Draft para INTRODUÇÃO HISTÓRICA
V
A REVOLUÇÃO CARTESIANA
Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria
analítica, que permite representar figuras da geometria plana através de fórmulas
algébricas. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o
fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada
revolução cartesiana, que mudou o eixo de investigação em filosofia teórica da
metafísica para a epistemologia.
As filosofias helenista, romana
e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles,
que punha ênfase na metafísica. O ponto de partida da filosofia teórica era a
investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, do ser enquanto
ser. Secundariamente se desenvolvia uma investigação epistemológica sobre os a
natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia
teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu.
Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas
dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que começasse
por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo
que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança,
chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O
resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente
daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o
vetor da filosofia teórica do pensamento para o ser. E aqui também a
filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do
renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o
homem uma parte essencial do programa da filosofia teórica.
1
O cogito. O culprit do desenvolvimento da filosofia cartesiana
foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo
o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio
do ceticismo é o de que tudo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado,
então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o
ceticismo colocar em questão a sobrevivência da alma ou mesmo a existência de
Deus... Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La
Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado
por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do
ceticismo. O resultado terminou sendo a grande obra de argumentação e estilo
filosófico chamada Meditações de filosofia primeira (Meditationes de
Prima Philosophia).
O objetivo de Descartes nas Meditações
era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de
dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e,
como veremos, com base nela ele de fato erigiu toda a sua filosofia. Para
chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida.
Segundo esse método, tudo o que pude ser duvidado é considerado como se fosse
falso. Assim, Descartes começou por aplicar esse método a coisas vistas à
distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na
neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece
que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de
nós. Descartes apresentou então seu argumento do sonho. Já aconteceu, notou
ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo estava a
crepitar quando na verdade ele já tinha se apagado há algum tempo. Nada nos
garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade
não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo
sensível ao meu redor como objeto de certeza. Para magnificar seu raciocínio ele
desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões
acima de qualquer suspeita. Para aplicá-la ele imaginou um gênio maligno imensamente
poderoso, que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno
produziria em Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no
século XVII, quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada
no espaço vazio e sendo constantemente confundida. O gênio seria tão malevolente
que até mesmo em seu pensamento matemático Descartes estaria sendo enganado. Ao
somar 3 + 2 o gênio poderia o levaria a concluir que o resultado é 5, quando na
verdade todos sabem que é 6 (se você discorda, caro leitor, pode bem ser que
também esteja sendo confundido pelo gênio maligno).
Contudo, imediatamente após
isso Descartes descobriu algo capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do
gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que Descartes se engane, fazer
com que ele não exista. Nem pode fazer com que Descartes não esteja pensando ao
ser por ele enganado, uma vez que só se engana quem pensa. Se alguém pensar que
3 + 2 = 7, isso é obviamente falso, mas não é possível que ao cometer esse erro
de cálculo a pessoa não exista ou não esteja pensando. Descartes resume essa
descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum) em seu Discurso
do Método,[1]
e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações.[2] Ao menos no presente,
enquanto estou pensando, não há dúvida que eu existo como ser pensante. É uma
certeza indevassável que eu sou uma coisa que pensa (enquanto penso), que além
disso possui a clareza e distinção, que para ele formam o critério de verdade.
Para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes
levantar o mundo, é a certeza do cogito que lhe permitirá construir seu
sistema metafísico.
Nos passos seguintes de seu
argumento Descartes cuida de construir seu sistema de pensamento. Vou resumir. Uma
vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de
pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui,
pois, uma ideia inata de Deus. Mas Descartes, um ser humano limitado, não seria
capaz de pensar Deus, algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que
existisse esse ser infinitamente superior e que ele tivesse posto em sua na mente
a ideia de si mesmo, a ideia de Deus. Por conseguinte, Deus existe. Além disso Descartes
apresenta sua própria versão da prova ontológica da existência de Deus de
Anselmo: já que concebemos Deus como um ser com infinitas perfeições, ele deve
possuir a perfeição da existência, caso contrário não seríamos capazes de
concebê-lo. Deus, possuindo infinitas perfeições, precisa também ser
infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente bom, ele não permitiria o
engano sistemático, nem a existência do gênio maligno a nos fazer acreditar na
existência de um mundo externo que na verdade não existe, ou a nos enganar na
mais simples operação aritmética. Eis porque podemos estar certos de que o
mundo externo existe e de que 3 + 2 = 5.
