FILOSOFIA, CIÊNCIA E HISTÓRIA (COMTE)
Infame, informe liberdade
Romântica,
ignorante dos cinco poliedros
únicos e perfeitos./
ignorante das jaulas da
geometria divina,
Feliz prisão da retina,
Ignorante do prazer contínuo das impiedosas
e rigorosas redes/
Doce contração do cérebro
Ligamento desejado,
Paliçada, entrelaços gloriosos, limite
dourado,
Corbeille, coroa arminhada.
Salvador Dali
Como
se relacionam filosofia e ciência, do ponto de vista de seu desenvolvimento
histórico? Essa é uma questão complexa e necessariamente especulativa, posto
que a sua resposta envolverá a inevitável admissão de pressupostos problemáticos
acerca da natureza da filosofia e da própria ciência.
Sobre
o relacionamento histórico entre filosofia e ciência, uma constatação
fundamental é a de que a filosofia, como escreveu Anthony Kenny, é a mãe das
ciências, melhor dizendo, “o útero” no qual elas foram preparadas para o seu
nascimento[1].
Essa não é tanto uma hipótese quanto a constatação de um fato histórico, que
foi impressivamente exposto por J. L. Austin na comparação que ele fez do destino
da filosofia com o de um sol central e inicial, seminal e tumultuoso, do qual
de tempos em tempos é lançado fora um planeta frio e bem regulado, uma ciência,
que a partir de então progride com segurança rumo a um estado final distante[2].
Passando da analogia aos fatos, podemos
começar lembrando que ainda na obra de um filósofo como Aristóteles a palavra ‘filosofia’
(filosofia)
aplicava-se indiferenciadamente a todo o saber humano, tendo sido o seu domínio
de aplicação progressivamente restringido no curso da história. Que tudo fosse
considerado filosofia era entre os gregos justificado, pois o que já existia em
termos de ciência era ainda inicial e fragmentário. Aos poucos, porém, as
ciências básicas foram se destacando da filosofia. Considere-se o caso da matemática.
Embora ela tenha sido a primeira ciência a diferenciar-se da filosofia, sabemos
que os filósofos pitagóricos ainda mantinham uma compreensão metafísica de sua
natureza, considerando os números e suas propriedades constitutivas como sendo
o princípio supremo, delimitante e determinante de todas as coisas. Não
obstante, o tratamento metafísico-especulativo de questões que são de fato
pertencentes à matemática cedo deixou de ocorrer na filosofia de forma
importante. Algo semelhante aconteceu com a física. Ela só passou a ser
geralmente entendida como uma ciência independente após Galileu. Antes disso, o
seu lugar epistêmico costumava ser ocupado pela física aristotélica, ao menos
na medida em que esta continha uma especulação filosófica acerca da natureza do
mundo físico. Mais tarde a química, especialmente a partir de Lavoisieur,
tornou-se uma ciência independente de teorias místicas ou especulativas sem
real poder preditivo, o mesmo ocorrendo aos poucos com a biologia. A psicologia
filosófica teve origem em livros com De Anima de Aristóteles, e
filósofos como Descartes e Spinoza produziram minuciosas análises das faculdades
da mente. Mas somente na segunda metade do século XIX partes importantes da
psicologia filosófica começaram a deixar de pertencer à filosofia, quando o
método tipicamente introspeccionista dos filósofos começou a ser substituído,
de um lado, pela psicologia resultante do uso de métodos psicoterapêuticos (o
que conduziu ao desenvolvimento da teoria psicanalítica), de outro, pela psicologia
experimental (o que permitiu desenvolvimentos como a teoria do reforço, de
teorias do desenvolvimento, da psicologia social etc.). Também desde o final do
século XIX o desenvolvimento da lógica simbólica permitiu uma enorme ampliação
das possibilidades do cálculo lógico, o que impôs restrições à credibilidade da
especulação filosófica, antes realizada no terreno da ignorância lógica (e.g.:
os excessos da “lógica dialética”). Austin pretendeu, ele próprio, separar da
multidirecionada massa de indagações filosóficas uma nova “ciência da linguagem”,
caracterizada pela sua teoria dos atos de fala, hoje pertencente à pragmática e
ensinada em cursos de linguística. Também a neurofisiologia, a psicologia cognitiva
e os diversos domínios de questionamento de uma emergente ciência da mente
deverão, assim se espera, abarcar domínios que até pouco pertenciam
exclusivamente à especulação filosófica.
Com efeito,
que as ciências básicas tenham nascido após um período mais ou menos longo de
especulações de caráter filosófico em um domínio correspondente, mas ainda indistinto
e confundido com outros, é um fato dificilmente recusável. Por isso a filosofia
pode ser considerada, ao menos em certa medida e em certos domínios, como o
marcador de lugar da ciência; ou seja, como uma antecipação especulativa e frequentemente
equivocada da ciência que ainda está nascer; como uma forma de protociência.
A
reflexão em torno disso conduz a questões filosóficas de interesse, como: – Como
se daria essa passagem? – Quais são os critérios que usamos para distinguir a
filosofia da ciência? – Irá a filosofia, ao final, ser completamente absorvida pela
ciência, deixando de constituir um domínio diverso de investigação? – Possui a
filosofia um objeto próprio de investigação, independente dos objetos das
ciências particulares? – O que é filosofia, afinal?
Tentei esboçar uma resposta a essas questões
em outro lugar.[3] Quero
aqui considerar apenas duas respostas que outros filósofos deram a elas, com o
intuito de fazer algumas reflexões comparativas que possam melhorar a nossa
compreensão das relações entre filosofia, ciência e história.
A primeira concepção a ser considerada constitui-se
em todo um sistema filosófico, em parte determinado pela percepção do fato
histórico acima resumido. Trata-se da doutrina positivista da evolução da mente
e da cultura humana desenvolvida por Auguste Comte em seu Curso de Filosofia
Positiva e em outros trabalhos. A filosofia de Comte tem sido muito
facilmente desmerecida, não faltando razões para isso. Sem dúvida, a qualidade
de suas idéias é bastante variável; muito do que ele escreveu é incorreto ou
perdeu a atualidade; há uma visão reducionista das questões e uma disposição
dogmática, que transparece nos desdobramentos da doutrina. Parece que Comte, em
parte devido a acontecimentos de sua vida pessoal, sofreu uma progressiva recaída no dogmatismo metafísico-religioso
que a lógica de seu pensamento o obrigaria a combater, terminando por criar uma
curiosa e estranha religião secular: a religião da humanidade, cujo
objeto de culto não era um Deus transcendente, mas a humanidade essencial,
representada pela obra e exemplo dos grandes homens. Um filósofo como Sartre
chegou a dizer que a espécie comteana de humanismo conduz ao fascismo[4].
Isso é injusto. Não obstante, um culto elitista, que supervalorizasse o social
em detrimento do indivíduo, ignorando a democracia, poderia facilmente conduzir
a alguma forma de totalitarismo. Nada disso, no entanto, deve desencorajar-nos
da tentativa de ler Comte sem preconceitos, retirando de seus textos os insights
plausíveis para pô-los em diálogo com a perspectiva contemporânea.
A classificação comteana das
ciências
Comte
relaciona a filosofia à ciência através da assim chamada lei dos três
estágios[5].
Como a aplicação dessa lei à filosofia só é adequadamente compreendida à luz da
classificação das ciências fundamentais por ele adotada, quero expor as duas, a
começar pela última.
Comte utiliza como critério para a sua
classificação a generalidade e complexidade de cada ciência.
Complexidade e generalidade estão em proporção inversa: a maior complexidade no
conteúdo das teorias de uma ciência vem acompanhada de uma menor extensão, de
uma menor generalidade. Tal oposição não é casual, mas intrínseca: é ele quem
nota que os fenômenos, para serem mais gerais, não podem implicar-se com
situações particulares, precisando ser por isso mesmo mais simples.[6]
Aplicando tal critério, as ciências
fundamentais são para Comte a matemática, a astronomia, a física, a química, a
biologia e a sociologia.[7] A matemática
é a mais geral, aplicando-se simplesmente a tudo o que existe. Em uma consideração
mais detida, ela não é propriamente uma ciência, por não investigar seres
concretos, mas um método comum às diversas ciências. A próxima ciência é a astronomia
ou física celeste. A seguir vem a física terrestre, que contém muito da física
propriamente dita, ocupando-se do estudo das leis gerais da matéria. Após ela
vem a química, mais complexa e menos geral, ocupando-se dos fatos químicos.
Em nível de complexidade maior do que o da química e dizendo respeito a uma
porção ainda mais restrita do universo temos a biologia, que estuda as
leis gerais da vida. Por fim chega-se à mais específica e mais complexa das
ciências, que Comte denominou física social, a sociologia,
que estuda o homem como ser social.
