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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Filosofia, ciência e história

  

 

 

 

FILOSOFIA, CIÊNCIA E HISTÓRIA (COMTE)

 

                                                Infame, informe liberdade

                                                Romântica, ignorante dos cinco poliedros

                                                                                   únicos e perfeitos./

                                                ignorante das jaulas da geometria divina,

                                                Feliz prisão da retina,

                                                Ignorante do prazer contínuo das impiedosas

                                                                                        e rigorosas redes/

                                                Doce contração do cérebro

                                                Ligamento desejado,

                                                Paliçada, entrelaços gloriosos, limite dourado,

                                                Corbeille, coroa arminhada.

                                                Salvador Dali 

 

Como se relacionam filosofia e ciência, do ponto de vista de seu desenvolvimento histórico? Essa é uma questão complexa e necessariamente especulativa, posto que a sua resposta envolverá a inevitável admissão de pressupostos problemáticos acerca da natureza da filosofia e da própria ciência.

     Sobre o relacionamento histórico entre filosofia e ciência, uma constatação fundamental é a de que a filosofia, como escreveu Anthony Kenny, é a mãe das ciências, melhor dizendo, “o útero” no qual elas foram preparadas para o seu nascimento[1]. Essa não é tanto uma hipótese quanto a constatação de um fato histórico, que foi impressivamente exposto por J. L. Austin na comparação que ele fez do destino da filosofia com o de um sol central e inicial, seminal e tumultuoso, do qual de tempos em tempos é lançado fora um planeta frio e bem regulado, uma ciência, que a partir de então progride com segurança rumo a um estado final distante[2].

     Passando da analogia aos fatos, podemos começar lembrando que ainda na obra de um filósofo como Aristóteles a palavra ‘filosofia’ (filosofia) aplicava-se indiferenciadamente a todo o saber humano, tendo sido o seu domínio de aplicação progressivamente restringido no curso da história. Que tudo fosse considerado filosofia era entre os gregos justificado, pois o que já existia em termos de ciência era ainda inicial e fragmentário. Aos poucos, porém, as ciências básicas foram se destacando da filosofia. Considere-se o caso da matemática. Embora ela tenha sido a primeira ciência a diferenciar-se da filosofia, sabemos que os filósofos pitagóricos ainda mantinham uma compreensão metafísica de sua natureza, considerando os números e suas propriedades constitutivas como sendo o princípio supremo, delimitante e determinante de todas as coisas. Não obstante, o tratamento metafísico-especulativo de questões que são de fato pertencentes à matemática cedo deixou de ocorrer na filosofia de forma importante. Algo semelhante aconteceu com a física. Ela só passou a ser geralmente entendida como uma ciência independente após Galileu. Antes disso, o seu lugar epistêmico costumava ser ocupado pela física aristotélica, ao menos na medida em que esta continha uma especulação filosófica acerca da natureza do mundo físico. Mais tarde a química, especialmente a partir de Lavoisieur, tornou-se uma ciência independente de teorias místicas ou especulativas sem real poder preditivo, o mesmo ocorrendo aos poucos com a biologia. A psicologia filosófica teve origem em livros com De Anima de Aristóteles, e filósofos como Descartes e Spinoza produziram minuciosas análises das faculdades da mente. Mas somente na segunda metade do século XIX partes importantes da psicologia filosófica começaram a deixar de pertencer à filosofia, quando o método tipicamente introspeccionista dos filósofos começou a ser substituído, de um lado, pela psicologia resultante do uso de métodos psicoterapêuticos (o que conduziu ao desenvolvimento da teoria psicanalítica), de outro, pela psicologia experimental (o que permitiu desenvolvimentos como a teoria do reforço, de teorias do desenvolvimento, da psicologia social etc.). Também desde o final do século XIX o desenvolvimento da lógica simbólica permitiu uma enorme ampliação das possibilidades do cálculo lógico, o que impôs restrições à credibilidade da especulação filosófica, antes realizada no terreno da ignorância lógica (e.g.: os excessos da “lógica dialética”). Austin pretendeu, ele próprio, separar da multidirecionada massa de indagações filosóficas uma nova “ciência da linguagem”, caracterizada pela sua teoria dos atos de fala, hoje pertencente à pragmática e ensinada em cursos de linguística. Também a neurofisiologia, a psicologia cognitiva e os diversos domínios de questionamento de uma emergente ciência da mente deverão, assim se espera, abarcar domínios que até pouco pertenciam exclusivamente à especulação filosófica.

     Com efeito, que as ciências básicas tenham nascido após um período mais ou menos longo de especulações de caráter filosófico em um domínio correspondente, mas ainda indistinto e confundido com outros, é um fato dificilmente recusável. Por isso a filosofia pode ser considerada, ao menos em certa medida e em certos domínios, como o marcador de lugar da ciência; ou seja, como uma antecipação especulativa e frequentemente equivocada da ciência que ainda está nascer; como uma forma de protociência.

     A reflexão em torno disso conduz a questões filosóficas de interesse, como: – Como se daria essa passagem? – Quais são os critérios que usamos para distinguir a filosofia da ciência? – Irá a filosofia, ao final, ser completamente absorvida pela ciência, deixando de constituir um domínio diverso de investigação? – Possui a filosofia um objeto próprio de investigação, independente dos objetos das ciências particulares? – O que é filosofia, afinal?

   Tentei esboçar uma resposta a essas questões em outro lugar.[3] Quero aqui considerar apenas duas respostas que outros filósofos deram a elas, com o intuito de fazer algumas reflexões comparativas que possam melhorar a nossa compreensão das relações entre filosofia, ciência e história.

   A primeira concepção a ser considerada constitui-se em todo um sistema filosófico, em parte determinado pela percepção do fato histórico acima resumido. Trata-se da doutrina positivista da evolução da mente e da cultura humana desenvolvida por Auguste Comte em seu Curso de Filosofia Positiva e em outros trabalhos. A filosofia de Comte tem sido muito facilmente desmerecida, não faltando razões para isso. Sem dúvida, a qualidade de suas idéias é bastante variável; muito do que ele escreveu é incorreto ou perdeu a atualidade; há uma visão reducionista das questões e uma disposição dogmática, que transparece nos desdobramentos da doutrina. Parece que Comte, em parte devido a acontecimentos de sua vida pessoal, sofreu uma progressiva recaída no dogmatismo metafísico-religioso que a lógica de seu pensamento o obrigaria a combater, terminando por criar uma curiosa e estranha religião secular: a religião da humanidade, cujo objeto de culto não era um Deus transcendente, mas a humanidade essencial, representada pela obra e exemplo dos grandes homens. Um filósofo como Sartre chegou a dizer que a espécie comteana de humanismo conduz ao fascismo[4]. Isso é injusto. Não obstante, um culto elitista, que supervalorizasse o social em detrimento do indivíduo, ignorando a democracia, poderia facilmente conduzir a alguma forma de totalitarismo. Nada disso, no entanto, deve desencorajar-nos da tentativa de ler Comte sem preconceitos, retirando de seus textos os insights plausíveis para pô-los em diálogo com a perspectiva contemporânea.

 

A classificação comteana das ciências

Comte relaciona a filosofia à ciência através da assim chamada lei dos três estágios[5]. Como a aplicação dessa lei à filosofia só é adequadamente compreendida à luz da classificação das ciências fundamentais por ele adotada, quero expor as duas, a começar pela última.

   Comte utiliza como critério para a sua classificação a generalidade e complexidade de cada ciência. Complexidade e generalidade estão em proporção inversa: a maior complexidade no conteúdo das teorias de uma ciência vem acompanhada de uma menor extensão, de uma menor generalidade. Tal oposição não é casual, mas intrínseca: é ele quem nota que os fenômenos, para serem mais gerais, não podem implicar-se com situações particulares, precisando ser por isso mesmo mais simples.[6]

   Aplicando tal critério, as ciências fundamentais são para Comte a matemática, a astronomia, a física, a química, a biologia e a sociologia.[7] A matemática é a mais geral, aplicando-se simplesmente a tudo o que existe. Em uma consideração mais detida, ela não é propriamente uma ciência, por não investigar seres concretos, mas um método comum às diversas ciências. A próxima ciência é a astronomia ou física celeste. A seguir vem a física terrestre, que contém muito da física propriamente dita, ocupando-se do estudo das leis gerais da matéria. Após ela vem a química, mais complexa e menos geral, ocupando-se dos fatos químicos. Em nível de complexidade maior do que o da química e dizendo respeito a uma porção ainda mais restrita do universo temos a biologia, que estuda as leis gerais da vida. Por fim chega-se à mais específica e mais complexa das ciências, que Comte denominou física social, a sociologia, que estuda o homem como ser social.

