21
O PARADOXO DO EU
ELUSIVO
Conheço tudo o que se concebeu.
Só uma coisa não conheço,
e essa coisa sou eu.
François
Villon
O que chamarei de ‘eu elusivo’ (elusive I)[1], ou
simplesmente de ‘Eu’ com inicial maiúscula, é caracterizado pela sua inacessibilidade
à experiência interna ou externa. Se o conhecimento depende sempre da
experiência sensível, então esse Eu é incognoscível. Mas se esse Eu é
incognoscível, como é possível que alguma espécie de existência lhe possa ser
afirmada? Tal é o que pode ser chamado de o paradoxo do eu elusivo.
Há,
certamente, várias maneiras de se contornar a dificuldade. Uma delas é sugerir,
como Kant, a existência de uma faculdade de apercepção,
através da qual o Eu se pensa a si mesmo, ainda que seja incapaz de se intuir
através de um sentido interno.[2] Não
é claro, contudo, como possa se aplicar essa faculdade de apercepção, o que
torna essa solução suspeita. A alternativa para a qual pretendo chamar atenção
aqui consiste em desenvolver uma concepção do eu fenomenal ou empírico capaz de
tornar desnecessária a suposição da existência de um eu elusivo entendido como
um sujeito inacessível à experiência. Antes de considerar essa alternativa, porém,
quero examinar criticamente duas razões pelas quais parece fazer-se necessária
a admissão de um eu elusivo.
Origem da idéia
de um eu elusivo na noção de substância
Uma primeira razão para a suposição da incognoscibilidade
do Eu é a seguinte. Sempre que temos ou parecemos ter acesso introspectivo a
nós mesmos, o que nos é apresentado é apenas um feixe de conteúdos mentais que
se sucedem constantemente uns aos outros. Mas esses conteúdos mentais requerem
algo que os produza e suporte; eles demandam a existência de um sujeito que seja
o seu portador. Como notou Frege:
Se não há nenhum portador das
representações, então não há também nenhuma representação; pois representações
necessitam de um portador, sem o qual elas não podem existir. Onde não há soberano,
não há súditos...[3]
A questão que se levanta é: por que precisamos supor a
existência de um portador desconhecido? Não seria possível identificar o eu com
base no próprio feixe de estados mentais, ou seja, em termos de disposições
para, dadas certas circunstâncias, manifestar certos estados mentais? Traços de
caráter, por exemplo, são disposições para se ter certos estados mentais na
vigência de circunstâncias apropriadas para o seu aparecimento. Se for assim a
imagem não será a de um soberano e de seus súditos, como pensou Frege, mas sim a empregada por Owen
Flanagan, de um bando de pássaros que voam em formação, sem um lider
permanente.[4] Por certo tempo um ou alguns pássaros tomam a liderança, depois outros pássaros
tomam o seu lugar, enquanto os primeiros ficam atrás e alguns até mesmo se
distanciam da formação. Nem por isso o bando deixa de constituir uma unidade.
Buscar uma resposta a essa questão
conduz-nos à raíz histórica da tese de que o Eu é um portador inacessível do
que é experienciado. O historiador da filosofia responderá a tal questão apontando
para o fato de que no presente caso a exigência de um portador nasce de um
paralelo feito entre o Eu, como objeto último do conhecimento subjetivo, e a
substância,
como objeto último do conhecimento objetivo. Um filósofo como Locke, por exemplo,
justificou a atribuição de propriedades a um objeto físico através da suposição
da existência de um “suporte” incognoscível dessas propriedades; um substrato
por ele chamado de substância material.[5] Paralelamente
a isso, a hipótese de um eu elusivo emerge da noção cartesiana de substância pensante, mais tarde reinterpretada
em termos de Eu transcendental, de Eu
puro, de Egoidade.
Objetos e
sujeitos como feixes de propriedades instanciadas (tropos)
Assim como o objeto material não precisa ser
assimilado à sua substância material incognoscível, o sujeito, o eu, não precisa
ser assimilado a um elusivo substrato seu. O argumento a favor dessa idéia pode
ser dividido em duas partes.
