METAFÍSICA: SENTIDOS PRÓPRIOS E IMPRÓPRIOS
Quando queremos testar a
coerência de um conceito, uma estratégia prometedora pode ser a de investigar
as suas origens. No caso do confuso conceito contemporâneo de metafísica essa
estratégia é particularmente recomendável, visto que podemos identificar a sua
origem de maneira precisa no título dado a uma das obras de mais profunda e
duradoura influência em toda a tradição filosófica ocidental: a Metafísica
de Aristóteles.[1]
I
Como é sabido, o grupo de
quatorze manuscritos que constitui a Metafísica não foi assim denominado
pelo próprio Aristóteles. Ele tinha um outro termo para o que estava tentando
fazer, que era ‘filosofia primeira’, a ciência buscada, por vezes também
chamada de ‘teologia’. Historicamente sabemos que após a morte de Aristóteles
em
Não
obstante tais incertezas, sabendo que originariamente a metafísica foi um outro
nome para a filosofia primeira de Aristóteles, a questão se desloca para o que
este filósofo queria dizer com esta última expressão. As definições de
Aristóteles para a filosofia primeira são pelo menos quatro:
(a) A ciência das causas ou princípios
primeiros.
(b) A ciência do ser enquanto
ser.
(c) A indagação sobre a substância.
(d) A indagação sobre Deus e a substância
suprasensível.
A ciência das causas ou
princípios primeiros é a investigação da arché, tal como foi intentada
pelos pré-socráticos, que buscavam um princípio físico último, causador e
sustentador do universo, ou por Platão, com a sua doutrina das idéias, as quais
teriam a função de condicionar toda a realidade. A ciência do ser enquanto ser
é a que tem a sua origem na investigação ontológica da physis em
Parmênides, assim como a investigação ontológica das idéias
Aristóteles achava que a filosofia primeira
é, dentre as ciências, a mais nobre e superior, pois ela se faz na
independência de qualquer aplicação prática, sendo o motivo para a investigação
metafísica um puro e desinteressado desejo de saber, advindo daquilo que o
homem tem de mais essencial, que é o uso da razão e da inteligência. Para
Aristóteles, ao refletir sobre questões metafísicas o homem exercita virtudes
contemplativas que o tornam semelhante aos deuses.
São as várias definições que Aristóteles
dá para a metafísica realmente complementares umas com as outras? Ao menos sob
um ponto de vista imanente ao sistema aristotélico, parece que sim, mesmo que
essa complementaridade seja até mais questionável do que as próprias definições
e que hoje ela se nos afigure inverossímil. Assim, na interpretação de Giovanni
Reale,[4] a
indagação sobre (a) as primeiras causas e princípios deve conduzir-nos a (d)
Deus. A indagação sobre (b), o ser enquanto ser, nos leva à questão dos vários
sentidos do ser (ser necessário e acidental, ser verdadeiro e falso, ser como potência
e ato etc.). Este último questionamento nos conduz a (c), ou seja, ao ser por
si mesmo, o ser como substância. A indagação sobre (c), por fim, nos conduz à
questão de se saber se só existem as substâncias sensíveis ou se existem também
as substâncias suprasensíveis ou divinas, ou seja, (d): outra vez a indagação
sobre Deus, o primeiro movente imóvel e as 55 inteligências puras, moventes
imóveis dos céus.
II
Em que essas idéias,
provenientes de uma concepção de mundo tão distante da nossa, podem nos ajudar a
distinguir e avaliar os sentidos contemporâneos da palavra ‘metafísica’? Quero
sugerir que podemos distinguir naquilo que presentemente é chamado de
metafísica ao menos cinco sentidos mais importantes, sendo possível
demonstrá-los como tributários de sentidos aristotélicos. Deles somente o
primeiro é plenamente justificado.