  À ordenação das ciências da mais simples para a mais complexa corresponde a sequência de seu surgimento no curso da história; e essa ordem de seu desenvolvimento é natural e necessária, posto que o conhecimento das ciências menos gerais pressupõe o conhecimento das mais gerais. Por isso a sociologia só emergiria como ciência no alvorecer do século XIX, em parte por obra do próprio Comte.

 

Discutindo a classificação comteana das ciências

Uma primeira questão referente à hierarquia das ciências é sobre a ausência da psicologia, que aparentemente deveria encontrar-se entre a biologia e a sociologia. A resposta é que Comte não inclui a psicologia em sua classificação porque por isso ele entendia a psicologia introspeccionista (filosófica) da época. A psicologia não é para ele possível, na medida em que a introspecção não é verdadeiramente possível: a mente não pode dividir-se em duas, uma que raciocina e outra que observa o seu raciocinar. Comte também não inclui a filosofia em sua classificação. A filosofia, em um sentido afirmativo da palavra é, para Comte, a filosofia positiva, vista como uma ciência suprema, cuja principal função teórica é a de classificar as ciências, determinar os seus limites, julgar os seus progressos. Enquanto tal, a filosofia se aproxima do que hoje chamaríamos de uma teoria das ciências. Mas o que diria Comte da maior parte daquilo que tradicionalmente chamamos de ‘filosofia’? Isso ele anatematizaria sob a rubrica de metafísica: uma forma de pensamento pertencente a um estágio pré-científico e temporário do desenvolvimento da mente humana.

     A classificação comteana das ciências é também em outros pontos questionável. É obviamente enganosa a oposição entre física celeste e física terrestre. A astronomia não é uma ciência fundamental. Excetuando o seu aspecto “cartográfico”, a astronomia é hoje geralmente a física aplicada ao macrocosmo. A física é que é a ciência empírica mais fundamental, a mais geral das ciências empíricas, muito além da astronomia, pois se aplica genericamente a tudo o que é de natureza espacio-temporal, incluindo nisso os corpos celestes... E a exclusão da psicologia do domínio das ciências empíricas perdeu hoje todo o sentido, uma vez que o método introspectivo, criticado por Comte, há muito deixou de ser vital à investigação psicológica.

     Também se pode objetar que o critério pelo qual reconhecemos a complexidade/simplicidade de uma ciência pode não parecer muito claro. Em que sentido, afinal, podemos dizer que a física é mais simples que a biologia? Primeiro, há a maior variedade do que é compreendido pela biologia; se considerarmos a multiplicidade dos fatos que precisam ser conhecidos como fazendo parte do domínio científico, parece claro que a biologia é bem mais complexa do que a física. Segundo, há uma maior complexidade em termos de regularidades de âmbito mais ou menos restrito: por exemplo, regularidades restritas a essa ou aquela espécie de organismo ou a suas partes. Se considerarmos essas regularidades como um equivalente biológico do que em física é chamado de lei, prescindindo, pois, de uma exigência de universalidade irrestrita no sentido de preservação de validade para todos os seres vivos, então devemos também admitir que as leis físicas são poucas em comparação com a grande variedade das regularidades biológicas a serem consideradas. Por um ou outro desses critérios de comparação, a classificação das ciências fundamentais pelo critério de graus de complexidade crescentes mantém-se razoavelmente plausível.

     Quanto ao critério de generalidade decrescente, trata-se de um lugar-comum irrecusável.[8] É evidente que a física é a mais geral das ciências empíricas, por aplicar-se a tudo o que existe no mundo empírico. Já a química aplica-se apenas àquela parte do mundo físico formada de átomos e moléculas em suas combinações possíveis, e a biologia possui uma aplicação ainda mais estrita que a química, reduzindo-se ao âmbito dos organismos vivos. A psicologia, uma vez admitida como ciência fundamental, se aplica apenas aos seres vivos conscientes; e a sociologia, por fim, constitui o domínio de aplicação mais restrito de todos, pois só pode ser aplicada a organizações sociais entre seres vivos conscientes. Muitas outras ciências existem, mas elas não são mais básicas ou fundamentais; elas resultam da aplicação das ciências empíricas fundamentais a específicas constelações de fenômenos (exemplos: a astronomia, a neurofisiologia, a psicologia social).

     Também faz sentido a idéia que Comte faz de uma subordinação entre as ciências. A matemática é um pressuposto necessário para o desenvolvimento das ciências empíricas. E é difícil imaginar que a fisiologia ou a biologia pudessem ter-se desenvolvido se nada soubéssemos de física. Pense, por exemplo, na mensuração do consumo calórico dos organismos ou na invenção do microscópio... Também a psicologia experimental não seria certamente possível sem uma base mínima de conhecimentos fisiológicos ou biológicos. Descontando-se, pois, inadequações que hoje nos parecem evidentes, concluímos que a classificação comteana das ciências, embora exigindo correções, apóia-se em princípios válidos, cuja vaguidade é adequada ao caráter difuso da matéria à qual se aplicam.

 

A lei dos três estágios

A lei dos três estágios é uma ordenação do trajeto percorrido pela mente, que vai da superstição à ciência. Ela não é criação de Comte. Outros autores já haviam tido pensamentos semelhantes. Sobre isso basta dizer que, já em 1750, A-R-J. Turgot havia constatado que o conhecimento possui três estágios de desenvolvimento, passando da religião à metafísica e da metafísica à ciência.[9] Somente Comte, porém, percebeu e explorou a idéia em todas as suas possibilidades. Ele a desenvolveu em maiores detalhes, adicionando uma grande quantidade de material confirmador proveniente de seus estudos de história da ciência e da sociedade, generalizando-a, por fim, à altura de uma lei de impressionante abrangência, uma lei que em seu entender não era especulativa, mas científica, posto que empiricamente corroborada pela história do surgimento de cada ciência fundamental. Essa lei aplica-se em três níveis: (i) ao nível do desenvolvimento comum do saber, (ii) ao nível do desenvolvimento da mente individual, (iii) ao nível desenvolvimento da própria história social do homem.

     É como uma lei genérica acerca do desenvolvimento do saber ou da cultura humana que a lei dos três estágios é mais importante. Para Comte, na base do surgimento de cada uma das ciências fundamentais encontra-se um processo evolutivo no qual o domínio correspondente do saber passa, necessariamente, primeiro pelo estágio teológico ou fictício, em seguida por um estágio metafísico ou abstrato, chegando finalmente a um definitivo estágio científico ou positivo.

     Comecemos pelo estágio teológico ou fictício. Ele constitui o ponto de partida necessário para a evolução da mente. Nele o homem pretende explicar os fenômenos do mundo circundante recorrendo a causas essenciais (primeiras ou finais), originadas da vontade de seres pessoais sobre-humanos: os deuses ou o Deus. O conhecimento obtido nesse primeiro estágio pretende-se absoluto. E o saber assenta-se apenas como produto da imaginação, não da razão.

     O estágio teológico assume para Comte três formas subsequentes: as do fetichismo, do politeísmo e do monoteísmo.[10] No fetichismo está presente uma mentalidade animista, que concebe objetos do mundo externo como sendo vagamente dotados de vida, de paixões e de vontade. Como exemplo temos a adoração dos astros pelos povos antigos. Com o transcorrer do tempo, as forças que animavam imanentemente os objetos são misteriosamente transportadas para seres fictícios: os deuses. Com isso chegamos ao politeísmo, típico da Grécia antiga. Mais adiante, as divindades da religião politeísta são fundidas em uma só, chegando-se então ao subestágio do monoteísmo, presente nas religiões judaico-cristãs. Há nesse movimento um progresso da mente dentro da ordem teológica, o qual, tendendo à abstração e à redução do número das causas na explicação dos fenômenos, principia o processo de substituição da imaginação pela razão. 

     O segundo estágio é o metafísico. Ele representa um notável progresso, pois, embora se continue a procurar por causas essenciais, o princípio ou explicação não se encontra mais em presumíveis realidades divinas, mas de algum modo na própria natureza. O princípio explicativo é posto nas próprias coisas, na medida em que estas encerram ou atuam de acordo com “poderes naturais”, “propriedades essenciais”, “entidades abstratas”. Tais entidades (como o éter e os espíritos vitais) são, contudo, ficções inefetivas, “abstrações personificadas”, que funcionam de maneira mais ou menos semelhante aos deuses no estágio teológico. Elas servem somente à satisfação de necessidades psicológicas, e o seu caráter é fundamentalmente equívoco: elas são inerentes aos corpos físicos, mas ao mesmo tempo inobserváveis e diversas deles; elas não são seres sobrenaturais, mas também não chegam a fornecer explicações verdadeiramente naturais para os fenômenos. E precisam permanecer suficientemente vagas e obscuras para se manterem fora do alcance da crítica.

