem poder suficiente para corrigir e transformar as instituições por ela criadas.

   Meu ponto é que a racionalização e burocratização da sociedade ajudam-nos a explicar as deficiências da filosofia em seu momento atual. Trata-se de apontar para o principal problema da filosofia contemporânea, que já foi denunciado por filósofos como Wittgenstein, P. F. Strawson, Susan Haack e até mesmo Martin Heidegger: o cientismo.

 

2

 

Os processos de burocratização e racionalização encontram-se ligados a outro elemento ideológico que parece indispensável ao esclarecimento da problemática aqui abordada. Trata-se do fenômeno de massificação da cultura que atende pelo nome de indústria cultural,[8] o qual deve se encontrar intrinsecamente associado o processo de burocratização/racionalização da sociedade. A alta cultura do passado de nada serve à ideologia da sociedade tecnológica na qual vivemos, cada vez mais materialista e hedonista. A cultura de massa suspende o elemento de conflito que surge quando precisamos opor uma vida dominada pela ação voltada para a consecução de fins materiais à ação valorativa. Isso significa que a arte deve ser rebaixada de seu potencial crítico e que a religião, ou qualquer sublimação de sentimentos, deve ser tornada suficientemente banal para limitar seu potencial de formação de conteúdos críticos paralisadores da ação e perturbadores da ordem social. A ideia é que nos dias de hoje o ser humano se encontra em geral tão profundamente mergulhado na cultura de massa produzida pela assim chamada indústria cultural, que se tornou inteiramente incapaz de se aperceber de seu grau de alienação.

   Mais do que isso, a indústria cultural tem invadido a própria instituição universitária, o que se faz sentir principalmente na prática filosófica. A universidade, quase o único refúgio da filosofia nos últimos 100 anos, passou a coibir seu desenvolvimento na forma de uma cultura superior. E as razões atendem por nomes como demagificação, burocratização, racionalização, colonização do mundo da vida pelo sistema e agora também pela sua subserviência à indústria cultural na forma de uma reflexão filosófica academicamente massificada.

   A questão mais profunda é a seguinte. A sociedade tem o poder de questionar e neutralizar o processo de burocratização democrática quando ele se demonstra massificador da cultura, como Jürgen Habermas demonstrou, através do discurso dialógico (Diskurs) em situações ideais de fala nas quais os interlocutores são identicamente preparados e informados, só sendo pressionados pelo melhor argumento.[9] Mas então, por que não o faz? Creio que parte da resposta possa ser encontrada em Freud.[10] Para ele o ser humano é por natureza inimigo da cultura. A civilização – incluindo-se nela a alta cultura da qual faz parte a filosofia estudada nesse livro – é para o ser humano como uma arma de dois gumes: se de um lado facilita a vida, de outro demanda repressão pulsional, oprimindo o indivíduo. Na modernidade europeia (de Descartes a Kant) havia espaço para a alta cultura na música, na literatura e na filosofia, em função mesmo das exigências restritivas que a civilização europeia, colonialista, demandava. Tensões semelhantes devem ter ocorrido no Renascimento e na Grécia Antiga. Note-se, por exemplo, que no tempo de Bach uma cidade alemã com cinquenta mil habitantes podia ter meia dúzia de salas de concerto. A Königsberg de Kant tinha cerca de 65 mil habitantes, tanto quanto a cidade de Caicó no Rio Grande do Norte. A revolução industrial deve ter diminuído muito a pressão repressiva necessária à sustentação da alta cultura – um fenômeno já reclamado por Nietzsche. E nosso mundo tecnológico permite um alívio da pressão repressiva compatível com um modus vivendi cada vez mais hedonista. Essa seria uma razão profunda da rejeição que a alta cultura tem hoje sofrido. O ser humano não precisa mais dela. Bach, Goethe e Leibniz se tornaram supérfluos.