À ordenação das ciências da mais simples para
a mais complexa corresponde a sequência de seu surgimento no curso da história;
e essa ordem de seu desenvolvimento é natural e necessária, posto que o
conhecimento das ciências menos gerais pressupõe o conhecimento das mais
gerais. Por isso a sociologia só emergiria como ciência no alvorecer do século
XIX, em parte por obra do próprio Comte.
Discutindo a classificação
comteana das ciências
Uma
primeira questão referente à hierarquia das ciências é sobre a ausência da
psicologia, que aparentemente deveria encontrar-se entre a biologia e a sociologia.
A resposta é que Comte não inclui a psicologia em sua classificação porque por
isso ele entendia a psicologia introspeccionista (filosófica) da época. A psicologia
não é para ele possível, na medida em que a introspecção não é verdadeiramente
possível: a mente não pode dividir-se em duas, uma que raciocina e outra que
observa o seu raciocinar. Comte também não inclui a filosofia em sua
classificação. A filosofia, em um sentido afirmativo da palavra é, para Comte, a
filosofia positiva, vista como uma ciência suprema, cuja principal
função teórica é a de classificar as ciências, determinar os seus limites, julgar
os seus progressos. Enquanto tal, a filosofia se aproxima do que hoje
chamaríamos de uma teoria das ciências. Mas o que diria Comte da maior parte
daquilo que tradicionalmente chamamos de ‘filosofia’? Isso ele anatematizaria
sob a rubrica de metafísica: uma forma de pensamento pertencente a um
estágio pré-científico e temporário do desenvolvimento da mente humana.
A classificação comteana das ciências é
também em outros pontos questionável. É obviamente enganosa a oposição entre física
celeste e física terrestre. A astronomia não é uma ciência fundamental.
Excetuando o seu aspecto “cartográfico”, a astronomia é hoje geralmente a
física aplicada ao macrocosmo. A física é que é a ciência empírica mais
fundamental, a mais geral das ciências empíricas, muito além da astronomia,
pois se aplica genericamente a tudo o que é de natureza espacio-temporal,
incluindo nisso os corpos celestes... E a exclusão da psicologia do domínio das
ciências empíricas perdeu hoje todo o sentido, uma vez que o método introspectivo,
criticado por Comte, há muito deixou de ser vital à investigação psicológica.
Também se pode objetar que o critério pelo
qual reconhecemos a complexidade/simplicidade de uma ciência pode não parecer
muito claro. Em que sentido, afinal, podemos dizer que a física é mais simples
que a biologia? Primeiro, há a maior variedade do que é compreendido
pela biologia; se considerarmos a multiplicidade dos fatos que precisam ser
conhecidos como fazendo parte do domínio científico, parece claro que a biologia
é bem mais complexa do que a física. Segundo, há uma maior complexidade em
termos de regularidades de âmbito mais ou menos restrito: por exemplo,
regularidades restritas a essa ou aquela espécie de organismo ou a suas partes.
Se considerarmos essas regularidades como um equivalente biológico do que em
física é chamado de lei, prescindindo, pois, de uma exigência de universalidade
irrestrita no sentido de preservação de validade para todos os seres vivos,
então devemos também admitir que as leis físicas são poucas em comparação com a
grande variedade das regularidades biológicas a serem consideradas. Por um ou outro
desses critérios de comparação, a classificação das ciências fundamentais pelo
critério de graus de complexidade crescentes mantém-se razoavelmente plausível.
Quanto
ao critério de generalidade decrescente, trata-se de um lugar-comum irrecusável.[8] É
evidente que a física é a mais geral das ciências empíricas, por aplicar-se a
tudo o que existe no mundo empírico. Já a química aplica-se apenas àquela parte
do mundo físico formada de átomos e moléculas em suas combinações possíveis, e
a biologia possui uma aplicação ainda mais estrita que a química, reduzindo-se
ao âmbito dos organismos vivos. A psicologia, uma vez admitida como ciência fundamental,
se aplica apenas aos seres vivos conscientes; e a sociologia, por fim,
constitui o domínio de aplicação mais restrito de todos, pois só pode ser
aplicada a organizações sociais entre seres vivos conscientes. Muitas outras
ciências existem, mas elas não são mais básicas ou fundamentais; elas resultam
da aplicação das ciências empíricas fundamentais a específicas constelações de
fenômenos (exemplos: a astronomia, a neurofisiologia, a psicologia social).
Também
faz sentido a idéia que Comte faz de uma subordinação entre as ciências.
A matemática é um pressuposto necessário para o desenvolvimento das ciências
empíricas. E é difícil imaginar que a fisiologia ou a biologia pudessem ter-se
desenvolvido se nada soubéssemos de física. Pense, por exemplo, na mensuração
do consumo calórico dos organismos ou na invenção do microscópio... Também a
psicologia experimental não seria certamente possível sem uma base mínima de
conhecimentos fisiológicos ou biológicos. Descontando-se, pois, inadequações
que hoje nos parecem evidentes, concluímos que a classificação comteana das
ciências, embora exigindo correções, apóia-se em princípios válidos, cuja
vaguidade é adequada ao caráter difuso da matéria à qual se aplicam.
A lei dos três estágios
A lei dos três estágios é uma ordenação do
trajeto percorrido pela mente, que vai da superstição à ciência. Ela não é
criação de Comte. Outros autores já haviam tido pensamentos semelhantes. Sobre
isso basta dizer que, já em 1750, A-R-J. Turgot havia constatado que o conhecimento
possui três estágios de desenvolvimento, passando da religião à metafísica e da
metafísica à ciência.[9]
Somente Comte, porém, percebeu e explorou a idéia em todas as suas
possibilidades. Ele a desenvolveu em maiores detalhes, adicionando uma grande
quantidade de material confirmador proveniente de seus estudos de história da
ciência e da sociedade, generalizando-a, por fim, à altura de uma lei de impressionante
abrangência, uma lei que em seu entender não era especulativa, mas científica,
posto que empiricamente corroborada pela história do surgimento de cada ciência
fundamental. Essa lei aplica-se em três níveis: (i) ao nível do desenvolvimento
comum do saber, (ii) ao nível do desenvolvimento da mente individual, (iii) ao
nível desenvolvimento da própria história social do homem.
É
como uma lei genérica acerca do desenvolvimento do saber ou da cultura humana
que a lei dos três estágios é mais importante. Para Comte, na base do
surgimento de cada uma das ciências fundamentais encontra-se um processo evolutivo
no qual o domínio correspondente do saber passa, necessariamente, primeiro pelo
estágio teológico ou fictício, em seguida por um estágio metafísico
ou abstrato, chegando finalmente a um definitivo estágio científico
ou positivo.
Comecemos pelo estágio teológico ou
fictício. Ele constitui o ponto de partida necessário para a evolução da mente.
Nele o homem pretende explicar os fenômenos do mundo circundante recorrendo a causas
essenciais (primeiras ou finais), originadas da vontade de seres pessoais
sobre-humanos: os deuses ou o Deus. O conhecimento obtido
nesse primeiro estágio pretende-se absoluto. E o saber assenta-se apenas
como produto da imaginação, não da razão.
O estágio teológico assume para Comte três
formas subsequentes: as do fetichismo, do politeísmo e do monoteísmo.[10]
No fetichismo está presente uma mentalidade animista, que concebe objetos do mundo
externo como sendo vagamente dotados de vida, de paixões e de vontade. Como
exemplo temos a adoração dos astros pelos povos antigos. Com o transcorrer do
tempo, as forças que animavam imanentemente os objetos são misteriosamente
transportadas para seres fictícios: os deuses. Com isso chegamos ao politeísmo,
típico da Grécia antiga. Mais adiante, as divindades da religião politeísta são
fundidas em uma só, chegando-se então ao subestágio do monoteísmo, presente nas
religiões judaico-cristãs. Há nesse movimento um progresso da mente dentro da
ordem teológica, o qual, tendendo à abstração e à redução do número das causas
na explicação dos fenômenos, principia o processo de substituição da imaginação
pela razão.
O
segundo estágio é o metafísico. Ele representa um notável progresso, pois,
embora se continue a procurar por causas essenciais, o princípio ou explicação
não se encontra mais em presumíveis realidades divinas, mas de algum modo na
própria natureza. O princípio explicativo é posto nas próprias coisas, na
medida em que estas encerram ou atuam de acordo com “poderes naturais”, “propriedades
essenciais”, “entidades abstratas”. Tais entidades (como o éter e os espíritos
vitais) são, contudo, ficções inefetivas, “abstrações personificadas”, que funcionam
de maneira mais ou menos semelhante aos deuses no estágio teológico. Elas
servem somente à satisfação de necessidades psicológicas, e o seu caráter é
fundamentalmente equívoco: elas são inerentes aos corpos físicos, mas ao
mesmo tempo inobserváveis e diversas deles; elas não são seres sobrenaturais,
mas também não chegam a fornecer explicações verdadeiramente naturais para os
fenômenos. E precisam permanecer suficientemente vagas e obscuras para se
manterem fora do alcance da crítica.