     No estágio metafísico o conhecimento continua a ter um caráter absoluto, na medida em que as “entidades” ou “propriedades”, embora devendo pertencer à própria realidade, possuem em geral imutabilidade e necessidade, estando livres da contingência e relatividade de cada coisa em concreto. Não obstante, a redução das causas transcendentes e sobrenaturais a princípios naturais e interiores às próprias coisas significa uma certa “racionalização” na explicação do conhecimento. Ainda aqui, contudo, o saber continua a assentar-se no poder da imaginação, melhor dizendo, no uso abusivo de uma razão que se deixa guiar mais pela imaginação do que o apoio observacional o permite.

     O estágio metafísico é, não obstante, intermediário e provisório, não passando de uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo, que é aquele no qual o saber se afirma como ciência. Para Comte, o estágio positivo é instaurado com o abandono das indagações teológicas e metafísicas, evidenciadas como irrespondíveis e estéreis. O conhecimento procurado não é mais absoluto, mas relativo à condição e situação humana. Aqui não é mais a imaginação que explica os fenômenos, mas a razão entendida como adesão ao dado, orientada para a ação operativo-instrumental. Essa é a razão científica, que não busca mais uma causa essencial das coisas, mas a descoberta de leis, a dizer, a verificação observacional da vigência de certas regularidades entre os fenômenos. O conhecimento dessas regularidades nos permite fazer previsões e, em certa medida, dominar a natureza. Através disso as ciências tornam-se um instrumento a serviço das necessidades humanas reais, em consonância com os interesses e fins da sociedade.

     Para Comte, a função efetiva dos dois primeiros estágios é apenas a de preparar o caminho para o estágio positivo: somente através dos estágios teológico e metafísico a mente humana reúne forças para a perseverante observação dos fatos que acaba por conduzir à ciência. Um exemplo muito claro disso foi a passagem da astrologia à astronomia: a contínua observação dos astros, com vistas a auscultar o destino humano, acabou por conduzir a uma mensuração matemática dos fenômenos celestes, a qual criou condições para o surgimento das teorias astronômicas. 

     Em segundo lugar, a lei dos três estágios se aplica ao nível do desenvolvimento individual dos seres humanos, o que evidencia a sua raiz biológica. Comte observou que somos teólogos na infância, pois vivemos em um mundo imaginário, acreditando em seres míticos; somos metafísicos na adolescência, quando, tendo desenvolvido o uso da razão, tornamo-nos capazes de especular, passando a extrair conclusões de premissas as mais incertas; por fim, quando atingimos a idade adulta – na medida em que realmente conseguimos chegar a ela – tornamo-nos físicos, admitindo somente o saber positivo, firmado e confirmado pela ciência.

     Por fim, a lei dos três estágios também vem a se revelar ao nível da organização e funcionamento da sociedade. Para Comte, o estágio ou período teológico durou até o fim da Idade Média, sendo constituído por uma sociedade autoritária e militarista, dominada por sacerdotes e reis; da reforma protestante até à revolução francesa, as idéias metafísicas passaram a adquirir predominância na orientação da sociedade, instaurando-se o império da lei e dos direitos abstratos; mas foi só com a revolução industrial que se tornou possível o desenvolvimento de uma sociedade pacífica, na qual a vida econômica do homem passou ao centro das atenções. Nessa sociedade a ciência está destinada a exercer papel determinante na vida social, a qual acabará por ser organizada e regulada por uma elite de cientistas.

 

Avaliação da lei dos três estágios

A lei dos três estágios sempre foi objeto de críticas. Responderei brevemente a elas, pois parece-me claro que a história a tem confirmado, e que essa lei exige apenas correções de detalhes.

     Há, primeiramente, objeções provenientes de teorias alternativas. Como essas objeções são externas e essas teorias não são elas mesmas muito plausíveis[11], não será preciso discuti-las aqui. Quanto às objeções internas, há duas mais importantes. Uma primeira, salientada por Habermas,[12] é a de que a lei dos três estágios é, ela própria, metafísica, pois não se baseia em fato observacional. A resposta é que isso seria correto se precisássemos adotar uma concepção reducionista do fenômeno ou fato social ou cultural básico, como se este devesse ser algo observável imediatamente e sem pressupostos. Mas, primeiro, é o próprio Comte quem denuncia uma concepção reducionista da ciência positiva, rejeitando-a sob o epíteto de empirismo. Segundo, parece-me perfeitamente razoável conceber a lei dos três estágios como uma inferência para a melhor explicação, resultante da consideração de uma grande diversidade de fatos sócioculturais em sua progressão histórica. É por dar coerência à multiplicidade desses fatos que essa explicação nos parece à primeira vista verossímil. E sua confirmação ou refutação pode ser feita pela inferência de fatos sócioculturais futuros, bem como através da investigação mais detalhada de fatos sócioculturais passados. Quanto ao último ponto, o procedimento lembra aquele pelo qual uma teoria biológica como a da evolução das espécies pôde ser comprovada.

     A segunda objeção é a de que a lei dos três estágios, quando aplicada à sociedade, não corresponde adequadamente à ordem de surgimento das ciências. Afinal, a matemática já existia entre os gregos, em pleno estágio teológico; e a astronomia e a física já existiam como ciências no estágio metafísico, antes da revolução francesa e da instauração do estágio positivo.

     Essa objeção foi devidamente respondida pelo próprio Comte. Com base no que ele diz podemos considerar que, do ponto de vista da ordem social predominante, os estágios sobrepõem-se parcialmente uns aos outros, melhor dizendo, elementos culturais de um estágio persistem em outros, ficando a identificação de uma ordem social como pertencente a um certo estágio na dependência da predominância relativa de seus elementos. Assim como no adulto alguns traços do adolescente e da criança podem persistir, e também no adolescente, e mesmo na criança, alguns traços do pensamento adulto podem precocemente surgir, o mesmo se dá com o desenvolvimento da civilização. A sociedade, em seu estágio positivo, só pode resultar de uma situação na qual as ciências fundamentais já se encontram em geral estabelecidas. Torna-se assim compreensível que ciências mais gerais que surgiram muito antes, como a matemática na Antiguidade e a física no Renascimento, não pudessem deflagrar o estágio positivo ao nível social. A própria ordem hierárquica vigente entre as ciências explica, pois, o caráter escalonado da positivização da cultura e da sociedade. Essa dissincronia entre o desenvolvimento de idéias científicas e o da sociedade também ajuda a explicar a falta de assimilação de certas descobertas científicas na Antiguidade (e.g. a teoria heliocêntrica), as quais, não podendo encontrar o meio cultural e social propiciador de uma recepção adequada, acabaram sendo rejeitadas ou esquecidas.

     Poderíamos acrescentar que se quisermos admitir a existência de leis gerais do desenvolvimento sócio-histórico-cultural, precisaremos estabelecê-las de maneira suficientemente vaga e flexível para que elas façam jus à própria complexidade e variedade incoercíveis desse domínio da investigação. Isso significa que o modelo a ser considerado não deve ser o das generalizações universais, mas algo cuja vaguidade lembra, digamos, as leis estatísticas. Ou seja: elas devem ser entendidas em um sentido meramente tendencial, entendendo-se com isso correlações de fenômenos inevitavelmente genéricas e incertas, o que se dá devido à indefinida variedade de fatores imprevisíveis que podem intervir na aplicação desta como de outras leis sócio-histórico-culturais. É apenas nesse sentido que se pode falar de uma “lei” dos três estágios. Apesar disso, essa lei não é uma generalização acidental, pois a sua aceitação nos faz depreender que se uma outra civilização, constituída de seres humanos como nós e em circunstâncias semelhantes, se desenvolvesse até a aquisição do conhecimento científico, dado à própria natureza desses seres, ela passaria por fases de explicações mitológico-religiosas, seguidas de fases de explicações especulativas, para só então chegar a explicações científicas. E essa é uma idéia razoável.

     Minha sugestão é, pois, a de que, no essencial e em uma interpretação suficientemente flexível, a lei dos três estágios se sustenta. No que se segue pretendo ir um pouco além, entrando em detalhes sobre a medida e a maneira como as concepções filosóficas poderiam ser explicadas a partir da descrição comteana do estágio metafísico.