Consideremos a primeira parte. Para alguns, e certamente para nosso bom senso
comum, o conceito de substância material incognoscível tem parecido vazio e sem
base intuitiva. Se tenho nas mãos uma barra de chocolate, o próprio objeto
parece constituir-se daquilo que posso tocar, pressionar, ver, saborear etc. que
tem certas propriedades físicas como massa (resistância à aceleração) e não de um
suporte em princípio inexperienciável.[6] É
por isso razoável a sugestão de que as propriedades de um objeto físico sejam tudo
o que o de algum modo o constitui e que ele esteja para elas como a alcachofra
para as suas folhas: se retiramos as folhas, nada mais resta. Essa foi a sugestão
de Bertrand Russell, ao propor que objetos no mundo físico consistem na verdade
de coleções de sense-data que ocorrem
separadamente e seriadamente.[7] A
mesma idéia pode ser formulada no interior de diferentes concepções do acesso à
realidade empírica. Assim, o uso do conceito de sense-data nos tenta a entender os dados experienciados, em uma teoria
fenomenalista da percepção, como sendo subjetivos, o que facilmente nos
compromete com o idealismo. Por isso pode ser mais indicado reformular essa “teoria
da alcachofra” dentro dos limites de uma concepção realista do conhecimento
perceptual, caso no qual, parafraseando Russell, podemos dizer que na sequência
de suas fases temporais um objeto físico f
pode ser descrito nos seguintes termos:
f =
Uma série S de conjuntos de
propriedades instanciáveis (de tropos) P1, P2... Pn, experienciáveis sob
circunstâncias determinadas na série ordenada de intervalos de tempo e regiões
espaciais correspondentes < t1e1, t2e2... tnen>
As propriedades instanciáveis (ou tropos) são aqui elementos
constitutivos de f. A exigência de
uma série S de conjuntos de
propriedades instanciáveis é necessária, uma vez que um mesmo objeto físico pode,
em tempos diferentes, apresentar-se através de diferentes conjuntos de propriedades.
A concepção é plausível, mesmo que carente de maior desenvolvimento.
Passemos
agora à segunda parte do argumento. Ela consiste em importar uma estratégia de solução
similar para o problema da natureza do sujeito: se as razões para a suposição
da existência da substância material como substrato elusivo não são decisivas,
também não o são as razões para a suposição da existência do eu elusivo. A teoria
da alcachofra seria então aplicada ao assim chamado eu fenomenal ou empírico. Também
Russell chegou a sugerir que o “ego” pudesse ser analisado como uma série de
eventos, os quais incluem as aparências que lhe são consideradas constitutivas.[8]
Nesse caso, o eu empírico poderá ser
basicamente concebido como um sistema de
propriedades (tropos) mentais disposicionais, atualizáveis sob condições
adequadas. Tais propriedades
serão subjetivamente experienciáveis quando atualizadas como estados ou eventos
mentais.
Antes de desenvolvermos
esse ponto é de vantagem distinguir três sujeitos empíricos que sucessivamente
se incluem. O primeiro é o que costuma ser chamado de pessoa, ou seja, um duo de propriedades físicas (intersubjetivamente
observáveis) e mentais (introspectivamente observáveis). Se abstraírmos as propriedades
físicas e considerarmos apenas as mentais, chegamos a um eu psicológico. Este é o eu chamado de fenomenal ou empírico. Ele é
a variedade dos traços psicológicos que reconhecemos como característicos de certa
pessoa. Mas isso não é tudo. Há o que poderia ser chamado de o eu pensante (na verdade o eu cartesiano),
o qual é a consciência indeterminada que alguém tem de estar tendo
experiências, de estar consciente. Essa consciência pode bem ser a de uma parcela
do eu psicológico. Para mostrar a plausibilidade dessa sugestão, podemos imaginar
uma experiência em pensamento que isole o eu pensante. Imagine que alguém
desperte na escuridão tendo a aterradora experiência de não saber mais onde se
encontra, nem quem é, nem como é, nem mesmo como se chama. Mesmo assim, parece que
essa pessoa ainda pensa em uma linguagem, reconhece um mundo objetivo e se reconhece,
por oposição, como sendo alguém,
alguém que ela não sabe quem é. Diríamos que em tal caso a pessoa possui a consciência
atual e indeterminada de ser um “sujeito”, de possuir um eu que permanece e se
opõe às sequências de entidades objetivas que ela identifica e reidentifica na
experiência. Uma primeira maneira de esclarecer este eu pensante é considerá-lo,
como fez Kant, a unidade sintética da autoconsciência, a qual pode ser interpretada
como um eu elusivo. Mas essa explicação não é impositiva, nem precisaria sê-lo
para o próprio Kant, que o via como a condição formal da unidade da experiência. Não é necessário que o eu do caso
de amnésia seja “transcendental”. Pois o eu atual também pode ser esclarecido
como um modo imediato e indeterminado de auto-experienciação do próprio eu
fenomenal. Pois digamos que a pessoa de nosso exemplo aos poucos se lembre
de onde está, de quem ela é, de como se chama. Ela não parece através disso ganhar
acesso a um outro eu que não o seu eu atual. Ela se verá como determinando o
que estava indeterminado, como incluindo pouco a pouco a sua consciência de quem ela é na sua consciência de que ela é. Se o eu pensante for apenas uma
forma não-analisada do eu psicológico, que é a parte da pessoa cujo acesso não
é público, o que resta para ser analisado é apenas o eu psicológico, fenomenal,
empírico.