No
estágio metafísico o conhecimento continua a ter um caráter absoluto, na medida
em que as “entidades” ou “propriedades”, embora devendo pertencer à própria
realidade, possuem em geral imutabilidade e necessidade, estando livres
da contingência e relatividade de cada coisa em concreto. Não obstante, a
redução das causas transcendentes e sobrenaturais a princípios naturais e
interiores às próprias coisas significa uma certa “racionalização” na explicação
do conhecimento. Ainda aqui, contudo, o saber continua a assentar-se no poder
da imaginação, melhor dizendo, no uso abusivo de uma razão que se deixa guiar
mais pela imaginação do que o apoio observacional o permite.
O
estágio metafísico é, não obstante, intermediário e provisório, não passando de
uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo, que é
aquele no qual o saber se afirma como ciência. Para Comte, o estágio positivo é
instaurado com o abandono das indagações teológicas e metafísicas, evidenciadas
como irrespondíveis e estéreis. O conhecimento procurado não é mais absoluto,
mas relativo à condição e situação humana. Aqui não é mais a imaginação
que explica os fenômenos, mas a razão entendida como adesão ao dado, orientada
para a ação operativo-instrumental. Essa é a razão científica, que não busca
mais uma causa essencial das coisas, mas a descoberta de leis, a dizer,
a verificação observacional da vigência de certas regularidades entre os
fenômenos. O conhecimento dessas regularidades nos permite fazer previsões
e, em certa medida, dominar a natureza. Através disso as ciências
tornam-se um instrumento a serviço das necessidades humanas reais, em
consonância com os interesses e fins da sociedade.
Para
Comte, a função efetiva dos dois primeiros estágios é apenas a de preparar o
caminho para o estágio positivo: somente através dos estágios teológico e
metafísico a mente humana reúne forças para a perseverante observação dos fatos
que acaba por conduzir à ciência. Um exemplo muito claro disso foi a passagem
da astrologia à astronomia: a contínua observação dos astros, com vistas a
auscultar o destino humano, acabou por conduzir a uma mensuração matemática dos
fenômenos celestes, a qual criou condições para o surgimento das teorias
astronômicas.
Em segundo lugar, a lei dos três estágios se
aplica ao nível do desenvolvimento individual dos seres humanos, o que
evidencia a sua raiz biológica. Comte observou que somos teólogos na infância,
pois vivemos em um mundo imaginário, acreditando em seres míticos; somos
metafísicos na adolescência, quando, tendo desenvolvido o uso da razão,
tornamo-nos capazes de especular, passando a extrair conclusões de premissas as
mais incertas; por fim, quando atingimos a idade adulta – na medida em que
realmente conseguimos chegar a ela – tornamo-nos físicos, admitindo somente o
saber positivo, firmado e confirmado pela ciência.
Por
fim, a lei dos três estágios também vem a se revelar ao nível da organização e
funcionamento da sociedade. Para Comte, o estágio ou período teológico durou até
o fim da Idade Média, sendo constituído por uma sociedade autoritária e
militarista, dominada por sacerdotes e reis; da reforma protestante até à revolução
francesa, as idéias metafísicas passaram a adquirir predominância na orientação
da sociedade, instaurando-se o império da lei e dos direitos abstratos; mas foi
só com a revolução industrial que se tornou possível o desenvolvimento de uma
sociedade pacífica, na qual a vida econômica do homem passou ao centro das
atenções. Nessa sociedade a ciência está destinada a exercer papel determinante
na vida social, a qual acabará por ser organizada e regulada por uma elite de
cientistas.
Avaliação da lei dos três
estágios
A
lei dos três estágios sempre foi objeto de críticas. Responderei brevemente a
elas, pois parece-me claro que a história a tem confirmado, e que essa lei
exige apenas correções de detalhes.
Há,
primeiramente, objeções provenientes de teorias alternativas. Como essas
objeções são externas e essas teorias não são elas mesmas muito plausíveis[11],
não será preciso discuti-las aqui. Quanto às objeções internas, há duas mais
importantes. Uma primeira, salientada por Habermas,[12] é
a de que a lei dos três estágios é, ela própria, metafísica, pois não se
baseia em fato observacional. A resposta é que isso seria correto se
precisássemos adotar uma concepção reducionista do fenômeno ou fato social ou
cultural básico, como se este devesse ser algo observável imediatamente e sem
pressupostos. Mas, primeiro, é o próprio Comte quem denuncia uma concepção reducionista
da ciência positiva, rejeitando-a sob o epíteto de empirismo. Segundo,
parece-me perfeitamente razoável conceber a lei dos três estágios como uma inferência
para a melhor explicação, resultante da consideração de uma grande diversidade
de fatos sócioculturais em sua progressão histórica. É por dar coerência à
multiplicidade desses fatos que essa explicação nos parece à primeira vista verossímil.
E sua confirmação ou refutação pode ser feita pela inferência de fatos sócioculturais
futuros, bem como através da investigação mais detalhada de fatos sócioculturais
passados. Quanto ao último ponto, o procedimento lembra aquele pelo qual uma
teoria biológica como a da evolução das espécies pôde ser comprovada.
A
segunda objeção é a de que a lei dos três estágios, quando aplicada à sociedade,
não corresponde adequadamente à ordem de surgimento das ciências. Afinal, a
matemática já existia entre os gregos, em pleno estágio teológico; e a astronomia
e a física já existiam como ciências no estágio metafísico, antes da revolução
francesa e da instauração do estágio positivo.
Essa
objeção foi devidamente respondida pelo próprio Comte. Com base no que ele diz
podemos considerar que, do ponto de vista da ordem social predominante, os
estágios sobrepõem-se parcialmente uns aos outros, melhor dizendo,
elementos culturais de um estágio persistem em outros, ficando a identificação
de uma ordem social como pertencente a um certo estágio na dependência da predominância
relativa de seus elementos. Assim como no adulto alguns traços do
adolescente e da criança podem persistir, e também no adolescente, e mesmo na
criança, alguns traços do pensamento adulto podem precocemente surgir, o mesmo
se dá com o desenvolvimento da civilização. A sociedade, em seu estágio positivo,
só pode resultar de uma situação na qual as ciências fundamentais já se
encontram em geral estabelecidas. Torna-se assim compreensível que ciências
mais gerais que surgiram muito antes, como a matemática na Antiguidade e a física
no Renascimento, não pudessem deflagrar o estágio positivo ao nível social. A
própria ordem hierárquica vigente entre as ciências explica, pois, o caráter
escalonado da positivização da cultura e da sociedade. Essa dissincronia entre
o desenvolvimento de idéias científicas e o da sociedade também ajuda a explicar
a falta de assimilação de certas descobertas científicas na Antiguidade (e.g.
a teoria heliocêntrica), as quais, não podendo encontrar o meio cultural e social
propiciador de uma recepção adequada, acabaram sendo rejeitadas ou esquecidas.
Poderíamos acrescentar que se quisermos
admitir a existência de leis gerais do desenvolvimento sócio-histórico-cultural,
precisaremos estabelecê-las de maneira suficientemente vaga e flexível para que
elas façam jus à própria complexidade e variedade incoercíveis desse domínio da
investigação. Isso significa que o modelo a ser considerado não deve ser o das
generalizações universais, mas algo cuja vaguidade lembra, digamos, as leis
estatísticas. Ou seja: elas devem ser entendidas em um sentido meramente tendencial,
entendendo-se com isso correlações de fenômenos inevitavelmente genéricas e
incertas, o que se dá devido à indefinida variedade de fatores imprevisíveis
que podem intervir na aplicação desta como de outras leis sócio-histórico-culturais.
É apenas nesse sentido que se pode falar de uma “lei” dos três estágios. Apesar
disso, essa lei não é uma generalização acidental, pois a sua aceitação nos faz
depreender que se uma outra civilização, constituída de seres humanos como nós
e em circunstâncias semelhantes, se desenvolvesse até a aquisição do
conhecimento científico, dado à própria natureza desses seres, ela passaria por
fases de explicações mitológico-religiosas, seguidas de fases de explicações
especulativas, para só então chegar a explicações científicas. E essa é uma
idéia razoável.
Minha sugestão é, pois, a de que, no
essencial e em uma interpretação suficientemente flexível, a lei dos três
estágios se sustenta. No que se segue pretendo ir um pouco além, entrando em
detalhes sobre a medida e a maneira como as concepções filosóficas poderiam ser
explicadas a partir da descrição comteana do estágio metafísico.