   Muitos dirão que essa explicação freudiana é insuficiente por ignorar o papel da superestrutura ideológica. Filósofos influenciados por Marx, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, culparam o capitalismo pós-industrial pela alienação cultural do homem contemporâneo, vítima da indústria cultural. Marcuse, unindo Freud a Marx, introduziu o conceito de dessublimação repressiva: impulsos e desejos só podem ser satisfeitos se não forem tão elevados a ponto de ameaçar as estruturas de poder e ação existentes. A superestrutura ideológica imposta pelo capitalismo avançado alimenta o filistinismo cultural capaz de tornar as pessoas mais úteis para a produção tecnológica e para o consumo de seus produtos, em um círculo vicioso de trabalho e consumo a lembrar a estória do asno que puxava a carroça na tentativa de comer a cenoura pendurada à frente de seu focinho. A prática filosófica real, podemos sugerir, não escapa às vicissitudes impostas pela dessublimação repressiva. Ela serviu no passado e continua servindo ainda hoje à superestrutura ideológica, apesar de Marx, Nietzsche e Wittgenstein.

 

3

 

Para melhor compreendermos os mecanismos envolvidos na produção da reflexão filosófica precisamos considerar três peculiaridades da prática filosófica que a tornam intrinsecamente ligadas à forma de vida.

   A primeira é que, a partir de uma perspectiva freudiana o pensamento filosófico resulta do que Freud chamava de processo primário (Primärvorgang). Como já vimos no capítulo XVI (sec. 1), nesse processo, que é comum tanto ao sonho quanto à arte, às manifestações religiosas e à produção filosófica, as cargas afetivas (Besetzungen) não se encontram firmemente ligadas às representações que lhe são próprias, como acontece com o pensamento científico, que serve ao princípio da realidade (Realitätsprinzip). O processo primário está a serviço do princípio do prazer (Lustprinzip), que para Freud falha em distinguir suficientemente o imaginário do real. Isso significa que a filosofia também pertence ao mundo mágico, um pouco como a arte e a religião. Como consequência disso, tanto quanto a arte e a religião, ela corre o risco de ser estranhada como não só inútil, mas também contraprodutiva frente aos mecanismos de racionalização pertencentes a um processo de demagificação que parece ter se tornado desperdiçadamente apressado.

   A segunda peculiaridade, que já considerei no capítulo inicial desse livro (sec. 9), diz respeito à visão da filosofia como uma prática cultural derivada, a exemplo da ópera, que se constitui de uma combinação de canto, poesia e enredo. Já a filosofia resulta de material, motivação e procedimentos derivados de três práticas culturais fundamentais, que são a religião, a arte e a ciência. Ela deve ser constituída de três componentes: o de derivação mística, que chamei de totalizante ou holístico, responsável pela profundidade e abrangência da visão filosófica, o componente estético, que se mostra na forma de sua expressão inevitavelmente metafórica, e o componente heurístico, que deve responder pelos procedimentos argumentativos orientados pela busca da verdade. Nas elaborações que Platão fez de sua doutrina das ideias, por exemplo, vemos um componente de elucidação mística compreensiva derivado de seu orfismo, um componente estético, evidenciado no recurso inevitável a metáforas e nas extraordinárias alegorias que compõem seus diálogos, eles mesmos obras de arte, e ainda um componente heurístico (protocientífico), de busca da verdade, que é visto, por exemplo, em sua tentativa de explicar como é possível dizer o mesmo de muitos ou em sua tentativa de definir o conhecimento como a opinião verdadeira completada por um logos. Filósofos como Hegel, Nietzsche e Locke, estavam respectivamente inclinados aos extremos da religião, da arte e da ciência, embora inevitavelmente preservassem algo das outras duas dimensões, uma vez que alguma conjunção dos três pareça imprescindível para de algum modo qualificar a filosofia enquanto tal. Mesmo tradições filosóficas inteiras, como também fiz notar, a alemã, a francesa e a anglo-americana, deixam-se perceber como respectivamente inclinadas aos extremos místico, artístico e científico.

   A terceira peculiaridade diz respeito à direção. A filosofia pode ser facilmente vista como uma protociência quando consideramos que todas as ciências particulares nasceram dela. Nesse sentido a filosofia é o que pode ser feito antes que sejam encontradas as condições para a investigação verdadeiramente científica, servindo ao menos para motivar a indagação. Ela é o berçário das ciências, ocupando o lugar no qual podeá caber alguma ciência futura, conquanto se entenda a palavra ‘ciência’ de um modo suficientemente liberal e flexível, como qualquer espécie de “conhecimento público consensualizável” (John Ziman) (ver cap. I, sec. 8).