 

Princípios explicativos e entidades metafísicas

Começando com o estágio teológico, parece evidente que a mais primitiva ou originária forma de explicação dos fenômenos baseia-se em uma concepção animista de suas causas, resultante de uma projeção de características próprias dos seres humanos no mundo externo. Sem dúvida, para os povos ditos primitivos, essa era a forma mais natural de explicar a natureza: catástrofes naturais, pestes, uma boa ou má colheita, tudo podia ser explicado pela intervenção dos deuses. Isso é patente na mitologia grega e em um poema épico bem conhecido como a Ilíada: quando o dardo de Aquiles não acerta o adversário, não é sua a irrisão; é que algum deus do partido oposto interferiu, segurando o dardo no ar e desviando-o de seu alvo.

     Um ponto a ser notado, entretanto, é que o estágio teológico possui funções mais amplas do que a de preparar o caminho para o aparecimento da ciência. Após Comte, outros pensadores tornaram mais claras as funções sociais e, digamos, psicológico-afetivas da religião. Do lado psicológico-afetivo, há a função de amenizar a imensa insegurança que deve ter suscitado no ser humano a aquisição da consciência de ser um animal mortal, vivendo em um mundo ameaçador, sobre cujos constantes perigos ele não possuia qualquer controle. Certamente, a religião diminui essa insegurança ao sugerir a existência de divindades protetoras, e que as limitações da condição humana possam ser superadas pela troca de favores com tais divindades, entre eles a sobrevivência à própria morte (Freud). Do lado social, há a função de garantir o funcionamento e a preservação de comunidades sociais, na medida em que a divindade comum reforçaria os vínculos sociais, unificando os membros de uma comunidade em torno de valores, obrigações e ideais comuns (Durkheim). Diversamente, o que Comte mais salientou foi a função psicológico-cognitiva da crença religiosa: a função de estabelecer uma maneira de conceber o mundo ao nosso redor, a qual seja capaz de organizá-lo e explicá-lo, ainda que só na aparência.

     O ponto que mais importa esclarecer aqui é o da natureza dos agentes causais sobrenaturais referidos no estágio teológico. De maneira geral podemos caracterizá-los como possuindo uma natureza mental, mas em um sentido hipostasiado, i.e., no sentido de uma ficção falsamente considerada real. Para se entender melhor em que consiste o que queremos chamar de hipostasia do mental, podemos caracterizá-la de modo suficientemente genérico pela atribuição de certas propriedades às entidades hipostasiadas, as quais podem resumir-se em:

 

(i)  a propriedade de serem hipermentais, no sentido de que seus poderes mentais são alterados e/ou potencializados, frequentemente ao infinito;

(ii)  a propriedade de serem mentais-transcendentes, no sentido de que se trata de mentes geralmente consideradas como existindo independentemente do mundo físico-material (sendo por isso também físico-transcendentes).

 

Assim, as divindades e fatores anímico-mágicos, resultantes de projeções antropomórficas, podem ser por nós entendidas em termos de alterações e potencializações do mental, além de sua provável transcendentalização com relação ao físico; é o mental que, projetado, passa a possuir funções mágicas, que devem ir além do que efetivamente conhecemos da ordem natural.

     Há ainda uma outra propriedade que pode ser útil na caracterização de entidades hipostasiadas, que é:

 

(iii) a propriedade de serem hiperfísicas, ou seja, fisicamente alteradas e/ou potencializadas, ou de deterem poderes hiperfísicos.

 

Do mesmo modo que a hipermentalidade é uma hipostasia do mental, a hiperfisicalidade é a hipostasia do físico. Introduzo essa última categoria em parte com o objetivo de contemplar a idéia de filósofos materialistas, como Epicuro e Hobbes, que supunham serem os deuses ou o Deus constituídos de algo como uma tênue e indestrutível espécie de matéria. Assim, mesmo com entidades físicas ou com a forma física de interação, pode haver a hipostasia de agentes, que passam a ser hiperfísicos, no sentido de que suas naturezas e ações físicas são alteradas e/ou potencializadas, por serem e por realizarem algo que está fora e além daquilo que a natureza física, especialmente a do ser humano, é capaz de fazer.

   É preciso notar que, embora uma mesma entidade possa ser hiperfísica e também hipermental, uma mesma entidade não pode certamente ser hiperfísica e mental-transcendente (não obstante isso, uma entidade composta de propriedades poderia ter algumas propriedades hiperfísicas e outras hipermentais e mentais-transcendentes, sem contradição). A maior dificuldade encontrada pelo materialismo metafísico que exclui o mental-transcendente, explicando o hipermental pelo hiperfísico, é que, por só admitir entidades materiais, ele é facilmente levado à contradição quando se obriga a dotar as divindades, não só de propriedades hiperfísicas, como também de propriedades que parecem só poder pertencer ao domínio único do mental-transcendente, tais como as da eternidade e imutabilidade. Com essa limitação, o discurso filosófico materialista acerca do hiperfísico tende a tornar-se uma especulação livre acerca da natureza oculta do mundo físico, coisa que realmente foi feita pelos atomistas antigos (o que aponta, como em breve veremos, para uma limitação na idéia de que a especulação filosófica deva sempre e por necessidade conter elementos antropomórficos).

     Falamos até agora de entidades mentais hipostasiadas. Mas podemos também falar das palavras e conceitos que as nomeiam, e que povoam o universo do homem primitivo. Embora essas palavras e conceitos objetivem fazer referência principalmente ao mental hipostasiado (ao hipermental, ao mental-transcendente), como o que se tem como modelo efetivamente apresentado à experiência é apenas o mental e o físico tal como eles se nos apresentam no mundo em que realmente vivemos, o resultado é que só indiretamente (através da alusão analógica ao conhecimento efetivo e compartilhado que os homens adquiriram do mundo físico) se consegue fazer com que a referência ao mental-hipostasiado seja intersubjetivamente compreendida e aceita na falta das bases reais para a sua aceitação.

     As três categorias acima introduzidas – hipermentalidade, transcendência e hiperfisicalidade – podem parecer uma complicação supérflua. Mas elas evidenciarão a sua utilidade no que se segue, posto que podem ser usadas na elucidação da natureza de conceitos fundamentais da metafísica especulativa em geral.

     Passemos, pois, ao estágio metafísico. Nele ocorre um afastamento do antropomorfismo explícito. Busca-se a ciência. Mas não foram ainda dadas as condições para a ciência. E não havendo isso, o passo que se dá adiante não encontra um solo firme que o suporte. Então a explicação dos fenômenos passa a depender da suposição da existência do que Comte chamou de princípios ou essências ocultas. Apela-se geralmente a entidades e princípios metafísicos ambíguos, de um lado sendo como se pertencessem à ordem natural, mas de outro comportando-se misteriosamente como se mantivessem ainda algo dos atributos das projeções antropomórficas do estágio anterior. Ao exemplificar, Comte costumava ter em mente forças, atrações e repulsões, que eram tidas como princípios, referindo-se geralmente a formas de pseudociência imediatamente anteriores às ciências fundamentais, e de modo apenas alusivo à metafísica tradicional (supostamente por desconhecê-la e subestimá-la). Contudo teria sido muito mais interessante se ele tivesse dado maior atenção a uma análise dos princípios explicativos não-observáveis que a metafísica especulativa historicamente postulou, pois esses seriam os princípios ou essências mais características do estágio dito metafísico.

 

Aplicação à história da metafísica

Quero agora estender essas sugestões de Comte aos conceitos e princípios que caracterizaram boa parte da filosofia especulativa tradicional, valendo-me para tal das distinções categoriais inicialmente introduzidas. Para tal pode ser útil lançarmos um olhar inicial sobre as origens da filosofia ocidental. No que concerne à cultura, é muito claro que na civilização ocidental o estágio metafísico teve as suas primeiras manifestações entre os filósofos pré-socráticos. Foram eles que, insatisfeitos com as explicações mitológicas, substituíram os Deuses por entidades que deveriam atuar como princípios últimos – entidades que, assim como eles as entenderam inicialmente, eram tais que deveriam reger a origem e o fim das coisas, além de sustentá-las em seu ser.[13] Quais as razões dessa substituição? Ao que parece, com o  acúmulo de novos conhecimentos empíricos e técnicos, com o desenvolvimento fragmentário de explicações científicas, com a inevitável relativização das crenças proveniente do contato com outras culturas, as explicações com base na vontade dos deuses perderam o poder de convicção entre os pensadores gregos, enquanto, por outro lado, faltava em quase todos os domínios a possibilidade de se recorrer a explicações que possuíssem um verdadeiro poder explicativo e preditivo, tal como ocorre na ciência. Ora, embora não se podendo saber como as coisas realmente são, é sempre possível tentar saber como em geral elas poderiam ser. Assim, movidos principalmente pela curiosidade intelectual, esses primeiros filósofos tentaram, seguindo a forma de constituição das explicações próprias da ciência, instaurar algum princípio necessariamente vago e obscuro, de fato só alcançável pela intuição filosófica bem direcionada; um princípio concebido como a suposta base explicativa para os fenômenos, uma base explicativa em si mesma talvez inescrutável. Com esse fim, esses filósofos recorreram inicialmente a entidades observáveis, como a água, o fogo, o ar, tomando-as como princípios; mas logo eles as substituíram por princípios inobserváveis, como o infinito, o número, o ser e os átomos, estabelecendo com isso uma forma de explicação filosófica que é importante porque foi de algum modo repetida em toda a tradição ocidental.   