Princípios explicativos e
entidades metafísicas
Começando
com o estágio teológico, parece evidente que a mais primitiva ou originária
forma de explicação dos fenômenos baseia-se em uma concepção animista de suas
causas, resultante de uma projeção de características próprias dos seres
humanos no mundo externo. Sem dúvida, para os povos ditos primitivos, essa era
a forma mais natural de explicar a natureza: catástrofes naturais, pestes, uma
boa ou má colheita, tudo podia ser explicado pela intervenção dos deuses. Isso
é patente na mitologia grega e em um poema épico bem conhecido como a Ilíada:
quando o dardo de Aquiles não acerta o adversário, não é sua a irrisão; é que
algum deus do partido oposto interferiu, segurando o dardo no ar e desviando-o
de seu alvo.
Um
ponto a ser notado, entretanto, é que o estágio teológico possui funções mais
amplas do que a de preparar o caminho para o aparecimento da ciência. Após
Comte, outros pensadores tornaram mais claras as funções sociais e, digamos,
psicológico-afetivas da religião. Do lado psicológico-afetivo, há a função de
amenizar a imensa insegurança que deve ter suscitado no ser humano a aquisição
da consciência de ser um animal mortal, vivendo em um mundo ameaçador, sobre
cujos constantes perigos ele não possuia qualquer controle. Certamente, a
religião diminui essa insegurança ao sugerir a existência de divindades protetoras,
e que as limitações da condição humana possam ser superadas pela troca de
favores com tais divindades, entre eles a sobrevivência à própria morte
(Freud). Do lado social, há a função de garantir o funcionamento e a preservação
de comunidades sociais, na medida em que a divindade comum reforçaria os
vínculos sociais, unificando os membros de uma comunidade em torno de valores,
obrigações e ideais comuns (Durkheim). Diversamente, o que Comte mais salientou
foi a função psicológico-cognitiva
da crença religiosa: a função de estabelecer uma maneira de conceber o mundo ao
nosso redor, a qual seja capaz de organizá-lo e explicá-lo, ainda que só na
aparência.
O
ponto que mais importa esclarecer aqui é o da natureza dos agentes causais
sobrenaturais referidos no estágio teológico. De maneira geral podemos
caracterizá-los como possuindo uma natureza mental, mas em um sentido hipostasiado,
i.e., no sentido de uma ficção falsamente considerada
real. Para se entender melhor em que consiste o que queremos chamar de
hipostasia do mental, podemos caracterizá-la de modo suficientemente genérico
pela atribuição de certas propriedades às entidades hipostasiadas, as quais
podem resumir-se em:
(i) a
propriedade de serem hipermentais, no sentido de que seus poderes mentais
são alterados e/ou potencializados, frequentemente ao infinito;
(ii) a
propriedade de serem mentais-transcendentes, no sentido de que se trata
de mentes geralmente consideradas como existindo independentemente do mundo
físico-material (sendo por isso também físico-transcendentes).
Assim,
as divindades e fatores anímico-mágicos, resultantes de projeções
antropomórficas, podem ser por nós entendidas em termos de alterações e potencializações
do mental, além de sua provável transcendentalização com relação ao físico; é o
mental que, projetado, passa a possuir funções mágicas, que devem ir além do
que efetivamente conhecemos da ordem natural.
Há
ainda uma outra propriedade que pode ser útil na caracterização de entidades
hipostasiadas, que é:
(iii) a propriedade de serem hiperfísicas,
ou seja, fisicamente alteradas e/ou potencializadas, ou de deterem poderes
hiperfísicos.
Do
mesmo modo que a hipermentalidade é uma hipostasia do mental, a
hiperfisicalidade é a hipostasia do físico. Introduzo essa última categoria em
parte com o objetivo de contemplar a idéia de filósofos materialistas, como
Epicuro e Hobbes, que supunham serem os deuses ou o Deus constituídos de algo
como uma tênue e indestrutível espécie de matéria. Assim, mesmo com entidades físicas
ou com a forma física de interação, pode haver a hipostasia de agentes, que
passam a ser hiperfísicos, no sentido de que suas naturezas e ações físicas são
alteradas e/ou potencializadas, por serem e por realizarem algo que está fora e
além daquilo que a natureza física, especialmente a do ser humano, é capaz de
fazer.
É preciso notar que, embora uma mesma
entidade possa ser hiperfísica e também hipermental, uma mesma entidade não
pode certamente ser hiperfísica e mental-transcendente (não obstante isso, uma
entidade composta de propriedades poderia ter algumas propriedades hiperfísicas
e outras hipermentais e mentais-transcendentes, sem contradição). A maior
dificuldade encontrada pelo materialismo metafísico que exclui o
mental-transcendente, explicando o hipermental pelo hiperfísico, é que, por só
admitir entidades materiais, ele é facilmente levado à contradição quando se obriga
a dotar as divindades, não só de propriedades hiperfísicas, como também de propriedades
que parecem só poder pertencer ao domínio único do mental-transcendente, tais
como as da eternidade e imutabilidade. Com essa limitação, o discurso filosófico
materialista acerca do hiperfísico tende a tornar-se uma especulação livre
acerca da natureza oculta do mundo físico, coisa que realmente foi feita
pelos atomistas antigos (o que aponta, como em breve veremos, para uma
limitação na idéia de que a especulação filosófica deva sempre e por
necessidade conter elementos antropomórficos).
Falamos
até agora de entidades mentais hipostasiadas. Mas podemos também falar das
palavras e conceitos que as nomeiam, e que povoam o universo do homem
primitivo. Embora essas palavras e conceitos objetivem fazer referência
principalmente ao mental hipostasiado (ao hipermental, ao mental-transcendente),
como o que se tem como modelo efetivamente apresentado à experiência é apenas o
mental e o físico tal como eles se nos apresentam no mundo em que realmente
vivemos, o resultado é que só indiretamente (através da alusão analógica
ao conhecimento efetivo e compartilhado que os homens adquiriram do mundo
físico) se consegue fazer com que a referência ao mental-hipostasiado seja
intersubjetivamente compreendida e aceita na falta das bases reais para a sua
aceitação.
As
três categorias acima introduzidas – hipermentalidade, transcendência e
hiperfisicalidade – podem parecer uma complicação supérflua. Mas elas evidenciarão
a sua utilidade no que se segue, posto que podem ser usadas na elucidação da
natureza de conceitos fundamentais da metafísica especulativa em geral.
Passemos,
pois, ao estágio metafísico. Nele ocorre um afastamento do antropomorfismo
explícito. Busca-se a ciência. Mas não foram ainda dadas as condições para a ciência.
E não havendo isso, o passo que se dá adiante não encontra um solo firme que o
suporte. Então a explicação dos fenômenos passa a depender da suposição da
existência do que Comte chamou de princípios ou essências ocultas.
Apela-se geralmente a entidades e princípios metafísicos ambíguos, de um
lado sendo como se pertencessem à ordem natural, mas de outro
comportando-se misteriosamente como se mantivessem ainda algo dos
atributos das projeções antropomórficas do estágio anterior. Ao exemplificar,
Comte costumava ter em mente forças, atrações e repulsões, que eram tidas como
princípios, referindo-se geralmente a formas de pseudociência imediatamente
anteriores às ciências fundamentais, e de modo apenas alusivo à metafísica
tradicional (supostamente por desconhecê-la e subestimá-la). Contudo teria sido
muito mais interessante se ele tivesse dado maior atenção a uma análise dos
princípios explicativos não-observáveis que a metafísica especulativa historicamente
postulou, pois esses seriam os princípios ou essências mais características do
estágio dito metafísico.
Aplicação à história da
metafísica
Quero
agora estender essas sugestões de Comte aos conceitos e princípios que
caracterizaram boa parte da filosofia especulativa tradicional, valendo-me para
tal das distinções categoriais inicialmente introduzidas. Para tal pode ser
útil lançarmos um olhar inicial sobre as origens da filosofia ocidental. No que
concerne à cultura, é muito claro que na civilização ocidental o estágio
metafísico teve as suas primeiras manifestações entre os filósofos pré-socráticos.