   Considerando essas três peculiaridades da filosofia chegamos a uma inevitável conclusão: como ela é um produto do processo primário, como ela resulta de motivações de cunho místico-totalizante e de inevitáveis elementos estéticos, e como ela não pode se tornar ciência sem deixar de ser filosófica, ela se encontra sempre e inevitavelmente infundida de magia e enraizada no mundo da vida.

   Tendo as considerações acima em vista torna-se claro que na era da informação, em uma sociedade como a nossa, aceleradamente racionalizada e burocratizada em favor da ciência aplicada e da técnica, tanto o impulso de abrangência místico quanto o estético devem ser submetidos a um processo de domesticação, quando não de anatematização. Afinal, a religião e a arte pertencem antes ao mundo mágico e, consequentemente, também à filosofia, na medida em que esta última precisa ser, em alguma medida, constituída e impulsionada por motivações totalizantes e estéticas. Ora, se excluirmos ou pelo menos dessublimarmos os componentes totalizantes e estéticos da filosofia, de modo a restarem apenas os procedimentos heurísticos, considerando que os últimos deveriam encontrar-se aqui inevitavelmente permeados pelos primeiros, o resultado inevitável é algo como o cientismo. Em vez de aproximações heurísticas feitas através do processo primário (ex.: os “átomos” de Demócrito), procura-se geralmente no mais das vezes fantasiar de modo reducionista uma filosofia científica, como se a filosofia pudesse resultar de processos secundários.

   O maior preço pago pelo cientismo é o reducionismo puro e simples, que consiste na exclusão de uma ou mais dimensões da investigação puramente filosófica. Pense, por exemplo, na inacreditável definição da filosofia como a lógica da ciência por Rudolph Carnap, excluindo todo o resto, ou na tese de Quine da indeterminação da referência, que deveria eliminar teorias da referência minimamente robustas da filosofia da linguagem, ou ainda na tentativa de Alvin Goldman de substituir a epistemologia tradicional por uma ciência cognitiva.[11]

   Note-se que não estou com isso rejeitando o reducionismo in totum. Há extraordinárias pérolas de criatividade soltas por aí. Saul Kripke desenvolveu uma teoria da referência que foi reducionista com relação ao elemento cognitivista da linguagem, mas seu trabalho foi de extrema importância.[12] Mesmo um cientificista radical como W. V-O. Quine trouxe contribuições de interesse.[13] A crítica metafilosófica é, nesse sentido, construtiva; ela não veio para devastar a filosofia.

 

4

 

Desejo agora a examinar algumas maneiras pelas quais os atuais mecanismos de racionalização burocrática são capazes de militar contra o que de melhor pode ser feito em filosofia.

   Considere primeiro, por razões comparativas, o modo como a filosofia foi feita nos tempos de Locke e Hume, na Grã-Bretanha, ou nos tempos de Kant e Hegel, na Alemanha. Ela sempre foi, da parte do filósofo, o resultado de um longo, persistente e imenso “trabalho sobre si mesmo... sobre o próprio modo de ver as coisas”, para usar as palavras de Wittgenstein.[14] Naqueles tempos, a filosofia era honrada por uma nobreza erudita e por uma classe letrada que valorizava a alta cultura em uma sociedade que era (para o bem e para o mal) extremamente estratificada. Foi assim até a primeira metade do século XX. Nesse meio elitista no melhor dos sentidos a publicação poderia esperar. Nas revistas especializadas sobrava espaço para a publicação de artigos. Gilbert Ryle, um filósofo renomado, era editor da revista Mind. Foi assim até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Um princípio ético seguido por pessoas como J. L. Austin era o de só publicar no caso de se ter algo importante a dizer. Em outras palavras, a filosofia era obra de uma pequena casta de intelectuais com a liberdade de fazer o que quisessem, enquanto quisessem, se bem o quisessem. A velha premissa grega do “ócio criativo”, imprescindível à especulação descompromissada, ainda estava sendo cumprida.