(1) O primeiro sentido é tributário da
definição aristotélica de metafísica como investigação do ser enquanto ser e, também, possivelmente como
investigação da substância. É tendo em
mente um sentido similar que M. J. Loux formulou a seguinte definição de
metafísica:
Ela
procura identificar as mais universais características da realidade ou do ser;
e central a esse projeto é a identificação das categorias ou espécies mais
gerais sob as quais as coisas caem, a especificação do que distingue esses
tipos ou categorias uns dos outros, e a identificação dos tipos de relação que
ligam objetos de diferentes categorias entre si.[5]
Em outras palavras: a
metafísica objetiva investigar a natureza geral da realidade,
ou seja, os componentes mais genéricos do mundo, presentes em
seus mais diversos níveis, e os modos como eles se relacionam entre si.[6] (Ou,
em uma exposição metalinguística, a investigação dos conceitos mais gerais
sobre o mundo e das inter-relações entre esses conceitos.) Os principais
candidatos a componentes comuns a todos os domínios e níveis de objetividade
são coisas tais como a propriedade, a
relação, a existência, o número, o espaço e o tempo, a necessidade e a possibilidade, os particulares, o fato, o estado de coisas, o evento, o processo, a identidade e
a mudança, a causação. Os conceitos referentes a tais componentes são tão universais
que se aplicam a entidades pertencentes a um domínio de objetividade muito mais
amplo do que o dessa ou daquela ciência particular. Por exemplo: tanto a física
quanto a química, a biologia, a psicologia, a sociologia e a história, estudam
classes de objetos, os quais podem existir ou não, ser necessários ou não, juntamente
com as suas propriedades e relações, além de eventos espaciotemporais,
processos, causas etc. Embora uma ciência formal como a matemática não
investigue eventos e processos causais, ela ainda assim investiga objetos
abstratos como números, bem como as suas propriedades e relações. Os objetos de
investigação da metafísica, portanto, não podem ser os mesmos que os das
ciências particulares, nem empíricas nem formais. Eles dizem respeito a uma
forma de objetividade extremamente abrangente, que perpassa outros domínios da ciência e que pode ser vista como constitutiva
de um arcabouço ontológico comum ao
campo do conhecimento empírico (nos casos da causalidade, dos objetos
materiais, do espaço e do tempo, dos estados de coisas, do evento, do
processo...) e em parte, ao menos, abrangendo tudo, até mesmo o campo do
conhecimento formal (como no caso da propriedade, da relação, da existência, do
número, da necessidade e da possibilidade).[7]
Embora os diversos sentidos aristotélicos da
palavra ‘substância’ (ousia) sejam obscuros e discutíveis, quero notar
que a investigação do que sejam as entidades individuais – principalmente do
que sejam os objetos materiais – é intrinsecamente associada à investigação da
substância. A investigação da natureza do objeto material enquanto tal é mais
abrangente que a feita pelas ciências particulares, pois os campos de estudo
das últimas envolvem apenas certas classes de objetos materiais, como a das
partículas elementares na física, a das substâncias compostas na química, a dos
seres vivos na biologia etc. Contudo, a investigação metafísica do que é um
objeto material enquanto tal é mais vasta. Ela atravessa os campos
hierarquizados das diversas ciências empíricas, o que não significa que os
transcenda, que se torne meta-empírica, como historicamente se acreditou. A
investigação metafísica pode muito bem ter um fundamento empírico, até mesmo no
campo mais abstrato das ciências formais, embora no último caso ele deva ser
completamente geral.
Nesse primeiro sentido a metafísica se
confunde com a ontologia, definida
desde Parmênides como o estudo do Ser, incluindo o velho problema dos
universais. Ele é também o sentido cujo resgate é indispensável, sendo mérito
de Aristóteles tê-lo divisado claramente pela primeira vez. Trata-se, pois, da
metafísica no sentido mais próprio, essencial por ser o único capaz de delimitar
uma nova área do conhecimento. Os outros quatro sentidos da palavra
‘metafísica’ que distinguirei a seguir são em meu juízo mais ou menos espúrios,
tendo sido associados ao primeiro por razões contingentes.
(2) O segundo sentido a ser destacado é o
que herda a noção aristotélica de metafísica como investigação do
suprasensível como Deus, a assim chamada teologia.
Todavia, nesse sentido a metafísica acabou por ser transformada em filosofia da
religião, que hoje se tornou uma área vivamente discutida da filosofia, mas
completamente separável da metafísica no sentido próprio, pois sem amplitude de
escopo, dado que em geral referente a um particular único, que é Deus. Reduzida
a isso, ao menos, a teologia não pode ser chamada de metafísica.
(3) Um terceiro sentido é o que se deriva
da primeira definição aristotélica, segundo a qual a metafísica é a ciência das
causas e princípios primeiros, investigada pelos pré-socráticos.
Trata-se da metafísica como cosmologia. Todavia, parece que esse terceiro
conceito acabou por ser absorvido pela física e astronomia contemporâneas, não
pertencendo mais propriamente à filosofia, a menos que ele acabe sendo
resgatado dessas ciências para ela (a cosmologia contemporânea tornou-se
altamente especulativa).
(4) Há ainda o sentido que herda o caráter
especulativo, transcendente, da metafísica aristotélica como teologia. Trata-se
da filosofia especulativa que busca um conhecimento que de alguma forma pretende
ir além daquilo que é possível saber
através da experiência sensível. Esse é o sentido negativo, geralmente
derrogatório do termo, proposto por Kant em sua filosofia crítica. Contudo,
tratamentos especulativos sérios da natureza das coisas, como o antirrealismo
com relação ao mundo externo e o libertarismo com relação ao livre arbítrio,
podem ser considerados herdeiros desse sentido, tratando-se aqui de algo
similar ao que P. M. Strawson chamou de metafísica revisionária, que busca
propor especulativamente uma nova e supostamente melhor maneira de conceber o
mundo.[8]
(5) Há, finalmente, um sentido difuso
da palavra que eu gostaria de chamar de investigação das “big questions”.
