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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS (HELENISMO E IDADE MÉDIA)

  

 

IV

FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS

 

A morte de Alexandre em 123 a.C. deu origem a um período conturbado e instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte do mundo conhecido, mas as suas diferentes regiões acabaram por ser governadas por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro cultural. Na última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande maioria, destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente acabou se deslocando para Roma.

   As escolas filosóficas mais bem sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si mesmo diante de poderes que ele era incapaz de influenciar.[1] Com efeito, há em todas elas um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de autoajuda. Há certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos a um nível filosoficamente tolerável, ou seja, ao menos suficientemente coerente e consistente com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece que haja um ponto de corte claro e definitivo). Com isso quero dizer que essas filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada, encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e curta.

 

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Epicurismo. As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo eram seguidas por tribos humanas diversas, na medida em que seus membros encontravam sua afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro (341-270 a.C.) foi um materialista atomista, fortemente influenciado por Demócrito e Leucipo e preocupado com questões práticas.[2] Para ele não precisamos temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós... Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos mais finos que constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen) através dos quais as cadeias causais do mundo natural são rompidas.[3]

   Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela filosofia cristã e ainda hoje é comum. A dificuldade com ela é que se introduzíssemos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não parece que com isso aumentaríamos nossa liberdade. Para exemplificar, imagine que uma pessoa comece a se comportar de maneira inesperada, imprevisível, errática. Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que ela deixou de se comportar de forma racional. E como designamos como sendo livres somente seres racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não somos mais capazes de aplicar o conceito de liberdade a um tal ser humano.

   A filosofia da vida de Epicuro ainda possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar ações, como o de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso do prazer de comer ou de fazer sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento, de tranquilidade e de serenidade alcançados pela ausência de perturbações físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo. Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os prazeres estáticos. Como os prazeres estáticos dependem da satisfação dos desejos, ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e necessários, os naturais mas desnecessários e os não-naturais e desnecessários. Exemplos de desejos naturais e necessários são os de alimento e de companhia. Esses desejos são essenciais à felicidade, razão pela qual devem ser sempre buscados. Os desejos naturais mas desnecessários são os de coisas como o consumo de pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos buscar satisfazê-los, mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo em risco a tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há os desejos não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras. Eles são os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana, mas subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos logo nos acostumamos com eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao satisfazê-los passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se adicionando a animosidade e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes, o que destrói os nossos prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da satisfação desses desejos devem ser a todo custo evitados!

   O pensamento de Epicuro é importante no sentido de dar ao prazer um lugar mais apropriado. Durante a Idade Média e mesmo quase até nossos tempos, como resultado do que Nietzsche mais tarde chamou de ideal ascético, o hedonismo epicurista foi desvirtuado como se o prazer devesse ser reduzido ao prazer físico e como se tudo o que Epicuro defendesse fosse a indulgência nos prazeres físicos. Mas o prazer possuía para ele uma aplicação mais ampla e suas reflexões acerca do assunto eram muito mais elaboradas e matizadas do que se possa pensar à primeira vista.

  Não obstante, há coisas a serem criticadas. Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos, dado que eles são por natureza diversos uns dos outros naquilo de que necessitam e na dependência de inúmeros fatores. A Grécia não teria tido o brilhantismo de um governante como Péricles, nem a ousadia e astúcia de um general como Temístocles se prazeres sociais como os do poder, da honra e da glória não fossem em medida saudável apreciados. Além disso, se compararmos o epicurismo com a filosofia dos gregos antigos seremos capazes de ver inequívocos traços de decadência: a perda da audácia especulativa da filosofia de outrora se fazia sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros, como a busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para Aristóteles um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não um prazer estático. Mas tais prazeres sublimados, como os da criação e da descoberta, não são mais aquilo que Epicuro tinha em mente.

 

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Estoicismo. Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso foi o estoicismo. Ele começou com Zeno de  Citium (335-263 a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus (279-206 a.C.). O sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras como Sêneca (4 a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco Aurélio (121-189 d.C.).[4]

   Os estoicos dividiam a filosofia em lógica, física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística aristotélica. Um exemplo simples é o argumento “Se é dia, então há luz; há dia, portanto há luz”, no qual usamos a regra do Modus Ponens para obter a conclusão.

   A contribuição para a física consistiu em uma visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos. O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se encontra em simpatia consigo mesmo, ou seja, harmonicamente interconectado de maneira determinista.

   A parte mais influente do estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem. Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria... Para os estoicos há duas espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais, as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia) quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita.[5] Como consequência o estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.

   O mundo romano, vão e cruel, fez com que muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina, com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e destruiu as provas de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada. Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que, tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele, enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos, o é sempre melhor do que ser supliciado. Esses exemplos nos fornecem uma luz sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no mundo romano.

   Não quero negar que existe um nível verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira através da fé em uma razão petrificadora das paixões.[6] Parece claro que muito do estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida em concordância com a natureza? Não há uma resposta. Para Marco Aurélio isso significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação virtuosa teria sido com certeza muito diversa. Explicar a virtude em termos de harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.

 

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Ceticismo. Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava pela desconfiança de tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do ceticismo foi Pirro de Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles. Pirro nada escreveu. Também, para que escrever quando não se acredita em nada? Disseram os pósteros que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam alimentá-lo e vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois conseguiu viver mais de 90 anos.

   Se Pirro nada escreveu, seu discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que devemos muito dos que sabemos sobre o ceticismo antigo. O método dos céticos para alcançar a paz de espírito era o seguinte:

1)    Argumente por uma tese (por exemplo, viveremos após a morte).

2)    Argumente por uma antítese (por exempo, não viveremos após a morte).

3)    Perceba que, após o acúmulo de argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.

4)    Uma vez percebido isso você chega à epoché, à suspensão da crença.

5)    Uma vez chegado à epoché você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.

 

A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é difícil na areia movediça da argumentação filosófica.