   Algum esclarecimento pode ser encontrado quando comparamos a situação atual com momentos de explosão cultural no passado. A verdadeira inovação, cultural e científica, é sempre subversiva. Ela demanda um profundo e inevitável redimensionamento de valores. Por isso a alta cultura só encontra solo fértil para crescer onde existem grandes conflitos capazes de forçar o desenvolvimento e a assimilação de grandes rupturas, lembrando a citação de Hegel no início desse capítulo. Isso aconteceu na primeira metade do século XX. Era imenso o sentimento de tensão e insegurança nos relatos dos que viveram aquela época. As velhas instituições, como a monarquia, estavam em ruinas e os conflitos sociais acumulados acabariam por resultar na Segunda Guerra Mundial. Não se sabia o rumo seguir. Desse caos, resultante de uma desconfiança generalizada dos valores, ideias e instituições tradicionais, resultou uma renovação cultural que em suas dimensões lembra o que aconteceu durante o Renascimento. Surgiram artistas renovadores como Picasso e Dali na pintura, James Joyce na literatura, Igor Strawinsky e Béla Bartók na música, e ainda filósofos de profunda originalidade como Wittgenstein e Russell – que recuperaram Frege – ou mesmo Edmund Husserl e um analista da psicologia e da cultura revolucionário como Sigmund Freud. E junto a isso veio a grande revolução da física moderna, com a criação da teoria da relatividade por Einstein e o aparecimento da teoria quântica através do esforço conjunto de alguns físicos excepcionais. Foi assim até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo voltou à normalidade. A filosofia foi então absorvida por um cada vez mais amplo sistema universitário, dentro do qual o terreno fértil para inovações disruptivas foi cada vez mais cedendo lugar a uma normalidade que de início, ao menos, foi filosoficamente muito produtiva, ainda que em ponto menor. Talvez não seja surpreendente o fato de que os dois mais significativos filósofos alemães da segunda metade do século XX, Jürgen Habermas e Ernst Tugendhat, tenham nascido na primeira metade do século XX.

   Faço aqui um aparte para notar a curiosa importância de uma autenticamente meritocrática hierarquia acadêmica na produção do conhecimento. As universidades de língua alemã já foram as melhores do mundo. A universidade de Viena foi na década de 20 do século XX o grande centro de produção intelectual da Europa continental. Paris pode ter sido a capital da arte, mas Viena foi a capital da cultura. Contudo, a ascensão do nazismo mudou tudo isso. Os melhores pesquisadores, geralmente judeus, tiveram de exilar-se e foram substituídos por pesquisadores menos capazes. Curiosamente, depois da Segunda Grande Guerra os membros da Universidade de Viena preferiram não os convidar a retornar, uma vez que seriam por eles outra vez eclipsados. O resultado é que a Universidade de Viena nunca mais se recuperou. Algo semelhante pode ser dito das universidades alemãs. Nunca mais voltaram ao patamar inicial. O exemplo pode servir de admoestação para nós mesmos na época presente. Hierarquias intelectuais podem ser facilmente destruídas; reconstruí-las pode ser uma tarefa muito mais árdua. Por isso mesmo, quando uma já esgotada hierarquia do saber é substituída por uma simples hierarquia do poder, o resultado é decadência.