Qualquer problema realmente cabeludo da filosofia, na medida em que for possível
vinculá-lo a um ou mais dos sentidos anteriores, é apto a ser chamado de
metafísico. É assim com o problema do livre arbítrio, uma vez que ele tem relações
com a natureza da realidade – pelas questões do determinismo e causalidade. É
assim com problemas teológicos – por questões como a do fatalismo, da
onipotência divina etc. É assim também com os problemas da chamada metafísica
da mente, como o da natureza da consciência e da relação mente-corpo, posto
haver aqui um resquício de questões sobre tipos de propriedades e de
substâncias na suposta transcendência do mental sobre o físico. O mesmo pode
ser dito (embora somente alguns poucos cheguem tão longe) de problemas
filosóficos quase intratáveis, como o da indução e o do mundo externo, ainda
que eles sejam essencialmente epistemológicos. Esses problemas são chamados de
metafísicos por se conectarem com a vasta questão da natureza da realidade e
por uma eventual relação com questões de âmbito teológico ou transcendente... Também
isso se pode dizer das questões morais fundacionais, daquilo que Kant chamou de
fundamentos metafísicos da moral. Até mesmo uma antropologia filosófica que
investiga em grande estilo coisas como o sentido da vida ou a condição humana
(como a de Heidegger em Ser e Tempo),
também pode ser dita metafísica no sentido de se colocar “big questions” sobre
os únicos seres capazes de refletir o universo e a si mesmos.
[1] Aristóteles: Metaphysics,
in Jonathan Barnes (ed.), The Complete Works of Aristotle (Princeton
University Press, Princeton 1984), vol. II.
[2] Friedo Ricken: Philosophie
der Antike (Kohlhammer: Stuttgart 1988), p. 112.
[3] Giovanni
Reale: Aristóteles: Metafísica – Ensaio introdutório, texto grego com
tradução e comentário de Giovanni Reale (Loyola: São Paulo 2001), vol. 1,
p. 28 ss. Reale se baseia
principalmente nos estudos de P. Moraux, que teria demonstrado que o catálogo
anônimo no qual se baseia a informação de que a metafísica viria depois da
física apresenta uma ordenação invertida, e que há razões para se crer que a
metafísica estaria originariamente situada, não após a física, mas após obras
de matemática (p. 29). Já W. C. Guthrie, evitando tomar partido, enfatizou a
ausência de acordo entre os scholars
sobre a interpretação correta. Ver Guthrie: The
History of Greek Philosophy (Cambridge University Press: Cambridge 1981),
vol. VI, p. 65.
[4] Ver Reale, vol. 1, cap. 2. Ver também, do
mesmo autor, História da Filosofia Antiga (Loyola: São Paulo 1992) vol. III, p. 337.
[5] M. J. Loux (ed.), Metaphysics: Contemporary Readings (Routledge: London 2001), p. ix (prefácio). Ver também o capítulo introdutório do excelente livro de M. J. Loux: Metaphysics: a Contemporary Introduction (Routledge: London 1998).
[6] Como escreveu G. E. Moore, em uma definição mais apropriada
para a metafísica do que para a filosofia em geral: “A filosofia, entre outras
coisas, é uma tentativa de dar uma descrição geral das mais amplas classes de
coisas no universo e do modo como elas estão relacionadas umas às outras”. G. E. Moore: “What
is Philosophy?”, in Some Main Problems of
Philosophy (George Allen & Unwin: London 1953) p. 27.
[7] Mas que dizer de objetos da filosofia da linguagem, como o significado,
a verdade, o fato fazedor da verdade... que também perpassam as mais variadas
ciências?
[8] P. F. Strawson:
Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics (Methuen: London 1959),
introdução. Segundo Strawson, a metafísica
pode ser descritiva ou revisionária. A primeira “satisfaz-se em descrever a estrutura efetiva de nosso
pensamento sobre o mundo”, enquanto a segunda tem como objetivo “desenvolver
uma melhor estrutura”. Strawson considera Descartes, Leibniz e Berkeley
criadores de metafísicas revisionárias, enquanto Aristóteles e Kant seriam para
ele defensores de metafísicas descritivas. Conquanto restritas à investigação
da natureza geral da realidade, tanto a metafísica revisionária quanto a descritiva
podem ser também assimiladas ao primeiro conceito de metafísica por nós
considerado, posto que tanto a descrição quanto a revisão da estrutura de nosso
pensamento acerca do mundo – se reinterpretada como a descrição e revisão da estrutura
dos tipos de coisas mais genéricos constitutivos da realidade e das relações
entre eles (ou de seus conceitos e de suas relações, usando uma metalinguagem).
Ver
Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (University Press of America: Langham
2002), cap. 2.
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