     Comte sugeriu que uma análise dos conceitos metafísicos torna evidente que eles dependem, para se fazerem inteligíveis, da ambiguidade incoerente já aludida (razão pela qual ele chama tais princípios de equívocos ou contraditórios). Entendendo esses conceitos metafísicos como referindo-se a entidades metafísicas e aos seus modos de ação, ou seja, à sua atuação como princípios, podemos dizer o seguinte. No que concerne às entidades referidas por tais conceitos, elas precisam em geral representar algo que deve ficar a meio caminho entre entidades anímicas hipostasiadas e entidades naturais, sejam elas físicas ou mentais – as últimas sendo as entidades aceitas pelo senso comum (como estados mentais, no último caso, e os eventos físicos observáveis, no primeiro) ou justificadamente postuladas pela ciência (como os processos mentais, disposições, atitudes etc., investigadas hoje pela psicologia científica, e corpúsculos-ondas, investigados pela física). Enquanto tais conceitos referem-se também a princípios de ação, ou seja, a modos de ação ligados às entidades por eles designadas, os referidos princípios devem encontrar-se a meio caminho entre a ação de entidades anímicas hipostasiadas e formas de causação natural explicáveis por leis científicas. Sob a perspectiva daquilo a que se referem, tais entidades e princípios, melhor dizendo, entidades-princípios (dado que geralmente inseparáveis) são certamente ficções incapazes de se dar à experiência, só podendo o discurso acerca delas ser tornado intersubjetivo na medida em que os conceitos metafísicos a elas referentes, da mesma forma que os conceitos das divindades transcendentes, forem construídos de maneira indireta, por metáforas ou analogias irresgatáveis, feitas do material semântico retirado do conhecimento que realmente temos do mental e do físico habitualmente (e hoje também cientificamente) experienciados.

     O problema com essas entidades e princípios metafísicos é que eles são ficções que, ao contrário de entidades postuladas pela ciência, não possuem poder explicativo ou preditivo capaz de legitimar a sua postulação: eles se assemelham mais ao éter da física clássica ou ao flogisto da química pré-Lavoisieur do que, digamos, às partículas subatômicas. A questão não é, pois, a da irresgatabilidade das metáforas, mas a de sua efetividade em termos de explicação e predição.

     Para fazer jus à ambiguidade essencial dos conceitos metafísicos sugerida por Comte, podemos recorrer, pois, a um duplo conjunto de características identificadoras. De um lado, consideraremos:

 

(a) As categorias empregadas na caracterização das divindades, com a suposta referência do conceito metafísico ao domínio do mental, entendido como mental-transcendente (i.e. do mental pretensamente transcendente, como se admite ao se recorrer à divindade), ao hipermental (i.e., a poderes mentais transformados), e mesmo ao hiperfísico (i.e., a poderes físicos que a natureza não oferece realmente à experiência).

 

Do outro lado consideraremos:

 

(b) O mental-natural e, notadamente, o físico-natural, tal como se pretende quando se recorre à lei natural.

 

Segundo essa perspectiva, o conceito metafísico costuma ser uma espécie algo desconfortável de amálgama, referindo-se em proporções variáveis às características apresentadas em (a) e em (b), ou então, como veremos, a algo que nem é (a) nem (b), mas que também não pode ser realmente outra coisa.

     Essas caracterizações revelam sua utilidade quando nos voltamos para os exemplos. Consideremos o caso da água como princípio explicativo em Tales, o primeiro dos filósofos da tradição ocidental. Ele afirma que o princípio (a causa, o sustento e o fim) de tudo é a água, dando a entender que o momento do princípio-água é vivo e animado e que tudo é penetrado pela água e repleto de deuses. Assim, o princípio-água é visto não só como uma entidade física natural (se considerarmos o naturalismo da escola jônica, a teoria dos quatro elementos etc.), mas também de algum modo como uma entidade hipermental e hiperfísica. Como não se apela aqui a deuses pessoais, tenta-se ao mesmo tempo uma explicação naturalista que, embora excessivamente vaga para permitir comprovação prática, satisfaz o desejo de se obter compreensão especulativa de como, de um modo geral, fenômenos poderiam eventualmente ser explicados. Se não se obtém uma explicação concreta, há ao menos a direção desta, a forma de uma explicação. Essa ambiguidade dos princípios com os quais se tenta a aproximação de uma explicação naturalista, geralmente sem se afastar por completo do recurso à explicação que se vale de elementos mágico-anímicos, está em maior ou menor medida também presente em outros princípios dos filósofos pré-socráticos, como, muito claramente, no infinito (ápeiron) de Anaximandro – que é divino – e no ar de Anaxímenes – o material do qual as almas são feitas.

     Ainda outro exemplo, importante porque muito influente, é o do ser dos filósofos eleatas. Para Parmênides, embora pertencendo à physis, o ser só se revela ao pensamento (noús), devendo, pois, ser hiperfísico, o que parece mais coerente, ou mental-transcendente, o que seria mais compreensível, na medida em que ele é explicitamente concebido como incriado, incorruptível, perfeito, eterno, possuindo, dessa maneira, algumas características do Deus das religiões monoteístas. Mas o Ser parmenídico, ao menos, também possui aspectos claramente naturais: ele é considerado redondo e finito, tal como os objetos que se situam no espaço, embora aqui também em um sentido hiperfísico, posto que não se revela aos sentidos, não sendo encontrável em lugar algum.

     Desde os gregos, o recurso a certas essências inobserváveis, às entidades metafísicas em maior ou menor medida incognoscíveis, que funcionam como princípios explicativos fundamentais que tendem a ser dotados de algum traço antropomórfico, passou a desempenhar um papel fundamental em toda a história da filosofia ocidental, tendo essa forma de explicação durado pelomenis até o início de nosso século. Em razão disso, a mesma forma de análise recém sugerida pode ser geralmente aplicada a outras entidades metafísicas que agem como princípios e que povoaram a história da metafísica. Esse é o caso do ser em Parmênides, da idéia máxima do bem em Platão, da causa primeira de Aristóteles, do Uno plotiniano, do Deus dos filósofos (o “omnideus” ao qual tanto se recorreu na filosofia medieval e moderna) da substância-natureza-Deus de Spinoza, da coisa em si kantiana, de seu eu transcendental, transformado em sujeito absoluto pelo idealismo alemão, da vontade schopenhaueriana, do indizível do primeiro Wittgenstein, e, de forma um tanto extemporânea, do ser heideggeriano (em muitas passagens substituível pela palavra ‘Deus’ sem perda de sentido). Como a lei dos três estágios deve aplicar-se de forma difusa e tendencial, e como os estágios fatalmente se sobrepõem, torna-se compreensível que manifestações do estágio metafísico tenham tido vida tão longa.

     Como já foi notado, do ponto de vista referencial, a alusão, mesmo que analógica e equívoca, ao domínio do mental e do físico naturalmente dados é um elemento necessário à própria significatividade e compreensibilidade dos conceitos metafísicos aqui mencionados. Por isso as ideias de Platão e os pensamentos-como-sentidos de Gottlob Frege são no fundo mentais-transcendentes. Além disso, uma análise da maioria dos conceitos metafísicos nos sugere que eles possam ser apresentados sob duas formas básicas:

 

(i)              a da hibridez (forma inflacionada) e

(ii)            a da elusividade (forma deflacionada).