  O sucesso do ceticismo deveu-se em boa parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso ela tenha sido a mais rejeitada nos difíceis tempos que se seguiram.

 

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Plotino. O filósofo mais original do período romano foi Plotino (204-270), um neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a do Bem. Mas o bem é Deus, o indizível, o Uno. Embora o Uno não tenha criado o mundo conscientemente, como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento espiritual. Deus produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume que sai do frasco. Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações espirituais, esses eflúvios, somos todos nós e tudo o que se encontra ao nosso redor. Há vários níveis de emanações, as que constituem princípios intelectuais, as que produzem os movimentos da alma e as que constituem a natureza visível. Tal como as ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis. Além delas só existe um fundo escuro de matéria incognoscível.

   A doutrina das emanações teve importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, uma relação que no cristianismo se estabelece entre o Deus pessoal, criador das escrituras, e o mundo empírico.

 

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Alta Idade Média. A Idade Média começou no século V d.C., com a queda do Império Romano ocidental (476 d.C.) e acabou no século XV d.C. A filosofia medieval acabou por recuperar o nível e as temáticas das filosofias de Platão e Aristóteles, mas sem alterar o paradigma por eles definido. Os dois mais importantes filósofos cristãos, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as estruturas teóricas desenvolvidas por Platão e Aristóteles e as cristianizaram: Agostinho batizou Platão e Tomás de Aquino batizou Aristóteles. As archai, a ideia do bem, a Substância Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão, criador e pessoal, enquanto o núcleo central da filosofia medieval continuou sendo a metafísica, principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado ao pensamento contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das escrituras sagradas. Não foram poucos os filósofos que foram proibidos de escrever por terem infringido essa norma. E o filósofo Giordano Bruno foi queimado vivo por reincidir.

   O pensador mais importante no início do cristianismo foi seguramente Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele nasceu no que é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, e o seu pai pagão. Note-se que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com a tomada de Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410 a.C. e o império decadente por essa época já havia sido praticamente convertido ao cristianismo. Por isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo medieval.

   Em seu livro Confissões ele descreve a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual sentimento e razão estavam em conflito com a paixão física, o constrangia ao extremo. Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele se interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo… Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando por converter-se ao cristianismo.

   A principal marca do pensamento agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação. Deus ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a verdade.

   Após Agostinho a Idade Média bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de mercadoria que funcionava provendo as mais diferentes necessidades em locais diversos desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império eram pouco organizados e lutavam entre si. O próprio Agostinho, que morreu quando sua cidade se encontrava sitiada pelos vândalos, escreveu:

 

Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado pela cruz de cristo.[7]

 

A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período muito duro em que a Europa foi retalhada em pequenos feudos com duas classes, a dos nobres e a dos servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a monastérios cuja função era apenas a de conservar o que os antigos haviam feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o principal responsável pelo silencioso, mas imenso, avanço civilizatório por ele produzido – o avanço que possibilitou o fim da escravidão na Europa. Foi um período de despojamento, de pobreza e analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de resto podia esperar.

   O único filósofo grandemente original surgido na Alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena (810-877). Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma história cíclica do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final retornam a Deus. O universo passa por quatro fases:

 

1.    A da natureza não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.

2.    A da natureza criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo sensível.

3.    A da natureza criada e não criadora. É o mundo criado no espaço e no tempo, no qual vivemos. Ele não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os outros seres, mas a espécie, a qual se determina nos indivíduos em virtude do Espírito.

4.    A da natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado original e retorna a Deus como alma separada do corpo.

 

O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através dele todas as coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que às transcende.

 

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Baixa Idade Média. Após o século X a filosofia começou novamente a florescer na Europa medieval com o surgimento da escolástica. No ápice desse desenvolvimento encontra-se Tomás de Aquino (1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do conhecimento em obras imensas como a Summa Theologica e a Summa contra Gentiles. O gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra teológica, o que o torna pouco acessível a não iniciados.

   No tempo de Aquino a Metafísica de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e autoridades papais torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o primo motor – não parecia nada com um Deus pessoal preocupado com seres humanos que havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia. Aquino conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou Aristóteles, assim como Agostinho havia antes cristianizado Platão. Ele fez isso ao introduzir a distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação está nas escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu erros. Mas a filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo natural. O mundo visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é um mundo real e efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo natural foi criado por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo ao nosso redor nós ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última da metafísica aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo natural através dos olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do próprio Deus.

   Essa maneira de ver inovadora foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.

   Tomás de Aquino costuma ser lembrado pelos seus argumentos empíricos para demonstrar a existência de Deus. Argumentos para provar a existência de Deus podem ser lógicos ou empíricos. O Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109 d.C.), visando provar a existência de Deus foi um argumento lógico. Segundo esse filósofo, Deus deve ser definido como o que de maior pode ser pensado. Se concordamos com essa definição e admitimos que somos capazes de pensar Deus, isso significa que ele precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós iríamos nos contradizer acreditando sermos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado.[8] (Tomás discordava desse argumento por pensar que não somos capazes de conhecer a natureza de Deus a ponto de dar sentido à definição de Anselmo).