   Susan Haack notou algumas mudanças curiosas nas demandas intelectuais a partir da segunda metade do século XX. Na primeira metade, notou ela, sobrava espaço nas grandes revistas para a publicação de artigos. Mas na segunda metade o número de artigos a serem publicados passou a aumentar para além de uma expectativa de avaliação razoável e a ética pragmática de publicar ou perecer começou a se universalizar. Em meio a pressões sociais e à crescente concorrência, pesquisadores acadêmicos começaram a se transformar de uma maneira que lembra a analogia de Weber, em pequenas peças na engrenagem, cuja única ambição é a de se tornarem peças um pouco maiores. Agora, desde o início do século XXI, com o advento da Internet, o número de artigos acadêmicos cresceu tão exponencialmente, que sua avaliação e possível influência passou a depender muito mais da reputação das instituições e das revistas que os publicam do que de seus valores intrínsecos. Haack, que estudou o problema, acrescenta a isso sintomas de corrupção intelectual como o carreirismo e o compadrio, junto com o que ela chamou de incentivos perversos, como, em filosofia, a doação de bolsas e premiações dentro de um escopo suficientemente restrito e previsível.[15] Por exemplo: as universidades modernas são agora cada vez mais geridas por CEOs que enfatizam a produtividade e a necessidade de que todos sejam ativos na pesquisa. Um conselho para o sucesso, por ela entreouvida, seria “publicar em maior quantidade possível e o mais rápido possível...” Uma tal competição selvagem pode talvez funcionar em alguns domínios da ciência aplicada. Mas é contraprodutiva em filosofia, já que impossibilita a aquisição de uma cultura mais ampla e mais diversificada, além do lento amadurecimento de ideias necessário a um trabalho filosófico original. Aqui a “habilidade computacional” do operário acadêmico toma o lugar da amplitude e profundidade do pensamento, uma vez que só a primeira admite formas de mensuração cada vez mais técnicas e mecânicas.[16] Afora isso, o autor de um artigo filosófico deve adequar seus objetivos às metas pré-estabelecidas por cada vez mais obscuros editores de revistas especializadas, desestimulando a verdadeira originalidade. (Por que razão uma pessoa com o intelecto de Ryle se dignaria hoje a ser editor de Mind?) Afinal, originalidade não pode ser planejada. E obras filosóficas profundamente originais não são esperadas. Elas devem criar seus próprios parâmetros de avaliação ao invés de orientar-se pelos pré-existentes. Todas essas são exigências paralisadoras, senão corruptoras em relação à natureza própria da atividade filosófica. Onde todos devem ser filósofos, ninguém pode ser filósofo. E a filosofia analítica anglo-americana, que por tempo suficiente foi a cabeça do animal, transformou-se hoje em um peru sem cabeça a rodar em torno de si mesmo.

   É aqui que o cientificismo filosófico demonstra seu poder de sedução. Embora tecnicamente exigente, ele não é filosoficamente exigente, o que atrai um número muito maior de pesquisadores: o especialista precisa conhecer apenas algum nicho de discussão dentro do qual está vivendo, junto a alguns dispositivos metodológicos e alguma ciência particular. Ou seja: o filósofo-especialista não precisa adquirir cultura geral, nem aprender história da filosofia e nem mesmo a história recente de seu domínio de investigação. Pessoalmente acho que isso pode ser produtivo em certos domínios periféricos da filosofia e mesmo servir de motivação para o cientista. Haack é mais pessimista. Ela considera esse estado de coisas desastroso.[17]

   Uma outra questão é saber se a academia ainda tem como selecionar pessoas adequadamente vocacionadas. Filosofia, assim como a matemática ou a música, demanda vocação. Após ter estudado a filosofia de Tomás de Aquino, Sir Anthony Kenny definiu a seguinte característica como sendo própria da vocação filosófica:

 

A filosofia é tão abrangente em seu assunto, tão ampla em seu campo de operação, que a obtenção de uma visão filosófica sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil que apenas o gênio pode fazê-lo. Tão vasta é a filosofia que apenas uma mente totalmente excepcional pode ver as consequências até mesmo do mais simples argumento ou conclusão filosófica. Para todos nós que não somos gênios, a única maneira de lidar com a filosofia é alcançando a mente de algum grande filósofo do passado.[18]

 

Embora a palavra ‘gênio’ se preste à mistificação, como se fosse algo milagroso, ela pode ser bem entendida como o uso reflexivo e contínuo de um talento no esforço de selecionar entre muitas más ideias aquelas que são boas, em suas relações com um domínio mais amplo do saber, em um processo longo, independente e geralmente inconsciente. Essa foi uma característica distintiva de todos os grandes filósofos discutidos nesse livro, diferente daquilo que é incentivado no âmbito de uma hiperespecialização reducionista e fragmentadora do domínio especulativo.