 

No primeiro caso, o conceito metafísico é mais ou menos rico, referindo-se pretensamente a uma variedade de supostos elementos hipostasiados (mentais-transcendentes, hipermentais, hiperfísicos), além da referência ao mental e ao físico, tal como o senso comum ou a ciência os revelam a nós. Como tornar isso coerente é provavelmente impossível, o filósofo recorre-se ao àlibi de intuições de natureza questionável. A hibridez é bem exemplificada em conceitos metafísicos dos filósofos pré-socráticos – considere-se no conceito de água em Tales, que se refere a algo físico, mas aparentemente com um momento anímico, hipermental. No caso de conceitos metafísicos com forma elusiva ou deflacionada, pretende-se resolver a incoerência pela negação de que possamos ter acesso experiencial, mesmo que indireto, à entidade metafísica cuja existência é proposta. Pretende-se, pois, que o conceito metafísico seja significativo sem alusão ao nosso conhecimento do físico e do mental pertencentes à ordem natural, ainda que isso rigorosamente não chegue a fazer sentido. Um exemplo notório disso é dado pelo conceito kantiano de coisa em si.

     Um rápido exame mostra que essa divisão dos conceitos metafísicos em híbridos e elusivos é realmente aplicável.

     Casos de conceitos metafísicos hibridizantes são o da substância infinita em Spinoza, que também merece o nome de Deus, embora não deva ser sobrenatural; essa substância é também natureza, que procede segundo as leis naturais, nela persistindo, porém, o traço antropomórfico de se tratar de uma atividade “viva”, que se ama a si mesma com um amor intelectual infinito.[14] Há também o caso das idéias platônicas: não se pretende que elas sejam nem mentais nem físicas, mas ao se tentar explicá-las recorre-se necessariamente a um material de metáforas e elucidações que retiram o seu sentido da alusão ao físico e ao mental tal como normalmente são compreendidos (por exemplo: elas devem ser encontradas em enorme quantidade em um lugar que não é lugar, o hiperurânio, sendo intuídas por uma espécie de visão intelectual, embora sejam somente inteligíveis, delas dependendo o ser das coisas visíveis...). O mundo das idéias é assim supostamente esclarecido por meio de um sistema de alusões ao bem conhecido mundo dos sentidos. Contudo, à diferença de outros conceitos introduzidos por analogia, o conceito platônico de idéia sempre resistiu a uma explicação em termos não-analógicos, e como há razões para se pensar que a sua suposição seja supérflua, há também razões para descrer da existência de tais entidades (ver cap. 5).

     Um conceito metafísico pode certamente fazer referência mais ao mental ou ao físico, como é o caso do Deus cartesiano, que é sumamente bom, como um Deus pessoal, mas que adquire uma função nomológica ao promover a realidade objetiva de nossas idéias (como o Deus dos filósofos medievais, ele é princípio metafísico e Deus religioso ao mesmo tempo). Exemplos melhores do que esse (posto que o fato do Deus dos filósofos ser o Deus judaico-cristão é contingente) são a vontade de Schopenhauer (entendida como constitutiva do mundo noumênico) e as mônadas de Leibniz, ambas hipostasiando essencialmente o domínio do psicológico (todas as mônadas devem possuir algum grau de consciência etc.). Do lado oposto, os átomos de Demócrito e de Epicuro hipostasiam em certa medida o domínio do físico.

     Há também limites para a construção de conceitos metafísicos. Eles não podem pretender designar somente sob uma perspectiva, seja ela hipostasiante (a) ou naturalista (b), sob pena de recair, ou no ponto de vista religioso (perspectiva hipostasiante), ou em uma visão naturalista do mundo, físico ou mental, apoiada no senso comum (perspectiva naturalista). No último caso não teremos mais metafísica no sentido especulativo, mas ainda assim parece que podemos ter especulação filosófica antecipadora da ciência. Essa pode ser, aliás, uma raiz oculta da distinção moderna entre metafísica e filosofia: a metafísica (entendida ao modo de Comte) trabalha com mais conceitos que combinam a perspectiva hipostasiante e a naturalista (a exemplo de Descartes e Leibniz); já a filosofia deveria permanecer mais ao domínio de uma investigação naturalista (a exemplo de Locke e Hume), a qual pode ser inclusive filosofia especulativa (ex: o atomismo antigo).[15]

     Vejamos agora casos de conceitos metafísicos deflacionados ou elusivos. Tais conceitos são esvaziados, tanto quanto possível, de relações com o mundo mental ou físico. Esse já era o caso do Uno ou Deus plotiniano, que era inefável, dele nada sendo possível predicar, a não ser o que ele não é (o Uno ploniniano está na origem da teologia negativa). Outro exemplo é o da substância em Locke, entendida como um “não sei o que” que serve de suporte às propriedades do corpo físico Semelhante recurso é também utilizado por Kant com os conceitos intrinsecamente incognoscíveis de coisa em si, do eu transcendental e de todo um mundo noumênico inacessível à experiência. Ainda outro exemplo poderia ser o do absoluto no idealismo alemão, só acessível em seus desdobramentos. No século XX o mesmo recurso foi utilizado por Wittgenstein, com o conceito do indizível (que a linguagem apenas “mostra”), e por Heidegger com o seu conceito de ser, cujo “mistério” pode ser desvelado, mas não efetivamente explicado, através de uma metafórica que só os meios da linguagem poética logram propiciar. Evitando incoerências em seu conteúdo, o recurso a tais noções metafísicas deflacionadas paga o preço da vacuidade semântica, quando não o da esterilidade teórica e da substituição do argumento pela retórica.

     Do que foi considerado parece deixar-se concluir que a metafísica especulativa (ao menos em sua forma tradicional) só ganha razão de ser na medida em que ainda não estiver presente a possibilidade de compreensão científica da natureza, sendo essa falta por ela preenchida pelo recurso místico a entidades anímicas hipostasiadas ou pelo recurso especulativo ao desconhecido natural, que apenas direciona o pensamento. A mente especulativa manobra no sentido de tentar alcançar mais do que concretamente é capaz.

     Contudo, diversamente do que Comte possa ter pensado, a especulação metafísica não precisa ser uma atividade primitiva nem obscurantista; ela organiza o nosso universo representacional em direções definidas, o que é inevitavelmente necessário. Ademais, não é impossível que a direção apontada seja a certa, que as metáforas abram o caminho para um conhecimento mais seguro, ou que a sua rejeição nos aponte melhores alternativas. À parte isso, há conceitos como o de conhecimento, de verdade, de justiça, do bem, da liberdade, da identidade pessoal, da ação, que não são criações metafísicas, mas cuja análise foi tentada ao menos desde Platão e cuja investigação resulta de um exercício inteiramente legítimo da curiosidade intelectual acerca da estrutura de conceitos fundamentais constitutivos de nosso entendimento do mundo.

     Quanto ao último estágio, que marca a instauração da ciência positiva, trata-se daquele no qual a explicação dos fenômenos não é mais feita pela imaginação, não visando um controle da realidade meramente imaginário e que satisfaz necessidades meramente psicológicas, mas pela razão científica, capaz de promover um controle efetivo sobre a realidade independente de nós. Comte tinha toda razão em enfatizar que a diferença entre ciência e pré-ciência é terminantemente qualitativa. No caso paradigmático da física, por exemplo, temos (sem querer polemizar com o claro antirrealismo comteano) a investigação das medidas de massas, de forças, de relações espacio-temporais entre elas, da combinação disso em estruturas (partículas, ondas) cujo comportamento é regulado por leis impessoais... Sem dúvida, o efeito da aplicação dessas leis nada tem de psicológico. Elas demonstram a sua adequação ao permitir-nos fazer previsões suficientemente precisas e objetivas, demonstrem-se elas verdadeiras ou não; e tais resultados podem ser intersubjetivamente aceitos em um contexto crítico, capaz de prevenir a influência sub-reptícia de interesses ideológicos escusos. O poder preditivo ainda é – hoje como sempre – universalmente aceito pelos cientistas como a característica mais marcante da ciência, ainda que mesmo isso já tenha sido contestado.[16]

     Parece lícito concluirmos que Comte acertou no atacado – mostrando grosso modo o que acontece – ainda que tenha errado no varejo – confundindo, reduzindo, rigidificando o processo. Ele errou ao crer que a sua época estaria assistindo aos momentos finais da formação e ramificação das ciências, e esse erro deve tê-lo encorajado em direção ao reducionismo sociolatrista que deu ao seu positivismo um sentido pejorativo, em alguma medida merecido. Mas hoje, quando nos sabemos às portas de um mundo esclarecido e potencialmente domesticado pela ciência, parece que devemos reconhecer em Comte o seu mais destacado profeta.