   Resumidamente, os argumentos empíricos que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são: (1) Tudo o que se move deve ser movido por outro. Mas isso não pode continuar indefinidamente. Logo, deve haver um motor imóvel que seja causa eficiente de todo movimento a ser chamado de Deus. (2) se percorrermos retrospectivamente as causas compreenderemos que essa regressão não pode ser infinita: deve existir uma causa incausada de todas as causas, que é Deus. (3) Tudo é contingente, logo deve haver um ser necessário, ou seja, Deus. (4) As criaturas tem graus de bondade e de outras perfeições. Mas se é assim, deve haver algo que possua bondade e perfeição absolutas: Deus. (5) No mundo as coisas são organizadas em direção a fins. Assim, o arco e a flexa servem a um fim, mas precisam de um arqueiro que justifique esse fim. Do mesmo modo, deve existir um ser que organizou o mundo, ou seja, Deus.[9]

    Todos esses argumentos parecem-nos hoje pouco plausíveis. Não precisamos mais desse horror ao infinito. Não há nada que nos force a pensar que deva haver um primeiro motor imóvel que seja causa eficiente de tudo o que se move, pois uma sequência potencialmente infinita de causas parece-nos perfeitamente concebível (negação de 1). A necessidade do todo pode justificar a contingência das partes, não demandando um ser necessário externo (negação de 3). Para Aquino a existência do imperfeito demanda a existência da perfeição. O quente existe porque existe o fogo, que era para ele o máximo de calor. É preciso existir um máximo de bondade para que exista a bondade? Não parece que isso seja necessário (negação de 4). A grande organização teleológica do mundo vivo nesse minúsculo ponto do universo onde nos encontramos se explica hoje por milhões de anos de evolução natural, que embora tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra, tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo (negação de 5).

   É certo que nossa atual concepção científica do mundo não precisa ser definitiva. Mas as respostas negativas baseadas na ciência são agora as melhores que temos e a fé advinda da mera vontade de crer não parece uma boa alternativa. Aquino se deixa compreender: afinal, se vivêssemos na atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo, sem a teoria darwiniana da evolução das espécies e sem os esclarecimentos da psicologia profunda sobre nossos mecanismos de defesa (particularmente Freud), dificilmente nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos sagrados. Não temos hoje a mesma desculpa.

   Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia.[10] Embora, como Aristóteles, ele fosse um empirista que não acreditava em ideias inatas, ele também não era um empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um recipiente passivo. Ou seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que vai se enchendo de conhecimento de modo aleatório, pois ele põe ênfase em suas capacidades inatas de aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da iluminação, mas defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma luz natural da razão capaz de transformar o objeto no mundo, que é potencialmente pensável, em objeto atualmente pensável na mente. Mas esse intelecto ativo não é mais do que uma faculdade natural criada por Deus para nos permitir conhecer a natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, para ele o conhecimento começa com a sensação. As coisas particulares são compostas de matéria e forma. Ao conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos formalmente idênticos a eles, produzindo cópias das formas substanciais e acidentais em nossos órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele chama de “espécies sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória como phantasmas (imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que entra em ação o intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os conceitos imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo, que é o quadro negro no qual os conceitos são inscritos. Importante aqui é a capacidade do intelecto ativo de formar princípios a partir da experiência, a exemplo do princípio da não-contradição. Aquino explica esses princípios de modo semelhante àquele pelo qual mais tarde Kant definiu os juízos analíticos: são juízos nos quais o predicado está contido no sujeito. Um exemplo pode ser dado pelo enunciado definitório: “Homens são animais racionais”. Aqui o predicado animal racional está contido no conceito de homem.

   Ainda mencionáveis (entre outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao escolasticismo tardio: Duns Scotus e William of Ockham (século XIV). A filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que quer dizer em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.

   Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de Aquino de que a identidade individual de uma coisa dependeria de sua matéria. A matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na água, ou a matéria de uma certa cadeira, sendo a madeira de que são feitos esses objetos, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a árvore. Quanto à matéria prima, a matéria última de que as coisas são feitas, além de ser comum a todos os indivíduos, além de indeterminada, não é sequer cognitivamente acessível. Já a forma comum, por exemplo, a forma de Sócrates como pertencendo à espécie humana, é indiferente à individuação por ser comum a todos os homens. Por conseguinte, nem a matéria nem a forma comum são capazes de individuar coisa alguma. Aquilo que identifica precisa ser uma forma própria do indivíduo em questão, uma “diferença individualizante”, a haecceitas capaz de distinguir essa árvore das outras árvores e Sócrates dos outros homens.[11]

   William de Ockham (1285-1347), o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne (1050-1125), sustentou a ideia radical de que os universais nada mais são do que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo proferimento de uma palavra como ‘o bem’ ou de um predicado como ‘...é bom’. Segundo este nominalismo, universais no sentido realista, entendidos como entidades reais comuns a muitos indivíduos, como o bem, a justiça, o conhecimento, não podem existir. Ockham também rejeitava a existência de universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de apreender quididades ou formas gerais.[12] Ele admitia a existência de universais como conceitos mentais e, de modo derivado, como termos gerais, mas em qualquer dos casos eles não possuem nenhuma existência metafísica, não passando de particulares. Em sua filosofia madura ele veio a entender o universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez. Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.

 

7

 

Nominalismo. Uma versão contemporânea do nominalismo é aquela segundo a qual termos gerais como ‘o bem’, ‘a justiça’... se referem a classes de objetos. Assim, se dizemos que Aristóteles é branco e que Platão é branco, ambos os predicados nos dizem o mesmo porque eles se referem à mesma classe de objetos.[13]

   Um problema encontrado em semelhante nominalismo de classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes podem ter a mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo: o termo geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal com coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão, ou seja, deveriam significar, dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros exemplos não é o caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação da noção de mundo possível ao problema dos universais.[14] Um mundo possível é como um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto em outros mundos possíveis, então a extensão de expressões conceituais com sentidos diferentes poderia ser diferente. Por exemplo: existem mundos possíveis nos quais animais com rins não possuem coração e vice versa, o que justifica a diferença na intensão ou sentido dos termos.

   Um problema é que para ser assim parece ser necessário que os mundos possíveis pertençam à mesma classe dos mundos atuais, ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi defendida por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual, com o único problema que eles são inacessíveis a nós. Em que pese a originalidade da posição de Lewis, a sugestão a ser exposta no capítulo XIX terá a vantagem de não nos comprometer com posições especulativas inescrutáveis.

 

 

 

 



[1] G. W. F. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Dritter Teil: Die Römische Welt (1833)

[2] Epicuro: Cartas e máximas principais (Penguin-Companhia 2021).

[3] Lucrecio: Sobre a natureza das coisas (De rerum natura) (Autêntica 2021), 2.256-2.263.