 

5

 

Uma consequência do que vimos acima, particularmente evidente em domínios centrais da filosofia (incluindo metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem) tem sido a fragmentação. Geralmente ela é causada pelo advento de inovações científicas, formais ou não, às quais os filósofos tentam acomodar as problemáticas filosóficas já existentes sem conseguir resolvê-las, multiplicando as alternativas e com isso a discussão.

   Um problema mais sério, mas que no fundo depende do primeiro, é o que Haack chamou de especialização precoce. O mecanismo é o seguinte: adotando alguns pressupostos prima facie questionáveis, teoristas desenvolvem alguma improvável hipótese engraçada com base neles. Essa hipótese engraçada é suspeita e certamente não irá levar a lugar algum. Mas isso pouco importa, pois ela possibilita a todos os participantes da seita entreterem discussões por alguns anos. Finalmente, escreve ela, o tédio se instala e os participantes abandonam o problema, procurando outra hipótese engraçada com a qual possam começar o jogo novamente.[19] A situação agrava-se ainda mais quando estes novos “campos” de especialização começam a subdividir-se em outros, sem um limite em vista.[20] O grande contraste com a discussão sustentada em um verdadeiramente novo campo de especialização científica é que esse último é bem fundamentado, permitindo desenvolvimentos internos seguros, enquanto a especialização filosófica é feita sobre bases hipotéticas instáveis e incertas, que exigem elas próprias serem sujeitas a um sério trabalho de questionamento, o que nunca é feito. Haack nota que quando se trata dos diferentes grupos de teóricos que trabalham na mesma problemática, cada grupo se orientando segundo suas próprias hipóteses engraçadas, esses grupos evitam discutir entre si. Isso não deveria surpreender. Afinal, não se pode tentar avaliar uma improbabilidade através de outra. Como resultado eles formam o que Haack chamou de “panelinhas, nichos, cartéis e feudos”.[21]

   O exemplo que eu escolho são as discussões entre os teóricos da referência na filosofia da linguagem atual, onde um grupo defende teorias metalinguísticas, outro predicativismos, outro semânticas bidimensionais, outro referencialismos, neodescritivismos, etc. Todos esses modismos teóricos fragmentadores devem estar no mínimo mal direcionados se admitirmos ser possível construir alguma teoria abrangente capaz de resolver os problemas de uma vez por todas. No entanto, tentar fazer algo nessa direção e com tais dimensões seria embarcar em uma aventura difícil, perigosa e por seu caráter potencialmente destrutivo oposta a qualquer grupo de interesse – algo a que ninguém que pertença ao meio se submeterá em sã consciência. No entanto, é precisamente esse tipo de aventura que parece capaz de tornar possível o progresso filosófico.[22]

   A conclusão é que em seus domínios centrais, a filosofia contemporânea se encontra estagnada. E a principal razão disso é que a atual racionalização burocrática do sistema universitário tem sido incapaz de lidar com algo essencial à filosofia, a saber, sua inevitável derivação das práticas culturais tanto estéticas quanto místicas, que foram empobrecidas por um processo de massificação que inevitavelmente se estende à filosofia, tanto em seu componente de amplitude e profundidade quanto em seu componente metafórico. Os componentes de abrangência especulativa e carga metafórica (“místico-estéticos”), indispensáveis à filosofia, sua natureza como produto do processo primário, não se prestam a ser substituídos por formas de fragmentação positivistas capazes de ser julgadas por modelos racionalizados de avaliação pragmática de sua prática, a partir de resultados que pareçam avançar o domínio científico e técnico sobre a realidade. O resultado final desse processo é a imobilidade típica do escolasticismo. Se esse estado de coisas continuar, a filosofia, como observou Haack, acabará investigando quantos filósofos são capazes de dançar sobre a ponta de uma agulha.