 

Anthony Kenny: uma posição alternativa

A lei dos três estágios sugere que ao estágio metafísico deve seguir-se inexoravelmente a ciência, e que a filosofia (no sentido tradicional que estivemos considerando) deve esgotar-se na ciência e na filosofia da ciência. Há filósofos, porém, que, mesmo admitindo que as ciências tenham nascido após um período mais ou menos longo de reflexão filosófica correspondente, continuam a defender que ao menos certos domínios da filosofia continuarão para sempre filosóficos: o sol seminal e tumultuoso de que falava Austin, embora perdendo grande parte de sua massa original, possui um núcleo que é permanente e irredutível. Assim pensou Anthony Kenny no prefácio de seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de Aquino, quando procurava justificar a atualidade das reflexões filosóficas deste último sobre as faculdades da mente.[17] Kenny começou fazendo algumas observações acerca do que distingue a filosofia da ciência. Se considerarmos a história da filosofia, escreve ele, podemos dizer que uma disciplina permanece filosófica enquanto seus conceitos permanecerem não clarificados e enquanto os seus métodos forem controversos. Pode ser verdade que mesmo nas ciências estabelecidas isso também aconteça. “Contudo”, prossegue ele:

 

quando problemas podem ser colocados de maneira não ambígua, quando conceitos são apropriadamente estandartizados, e quando o consenso quanto à metodologia de solução emerge, então nós temos uma ciência independente, mais do que um ramo da filosofia.[18]

 

A isso podemos acrescentar que a diferença básica não está somente na falta de consenso metodológico, mas notadamente na impossibilidade de se chegar, em filosofia, a um consenso quanto aos resultados: diversamente da ciência, a filosofia tem um caráter inevitavelmente conjectural ou especulativo, no sentido de que é praticamente impossível que filósofos cheguem a uma concordância acerca da verdade do que quer que seja que considerem merecedor de discussão.[19]

     Kenny acredita que não. Ele crê que a teoria do significado, a epistemologia, a ética e a metafísica permanecerão para sempre filosóficas; mesmo que novos problemas não-filosóficos sejam gerados pelo estudo dessas disciplinas para serem resolvidos por intermédio de métodos não-filosóficos, permanecerá sempre um cerne irredutível, que somente a filosofia é capaz de abordar, razão pela qual o estudo de um filósofo como Tomás de Aquino continua a valer o esforço.

     Kenny não expõe razões para a sua opinião. Mas algumas páginas adiante ele tenta fundamentá-la indiretamente, ao sugerir uma concepção alternativa da natureza da filosofia, diversa de sua concepção como protociência e em certa medida oposta a ela. Trata-se da idéia de que a filosofia é algo semelhante a uma forma de arte, e, como tal, produto do gênio de alguns indivíduos excepcionais. Se tal for o caso, não há progresso em filosofia, nem a questão da passagem da filosofia para a ciência se coloca: nesse caso, Kant não é superior a Platão, assim como Shakespeare não é superior a Homero.

     Kenny reconhece o exagero dessa concepção – sem dúvida, em praticamente todos os domínios da filosofia temos hoje muito mais a dizer do que tinhamos há alguns séculos. Mesmo assim, ele considera essa concepção essencialmente válida, ao menos com respeito ao que ele chama de resíduo filosófico, i.e., no tocante às indagações metafísicas, epistemológicas, éticas...

   Como razão para a adoção dessa concepção, ele observa que a filosofia em si mesma não é questão de conhecimento, de aquisição de novas verdades, mas de compreensão (understanding), no sentido de ser uma questão de organização do que já é conhecido. A filosofia deve oferecer o que Wittgenstein chamava de übersichtliche Darstellung: uma representação sinóptica, capaz de esclarecer e unificar nossa compreensão das coisas.[20] E isso requer, para Kenny, a intervenção do gênio:

 

A filosofia é tão abrangente em seu objeto, tão vasto é o seu campo de operação, e a aquisição de uma visão filosófica sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil, que somente uma mente excepcional pode perceber as consequências mesmo do mais simples argumento filosófico, quando para nós a maneira que resta para compreender a filosofia é estudando algum grande filósofo do passado.[21]

 

Se Kenny está certo, então a lei dos três estágios, ao menos no que ela diz acerca da passagem do estágio metafísico para o estágio científico, é essencialmente incorreta: o que a filosofia perde para a ciência é apenas aquilo que nunca lhe pertenceu legitimamente – não o seu cerne irredutível.

 

Crítica a Kenny e conclusão

Quero finalizar com algumas objeções um tanto céticas a respeito do que Kenny quis sugerir.

     Primeiro: é prima facie arbitrário – ao menos enquanto não nos forem apresentadas boas razões para tal – que se considere a teoria do significado, a epistemologia, a ética e a metafísica, como formando um cerne irredutível à ciência. É verdade que, entre outras, a filosofia da linguagem, a ontologia, a ética e a epistemologia permanecem como domínios centrais da atividade filosófica. Mas um defensor da completa absorção da filosofia pela ciência dirá que isso reflete apenas o estado atual da filosofia e das ciências. Filósofos de outras épocas tenderiam a incluir no cerne irredutível mais coisas do que aquilo que Kenny está disposto a incluir, e isso expõe o casuísmo de sua escolha.

   Também devemos notar que mesmo que a filosofia possa ser considerada em certa medida semelhante à arte, isso não serve de objeção contra o seu suposto caráter protocientífico. Se a metafísica é essencialmente produto do raciocínio orientado pela imaginação, então ela deve ter também uma função que se assemelhe à da obra de arte, como a de não possuir um fim fora de si mesma, a de produzir um prazer desinteressado etc. Ela se distingue da arte por ter uma preocupação com a verdade e com uma resposta racional a questões fundamentais.

   Por fim, quanto à idéia de que a filosofia é, em seu cerne, questão de entendimento, interpretado como organização do que já sabemos, devemos notar que essa é uma idéia inspirada em Wittgenstein e nos filósofos da linguagem ordinária, os quais compreenderam a filosofia em termos de análise ou elucidação conceitual. Podemos perguntar em que medida isso é lícito; em que medida, afinal, precisamos organizar o que já sabemos, se o próprio saber já é, em si mesmo, organização conceitual? E se essa organização é apenas explicitação de uma organização já implicitamente presente em nossos hábitos linguísticos, como muitas vezes se pretende, por que razão ela não pode vir a ser feita pelo próprio homem de ciência, da mesma forma que a organização da gramática de uma língua é feita pelos gramáticos? E por que razão devemos supor que essa explicitação não possa chegar a um fim? Afora isso, a idéia da análise conceitual carece de limites distintos: em que sentido podemos dizer que Aristóteles analisou o conceito de movimento, mas não que Einstein analisou o conceito de simultaneidade?

   Falta à vaga proposta de Kenny um desenvolvimento que a torne convincente. Faltam, pois, razões que nos impeçam de chegar à conclusão de que mesmo as áreas mais nobres da filosofia não estão imunes à possibilidade de se tornarem científicas. Pode ser que essas áreas só tenham até agora permanecido filosóficas porque tratam de problemas excepcionalmente difíceis e complexos, apelando para níveis variados de abstração e pertencendo a uma variedade de domínios que se inter-relacionam de tal maneira que considerá-los passa a demandar um trabalho reflexivo particularmente amplo e elaborado – mas isso não significa que, com a ampliação dos domínios científicos tal trabalho não possa deixar aos poucos de ser especulativo para seguir os rumos mais previsíveis da ciência.

   Na verdade, é assim que muitos filósofos contemporâneos vêem a questão. Eis o que afirmou o epistemólogo Keith Lehrer acerca da sua especialidade:

 

Nós sustentamos que a afirmação de uma distinção entre filosofia e ciência teórica é falsa, tanto histórica quanto sistematicamente. Historicamente, é claro que as ciências especiais se separam da filosofia quando alguma teoria emerge tratando de um objeto circunscrito de uma maneira precisa e satisfatória. A filosofia permanece como o pote residual de problemas intelectuais irresolvidos. Atualmente, teorias do conhecimento ainda permanecem no pote. Não queremos afirmar que o presente estudo ou outra pesquisa recente nos tenha levado ao ponto onde a teoria do conhecimento possa ser depurada em uma ciência especial, mas esperamos que estejamos nos aproximando dessa meta mais do que alguns suspeitam e outros receiam.[22]

 

Caso Lehrer e, em sua essência, a intuição comteana de que a especulação filosófica pertence a um estágio intermediário do desenvolvimento do saber humano estejam com a verdade, outras questões se colocarão. Uma delas seria a de se saber se não haverá um fim também para a própria ciência e, consequentemente, para o próprio exercício do espírito de investigação. Uma outra questão – mais próxima de nossa problemática – seria a de se saber que forma tomarão os domínios científicos que acabarão por se desenvolver como continuação da atual epistemologia, das teorias do significado, da metafísica, da ética... Tratar-se-á de uma multiplicidade de teorias localizadas, respondendo a pequenas questões remanescentes, tão específicas quanto separadas umas das outras? Ou tratar-se-á de algo mais abrangente, constituído por sistemas conceituais complexos, nos quais cada parte seria um elemento necessário na avaliação do todo, e capazes, finalmente, de oferecer uma resposta segura às grandes questões legadas pela tradição? (Podemos inscrever a teoria de Comte, refinada e corrigida, como candidata a um modesto exemplo disso.)