Foram eles que, insatisfeitos com as explicações mitológicas, substituíram os
Deuses por entidades que deveriam atuar como princípios últimos –
entidades que, assim como eles as entenderam inicialmente, eram tais que
deveriam reger a origem e o fim das coisas, além de sustentá-las em seu ser.[13]
Quais as razões dessa substituição? Ao que parece, com o acúmulo de novos conhecimentos empíricos e
técnicos, com o desenvolvimento fragmentário de explicações científicas, com a
inevitável relativização das crenças proveniente do contato com outras
culturas, as explicações com base na vontade dos deuses perderam o poder de
convicção entre os pensadores gregos, enquanto, por outro lado, faltava em
quase todos os domínios a possibilidade de se recorrer a explicações que
possuíssem um verdadeiro poder explicativo e preditivo, tal como ocorre na
ciência. Ora, embora não se podendo saber como as coisas realmente são, é sempre
possível tentar saber como em geral elas poderiam ser. Assim, movidos
principalmente pela curiosidade intelectual, esses primeiros filósofos
tentaram, seguindo a forma de constituição das explicações próprias da ciência,
instaurar algum princípio necessariamente vago e obscuro, de fato só alcançável
pela intuição filosófica bem direcionada; um princípio concebido como a suposta
base explicativa para os fenômenos, uma base explicativa em si mesma talvez
inescrutável. Com esse fim, esses filósofos recorreram inicialmente a entidades
observáveis, como a água, o fogo, o ar, tomando-as como princípios; mas logo
eles as substituíram por princípios inobserváveis, como o infinito, o número, o
ser e os átomos, estabelecendo com isso uma forma de explicação filosófica que
é importante porque foi de algum modo repetida em toda a tradição ocidental.
Comte
sugeriu que uma análise dos conceitos metafísicos torna evidente que eles
dependem, para se fazerem inteligíveis, da ambiguidade incoerente já aludida
(razão pela qual ele chama tais princípios de equívocos ou contraditórios).
Entendendo esses conceitos metafísicos como referindo-se a entidades
metafísicas e aos seus modos de ação, ou seja, à sua atuação como
princípios, podemos dizer o seguinte. No que concerne às entidades
referidas por tais conceitos, elas precisam em geral representar algo que deve
ficar a meio caminho entre entidades anímicas hipostasiadas e entidades
naturais, sejam elas físicas ou mentais – as últimas sendo as
entidades aceitas pelo senso comum (como estados mentais, no último caso, e os eventos
físicos observáveis, no primeiro) ou justificadamente postuladas pela ciência
(como os processos mentais, disposições, atitudes etc., investigadas hoje pela
psicologia científica, e corpúsculos-ondas, investigados pela física). Enquanto
tais conceitos referem-se também a princípios de ação, ou seja, a modos
de ação ligados às entidades por eles designadas, os referidos princípios devem
encontrar-se a meio caminho entre a ação de entidades anímicas hipostasiadas
e formas de causação natural explicáveis por leis científicas. Sob a
perspectiva daquilo a que se referem, tais entidades e princípios, melhor
dizendo, entidades-princípios (dado que geralmente inseparáveis)
são certamente ficções incapazes de se dar à experiência, só podendo o discurso
acerca delas ser tornado intersubjetivo na medida em que os conceitos metafísicos
a elas referentes, da mesma forma que os conceitos das divindades
transcendentes, forem construídos de maneira indireta, por metáforas ou
analogias irresgatáveis, feitas do material semântico retirado do conhecimento
que realmente temos do mental e do físico habitualmente (e hoje também
cientificamente) experienciados.
O problema com essas entidades e
princípios metafísicos é que eles são ficções que, ao contrário de entidades
postuladas pela ciência, não possuem poder explicativo ou preditivo capaz de
legitimar a sua postulação: eles se assemelham mais ao éter da física clássica
ou ao flogisto da química pré-Lavoisieur do que, digamos, às partículas
subatômicas. A questão não é, pois, a da irresgatabilidade das metáforas, mas a
de sua efetividade em termos de explicação e predição.
Para
fazer jus à ambiguidade essencial dos conceitos metafísicos sugerida por Comte,
podemos recorrer, pois, a um duplo conjunto de características identificadoras.
De um lado, consideraremos:
(a) As categorias empregadas na caracterização
das divindades, com a suposta referência do conceito metafísico ao domínio do
mental, entendido como mental-transcendente (i.e. do mental
pretensamente transcendente, como se admite ao se recorrer à divindade), ao hipermental
(i.e., a poderes mentais transformados), e mesmo ao hiperfísico
(i.e., a poderes físicos que a natureza não oferece realmente à experiência).
Do
outro lado consideraremos:
(b) O mental-natural e, notadamente, o físico-natural,
tal como se pretende quando se recorre à lei natural.
Segundo
essa perspectiva, o conceito metafísico costuma ser uma espécie algo
desconfortável de amálgama, referindo-se em proporções variáveis às
características apresentadas em (a) e em (b), ou então, como veremos, a algo
que nem é (a) nem (b), mas que também não pode ser realmente outra coisa.
Essas
caracterizações revelam sua utilidade quando nos voltamos para os exemplos.
Consideremos o caso da água como princípio explicativo em Tales, o primeiro dos
filósofos da tradição ocidental. Ele afirma que o princípio (a causa, o
sustento e o fim) de tudo é a água, dando a entender que o momento do princípio-água
é vivo e animado e que tudo é penetrado pela água e repleto de deuses. Assim, o
princípio-água é visto não só como uma entidade física natural (se considerarmos
o naturalismo da escola jônica, a teoria dos quatro elementos etc.), mas também
de algum modo como uma entidade hipermental e hiperfísica. Como não se apela
aqui a deuses pessoais, tenta-se ao mesmo tempo uma explicação naturalista que,
embora excessivamente vaga para permitir comprovação prática, satisfaz o desejo
de se obter compreensão especulativa de como, de um modo geral, fenômenos poderiam
eventualmente ser explicados. Se não se obtém uma explicação concreta, há ao menos
a direção desta, a forma de uma explicação. Essa ambiguidade dos
princípios com os quais se tenta a aproximação de uma explicação naturalista,
geralmente sem se afastar por completo do recurso à explicação que se vale de
elementos mágico-anímicos, está em maior ou menor medida também presente em
outros princípios dos filósofos pré-socráticos, como, muito claramente, no
infinito (ápeiron) de Anaximandro – que é divino – e no ar de Anaxímenes
– o material do qual as almas são feitas.
Ainda
outro exemplo, importante porque muito influente, é o do ser dos
filósofos eleatas. Para Parmênides, embora pertencendo à physis, o ser só
se revela ao pensamento (noús), devendo, pois, ser hiperfísico, o que parece
mais coerente, ou mental-transcendente, o que seria mais compreensível, na medida
em que ele é explicitamente concebido como incriado, incorruptível, perfeito,
eterno, possuindo, dessa maneira, algumas características do Deus das religiões
monoteístas. Mas o Ser parmenídico, ao menos, também possui aspectos claramente
naturais: ele é considerado redondo e finito, tal como os objetos que se situam
no espaço, embora aqui também em um sentido hiperfísico, posto que não se
revela aos sentidos, não sendo encontrável em lugar algum.
Desde
os gregos, o recurso a certas essências inobserváveis, às entidades metafísicas
em maior ou menor medida incognoscíveis, que funcionam como princípios
explicativos fundamentais que tendem a ser dotados de algum traço antropomórfico,
passou a desempenhar um papel fundamental em toda a história da filosofia
ocidental, tendo essa forma de explicação durado pelomenis até o início de
nosso século. Em razão disso, a mesma forma de análise recém sugerida pode ser
geralmente aplicada a outras entidades metafísicas que agem como princípios e
que povoaram a história da metafísica. Esse é o caso do ser em
Parmênides, da idéia máxima do bem em Platão, da causa primeira
de Aristóteles, do Uno plotiniano, do Deus dos filósofos (o
“omnideus” ao qual tanto se recorreu na filosofia medieval e moderna) da substância-natureza-Deus
de Spinoza, da coisa em si kantiana, de seu eu transcendental,
transformado em sujeito absoluto pelo idealismo alemão, da vontade
schopenhaueriana, do indizível do primeiro Wittgenstein, e, de forma um
tanto extemporânea, do ser heideggeriano (em muitas passagens
substituível pela palavra ‘Deus’ sem perda de sentido). Como a lei dos três
estágios deve aplicar-se de forma difusa e tendencial, e como os estágios
fatalmente se sobrepõem, torna-se compreensível que manifestações do estágio
metafísico tenham tido vida tão longa.
Como
já foi notado, do ponto de vista referencial, a alusão, mesmo que analógica e
equívoca, ao domínio do mental e do físico naturalmente dados é um elemento necessário
à própria significatividade e compreensibilidade dos conceitos metafísicos aqui
mencionados. Por isso as ideias de Platão
e os pensamentos-como-sentidos de
Gottlob Frege são no fundo mentais-transcendentes. Além disso, uma análise da maioria
dos conceitos metafísicos nos sugere que eles possam ser apresentados sob duas
formas básicas:
(i)
a da hibridez (forma inflacionada) e
(ii)
a da elusividade (forma deflacionada).
