17
JOHN SEARLE
SOBRE CONSCIÊNCIA E O PROBLEMA MENTE-CORPO
Há um gênero de pensadores cujas mentes brilham como
holofotes. Ao iluminarem os objetos visados, elas o fazem com tamanha intensidade
que parecemos vê-los à luz do dia. Essa qualidade, porém, acompanha-se de um
inconveniente, que é o de cegar-nos para tudo o que se encontra ao redor. Para o
bem e para o mal, Searle é um filósofo desse gênero. Por isso o breve resumo
que farei aqui das respostas originais que ele deu aos problemas fundamentais
da natureza da consciência e da relação mente-corpo será complementado por uma
ainda mais breve crítica, reveladora de algumas coisas importantes que ficaram
ofuscadas ou foram distorcidas.
Consciência como
o estar acordado, atento ao mundo ao redor
Para Searle ser consciente é estar acordado, atento,
percebendo o mundo. Segundo ele, a consciência começa quando acordamos, dura o
dia inteiro e volta a desaparecer quando caímos em um sono sem sonhos, ou
quando somos anestesiados ou morremos...[1]
Trata-se, aqui, da consciência no sentido mais amplo possível, aquele no qual
até mesmo um camundongo pode ser considerado consciente. Ele distingue esse
sentido do sentido de autoconsciência,
que se restringe quase que só aos humanos. A estratégia investigativa de Searle
no que concerne à consciência é a de selecionar e analisar as características
mais próprias da mente consciente.
A primeira
delas é o caráter qualitativo, a presença de qualidades fenomenais chamadas
tecnicamente de qualia. Não há definição
para os qualia. Mas quando uma pessoa
leva um soco no olho e fica vendo estrelas, elas são qualia; e quando ela arde de paixão, essa ardência é feita de qualia. Sensações e emoções conscientes
são, pois, qualidades fenomenais. Searle, contudo, vai além e sugere que “sentimentos
qualitativos” pervadem toda a consciência, inclusive estados
cognitivo-intencionais, como pensamentos e crenças. O pensamento “Dois mais
dois é quatro”, diz ele, soa diferente de “Deux
et deux fait quatre”, e “Dois mais dois é cento e
oitenta e quatro” soa estranho. Por conseguinte, pensamentos também possuem qualia.[2]
A segunda
característica da consciência é a subjetividade ontológica. Searle sugere
corretamente que há uma tendência errônea de se pensar que a subjetividade
ontológica implica em subjetividade epistemológica, e que por causa disso tudo
o que é subjetivo é irresgatável para a ciência. Ora, as duas noções são
independentes. Há coisas que são ontologicamente objetivas, mas
epistemologicamente subjetivas e vice-versa. Considere, por exemplo, as
avaliações acerca do governo do presidente Jucelino Kubitcheck. Embora a
qualidade do seu governo seja algo objetivo, a sua avaliação epistêmica é
subjetiva e incerta, pois falta consenso. Por outro lado, a avaliação de um
estado mental como a intensa dor abdominal em barra relatada por pacientes com
pancreatite aguda é epistemicamente objetiva, embora seja um estado
ontologicamente subjetivo. O mesmo se dá com a consciência: o fato de ela ser
um fenômeno ontologicamente subjetivo não a torna epistemicamente subjetiva.
Por isso mesmo ela pode ser objeto de investigação científica.
Uma
terceira característica da consciência é a unidade, o que Kant chamava de
“unidade transcendental da apercepção”: a consciência se apresenta sob a forma de
um campo unificado. Todos os meus estados mentais conscientes vêm ligados a uma
subjetividade única que os acompanha.
As
características acima apresentadas são as mais importantes, mas ainda há
outras. Uma delas é a intencionalidade, mesmo que nem todo o estado consciente
seja intencional. Outras características são ainda o humor, a distinção entre
centro e periferia, prazer e desprazer, situação, atividade e passividade,
estrutura gestáltica e a presença de um eu unificador da experiência.
Searle
também discute as duas principais abordagens da consciência, que são a de blocos de construção – a aproximação da
consciência somando as consciências parciais – e a de campo de consciência – a aproximação analítica, a partir da totalidade
da consciência. Ele prefere a última. Para mostrar a vantagem dessa abordagem
ele constrói a seguinte experiência em pensamento: Uma pessoa acorda em um
quarto escuro, sentindo apenas o peso de seu corpo. Mesmo assim, ela tem um completo
campo de consciência. Se a porta se abre, a luz se acende, ela ouve sons...
então não parece que uma nova consciência foi criada, como a abordagem dos
blocos de construção prevê, mas que o campo pré-existente foi modificado, ou seja,
que calombos e afundamentos se formaram no campo. A natureza da consciência
parece, pois, privilegiar a abordagem de campo de consciência.[3]
Relação mente-corpo
como confusão conceitual
Quanto ao problema da relação mente-corpo, Searle
busca uma solução intermediária entre o materialismo e o dualismo. O materialismo
está errado porque pretende uma redução completa da consciência ao
comportamento neuronal. Para isso seria necessária uma redução ontológica, ou
seja, uma demonstração de que a consciência é constituída pelo comportamento neuronal. Para Searle, porém, a
consciência não é constituída pelo comportamento neuronal, pertencendo a uma
ordem superior. Nós sabemos disso porque por definição ela é caracterizada pelo
acesso em primeira pessoa, enquanto o acesso que temos ao comportamento
neuronal é em terceira pessoa. Portanto, o materialismo é falso.