   A primeira sugestão é mais adequada à mentalidade contemporânea, que me parece geralmente comprometida com um cientificismo reducionista. Kenny resiste a conclusões como a de Lehrer porque considera o cientificismo um corolário inevitável. Mas não há razões para que a segunda sugestão, na qual prefiro apostar, precise ser excluída. De fato, só no último caso podemos ter a esperança de que a grandeza do pensamento filosófico tradicional – no sentido dado por Kenny de um saber abrangente – permaneça de alguma forma preservada. Seja como for, se esses sistemas conceptuais complexos forem tais que suas consequências possam ser objetivamente avaliadas, se eles alcançarem suficiente consenso, se for possível um progresso cumulativo a partir deles, eles não serão mais filosofia – ao menos não no tradicional sentido aporético da palavra – e sim ciência. Firmar-se-á então um domínio de teorização científica abrangente, no qual serão consensualmente estabelecidas as soluções de princípio para as questões remanescentes mais difíceis da filosofia.

     É importante notar que podemos pensar assim, conquanto a nossa noção de ciência não esteja de antemão comprometida com critérios de cientificidade demasiado estreitos, por exemplo, se a ciência for entendida à maneira ampla de John Ziman, como conhecimento publicamente consensualizável,[23] oposta ao conhecimento não-publicamente consensualizável típico da filosofia. Com efeito, se a ciência for entendida como qualquer forma de conhecimento apta a adquirir consenso entre especialistas, então a aplicação da palavra torna-se suficientemente vasta para coincidir com aquilo que o nosso entendimento comum nos diz ser a ciência. Nesse caso qualquer domínio da filosofia passa, ao menos em princípio, a poder se tornar ciência, ou seja, poder se tornar consensualizável entre os especialistas, no caso, os filósofos.[24]

     Sem dúvida, muito do que eu disse pode soar desalentadamente cético aos ouvidos dos cultores da filosofia, mais do que aos filósofos. Soa como se serrássemos o galho sobre o qual nos sentamos. Minha opinião, contudo, é a de que é melhor assim. A metafísica tradicional, ainda que possa conter insights duradouros, cuja importância dificilmente pode ser exagerada, ainda que tenha sido e que certamente ainda seja capaz de inspirar e orientar novas pesquisas, de fato em certa medida também existiu como uma especulação melancolicamente enganadora – uma maneira de “ocultar desertos”, no dizer crítico de Nietzsche. Nessa medida e aliando-se à religião, ela não serviu apenas para saciar a curiosidade especulativa, mas também como forma de consolo para o espírito humano em um mundo de ignorância e de carência. Já em um mundo esclarecido pela ciência e domesticado pelos meios da técnica, a especulação destinada a confortar o espírito através da ilusão tende a tornar-se um injustificado anacronismo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Sir Anthony Kenny: Aquinas on Mind, London 1993, p. 4.

[2] J. L. Austin: Philosophical Papers, Oxford 1979, p. 232.

 [3] Para uma teoria mais detalhada e complexa da natureza da filosofia, ver meu livro: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA: Langham 2002).  

[4] J. P. Sartre: “O existencialismo é um humanismo”, in: Os Pensadores (Abril Cultural), São Paulo 1973, p. 27.

[5] Traduzo a palavra 'état' por 'estágio' ao invés de 'estado', de modo a fazer juz ao caráter dinâmico dos processos denotados pelo conceito comteano.

[6] Comte: Cours de Philosophie Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), tomo 1, p. 71 (uma tradução portuguesa de capítulos sobre as questões aqui consideradas, também do Discours sur L'esprit Positif, encontra-se na Coleção Os Pensadores, ed. Abril, S. Paulo 1973).

[7] Comte: pp. 70 e ss.

[8] D. L. Hull: Filosofia das Ciências Biológicas (título original: Philosophy of Biological Science), trad. ed. Zahar, Rio de Janeiro 1974, p. 15.

[9] Cf. Anne-Robert-Jacques Turgot: Réflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses, Heidelberg 1913 (1750), p. 10 e ss.

[10] Comte: Discours sur L'esprit Positif, Oevres, Paris 1968 (1844), tomo XI, p. 2 e ss.

[11] Um exemplo é a crítica de M. Scheler em „Probleme einer Soziologie des Wissens“ (in: Die Wissensformen und die Gesellschaft, Leipzig 1920). Scheler sugeriu a existência de diversos interesses e atividades culturais independentes, que, embora surgindo de um pré-estágio mítico comum, evoluem historicamente de forma independente e paralela. Sendo assim, Comte estaria confundindo um processo de diferenciação do espírito com um processo de desenvolvimento em estágios, quando o que realmente se dá é um processo de diferenciação, no qual se desenvolvem três diferentes funções ou finalidades: a do saber do sagrado (religião), a do saber cultural (metafísica) e a do saber de domínio (a ciência positiva) – saberes esses que originariamente estariam fundidos em uma religiosidade primitiva e mítico-mágica. Para Scheler, o conflito entre esses domínios do saber só surge quando um deles passa a abarcar indevidamente o domínio do outro.

   Essa parece ser, contudo, uma alternativa claramente desconfirmada pela história mais recente, que fala a favor do ponto de vista comteano. O que Scheler sugeriu pode, ademais, ser explicado sob uma perspectiva comteana: o surgimento de uma nova ciência modifica a metafísica e a religião, que devem acomodar suas concepções a um novo corpo de evidências para reaver a sua plausibilidade. Isso suscita a impressão de um desenvolvimento autônomo da religião e da metafísica, quando na verdade com elas se dá algo semelhante ao que ocorre com um regimento militar que, no intervalo de uma batalha na qual sofreu severas perdas, vê-se na necessidade de reagrupar o seu contingente.

[12] Jürgen Habermas: Erkenntnis und Interesse, Frankfurt 1973, p. 92.

[13] Giovanni Reale: História da Filosofia Antiga, São Paulo (trad. port. ed. Loyola) 1993, vol. I, p. 48.

 [14] Baruch Spinoza: Ethica, livro V, prop. 35.

[15] Karl Popper discute interessantes exemplos dessa espécie de especulação antecipadora da ciência entre os filósofos pré-socráticos em “Back to the Presocratics”, in Conjectures and Refutations, London 1989.

[16] A estratégia básica, pela qual a crítica ao racionalismo metodológico tenta relativizar a ciência, consiste, como sugeriu Popper, em exagerar dificuldades em impossibilidades (ver “Normal Science and Its Dangers”, in: I. Lakatos e A. Musgrave: Criticism and the Grouth of Knowledge, Cambridge 1974). Pretender que a astrologia, a alquimia e o curandeirismo possam estar em pé de igualdade com, digamos, a astronomia, a química e a medicina, como quis Feyerabend, é fazer uma concessão arriscada à ignorância e ao engodo. Para Comte a diferença não só existe, mas é qualitativa. No primeiro caso nada se obtém, afora meros efeitos psicológicos e sóciocomportamentais; no segundo obtêm-se previsões objetivas, sobre as quais pode reger um consenso desinteressado.

[17] Kenny: Aquinas on Mind, cap. 1.

[18] Kenny, p. 4.

[19] Claudio Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account, Lanham 2002, p. 12 e ss.

[20] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, Frankfurt 1976, vol. 1, sec. 122. A. Kenny: Aquinas on Mind, p. 9.

[21] Kenny: Aquinas on Mind, p. 9.

[22] Lehrer: Theory of Knowledge, San Francisco 1990, p. 7.

[23] J. M. Ziman: Public Knowledge: An Essay concerning the social Dimension of Science, London 1968.

[24] Esse ponto é particularmente convincente quando pensamos que os diversos domínios da ciência que vão emergindo se complementam entre si, podendo por meio disso reforçarem e adequarem concepções filosóficas de maneira que elas se tornem consensualizáveis. 

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