No primeiro caso, o conceito metafísico é mais
ou menos rico, referindo-se pretensamente a uma variedade de supostos elementos
hipostasiados (mentais-transcendentes, hipermentais, hiperfísicos), além da
referência ao mental e ao físico, tal como o senso comum ou a ciência os
revelam a nós. Como tornar isso coerente é provavelmente impossível, o filósofo
recorre-se ao àlibi de intuições de natureza questionável. A hibridez é bem
exemplificada em conceitos metafísicos dos filósofos pré-socráticos – considere-se
no conceito de água em Tales, que se refere a algo físico, mas aparentemente
com um momento anímico, hipermental. No caso de conceitos metafísicos com forma
elusiva ou deflacionada, pretende-se resolver a incoerência pela negação de que
possamos ter acesso experiencial, mesmo que indireto, à entidade metafísica
cuja existência é proposta. Pretende-se, pois, que o conceito metafísico seja
significativo sem alusão ao nosso conhecimento do físico e do mental
pertencentes à ordem natural, ainda que isso rigorosamente não chegue a fazer
sentido. Um exemplo notório disso é dado pelo conceito kantiano de coisa em si.
Um
rápido exame mostra que essa divisão dos conceitos metafísicos em híbridos e
elusivos é realmente aplicável.
Casos de conceitos metafísicos hibridizantes
são o da substância infinita em Spinoza, que também merece o nome de Deus,
embora não deva ser sobrenatural; essa substância é também natureza, que
procede segundo as leis naturais, nela persistindo, porém, o traço antropomórfico
de se tratar de uma atividade “viva”, que se ama a si mesma com um amor
intelectual infinito.[14]
Há também o caso das idéias platônicas: não se pretende que elas sejam nem
mentais nem físicas, mas ao se tentar explicá-las recorre-se necessariamente a
um material de metáforas e elucidações que retiram o seu sentido da alusão ao
físico e ao mental tal como normalmente são compreendidos (por exemplo: elas
devem ser encontradas em enorme quantidade em um lugar que não é lugar, o
hiperurânio, sendo intuídas por uma espécie de visão intelectual, embora sejam
somente inteligíveis, delas dependendo o ser das coisas visíveis...). O mundo
das idéias é assim supostamente esclarecido por meio de um sistema de alusões
ao bem conhecido mundo dos sentidos. Contudo, à diferença de outros conceitos
introduzidos por analogia, o conceito platônico de idéia sempre resistiu a uma
explicação em termos não-analógicos, e como há razões para se pensar que a sua
suposição seja supérflua, há também razões para descrer da existência de tais
entidades (ver cap. 5).
Um conceito metafísico pode certamente fazer
referência mais ao mental ou ao físico, como é o caso do Deus cartesiano, que é sumamente bom, como um Deus pessoal, mas que
adquire uma função nomológica ao promover a realidade objetiva de nossas idéias
(como o Deus dos filósofos medievais, ele é princípio metafísico e Deus religioso
ao mesmo tempo). Exemplos melhores do que esse (posto que o fato do Deus dos
filósofos ser o Deus judaico-cristão é contingente) são a vontade de Schopenhauer (entendida como constitutiva do mundo noumênico)
e as mônadas de Leibniz, ambas hipostasiando
essencialmente o domínio do psicológico (todas as mônadas devem possuir algum
grau de consciência etc.). Do lado oposto, os átomos de Demócrito e de Epicuro hipostasiam em certa medida o
domínio do físico.
Há
também limites para a construção de conceitos metafísicos. Eles não podem
pretender designar somente sob uma perspectiva, seja ela hipostasiante (a) ou
naturalista (b), sob pena de recair, ou no ponto de vista religioso
(perspectiva hipostasiante), ou em uma visão naturalista do mundo, físico ou mental,
apoiada no senso comum (perspectiva naturalista). No último caso não teremos
mais metafísica no sentido especulativo, mas ainda assim parece que podemos ter
especulação filosófica antecipadora da ciência. Essa pode ser, aliás, uma raiz
oculta da distinção moderna entre metafísica e filosofia: a metafísica
(entendida ao modo de Comte) trabalha com mais conceitos que combinam a
perspectiva hipostasiante e a naturalista (a exemplo de Descartes e Leibniz);
já a filosofia deveria permanecer mais ao domínio de uma investigação naturalista
(a exemplo de Locke e Hume), a qual pode ser inclusive filosofia
especulativa (ex: o atomismo antigo).[15]
Vejamos agora casos de conceitos metafísicos
deflacionados ou elusivos. Tais conceitos são esvaziados, tanto quanto possível,
de relações com o mundo mental ou físico. Esse já era o caso do Uno ou Deus
plotiniano, que era inefável, dele nada sendo possível predicar, a não ser
o que ele não é (o Uno ploniniano está na origem da teologia
negativa). Outro exemplo é o da substância
em Locke, entendida como um “não sei o que” que serve de suporte às
propriedades do corpo físico Semelhante recurso é também utilizado por Kant com
os conceitos intrinsecamente incognoscíveis de coisa em si, do eu
transcendental e de todo um mundo noumênico inacessível à experiência. Ainda
outro exemplo poderia ser o do absoluto
no idealismo alemão, só acessível em seus desdobramentos. No século XX o mesmo
recurso foi utilizado por Wittgenstein, com o conceito do indizível (que
a linguagem apenas “mostra”), e por Heidegger com o seu conceito de ser, cujo
“mistério” pode ser desvelado, mas não efetivamente explicado, através de uma
metafórica que só os meios da linguagem poética logram propiciar. Evitando
incoerências em seu conteúdo, o recurso a tais noções metafísicas deflacionadas
paga o preço da vacuidade semântica, quando não o da esterilidade teórica e da
substituição do argumento pela retórica.
Do que foi considerado parece deixar-se concluir
que a metafísica especulativa (ao menos em sua forma tradicional) só ganha
razão de ser na medida em que ainda não estiver presente a possibilidade de
compreensão científica da natureza, sendo essa falta por ela preenchida pelo
recurso místico a entidades anímicas hipostasiadas ou pelo recurso especulativo
ao desconhecido natural, que apenas direciona o pensamento. A mente
especulativa manobra no sentido de tentar alcançar mais do que concretamente é
capaz.
Contudo, diversamente do que Comte possa ter
pensado, a especulação metafísica não precisa ser uma atividade primitiva nem
obscurantista; ela organiza o nosso universo representacional em direções
definidas, o que é inevitavelmente necessário. Ademais, não é impossível que a
direção apontada seja a certa, que as metáforas abram o caminho para um conhecimento
mais seguro, ou que a sua rejeição nos aponte melhores alternativas. À parte
isso, há conceitos como o de conhecimento,
de verdade, de justiça, do bem, da liberdade, da identidade pessoal, da ação,
que não são criações metafísicas, mas cuja análise foi tentada ao menos desde
Platão e cuja investigação resulta de um exercício inteiramente legítimo da
curiosidade intelectual acerca da estrutura de conceitos fundamentais constitutivos
de nosso entendimento do mundo.
Quanto
ao último estágio, que marca a instauração da ciência positiva, trata-se
daquele no qual a explicação dos fenômenos não é mais feita pela imaginação, não
visando um controle da realidade meramente imaginário e que satisfaz necessidades
meramente psicológicas, mas pela razão científica, capaz de promover um
controle efetivo sobre a realidade independente de nós. Comte tinha toda razão
em enfatizar que a diferença entre ciência e pré-ciência é terminantemente qualitativa.
No caso paradigmático da física, por exemplo, temos (sem querer polemizar com o
claro antirrealismo comteano) a investigação das medidas de massas, de forças,
de relações espacio-temporais entre elas, da combinação disso em estruturas
(partículas, ondas) cujo comportamento é regulado por leis impessoais...
Sem dúvida, o efeito da aplicação dessas leis nada tem de psicológico. Elas
demonstram a sua adequação ao permitir-nos fazer previsões suficientemente
precisas e objetivas, demonstrem-se elas verdadeiras ou não; e tais resultados
podem ser intersubjetivamente aceitos em um contexto crítico, capaz de prevenir
a influência sub-reptícia de interesses ideológicos escusos. O poder
preditivo ainda é – hoje como sempre – universalmente aceito pelos
cientistas como a característica mais marcante da ciência, ainda que mesmo isso
já tenha sido contestado.[16]
Parece
lícito concluirmos que Comte acertou no atacado – mostrando grosso modo o que
acontece – ainda que tenha errado no varejo – confundindo, reduzindo,
rigidificando o processo. Ele errou ao crer que a sua época estaria assistindo
aos momentos finais da formação e ramificação das ciências, e esse erro deve
tê-lo encorajado em direção ao reducionismo sociolatrista que deu ao seu
positivismo um sentido pejorativo, em alguma medida merecido. Mas hoje, quando nos
sabemos às portas de um mundo esclarecido e potencialmente domesticado pela
ciência, parece que devemos reconhecer em Comte o seu mais destacado profeta.