2
Elvino. Parece intuitivo que nada daquilo que é conhecimento empírico
deve ser totalmente imune ao erro. O conhecimento do cogito é empírico. Cabe
então a pergunta: seria possível imaginar uma situação na qual ele é falso?
Talvez, por uma identificação enganosa. Para tornar esse ponto compreensível,
imagine que um velho senhor um pouco caduco chamado Elvino desapareça nas mãos
de um cientista do mal. Esse cientista substitui Elvino por um androide extremamente
sofisticado e perfeitamente idêntico a Elvino, que fala e age como ele, mas que
não tem nada na cabeça, a não ser um mecanismo implantado que faz com que seu
comportamento seja inteiramente controlado à distância pelo cientista. Os
familiares de Elvino não conseguem explicar seu desaparecimento. Mas um dia o androide
do Elvino volta para casa e quando lhe abrem a porta ele se apresenta dizendo:
“Eu sou o Elvino; eu ainda existo como um ser pensante”. Todos ficam felizes em
terem o velho Elvino de volta... Mas o proferimento “eu... existo como ser
pensante” é falso, pois Elvino já não existe mais e não há nenhuma consciência
pensante ocupando o autômato...
A isso o defensor de Descartes poderá responder que o proferimento
“Eu existo como ser pensante” continua sendo verdadeiro, mas com relação ao
cientista maligno que controla o androide, precisando ser apenas
reinterpretado.
Mas aqui surge um problema. Se o cientista
maligno estivesse se referindo a si mesmo, o “Eu existo como ser pensante” por
ele pensado seria verdadeiro. Mas o seu objetivo é precisamente o de enganar as
pessoas, pondo essas palavras na boca do androide e fazendo com que o pronome
pessoal ‘eu’ se refira a uma cópia mecânica de Elvino e não ao próprio Elvino,
de modo que é falso dizer que com esse pronome pessoal o cientista do mal está
se referindo a si mesmo. Ele se refere ao eu que ele tem em mente e quer que os
outros tenham em mente, ou seja, a uma pessoa que não existe. Eis um caso no
qual um proferimento do tipo “Penso logo existo” seria simplesmente falso.
Contra essa conclusão o defensor de Descartes poderá ainda objetar
que a função do pronome pessoal ‘eu’ é sempre a de se referir àquele que fala
no momento em que fala, ou seja, ao emissor do som, seja ele o que for. Como no
exemplo de Elvino quem emite o som é um autômato, o ‘eu’ de “Eu existo” se
refere ao autômato que de fato existe, e não a Elvino, o que torna o
proferimento verdadeiro.
Aqui surge um novo problema. É que ao usar o
pronome pessoal ‘eu’ Descartes tinha em mente um sentido rico da palavra, no
qual ele se referia a uma consciência ou mente pensante, e não a
algo que seria satisfeito por um papagaio ou por um autofalante que proferisse
os sons “Eu existo”. Ou seja: se, no proferimento do autômato for coerentemente
preservado o sentido cartesiano da palavra ‘eu’, o “Eu existo” por ele referido
ou não se refere a mais nada ou continuará sendo expressão do pensamento do
cientista maligno que, por sua vez, está se referindo a uma pessoa que não
existe, o que o torna de um ou de outro modo falso. Assim, se o autômato dissesse
“Penso, logo existo”, isso seria falso, pois a pessoa tomada por Elvino nem
pensa nem existe. Será essa conclusão correta? Deixo a resposta para o leitor.
3
Interacionismo.
É importante em Descartes a defesa do dualismo
interacionista quanto ao que é hoje chamado de problema da relação mente-corpo.
Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa)
e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui
o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera
o atributo da extensão o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos
ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída
pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo emoções e sensações. A substância
pensante pode ser de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que
são nossas almas e as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante
infinita, que é simplesmente Deus.
Descartes tinha uma prova do dualismo de
substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque
podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos
mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o
contexto opaco introduzido por verbos de atitude proposicional como ‘duvidar’,
‘acreditar’, ‘ordenar’. Considere o seguinte argumento plenamente válido:
(1)
O objeto a tem a propriedade F.
a = b.
O objeto b tem a propriedade F.
Compare
esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar,
que é um verbo de atitude proposicional:
(2)
Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.
Zorro = Dom Diego.
Maria duvida que Dom Diego existe.
O
problema é que, como é sabido, ninguém sabe que Zorro é Dom Diego, nem mesmo a
Maria. O uso do verbo de crença proposicional introduz um contexto opaco que
torna a conclusão falaciosa. O mesmo acontece no argumento:
(3)
Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.
Corpo = mente
Descartes pode duvidar da existência de sua mente.
Como
a conclusão é obviamente falsa, Descartes concluiu que a segunda premissa precisa
ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é
enganoso por assimilar a forma do argumento (3) à forma do argumento (1),
quando na verdade sua forma é idêntica a (2). O argumento (3) se baseia em um
argumento que é tornado inválido pelo fato de conter um verbo de atitude
proposicional que introduz um contexto opaco.
Um outro problema se é a maneira é a maneira
como Descartes soluciona o assim chamado problema mente-corpo, o problema da
relação entre a res cogitans e a res extensa. Descartes
acreditava que a mente se relaciona com o corpo através de uma interação
causal. Assim, se eu piso em um caco de vidro isso causa um evento mental, que
é a sensação de dor. Essa sensação desagradável me faz levantar o pé, pensar no
que fazer e, em seguida, fazer um curativo. O problema que aqui surge é o de
explicar como é possível a interação entre algo que não ocupa espaço, o
pensamento, e o mundo extenso, físico. A brilhante princesa Elisabeth da Bohemia
colocou a questão em uma carta a Descartes:
(...) parece que toda determinação do movimento se dá
por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por
aquela que a move, ou bem, pela
qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas
primeiras condições e a extensão pela terceira. [3]
Diante
dessa objeção Descartes não conseguiu ir muito além do reconhecimento de que há
coisas que precisam ser aceitas como um mistério.
4
Ceticismo.
Um outro ponto de ligação entre a filosofia de
Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o
mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que chamamos de uma hipótese
cética (hoje preferimos a hipótese de que somos cérebros em cubas com os
nervos ligados a um supercomputador que nos faz alucinar uma realidade
virtual). Com base em uma hipótese cética, digamos, a do gênio maligno, o
seguinte argumento cético pode ser construído:
Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu
não sei se tenho duas mãos.
Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu não sei se tenho duas mãos.
Esse
argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas
mãos” pode ser aqui substituído por qualquer enunciado trivial: eu não sei se
estou de pé, eu não sei se estou vestido, eu não sei se estou falando... O
ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não saber que a
hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma sobre o mundo
externo.
A contraposição do argumento cético é o
argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial
qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a
hipótese cética assim:
Se eu sei que tenho duas mãos então sei que não estou
sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu sei que não estou sendo enganado por um gênio
maligno.
O
argumento anticético prova tanto quanto o argumento cético. A questão fica
sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Ainda assim, a
inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar
certo quanto o anticético.
Há uma maneira de refutar o argumento cético
que é reminiscente da distinção feita por Rudolph Carnap entre questões internas
e externas de existência, embora sem os seus defeitos.[4] Trata-se da introdução de
uma distinção entre dois conceitos de realidade externa: inerente e aderente.[5]
A
realidade inerente do mundo externo tem a ver com o fato de que o aparecimento
e a ordem de nossa experiência sensível não dependem de nossas mentes. Ela
depende minimamente de critérios como:
(i)
máxima
intensidade sensorial,
(ii)
independência
da vontade,
(iii)
possibilidade
de comprovação por acesso interpessoal,
(iv)
seguimento
de leis da natureza,
(v)
Coerência
contextual e temporal.
Se
esses critérios forem satisfeitos conjuntamente (para uma lista mais
completa ver cap. XI, sec. 14) por uma entidade, então essa entidade é
externamente real no sentido inerente, que é o sentido usual. Tais são os
critérios que implicitamente temos em mente ao dizermos que as coisas ao nosso
redor são “reais”. Podemos, aliás, sem muita dificuldade estender esses
critérios para coisas indiretamente acessíveis, como eventos passados ou
objetos microscópicos, na medida em que eles são capazes de produzir evidências
sensíveis com as propriedades acima descritas (nisso se baseia o realismo
científico).
É importante notar que esses critérios
precisam ser conjuntamente satisfeitos. Uma alucinação realista, como a que
acontece na alucinose alcóolica, a pessoa vê um cavalo branco com a máxima
intensidade sensorial, essa visão é independente de sua vontade, o animal pode
mesmo se comportar como é esperado de um cavalo, mas não será interpessoalmente
acessível: outras pessoas lhe dirão que não existe cavalo algum.
O
sentido aderente do conceito de realidade externa, por sua vez, é o que diz
respeito a cenários mais ou menos céticos. Se eu for uma alma vagando no espaço
e enganada por um gênio maligno, os critérios de (i) a (v) estarão sendo
satisfeitos. Mas em princípio eu posso vir a saber disso por comparação, se
essa alma for levada aos céus e as outras almas me convencerem que eu havia
vivido minha vida inteira sob a sistemática alucinação de ser um habitante do
planeta terra... O critério de realidade externa é aqui comparativo, bem
diferente dos critérios inerentes encontrados acima.
De posse dessa distinção podemos agora
refazer os argumentos cético e anticético demonstrando que eles são equívocos, uma
vez que os significados de suas sentenças não mantêm identidade. Chamando a
realidade aderente de realidade(A) e realidade inerente de realidade(I), eis
como fica o argumento cético:
Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu
não sei se tenho realmente(A) duas mãos.
Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu não sei se tenho realmente(I) duas mãos.
Eis
como fica agora o argumento anticético:
Eu sei que tenho realmente(A) duas mãos.
Se eu sei que tenho realmente(I) duas mãos então não estou sendo enganado
por um gênio maligno.
Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Ambos
os argumentos são equívocos e, portanto, falaciosos. Podemos demonstrar que
nosso mundo é inerentemente real. Mas não podemos demonstrar que ele é real em
um sentido absoluto, pois isso implicaria em demonstrar sua realidade aderente.
O que fazemos é, uma vez que não temos qualquer razão para admitir que nosso
mundo seja aderentemente irreal, tomar como uma postulação semântica que
ele é não só inerentemente, mas também aderentemente real. Essa postulação só
será contestada no caso de termos evidências de que a hipótese cética é
verdadeira, o que não é o caso. Voltaremos à questão quando tratarmos da
filosofia de David Hume (cap. XI, sec. 12).
5
Racionalismo.
Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de
Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de
sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele
destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade,
cada qual criando uma concepção de mundo própria.
Os
filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas.
Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos
poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação
da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento
matemático herdado da axiomatização da geometria por Euclides. Esse foi o caso
dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e do próprio Descartes. Os
empiristas, por sua vez, foram os que puseram ênfase na experiência
empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano,
minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam
para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e
Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e
Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e
empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.
[1] Discurso do Método, Quarta Parte 4.
[2] Meditações Metafísicas, Meditação
Segunda, sec. 4.
[3] Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna,
da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” –
6/16 Mai 1643. In Oeuv. Res. De Descartes, vol III, Correspondance. Org.
Charles Adam & Paul Tannery, Paris: Libraria Philosophique, J. Vrin,
pp. 660-2, 1996.
[4] Ver Rudolph Carnap:
“Empiricism, Semantics, and Ontology,” publicado como suplemento a Meaning
and Necessity (Chicago: The University of Chicago Press 1958).
[5] A forma mais
desenvolvida desse argumento encontra-se em meu artigo “The Sceptical Deal with
our Concept of External Reality,” in Lines of Thought: Rethinking
Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), cap. 6.
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