Uma razão lógica
para a admissão de um eu elusivo
Consideramos já uma primeira razão para a suposição da
existência do eu elusivo, que é a necessidade de um portador das representações.
Em seguida vimos que a idéia de portador, em um paralelo com a de substância
material, é epistemologicamente suspeita. Isso nos sugere que nossos próprios estados
ou conteúdos mentais, possam ser entendidos em termos de sistemas de
características constitutivas de um eu psicológico que não requer nenhum sujeito
verdadeiramente incognoscível. Há, não obstante, uma segunda razão importante
para a suposição da existência de um eu elusivo, que é de natureza lógica e que
precisa ser considerada.
Quando o Eu –
quer como eu atual ou como eu psicológico – na qualidade de sujeito, se
experiencia a si mesmo, o que ele experiencia é um objeto, não podendo ser o
caso, portanto, que o objeto seja ele mesmo! Também esse argumento foi
claramente apresentado por Frege. Eis o que ele escreveu:
Com a representação da palavra
‘Eu’ posso, em minha consciência, associar certa representação. Mas então ela é
uma representação junto a outras representações e eu sou o seu portador, como
sou o portador das outras representações. Tenho
então uma representação de mim, mas eu não sou essa representação.[9]
Como sujeito último da experiência, o eu elusivo
permanece sempre fora da experiência, da mesma forma que o olho que vê
permanece sempre fora do seu campo visual, para usar a metáfora
wittgensteiniana[10].
Chamando o sujeito de S e o objeto de O, a relação pode ser expressa como S
< O. Daí se segue que S não pode experienciar-se a si mesmo como tal. Mesmo que
o eu pudesse duplicar-se segundo a fórmula S < So, o sujeito observado, So,
não seria mais o mesmo que o sujeito S, que observa. Com efeito, parece fazer
parte de nossa gramática do conceito de experiência que aquilo que é experienciado
deva ser inevitavelmente diverso daquilo que tem a experiência, do sujeito da
experiência: a experiência não se autoproduz. (Uma objeção à fórmula fichteana
“Eu = Eu”, na qual o Eu se põe (setzt sich)
a si mesmo, seria a de que ela estaria contradizendo esse pressuposto.)
Como o eu empírico
pode se auto-objetivar
Eis como podemos responder à objeção recém exposta. É
verdade que não podemos supor que o eu possa se auto-experienciar como um todo:
para tal ele teria de duplicar-se, deixando, em sua cópia, de ser ele mesmo, ou
encontrar um meio de “saltar sobre si mesmo”, duplicando-se sem deixar de ser
ele próprio, o que é impossível. Contudo, parece perfeitamente possível
concebermos o eu empírico suposto pela teoria da alcachofra como uma totalidade
de propriedades capaz de representar partes
de si mesma como objeto. Podemos conceber o eu empírico ou fenomenal como
um agregado de propriedades mentais que é
capaz de dobrar-se sobre si mesmo, reconhecendo em cada momento em que se tem
por objeto alguma parte de si, ainda que nunca lhe seja possível em algum momento
reconhecer a si mesmo em sua totalidade. Essa possibilidade parece vedada,
é certo, ao eu elusivo, não só porque ele escapa à cognição, mas até mesmo pelo
fato de que o seu conceito se encontra historicamente associado ao conceito metafísico
de alma, que era concebida como simples e idêntica: se o Eu é simples e
idêntico então ele não pode experienciar partes de si mesmo. Contudo, o resultado
é muito diferente se, usando a fórmula S > So, o sujeito experienciado So se
deixa interpretar como parte de S. Nesse caso não precisamos mais supor
que esse sujeito seja um eu elusivo, o que torna a hipótese da existência de um
eu elusivo supérflua.
Para esclarecer essa sugestão, consideremos
uma analogia. Imaginemos um corpo humano como o “sujeito” do sentido táctil.
Esse corpo pode experienciar tactilmente não só outros objetos físicos, mas
também a si mesmo. Ele só não pode experienciar-se em algum momento em seu todo.
Mas ele poderá sempre experienciar tactilmente ao menos partes de si mesmo. Uma mão pode experienciar a face, o pé, o
ombro. E o ombro pode experienciar a mão e assim por diante. Geralmente entendemos
que a parte do corpo que tem a experiência é a que movemos sobre a parte
experienciada, atentando para as sensações que então temos. Assim, sucessivamente,
o corpo inteiro pode ser por partes tatilmente experienciado. É dessa maneira
que um cego, por exemplo, ganha uma idéia de seu próprio corpo. Ora, se o corpo
pode se auto-experienciar através dele mesmo sem se tornar outra coisa além dele
mesmo, por que não o eu? Por que não admitir que o eu seja capaz de inspecionar
partes de si mesmo através das partes que não está inspecionando?