Anthony Kenny: uma posição
alternativa
A
lei dos três estágios sugere que ao estágio metafísico deve seguir-se inexoravelmente
a ciência, e que a filosofia (no sentido tradicional que estivemos
considerando) deve esgotar-se na ciência e na filosofia da ciência. Há
filósofos, porém, que, mesmo admitindo que as ciências tenham nascido após um
período mais ou menos longo de reflexão filosófica correspondente, continuam a
defender que ao menos certos domínios da filosofia continuarão para sempre
filosóficos: o sol seminal e tumultuoso de que falava Austin, embora perdendo
grande parte de sua massa original, possui um núcleo que é permanente e
irredutível. Assim pensou Anthony Kenny no prefácio de seu livro sobre a
filosofia da mente em Tomás de Aquino, quando procurava justificar a atualidade
das reflexões filosóficas deste último sobre as faculdades da mente.[17]
Kenny começou fazendo algumas observações acerca do que distingue a filosofia
da ciência. Se considerarmos a história da filosofia, escreve ele, podemos
dizer que uma disciplina permanece filosófica enquanto seus conceitos
permanecerem não clarificados e enquanto os seus métodos forem controversos.
Pode ser verdade que mesmo nas ciências estabelecidas isso também aconteça. “Contudo”,
prossegue ele:
quando problemas podem ser colocados de maneira
não ambígua, quando conceitos são apropriadamente estandartizados, e quando o
consenso quanto à metodologia de solução emerge, então nós temos uma ciência
independente, mais do que um ramo da filosofia.[18]
A
isso podemos acrescentar que a diferença básica não está somente na falta de
consenso metodológico, mas notadamente na impossibilidade de se chegar, em
filosofia, a um consenso quanto aos resultados: diversamente da ciência,
a filosofia tem um caráter inevitavelmente conjectural ou especulativo, no
sentido de que é praticamente impossível que filósofos cheguem a uma concordância
acerca da verdade do que quer que seja que considerem merecedor de discussão.[19]
Kenny
acredita que não. Ele crê que a teoria do significado, a epistemologia,
a ética e a metafísica permanecerão para sempre filosóficas;
mesmo que novos problemas não-filosóficos sejam gerados pelo estudo dessas
disciplinas para serem resolvidos por intermédio de métodos não-filosóficos,
permanecerá sempre um cerne irredutível, que somente a filosofia é capaz
de abordar, razão pela qual o estudo de um filósofo como Tomás de Aquino
continua a valer o esforço.
Kenny
não expõe razões para a sua opinião. Mas algumas páginas adiante ele tenta
fundamentá-la indiretamente, ao sugerir uma concepção alternativa da natureza
da filosofia, diversa de sua concepção como protociência e em certa medida
oposta a ela. Trata-se da idéia de que a filosofia é algo semelhante a uma
forma de arte, e, como tal, produto do gênio de alguns indivíduos excepcionais.
Se tal for o caso, não há progresso em filosofia, nem a questão da passagem da
filosofia para a ciência se coloca: nesse caso, Kant não é superior a Platão,
assim como Shakespeare não é superior a Homero.
Kenny
reconhece o exagero dessa concepção – sem dúvida, em praticamente todos os
domínios da filosofia temos hoje muito mais a dizer do que tinhamos há alguns séculos.
Mesmo assim, ele considera essa concepção essencialmente válida, ao menos com
respeito ao que ele chama de resíduo filosófico, i.e., no tocante
às indagações metafísicas, epistemológicas, éticas...
Como razão para a adoção dessa concepção,
ele observa que a filosofia em si mesma não é questão de conhecimento, de
aquisição de novas verdades, mas de compreensão (understanding),
no sentido de ser uma questão de organização do que já é conhecido. A
filosofia deve oferecer o que Wittgenstein chamava de übersichtliche
Darstellung: uma representação sinóptica, capaz de esclarecer e
unificar nossa compreensão das coisas.[20] E
isso requer, para Kenny, a intervenção do gênio:
A filosofia é tão abrangente em seu objeto, tão
vasto é o seu campo de operação, e a aquisição de uma visão filosófica
sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil, que somente uma mente
excepcional pode perceber as consequências mesmo do mais simples argumento
filosófico, quando para nós a maneira que resta para compreender a filosofia é
estudando algum grande filósofo do passado.[21]
Se
Kenny está certo, então a lei dos três estágios, ao menos no que ela diz acerca
da passagem do estágio metafísico para o estágio científico, é essencialmente incorreta:
o que a filosofia perde para a ciência é apenas aquilo que nunca lhe pertenceu
legitimamente – não o seu cerne irredutível.
Crítica a Kenny e conclusão
Quero
finalizar com algumas objeções um tanto céticas a respeito do que Kenny quis sugerir.
Primeiro: é prima facie arbitrário –
ao menos enquanto não nos forem apresentadas boas razões para tal – que se
considere a teoria do significado, a epistemologia, a ética e a metafísica,
como formando um cerne irredutível à ciência. É verdade que, entre outras, a
filosofia da linguagem, a ontologia, a ética e a epistemologia permanecem como
domínios centrais da atividade filosófica. Mas um defensor da completa absorção
da filosofia pela ciência dirá que isso reflete apenas o estado atual da
filosofia e das ciências. Filósofos de outras épocas tenderiam a incluir no
cerne irredutível mais coisas do que aquilo que Kenny está disposto a incluir,
e isso expõe o casuísmo de sua escolha.
Também devemos notar que mesmo que a
filosofia possa ser considerada em certa medida semelhante à arte, isso não
serve de objeção contra o seu suposto caráter protocientífico. Se a metafísica
é essencialmente produto do raciocínio orientado pela imaginação, então ela deve
ter também uma função que se assemelhe à da obra de arte, como a de não possuir
um fim fora de si mesma, a de produzir um prazer desinteressado etc. Ela se
distingue da arte por ter uma preocupação com a verdade e com uma resposta
racional a questões fundamentais.
Por fim, quanto à idéia de que a filosofia
é, em seu cerne, questão de entendimento, interpretado como organização do que
já sabemos, devemos notar que essa é uma idéia inspirada em Wittgenstein e nos
filósofos da linguagem ordinária, os quais compreenderam a filosofia em termos
de análise ou elucidação conceitual. Podemos perguntar em que medida isso é
lícito; em que medida, afinal, precisamos organizar o que já sabemos, se o
próprio saber já é, em si mesmo, organização conceitual? E se essa organização
é apenas explicitação de uma organização já implicitamente presente em
nossos hábitos linguísticos, como muitas vezes se pretende, por que razão ela
não pode vir a ser feita pelo próprio homem de ciência, da mesma forma que a
organização da gramática de uma língua é feita pelos gramáticos? E por que razão
devemos supor que essa explicitação não possa chegar a um fim? Afora isso, a
idéia da análise conceitual carece de limites distintos: em que sentido podemos
dizer que Aristóteles analisou o conceito de movimento, mas não que Einstein
analisou o conceito de simultaneidade?
Falta à vaga proposta de Kenny um
desenvolvimento que a torne convincente. Faltam, pois, razões que nos impeçam
de chegar à conclusão de que mesmo as áreas mais nobres da filosofia não estão
imunes à possibilidade de se tornarem científicas. Pode ser que essas áreas só
tenham até agora permanecido filosóficas porque tratam de problemas
excepcionalmente difíceis e complexos, apelando para níveis variados de
abstração e pertencendo a uma variedade de domínios que se inter-relacionam de tal
maneira que considerá-los passa a demandar um trabalho reflexivo
particularmente amplo e elaborado – mas isso não significa que, com a ampliação
dos domínios científicos tal trabalho não possa deixar aos poucos de ser
especulativo para seguir os rumos mais previsíveis da ciência.
Na
verdade, é assim que muitos filósofos contemporâneos vêem a questão. Eis o que
afirmou o epistemólogo Keith Lehrer acerca da sua especialidade:
Nós sustentamos que a afirmação de uma
distinção entre filosofia e ciência teórica é falsa, tanto histórica quanto
sistematicamente. Historicamente, é claro que as ciências especiais se separam
da filosofia quando alguma teoria emerge tratando de um objeto circunscrito de
uma maneira precisa e satisfatória. A filosofia permanece como o pote residual
de problemas intelectuais irresolvidos. Atualmente, teorias do conhecimento
ainda permanecem no pote. Não queremos afirmar que o presente estudo ou outra
pesquisa recente nos tenha levado ao ponto onde a teoria do conhecimento possa
ser depurada em uma ciência especial, mas esperamos que estejamos nos
aproximando dessa meta mais do que alguns suspeitam e outros receiam.[22]
Caso
Lehrer e, em sua essência, a intuição comteana de que a especulação filosófica
pertence a um estágio intermediário do desenvolvimento do saber humano estejam
com a verdade, outras questões se colocarão. Uma delas seria a de se saber se
não haverá um fim também para a própria ciência e, consequentemente, para o próprio
exercício do espírito de investigação. Uma outra questão – mais próxima de nossa
problemática – seria a de se saber que forma tomarão os domínios científicos
que acabarão por se desenvolver como continuação da atual epistemologia, das
teorias do significado, da metafísica, da ética... Tratar-se-á de uma multiplicidade
de teorias localizadas, respondendo a pequenas questões remanescentes, tão
específicas quanto separadas umas das outras? Ou tratar-se-á de algo mais
abrangente, constituído por sistemas conceituais complexos, nos quais cada parte
seria um elemento necessário na avaliação do todo, e capazes, finalmente, de
oferecer uma resposta segura às grandes questões legadas pela tradição?