   Haack não considerou o que chamei de “filosofia popular”: filósofos que vieram de fora do sistema anglo-americano, resistindo à fragmentação. Esse é o caso, digamos, de Slavov Zizek, Markus Gabriel e Quentin Meillassoux. O primeiro, inspirado pelo que aprendeu com Hegel, Marx e Jacques Lacan, tem promovido uma crítica social imaginativa e útil, mas que no aspecto teórico torna-se “lacaniana” no sentido de não ser capaz de produzir mais que expressivas confusões conceituais. O segundo faz apelo a uma multiplicidade de textos históricos e contemporâneos, remasterizando ideias de maneira a satisfazer os anseios de um público juvenil. E o último produz elegantes fantasias intelectuais, no fundo continuadoras do pós-modernismo. A originalidade só é explosiva se combinada com relevância, o que aqui está faltando. A única maneira de salvar a filosofia de sua atual indigência encontra-se na renovação consciente dos pressupostos sobre os quais ela tem se escorado. Por enquanto cresce a suspeita de que a superficialidade aparece como a marca indelével de uma filosofia acadêmica massificada, o que acontece por efeito de uma burocratização que a mercantiliza a serviço da alienação própria de um mundo dominado pela técnica e pela racionalidade instrumental do capitalismo avançado.

 

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Existe uma saída para essas atribulações? Também aqui Haack apresentou o que acredito ser a resposta certa, tomando como modelo o gênio filosófico de C. S. Peirce. O que está faltando é uma filosofia mais propriamente abrangente, o que também equivale a dizer, mais profunda. Wittgenstein escreveu sobre a necessidade de abrangência através de representações panorâmicas ou sinópticas (übersichtliche Dartellugen) de nossa gramática conceitual.[23] Ernst Tugendhat definiu a filosofia como a investigação das estruturas conceituais centrais responsáveis por nossa compreensão do mundo.[24]

   À abrangência Haack acrescenta um elemento heurístico que ela chamou de “busca por aproximações sucessivas”[25] a partir de uma vaga e abrangente concepção inicial. Podemos comparar esse procedimento com a arte de pintar: começa-se com a concepção como um todo, uma vaga exibição de formas, cores, luzes e sombras... Gradualmente as formas são delineadas com mais precisão, erros são detectados e corrigidos, detalhes e tonalidades são adicionados e aquilo que a princípio parecia um borrão incompreensível acaba sendo transformado em imagens claras e convincentes. Podem ser pinturas a óleo, colagens, afrescos... A obra de Habermas, por exemplo, pode ser comparada a uma série de grandes painéis com alguns momentos de grande densidade, como o de sua pragmática universal.

   Para justificar esse método Haack recorreu à noção de consiliência, já explicado no primeiro capítulo (sec. 8). A consiliência é o pressuposto heurístico, indispensável ao progresso da ciência, de que o mundo possui unidade. Se o mundo possui unidade, então as ideias científicas verdadeiras devem se complementar, sendo capazes de se reforçar umas às outras em sua relação com a verdade. A novidade de Haack foi ter aplicado a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Wittgenstein percebeu isso recorrendo a uma hipérbole: a dificuldade da filosofia consiste em que, para um problema filosófico ser resolvido todos os outros problemas filosóficos também precisam ser resolvidos. De fato, na medida em que diferentes subáreas da filosofia se encontram interligadas entre si, as teorias desenvolvidas nessas subáreas precisam ser capazes de se reforçar heuristicamente. Isso significa que o filósofo deve adquirir primeiro suficiente cultura científica, humanista e filosófica. A própria ciência pode ser chamada para ajudar em alguns casos, mas não para substituir. E a assunção da consiliência também aqui demanda o procedimento por aproximações sucessivas, tornando os diferentes espaços gradualmente mais coerentes entre si em um grande painel coletivo.

   É óbvio que não podemos fazer isso da mesma maneira que Kant e Hegel. Nem podemos fazer isso sem reconsiderar em profundidade o que os filósofos tradicionais e alguns contemporâneos pensaram. Mas parece perfeitamente possível fazer isso ainda hoje, sobre bases culturais muito mais amplas, no interior dos muito mais estritos e rigorosos espaços de investigação de que dispomos.[26]  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental (Rio de Janeiro: Zahar 1990), p. 398. Isso foi escrito em 1987.