Em outras palavras:
o eu empírico pode ser concebido como um sistema de propriedades autopsíquicas
recorrentes, passíveis de serem agrupadas em uma classe, digamos {P1, P2, P3...
Pn}. Se supusermos que ele é capaz de se ter parcialmente como objeto de representação, então esse eu empírico constituído
por {P1, P2, P3... Pn} pode dobrar-se sobre si mesmo de modo a, digamos, como {P1...
P3... Pn}, objectivar a sua propriedade P2, o mesmo podendo ser feito, em
outras ocasiões, com P1, com P3 etc. O resultado é que, pela adição de experiências
de autoconsciência parcial, o eu empírico torna-se capaz de construir gradualmente um quadro mnêmico mais
e mais satisfatório daquilo que essencialmente o constitui, um quadro
certamente sujeito a modificações ou acréscimos, tanto quanto ele próprio.
A
sugestão que acabo de expor é favorecida pela nossa experiência cotidiana. É um
fato que é mais difícil nos conhecermos a nós mesmos do que conhecermos os
objetos que nos cercam. Há pessoas não-reflexivas que conhecem muito pouco de
sua própria psicologia, ainda que saibam muito bem fazer as distinções de ordem
psicológica necessárias à vida cotidiana. Há também pessoas mais ou menos reflexivas
que têm percepções distorcidas de si mesmas. É improvável que qualquer ser humano
possa se conhecer muito profundamente, em todos os seus segredos inconscientes,
como qualquer psicoterapeuta se apressaria
Se essas
considerações são corretas, então o eu é capaz de se experienciar a si mesmo
sem deixar de ser ele próprio, de modo que a hipótese de um eu elusivo adicional
deve resultar de uma confusão obsoleta, originariamente procedente de um
entendimento inadequado da natureza do sujeito como entidade simples e
indivisível, atuando secretamente como um acompanhante singular e inefável do
contínuo fluxo de eventos fenomenais.
Essas sugestões
são vagas e incertas. Mas isso não é uma limitação tão séria, uma vez que em
filosofia o pressuposto incerto – não universalmente aceito – é inevitável. O
que mais importa, se algo aqui tem importância, são os caminhos argumentativos.
Importa reconhecer que se com os pressupostos aqui mantidos pode ser mostrada
uma forma quase trivial de dissolução do paradoxo do eu elusivo, isso parece falar
algo a favor deles – o que não deixa de ser significativo se considerarmos que
em filosofia o braço da balança com a qual pesamos as nossas crenças só poderá
vir a mover-se, para um lado ou para outro, como efeito de uma sucessiva adição
de pequenas evidências.
[1] Traduzo como ‘elusivo’ a
palavra inglesa ‘elusive’, que significa algo que ilude, engana, foge ao
acesso.
[2] Immanuel Kant: Kritik
der reinen Vernunft (Crítica da Razão
Pura) B-153. Edmund Husserl é outro filósofo que defendeu a existência de
um Eu elusivo. Ver seu livro Ideen zu
einer reinen Phänomenologie und Phänomenologischen Philosophie (De Gruyer
2002).
[3] Gottlob Frege: “Der Gedanke”
(“O pensamento”), pp. 71-72 (paginação original); tradução portuguesa publicada
como suplemento em C.F. Costa: Estudos
Filosóficos (Tempo Brasileiro-Edufrn: Rio de Janeiro 1999).
[4] Owen
Flanagan: Consciousness Reconsidered (MIT-Press: Cambridge Mass. 1992),
pp. 191-2.
[5] John Locke: Na Essay concerning Human
Understanding. Book II, Ch. XXIII, 1-2.
[6] Em oposição a isso Roderick Chisholm, entre outros, argumentou que a
idéia de um objeto, digamos, de uma pêra, é a idéia de algo que é doce, que é arredondado, que é macio... ou, mais formalmente,
a idéia de um x, tal que "x é F", "x é G", "x é
H"... Ver R.
Chisholm: “On the Observability of the Self”, in Quassim Cassam (ed.), Self Knowledge (Oxford University Press:
Oxford 1994), pp. 95-96.
[7] Bertrand Russell: Philosophy of logical Atomism, in Logic and Knowledge (Routledge: London 1989),
pp. 190-1.
[8] Bertrand Russell: "On Propositions",
in Logic and Knowledge, pp. 305-6.
[9] Frege: Ibid,
pp. 72-73 (meu itálico, paginação original).
[10] Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus (Suhrkamp: Frankfurt 1984) 5.631-
5.641
Nenhum comentário:
Postar um comentário