Mas o
dualismo também é falso, posto que a consciência é inteiramente causada pelo comportamento neuronal.
Embora não sendo ontologicamente redutível ao material, pensa Searle, ela é causalmente
redutível a ele. Como consequência, ela não é algo metafisicamente diverso,
como a res cogitans cartesiana.[4]
Problemas
Instigantes como o são, as idéias de Searle
encontram-se abertas às seguintes objeções:
1. O argumento para demonstrar
que os elementos fenomenais-qualitativos chamados de qualia pervadem todo o mental precisa ser mais bem qualificado. Parece
que na verdade, os qualia se
restringem a sensações e emoções. Claro que “Deux et deux fait
quatre” soa diferente de “Dois mais
dois é quatro”. Mas a expressão linguística do pensamento não deve ser
confundida com o pensamento enquanto tal. É ela e não o pensamento que produz
uma reação sensório-emocional diferente quando expressa em línguas diferentes.
Frege já havia distinguido entre pensamentos de um lado e iluminações (Beleuchtungen) de outro. Iluminações são
acompanhantes psicológicos não-convencionais da expressão linguística dos
pensamentos, nada tendo a ver com eles. Estados cognitivo-intencionais são essencialmente
representativos e dependentes de articulações conceituais; a sua associação com
os qualia, quando ocorre, é
contingente.
2. O conceito de consciência
analisado por Searle é o daquilo que D. M. Armstrong chamava de consciência perceptual – o estar acordado, alerta, percebendo o mundo ao redor
e o próprio corpo – e não o do que esse mesmo autor chamava de consciência introspectiva – o conhecimento reflexivo dos próprios estados
mentais. Essa última constituía para Armstrong (e hoje também para filósofos
como D. M. Rosenthal, com a sua defesa da idéia de que a consciência depende da
formação de pensamentos de ordem superior) o conceito mais relevante de consciência,
distintivo do ser humano e de alguns animais superiores. Estamos, enquanto
filósofos, mais interessados na consciência humana (que é admitidamente uma
autoconsciência), mas não podemos dar conta de suas peculiaridades investigando
um conceito de consciência que é tão vasto a ponto de incluir camundongos e
lagartos entre os seres que a possuem.[5]
3. K. T. Maslin objetou contra Searle
que não é rigorosamente correto dizer que estados neuronais causam a consciência.[6]
Posso dizer (usando um exemplo do próprio Searle) que certa combinação de
moléculas causou a explosão, mas isso é uma maneira a rigor incorreta de dizer
que essa combinação constituiu a explosão.
Da mesma forma, o mais correto seria dizer que alguma combinação de
comportamentos neuronais constitui a
consciência, não que a causa. Searle evita esse modo de falar porque ele o
comprometeria com o materialismo.
4. A solução de Searle para o
problema mente-corpo parece-me claramente inconsistente. Quando ele afirma que
a consciência pertence a uma ordem
superior, não se constituindo de comportamento neuronal, embora sendo causada pelo último, ele está
inadvertidamente defendendo o que tem sido chamado de dualismo de propriedades, uma conclusão já chegada
por Thomas Nagel[7]. Segundo
essa doutrina, a propriedade do mental é emergente
no sentido de que embora ela dependa de estados neurofisiológicos, não se reduz
a eles, pertencendo, pois, a um novo domínio ontológico. Searle, no entanto,
rejeita o dualismo. Ele afirma que não existe um reino do mental, metafisicamente
diverso do físico. Ora, aqui reside o que me parece ser a grande incoerência de
sua “solução”, pois ele também afirma que o mental não é ontologicamente redutível ao físico. Ora, como o metafísico
implica no ontológico (se não for a mesma coisa), se o mental não é
ontologicamente redutível ao físico então ele deveria pertencer a um reino
ontologicamente (ou metafisicamente) diverso e Searle deveria admitir que é um
dualista de propriedades.[8]
[1] J. R. Searle: The Rediscovery of Mind (MIT-Press:
Cambridge Mass. 1993), p. 84.
[2] J. R. Searle: Consciousness and Language (Cambridge University Press: Cambridge
2002), p. 40.
[3] J. R.
Searle: Mind: A Brief Introduction
(Oxford University Press: Oxford 2004), pp. 154-5.
[4] J. R.
Searle: Mind: A Brief Introduction,
p. 128. Meu resumo aqui é baseado
nesse texto, que é o mais atual. Ver também The Rediscovery of Mind, cap. 5, e Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World (Basic Books:
New York 1998), cap. 2.
[5] D. M. Armstrong: “What is Consciousness?”,
[6] K. T. Maslin: An Introduction to Philosophy
of Mind (Polity Press: Cambridge 2001), cap. 6.
[7] Ver Thomas
Nagel: Other Minds: Critical Essays
(Oxford University Press: Oxford 1995) p. 96.
Nenhum comentário:
Postar um comentário