[2] A racionalização e burocratização também podem estar atingindo a própria pesquisa científica de base. Ver, por exemplo, as entrevistas com Gregory Chaitin e Fred Hoyle. A rejeição da vida acadêmica por um matemático de gênio como Gregory Perelman pode não ter sido sem razão.

[3] Seria fácil objetar contra essa estratégia, sob a desculpa de que a coerência de ideias tomadas de fontes muito diversas é questionável. Mas isso é purismo academicista. Nada indica que ideias que não são prima facie contraditórias não possam ser adicionadas de modo a ajudar-nos a compreender mudanças sociais complexas.

[4] Geralmente o termo é traduzido de forma menos literal como ‘desencantamento do mundo’. Ver Max Weber: “Ciência como vocação“, in Ensaios de sociologia (Rio de Janeiro: LTC 1982). PP. 97-107.

[5] Habermas (1986). „Entgegnung.“ A. Honnett, Joas H. (1986) Kommunikatives Handeln Frankfurt/M.: Suhrkamp, pp. 327-417.

[6] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. in coleção Os Pensadores n. 37 (São Paulo: Abril Cultural) p. 236.

[7] Max Weber. Political Writings. Ed. Peter Lassman (Cambridge: Cambridge University Press 1994), xvi.

[8]  Cf. Theodor Adorno e Max Horkheimer: Dialética do iluminismo (Rio de Janeiro: Zahar 1985), pp. 99-138. Ver também Herbert Marcuse: O homem unidimensional: Estudo da ideologia da sociedade industrial avançada (Edipro 2015).

 

[9] Na situação ideal de fala a atividade voltada para os fins é avaliada sem coerções externas ou internas, com acesso irrestrito à informação e plena intenção heurística da parte dos falantes. Cf. Jürgen Habermas: “Was heisst Universalpragmatik?” In Karl-Otto Apel Sprachpragmatik und Philosophie (Frankfurt: Suhrkamp 1982)

[10] Sigmund Freud: Mal-estar na civilização (Penguin-Companhia das Letras 2011).

[11] Todos os três exemplos de cientismo foram apresentados por Susan Haack.

[12] Saul Kripke: Naming and Necessity (Harvard: Harvard University Press 1980). Também de Kripke ver: Reference and Existence: The John Locke Lectures (Oxford: Oxford University Press 2018).

[13] W. V-O. Quine: Word and Object (Martino Fine Books 2013).

[14] Culture and Value (Oxford: Blackwell 1996), p. 18.

[15] “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes.” Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 26.

[16] Isso não acontece só na filosofia. Há muitos anos ouvi de um sociólogo norte-americano a queixa de que não é mais possível produzir um Max Weber, uma vez que não dispomos do tempo e da liberdade quase ilimitada na aquisição de conhecimento que eram dadas aos professores da universidade alemã do início do século XX.

[17] Susan Haack, “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration,” in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger (Springer Verlag 2016), p. 5.

[18] Anthony Kenny, Aquinas on Mind (London: Routledge 1994), p. 9.

[19] Susan Haack, “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration,” ibid., p. 24.

[20] Cf. Scott Soames. Philosophical Analysis in the Twentieth Century (Princeton: Princeton University Press 2003) vol. II, epílogo. Em oposição a Haack Soames viu essa multiplicação de sub-especializações de forma positiva como a marca da filosofia atual.

[21] Susan Haack, “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 24.

[22] Para dizer a verdade creio ter feito exatamente isso em um livro que dependeu de anos de pesquisa chamado How do Proper Names Really Work? (Berlim: De Gruyter 2023).

[23] Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (Oxford: Blackwell 2009), I, sec. 122.

[24] Tugendhat, Ernst (1990). „Die Philosophie unter dem Sprachanalytischen Sicht“, in Philosophische Aufätze 1967-1990.

[25] Susan Haack, “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, p. 30.

[26] Na presente introdução procurei demonstrar essa possibilidade ao explorar algumas relações entre as filosofias da tradição e entre elas e a filosofia e ciência contemporâneas. Um exemplo é ponte lançada entre a ontologia platônico-aristotélica (caps. II e III), a crítica nietzschiana da filosofia cristã (cap. XVI) e a metafísica naturalista de Donald Williams (cap. XIX).