 

[4]  Ver Sêneca e Marco Aurélio in Grandes Mestres do Estoicismo. Trad. Artur Costrino  (Edipro 2021).

[5] As Meditações, livro escrito por Marco Aurélio quando ele defendia o império nas fronteiras do norte, é repleto de alusões à morte, como se ao invocar a sua presença ele melhor pudesse dominar seu receio de encontrá-la.

[6] Ver James A. Mollison: “Nietzsche Contra Stoicism: Naturalism and Value, Suffering and Amor Fati.” In Inquiry, 2019, 61: 1, 93-115. Para uma discussão do contexto histórico ver Bertrand Russell: A History of Occidental Philosophy, cap. 28.

[7]  Comentário ao Evangelho de João (2, 2).

[8] Anselmo de Aosta: Monologium (1077).

[9] Suma Teológica (São Paulo: Fonte Editorial) Parte Primeira, questão 2, a existência de Deus, artigo 3, pp. 21-22.

[10] Suma Teológica, Ibid., vol. I, Questões 84-87, pp. 751-791.

[11] Em meu livro sobre a referência dos nomes próprios creio ter investigado essa diferença individualizante apelando a uma regra conceitual de identificação do nome próprio. Ver How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.

[12] Wilhelm of Ockham: Opera Philosophica et Theologica, G. Gál. et al. eds., NY: The Franciscan Institute, 1977-88, Vol. II-2.

[13] Anthony Quinton. “Properties and Classes,” Proceedings of the Aristotelian Society 58, pp. 33-58.

[14] D. K. Lewis, On the Plurality of the Worlds (Oxford: Oxford University Press 1986).

terça-feira, 27 de agosto de 2024

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO

  DRAFT para um capítulo do livro a ser publicado com o título de "Introdução histórica à filosofia".

 

 Draft de artigo

 

A FILOSOFIA NA JAULA DE FERRO

 

 

Resumo:

Nesse artigo procura-se explicar a falta de inovações disruptivas na filosofia atual como resultado da racionalização e burocratização dos sistemas acadêmicos de produção e avaliação da reflexão filosófica. Esses sistemas utilizam parâmetros de avaliação próprios para a pesquisa científica, mas que se aplicam limitadamente à filosofia, alimentando a hiperespecialização e a fragmentação cientificista da pesquisa filosófica.

Summary

This article seeks to explain the lack of disruptive innovations in current philosophy as a result of the hasty rationalization and bureaucratization of academic systems for the production and evaluation of philosophical reflection. These systems use evaluation parameters specific to scientific research but do not always apply to philosophy, unnecessarily feeding philosophical research's hyperspecialization and scientific fragmentation.

Key-Words

Metaphilosophy, critical philosophy, scientism, Max Weber, Susan Haack

 

 

Tem sido dito que vivemos uma época de escolasticismo filosófico.[1] Ao que parece, nos últimos anos esse escolasticismo tem sido vítima de uma brutal racionalização e burocratização do trabalho filosófico, que promove interpretações acuradas e desenvolvimentos pontuais, mas que se arrisca a paralisar a possibilidade de inovações verdadeiramente disruptivas. Segundo alguns isso está acontecendo não só com a filosofia, mas até mesmo com a própria ciência.[2] Assumindo a justeza dessa constatação quero tentar trazer algum esclarecimento sobre as raízes últimas do problema, além de mostrar alternativas viáveis.

 

1

 

Quero começar considerando um fenômeno sociocultural importante e pervasivo no curso do desenvolvimento da civilização, que Max Weber chamou de Entzauberung der Welt: a demagificação do mundo.[3] Embora Weber tenha se restringido ao exame de processos sociais posteriores à reforma protestante e ao desenvolvimento das economias capitalistas, sua origem foi bem mais remota. No início do processo civilizatório o mundo que nos rodeia costumava ser visto como algo vivo, capaz de possuir vontade e paixão e de responder aos apelos humanos. Como complemento, as práticas culturais que presidiam as comunidades humanas eram elas próprias organicamente construídas com base nas interações sociais do assim chamado mundo da vida (Lebenswelt) – o mundo do agir quotidiano. Assim era o mundo que pode ser descrito como “mágico”. Mesmo após a emergência do monoteísmo judaico-cristão, quando as comunidades eram administradas em associação com lideranças religiosas, quando ainda existiam santos e milagres, quando a vida humana ainda era controlada pela religião e o universo humano era repleto de magia.

   Contudo, com o desenvolvimento da economia capitalista no final do século XIX e com o desenvolvimento da ciência e tecnologia que a acompanhou, produziu-se um verdadeiro rompimento com a visão religiosa antes existente. Ainda que as religiões permaneçam existentes, elas hoje muito mais acompanham do que presidem a vida humana. O que vemos é a substituição do mundo animista por um mundo cada vez mais secular, cada vez mais “mundanizado”. O desenvolvimento da ciência e da técnica faz com que a magia e a força institucional do mundo místico percam seu poder. O que ao nível da organização social promove essa substituição é a introdução do que Weber chamou de processos de racionalização e burocratização da sociedade, que tornam a produção de bens muito mais eficaz, mas que se instalam muitas vezes em detrimento da ação valorativa. Nesse meio a alienação é inevitável: o indivíduo passa a ser uma peça em um mecanismo que ele mesmo desconhece, ao mesmo tempo em que perde seu enraizamento naturalmente construído no mundo da vida. Isso produz um aumento do individualismo acompanhado de um empobrecimento alienador do indivíduo em sua subjetividade reflexiva.

   Hoje, quando a ciência e a técnica conquistam cada vez mais a vida humana, vivemos sob a égide dessa forma de demagificação. Como sumarizou Jürgen Habermas: uma maior patologia da sociedade contemporânea consiste na “colonização do mundo da vida pelo sistema” (entendendo-se por sistema as instituições sociais econômicas e políticas).[4] É assim porque os sistemas são, digamos assim, “autopoiéticos”: uma vez estabelecidos, eles tendem a crescer de modo autônomo, ao menos enquanto deixados à revelia de um controle social suficientemente reflexivo para assegurar que eles permanecem vantajosos para a sociedade que os criou.

   Weber introduziu o conceito de demagificação sob influência de Nietzsche, o que nos faz pensar a ideia de niilismo. Como vimos, uma consequência da perda do papel fundacional da crença religiosa na sociedade pode ser o niilismo, que tanto pode levar à perda dos valores morais quanto a ideologias simplificadoras, como no caso de seitas místicas degeneradas ou de sistemas totalitários como comunismo marxista-leninista em sua versão estalinista ou do nazifascismo. Trata-se nos dois últimos casos de patologias sociais profundamente perturbadoras, que sob outros nomes ainda hoje nos assediam.

   Embora Weber admitisse a inestimável importância social da racionalização e da burocratização na melhoria do desempenho da sociedade como um todo, ele também foi um crítico enérgico de suas limitações e do risco de comportarem efeitos socialmente e culturalmente patológicos. Vale citar aqui a famosa passagem em que ele usou a metáfora da jaula de ferro para expor a possível perda da vida interior em um mundo cientificamente racionalizado e burocratizado:

 

Ninguém sabe quem irá viver nessa jaula no futuro, ou se no final desse tremendo desenvolvimento profetas inteiramente novos surgirão, ou se haverá um grande renascimento de velhas ideias e ideais, ou, se nada disso, petrificação mecanizada, embelezada por uma espécie convulsiva de auto importância. Para o “último homem” desse desenvolvimento cultural pode ser bem verdadeiramente dito: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração; essa nulidade imagina que conquistou um nível de humanidade nunca antes alcançado”.[5]

 

O sistema econômico-institucional voltado para os fins (Zwecksorientiert) desfaz os modos de apreensão e domínio da realidade míticos, nascidos e elaborados organicamente por sobre formas de vida sociais passadas, substituindo-os por um sistema potencialmente alienador, que se apresenta na forma de instituições burocráticas que modelam os interesses dos seres humanos a elas pertencentes. Quando essas instituições se tornam alienadoras, os seres humanos passam cada vez mais a funcionar como pequenas peças cuja única ambição é a de se tornarem peças maiores no interior de um imenso maquinismo dentro do qual, sem perceber, trilham o caminho que poderá conduzi-los à “noite polar de gélida escuridão”[6]. Esse diagnóstico só não é mais pessimista porque, como notei, Weber acreditava que a sociedade que produz as jaulas de ferro tem poder suficiente para corrigir e transformar as instituições por ela criadas.

   Meu ponto é que a racionalização e burocratização da sociedade ajudam-nos a explicar as deficiências da filosofia em seu momento atual. Trata-se de apontar para o principal problema da filosofia contemporânea, que já foi denunciado por filósofos como Wittgenstein, P. F. Strawson, Susan Haack e até mesmo Martin Heidegger: o cientismo.

 

3

 

Para melhor respondermos à questão, precisamos considerar três peculiaridades da prática filosófica que a tornam intrinsecamente ligada à forma de vida.

   A primeira é que, a partir de uma perspectiva freudiana o pensamento filosófico resulta do que Freud chamava de processo primário (Primärvorgang). Nesse processo, comum à arte, às manifestações religiosas e à produção filosófica, as cargas afetivas (Besetzungen) não se encontram firmemente ligadas às representações que lhe são próprias, como acontece com o pensamento científico, que serve ao princípio da realidade (Realitätsprinzip). O processo primário está a serviço do princípio do prazer (Lustprinzip), que para Freud falha em distinguir suficientemente o imaginário do real. Isso significa que a filosofia pertence ao mundo mágico, um pouco como a arte e a religião. Como consequência disso, tanto quanto à arte e a religião, ela corre o risco de ser alienada como não só inútil, mas até mesmo contraprodutiva frente aos mecanismos de racionalização decorrente de um processo de demagificação que a racionalização e burocratização promovem.

   A segunda peculiaridade diz respeito à visão da filosofia como uma prática cultural derivada, a exemplo da ópera, que combina necessariamente canto, poesia e enredo. A filosofia resulta de material, motivação e procedimentos derivados de três práticas culturais fundamentais, que são a religião, a arte e a ciência. Nas elaborações que Platão fez de sua doutrina das ideias, por exemplo, vemos um componente de elucidação mística compreensiva derivado de seu orfismo, um componente estético evidenciado no recurso inevitável a metáforas e nas extraordinárias alegorias que compõem seus diálogos, e ainda, um componente heurístico (protocientífico), de busca da verdade, visto, por exemplo, em sua tentativa de explicar como é possível dizer o mesmo de muitos ou em sua tentativa de definir o conhecimento como a opinião verdadeira completada por um logos. O componente que chamei de místico seria responsável pelo caráter totalizador, de profundidade e abrangência buscado pela visão filosófica, o componente estético por seu veículo de expressão inevitavelmente metafórico e o componente heurístico pelos procedimentos argumentativos orientados pela busca da verdade. Filósofos como Hegel, Nietzsche e Locke estavam respectivamente inclinados aos extremos da religião, da arte e da ciência, embora inevitavelmente preservassem algo das outras duas dimensões, uma vez que as três parecem imprescindíveis para de algum modo qualificar a filosofia como filosofia. Como esses aspectos estético e místico da filosofia pertencem à forma de vida eles não são considerados pelos mecanismos de burocratização e racionalização do sistema.

   A terceira peculiaridade diz respeito à direção. A filosofia pode ser facilmente vista como uma protociência quando consideramos que todas as ciências particulares nasceram dela. A filosofia é o que pode ser feito antes que sejam encontradas as condições para a investigação verdadeiramente científica, servindo ao menos para motivar a indagação. Ela é o berçário das ciências, ocupando o lugar no qual caberá alguma ciência futura, conquanto se entenda a palavra ‘ciência’ de forma não-reducionista como simplesmente qualquer “conhecimento público consensualizável” (John Ziman). Ora, como a filosofia é um produto inevitável do processo primário, como ela resulta de motivações místicas e formas estéticas, e como ela não pode tornar-se ciência sem deixar de ser filosófica, ela se encontra inevitavelmente enraizada no mundo da vida.

   Tendo as considerações acima em vista torna-se claro que em uma sociedade como a nossa, aceleradamente racionalizada e burocratizada em favor da ciência aplicada e da técnica, pode ser que tanto o impulso de abrangência quanto o elemento metafórico, estejam sendo submetidos a um processo de domesticação, quando não de anatematização. Afinal, a religião e a arte pertencem antes ao mundo da magia e, consequentemente, também a filosofia, na medida em que esta última deve ser, em alguma medida, impulsionada por motivações totalizadoras (místicas) e recursos metafóricos (estéticos). Ora, se excluirmos os componentes totalizadores e metafóricos da filosofia de modo a restarem apenas os procedimentos heurísticos, considerando que os últimos deveriam encontrar-se aqui inevitavelmente permeados pelos primeiros, o resultado parece ser inevitavelmente algo como o cientismo. Em vez de aproximações heurísticas feitas através do processo primário (ex.: os “átomos” de Demócrito), procura-se fantasiar de modo reducionista uma filosofia científica, como se ela pudesse resultar de processos secundários.

   O maior preço pago pelo cientismo é o reducionismo puro e simples,[7] que consiste na exclusão de uma ou mais dimensões da investigação puramente filosófica. Pense, por exemplo, na inacreditável definição de Rudolph Carnap da filosofia como a lógica da ciência, excluindo todo o resto, ou na tese de Quine da indeterminação da referência, que deveria eliminar da filosofia da linguagem qualquer teoria da referência mais robusta, ou ainda na tentativa de Alvin Goldman de substituir a epistemologia tradicional por uma ciência cognitiva.[8]

 

4

 

Passemos agora a examinar algumas maneiras pelas quais os atuais mecanismos de racionalização burocrática são capazes de militar contra a boa filosofia.

   Considere primeiro, por razões comparativas, o modo como a filosofia foi feita nos tempos de Locke e Hume, na Grã-Bretanha, ou nos de Kant e Hegel, na Alemanha. Ela sempre foi o resultado de um longo, persistente e imenso “trabalho sobre si mesmo... sobre o próprio modo de ver as coisas”, para usar as palavras de Wittgenstein.[9] Naqueles tempos, a filosofia era honrada por uma nobreza erudita e por uma classe letrada que valorizava a alta cultura em uma sociedade que era (para o bem e para o mal) extremamente estratificada. Foi assim até a primeira metade do século XX. Nesse meio elitista no melhor dos sentidos a publicação poderia esperar. Foi assim até pelo menos a Segunda Guerra Mundial. Um princípio ético seguido por pessoas como J. L. Austin, por exemplo, era o de só publicar no caso de se ter algo importante a dizer. Em outras palavras, a filosofia era obra de uma pequena casta de intelectuais com a liberdade de fazer o que quisessem, enquanto quisessem, se bem o quisessem. A velha premissa grega do “ócio contemplativo”, imprescindível à especulação descompromissada, ainda estava sendo cumprida.

   Algum esclarecimento pode ser encontrado quando comparamos a situação da cultura atual com momentos de explosão cultural no passado. A verdadeira inovação, científica e cultural, é sempre subversiva. Ela demanda um redimensionamento dos valores. Por isso a cultura só encontra solo fértil para se desenvolver onde existem grandes conflitos capazes de forçar grandes rupturas. Isso aconteceu na primeira metade do século XX. Era imenso o sentimento de tensão e insegurança nos relatos dos que viveram aquela época. As velhas instituições, como a monarquia, estavam em ruinas e os conflitos sociais acumulados acabariam por desbocar na Segunda Guerra Mundial. Simplesmente não se sabia o rumo seguir. Desse caos resultante de uma descrença generalizada nos valores instituídos resultou uma renovação cultural que em suas dimensões lembra o que aconteceu durante o Renascimento. Surgiram grandes artistas como Picasso e Dali na pintura, James Joyce na literatura, Igor Strawinsky na música, filósofos importantes como Wittgenstein, Russell e Husserl, um grande analista da psicologia e da cultura como Freud, e ainda grandes revoluções na ciência, como a criação da teoria da relatividade por Einstein e o aparecimento da teoria quântica através do esforço conjunto de alguns físicos excepcionais. Foi assim até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo voltou à ordem. Desde então a filosofia foi absorvida por um cada vez mais amplo sistema universitário e o terreno fértil para inovações disruptivas foi cada vez mais cedendo lugar a uma normalidade que de início, ao menos, foi ainda bastante produtiva em filosofia. Ainda assim, é curioso o fato de que os dois mais significativos filósofos alemães da segunda metade do século XX, Jürgen Habermas e Ernst Tugendhat, tenham nascido na primeira metade do século XX.

   Faço aqui um aparte para notar a curiosa importância da hierarquia acadêmica na produção do conhecimento. As universidades de língua alemã já foram as melhores do mundo. A universidade de Viena foi na década de 20 do século XX o grande centro de produção intelectual da Europa continental. Paris pode ter sido a capital da arte, mas Viena foi a capital da cultura. Contudo, a ascensão do nazismo mudou tudo isso. Os melhores pesquisadores, geralmente judeus, tiveram de exilar-se e foram substituídos por pesquisadores menos capazes. Curiosamente, depois da Segunda Guerra os membros da Universidade de Viena preferiram não os convidar a retornar, uma vez que seriam por eles outra vez eclipsados. O resultado é que a Universidade de Viena nunca mais se recuperou. Algo semelhante pode ser dito das universidades de língua alemã. Nunca mais voltaram ao patamar inicial. O exemplo pode servir de admoestação para nós mesmos na época presente. Hierarquias intelectuais podem ser facilmente destruídas; reconstruí-las pode ser uma tarefa muito mais árdua. Por isso mesmo, quando uma já esgotada hierarquia do saber é substituída por uma simples hierarquia do poder, o resultado é decadência.

   Susan Haack notou que algumas mudanças curiosas nas demandas intelectuais a partir da segunda metade do século XX. Na primeira metade sobrava espaço nas grandes revistas para a publicação de artigos. Mas na segunda metade o número de artigos a serem publicados passou a aumentar para além de uma expectativa de avaliação razoável e a ética pragmática de publicar ou perecer começou a se universalizar. Em meio à crescente concorrência, pesquisadores acadêmicos começaram a se transformar de uma maneira que lembra a analogia de Weber, em pequenas peças na engrenagem, cuja única ambição é a de se tornarem peças um pouco maiores. Agora, desde o início do século XXI, com o advento da Internet, o número de artigos acadêmicos cresceu tão exponencialmente, que sua avaliação e possível influência parece depender mais da reputação das instituições e das revistas do que de seus valores intrínsecos. Susan Haack, que estudou o problema, acrescenta a isso sintomas de corrupção intelectual como o carreirismo e o compadrio, junto com o que ela chamou de incentivos perversos de vários tipos, incluindo bolsas e premiações dentro de um escopo tão restrito quanto previsível.[10] Por exemplo: as universidades modernas são agora cada vez mais geridas por CEOs que enfatizam a produtividade e a necessidade de que todos sejam ativos na pesquisa. Um conselho para o sucesso, segundo entreouvidos, seria “publicar em maior quantidade possível e o mais rápido possível...” Uma tal competição selvagem pode talvez funcionar em alguns domínios da ciência aplicada. Mas é contraprodutiva em filosofia, já que impossibilita a aquisição de uma cultura mais ampla e mais diversificada, além do lento amadurecimento de ideias necessário a um trabalho filosófico original. Aqui a “habilidade computacional” do operário acadêmico toma o lugar da amplitude e profundidade do pensamento, uma vez que só a primeira admite formas de mensuração cada vez mais técnicas e mecânicas.[11] Afora isso, o autor de um artigo filosófico deve adequar seus objetivos às metas pré-estabelecidas por cada vez mais obscuros editores de revistas especializadas, desestimulando a verdadeira originalidade. Afinal, originalidade não pode ser planejada. E obras filosóficas profundamente originais devem criar seus próprios parâmetros de avaliação ao invés de orientar-se pelos pré-existentes. Todas essas são exigências paralisadoras, senão corruptoras em relação à natureza própria da atividade filosófica. Onde todos devem ser filósofos, ninguém pode ser filósofo. E a filosofia mesma, que era para ser a cabeça do animal, acaba por transformar-se em um peru sem cabeça.

   É aqui que a filosofia cientificista demonstra seu poder de sedução. Embora tecnicamente exigente, ela não é filosoficamente exigente, o que atrai um número muito maior de pesquisadores: o especialista precisa conhecer apenas algum nicho de discussão junto a alguns dispositivos metodológicos e alguma ciência particular. Ou seja: o filósofo-especialista não precisa adquirir cultura geral, nem aprender história da filosofia e nem mesmo a história recente de seu domínio de investigação. Pessoalmente acho que isso pode ser produtivo em certos domínios periféricos ou servir de motivação para o cientista. Haack é ainda mais pessimista. Ela considera esse estado de coisas desastroso.

   Uma consequência, particularmente evidente em domínios centrais da filosofia (incluindo metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem) tem sido a fragmentação. Geralmente ela é causada pelo advento de inovações científicas, formais ou não, às quais os filósofos tentam acomodar as problemáticas filosóficas já existentes sem conseguir resolvê-las, multiplicando as alternativas e com isso a discussão.

   Um problema mais sério, mas que no fundo depende do primeiro, é o que Haack chamou de especialização precoce. O mecanismo é o seguinte: adotando alguns pressupostos prima facie questionáveis, os teoristas desenvolvem alguma improvável hipótese engraçada com base neles. Essa hipótese engraçada é suspeita e certamente não irá levar a lugar algum. Mas isso pouco importa. Ela possibilita a todos os participantes da seita entreterem discussões por certo número de anos. Finalmente, escreve ela, o tédio se instala e os participantes abandonam o problema, procurando outra hipótese engraçada com a qual possam começar o jogo novamente[12]. A situação agrava-se ainda mais quando estes novos “campos” de especialização começam a subdividir-se em outros, sem um limite em vista.[13] O grande contraste com a discussão sustentada em um verdadeiramente novo campo de especialização científica é que esse último é bem fundamentado, permitindo desenvolvimentos internos seguros, enquanto a especialização filosófica é feita sobre bases hipotéticas instáveis e incertas que exigiriam um trabalho sério e profundo capaz de questioná-las seriamente. Haack nota que quando se trata dos diferentes grupos de teóricos que trabalham na mesma problemática, cada grupo se orientando segundo suas próprias hipóteses engraçadas, esses grupos sequer discutem entre si. Isso não deveria surpreender. Afinal, não se pode tentar avaliar uma improbabilidade através de outra. Como resultado esses grupos formam o que Haack chamou de “panelinhas, nichos, cartéis e feudos”.[14]

   O exemplo que eu escolheria são as discussões entre os teóricos de referência na filosofia da linguagem atual, onde um grupo defende teorias metalinguísticas, outro predicativismos, outro semânticas bidimensionais, outro referencialismos e ainda outro neodescritivismos... Todos esses modismos teóricos devem estar no mínimo parcialmente errados se admitirmos ser possível construir alguma teoria abrangente capaz de resolver os problemas de uma vez por todas. No entanto, tentar fazer algo nessa direção e com tais dimensões seria embarcar em uma aventura difícil, perigosa e fora de qualquer grupo de interesse, a qual ninguém se submeteria em sã consciência. No entanto, é precisamente esse tipo de aventura que parece capaz de tornar possível o progresso filosófico.

   A conclusão é que, ao menos em seus domínios centrais, a filosofia contemporânea encontra-se estagnada. E a principal razão disso é que a atual racionalização e burocratização do sistema universitário é incapaz de lidar com algo essencial à filosofia, a saber, seu inevitável enraizamento no mundo da vida, tanto em seu componente de amplitude quanto em seu componente metafórico. Os componentes de abrangência especulativa e metafóricos (místico-estéticos em um sentido derivativo), indispensáveis à filosofia, sua natureza como produto do processo primário, resistem a ser substituídos por formas de fragmentação positivistas capazes de ser julgadas pelos modelos racionalizados de avaliação de sua prática a partir de resultados que pareçam avançar o domínio científico e técnico sobre a realidade. O resultado final desse processo é a imobilidade típica do escolasticismo. Se esse estado de coisas continuar, a filosofia, como observou Haack, acabará investigando quantos filósofos são capazes de dançar sobre a ponta de uma agulha.

 

5

 

Existe uma saída para essas atribulações? Também aqui Haack apresentou o que acredito ser a resposta certa: o que está faltando é uma filosofia mais propriamente abrangente. Wittgenstein escreveu sobre a necessidade de abrangência através de representações panorâmicas ou sinópticas (übersichtliche Dartellugen) de nossa gramática conceitual.[15] Ernst Tugendhat definiu a filosofia como a investigação das estruturas conceituais centrais responsáveis por nossa compreensão do mundo.[16]

   À abrangência Haack acrescenta um elemento heurístico que ela chamou de “busca por aproximações sucessivas”[17] a partir de uma vaga concepção inicial. Podemos comparar esse procedimento com a arte da pintura: começa-se com a concepção como um todo, uma vaga exibição de formas, cores, luzes e sombras... Gradualmente as formas são delineadas com mais precisão, erros são detectados e corrigidos, detalhes e tonalidades são adicionados e o que a princípio parecia um borrão incompreensível acaba sendo transformado em imagens claras e convincentes. Admite-se aqui afrescos, colagens e até mesmo grandes painéis, como tem sido o caso da obra de Habermas.

   Para justificar esse método Haack recorreu à noção de consiliência[18], que é o pressuposto heurístico, indispensável ao progresso da ciência, de que o mundo possui unidade. Se o mundo possui unidade, então as ideias científicas verdadeiras devem se entrelaçar. Isso significa que elas devem ser capazes de se reforçar umas às outras em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que corroboram e são corroborados pela teoria da evolução natural, que é corroborada por dados geológicos, etc.

   Haack aplicou a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Wittgenstein percebeu isso recorrendo a uma hipérbole: a dificuldade da filosofia consiste no fato de que, para um problema filosófico ser resolvido todos os outros problemas filosóficos também precisam ser resolvidos. De fato, na medida em que diferentes subáreas da filosofia se encontram interligadas entre si, as teorias desenvolvidas nessas subáreas precisam ser capazes de se reforçar heuristicamente. Isso pode significar que o filósofo deva adquirir primeiro suficiente cultura, científica, humanista e filosófica. A própria ciência pode ser chamada para ajudar em alguns casos, mas não para substituir. E a assunção da consiliência também aqui demanda o procedimento por aproximações sucessivas, tornando os diferentes espaços do painel gradualmente mais coerentes entre si. É óbvio que não podemos fazer isso à maneira de Kant e Hegel. Mas não vejo como não possamos fazer isso hoje ao nosso próprio modo.

 



[1] D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental (Rio de Janeiro: Zahar 1990), p. 398. Isso foi escrito em 1987.

[2] A racionalização e burocratização também podem estar atingindo a própria pesquisa científica, promovendo o progresso tecnológico em detrimento da pesquisa de base. Ver entrevista com Gregory Chaitin in Mindmatters.ai.

[3] Geralmente o termo é traduzido de forma menos literal como ‘desencantamento do mundo’. Ver Max Weber: “Wissenschaft als Beruf.In Schriften 1894-1922. (Stuttgart: Alfred Kröner Verlag 2002), pp. 474-511. Embora o termo tenha sido introduzido naquele artigo, a problemática foi tratada também em outros textos de Weber.

[4] Habermas (1986). „Entgegnung.“ A. Honnett, Joas H. (1986) Kommunikatives Handeln Frankfurt/M.: Suhrkamp, pp. 327-417.

[5] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo (Die protestantische Ethik und der „Geist“ des Kapitalismus). Trad. in Col. Os Pensadores n. 37 (São Paulo: Abril Cultural) p. 236.

[6] Max Weber. Political Writings. Ed. Peter Lassman (Cambridge: Cambridge University Press 1994), xvi.

[7]  Não quero com isso rejeitar o reducionismo in totum. Há pérolas de criatividade soltas por aí. Considero Saul Kripke reducionista com relação ao elemento cognitivista da linguagem, mas seu trabalho é de extrema importância.

[8] Todos os três são exemplos de cientismo apresentados por Susan Haack.

[9] Culture and Value (Oxford: Blackwell 1996), p. 18.

[10] “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 26.

[11] Não é assim só na filosofia. Há muitos anos ouvi de um sociólogo norte-americano a queixa de que não podemos mais produzir um Max Weber, porque não dispomos do tempo e liberdade quase ilimitados na aquisição de conhecimento dadas aos professores da universidade alemã do início do século XX.

[12] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration,” in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 24.

[13] Scott Soames. Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. II. Princeton: Princeton University Press 2003, vol. II, epílogo.

[14] Susan Haack, “Scientistic philosophy, No; scientific philosophy, Yes”. Philosophical Investigations, vol. 15, 2021, pp. 4-35, 24.

[15] Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen (Oxford: Blackwell 2009), I, sec. 122.

[16] Tugendhat, Ernst (1990). „Die Philosophie unter dem Sprachanalytischen Sicht“, in Philosophische Aufätze 1967-1990.

[17] Ibid. 30.

[18] Susan Haack (2014). “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger, Springer Verlag 2016, p. 15 ss.