(Podemos inscrever a teoria de Comte, refinada e corrigida, como candidata a um
modesto exemplo disso.)
A
primeira sugestão é mais adequada à mentalidade contemporânea, que me parece
geralmente comprometida com um cientificismo reducionista. Kenny resiste a
conclusões como a de Lehrer porque considera o cientificismo um corolário
inevitável. Mas não há razões para que a segunda sugestão, na qual prefiro apostar,
precise ser excluída. De fato, só no último caso podemos ter a esperança de que
a grandeza do pensamento filosófico tradicional – no sentido dado por Kenny de
um saber abrangente – permaneça de alguma forma preservada. Seja como for, se esses
sistemas conceptuais complexos forem tais que suas consequências possam ser
objetivamente avaliadas, se eles alcançarem suficiente consenso, se for
possível um progresso cumulativo a partir deles, eles não serão mais filosofia –
ao menos não no tradicional sentido aporético da palavra – e sim ciência.
Firmar-se-á então um domínio de teorização científica abrangente, no qual serão
consensualmente estabelecidas as soluções de princípio para as questões
remanescentes mais difíceis da filosofia.
É importante notar que podemos pensar assim,
conquanto a nossa noção de ciência não esteja de antemão comprometida com
critérios de cientificidade demasiado estreitos, por exemplo, se a ciência for
entendida à maneira ampla de John Ziman, como conhecimento publicamente consensualizável,[23] oposta
ao conhecimento não-publicamente consensualizável típico da filosofia. Com
efeito, se a ciência for entendida como qualquer forma de conhecimento apta a
adquirir consenso entre especialistas, então a aplicação da palavra torna-se
suficientemente vasta para coincidir com aquilo que o nosso entendimento comum
nos diz ser a ciência. Nesse caso qualquer domínio da filosofia passa, ao menos
em princípio, a poder se tornar ciência, ou seja, poder se tornar
consensualizável entre os especialistas, no caso, os filósofos.[24]
Sem
dúvida, muito do que eu disse pode soar desalentadamente cético aos ouvidos dos
cultores da filosofia, mais do que aos filósofos. Soa como se serrássemos o galho
sobre o qual nos sentamos. Minha opinião, contudo, é a de que é melhor assim. A
metafísica tradicional, ainda que possa conter insights duradouros, cuja
importância dificilmente pode ser exagerada, ainda que tenha sido e que
certamente ainda seja capaz de inspirar e orientar novas pesquisas, de fato em
certa medida também existiu como uma especulação melancolicamente enganadora –
uma maneira de “ocultar desertos”, no dizer crítico de Nietzsche. Nessa medida
e aliando-se à religião, ela não serviu apenas para saciar a curiosidade
especulativa, mas também como forma de consolo para o espírito humano em um
mundo de ignorância e de carência. Já em um mundo esclarecido pela ciência e
domesticado pelos meios da técnica, a especulação destinada a confortar o espírito
através da ilusão tende a tornar-se um injustificado anacronismo.
[1] Sir Anthony Kenny: Aquinas on Mind,
London 1993, p. 4.
[2] J. L. Austin: Philosophical Papers,
Oxford 1979, p. 232.
[3] Para uma teoria mais detalhada e complexa da natureza da filosofia, ver meu livro: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA: Langham 2002).
[4] J. P. Sartre: “O
existencialismo é um humanismo”, in: Os Pensadores (Abril Cultural), São
Paulo 1973, p. 27.
[5] Traduzo a palavra 'état' por 'estágio' ao invés de 'estado',
de modo a fazer juz ao caráter dinâmico dos processos denotados pelo conceito
comteano.
[6] Comte: Cours de Philosophie
Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), tomo 1, p. 71 (uma
tradução portuguesa de capítulos sobre as questões aqui consideradas, também do
Discours sur L'esprit Positif, encontra-se na Coleção Os Pensadores,
ed. Abril, S. Paulo 1973).
[7] Comte: pp. 70 e ss.
[8] D. L. Hull: Filosofia das
Ciências Biológicas (título original: Philosophy of Biological Science),
trad. ed. Zahar, Rio de Janeiro 1974, p. 15.
[9] Cf. Anne-Robert-Jacques
Turgot: Réflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses,
Heidelberg 1913 (1750), p. 10 e ss.
[10] Comte: Discours sur L'esprit Positif, Oevres, Paris 1968
(1844), tomo XI, p. 2 e ss.
[11] Um exemplo é a crítica de
M. Scheler em „Probleme einer Soziologie des Wissens“ (in: Die Wissensformen
und die Gesellschaft, Leipzig 1920). Scheler sugeriu a existência de diversos interesses e
atividades culturais independentes, que, embora surgindo de um pré-estágio mítico
comum, evoluem historicamente de forma independente e paralela. Sendo assim,
Comte estaria confundindo um processo de diferenciação do espírito com um
processo de desenvolvimento em estágios, quando o que realmente se dá é um
processo de diferenciação, no qual se desenvolvem três diferentes funções ou
finalidades: a do saber do sagrado (religião), a do saber cultural (metafísica)
e a do saber de domínio (a ciência positiva) – saberes esses que originariamente
estariam fundidos em uma religiosidade primitiva e mítico-mágica. Para Scheler,
o conflito entre esses domínios do saber só surge quando um deles passa a
abarcar indevidamente o domínio do outro.
Essa parece ser, contudo, uma alternativa claramente
desconfirmada pela história mais recente, que fala a favor do ponto de vista
comteano. O que Scheler sugeriu pode, ademais, ser explicado sob uma
perspectiva comteana: o surgimento de uma nova ciência modifica a metafísica e a
religião, que devem acomodar suas concepções a um novo corpo de evidências para
reaver a sua plausibilidade. Isso suscita a impressão de um desenvolvimento
autônomo da religião e da metafísica, quando na verdade com elas se dá algo
semelhante ao que ocorre com um regimento militar que, no intervalo de uma
batalha na qual sofreu severas perdas, vê-se na necessidade de reagrupar o seu
contingente.
[12] Jürgen Habermas: Erkenntnis und Interesse,
Frankfurt 1973, p. 92.
[13] Giovanni Reale: História da
Filosofia Antiga, São Paulo (trad. port. ed. Loyola) 1993, vol. I, p. 48.
[15] Karl Popper discute interessantes exemplos dessa espécie de especulação
antecipadora da ciência entre os filósofos pré-socráticos em “Back to the Presocratics”,
in Conjectures and Refutations, London 1989.
[16] A estratégia básica, pela qual
a crítica ao racionalismo metodológico tenta relativizar a ciência, consiste,
como sugeriu Popper, em exagerar dificuldades em impossibilidades (ver “Normal
Science and Its Dangers”, in: I. Lakatos e A. Musgrave: Criticism and the
Grouth of Knowledge, Cambridge 1974). Pretender que a astrologia, a alquimia
e o curandeirismo possam estar em pé de igualdade com, digamos, a astronomia, a
química e a medicina, como quis Feyerabend, é fazer uma concessão arriscada à
ignorância e ao engodo. Para Comte a diferença não só existe, mas é qualitativa.
No primeiro caso nada se obtém, afora meros efeitos psicológicos e sóciocomportamentais;
no segundo obtêm-se previsões objetivas, sobre as quais pode reger um consenso
desinteressado.
[17] Kenny: Aquinas on Mind, cap. 1.
[18] Kenny, p. 4.
[19] Claudio Costa: The
Philosophical Inquiry: Towards a Global Account, Lanham 2002, p. 12
e ss.
[20] Wittgenstein: Philosophische
Untersuchungen, Frankfurt 1976, vol. 1, sec. 122. A. Kenny: Aquinas on Mind, p. 9.
[21] Kenny: Aquinas on Mind, p. 9.
[22] Lehrer: Theory of Knowledge, San
Francisco 1990, p. 7.
[23] J. M. Ziman: Public
Knowledge: An Essay concerning the social Dimension of Science, London 1968.
[24] Esse ponto é particularmente convincente quando pensamos que os diversos
domínios da ciência que vão emergindo se complementam entre si, podendo por meio
disso reforçarem e adequarem concepções filosóficas de maneira que elas se tornem
consensualizáveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário