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domingo, 30 de junho de 2024

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA (I)

Retirado de um DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”

 

    

 

I

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA

 

A história inicial da filosofia grega, especialmente de Tales a Platão, é esplêndida. É quase demasiado boa para ser verdadeira. Na origem dela estava sempre o pensamento crítico.

Karl Popper

 

 

A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 600 anos antes de Cristo. Mas a filosofia enquanto tal é muito mais antiga. Para alguns ela nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras. Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo, originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal objetivo era orientar a vida humana.

   A filosofia, tanto ocidental quanto a oriental, teve origem religiosa. Como resultado disso temos uma incômoda confusão, ainda hoje comum entre os leigos, entre filosofia e sabedoria de vida. A filosofia acadêmica, porém, como resultado de uma especulação coletiva de comunidades de conhecedores sedimentada sobre uma tradição milenar, pouco tem a ver com uma simples sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação aparentemente esotérica e inacessível ao público leigo.

   Vale lembrar nesse contexto a opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos, se originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada é que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião. Com efeito, essa filosofia se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria mística, de um aconselhamento sobre a arte do bem-viver, assemelhando-se a uma forma mais elevada e reflexiva de autoajuda. Em contraste com isso, a filosofia nascida com os filósofos pré-socráticos se ocupava de argumentos críticos desenvolvidos por pessoas que em geral conheciam muito bem a ciência da época. Insatisfeitas com explicações puramente religiosas, essas pessoas buscavam substituir o legado do pensamento mitológico por um questionamento especulativo que, como veremos, tendia a prefigurar o pensamento científico. A opinião de Hegel pode ser exagerada, mas há nela algo de verdadeiro.

   Para entender o nascimento da filosofia ocidental precisamos considerar o pensamento dos filósofos pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por terem preocupações filosóficas cosmológicas, em geral muito diferentes das preocupações essencialmente morais do último. Eles foram os primeiros a terem surgido na Grécia, em um período que foi do século VI ao século V antes de Cristo. O principal objetivo desses filósofos era o de buscar a unidade na diversidade através de algum princípio originador e sustentador de tudo o que existe, a assim chamada arché. Esse princípio pertencia à natureza (physis), daí o naturalismo dos pré-socráticos. Na época a Grécia importava a ciência nascente do Egito e da Babilônia e os filósofos pré-socráticos eram geralmente bons cientistas, conhecedores de matemática, geometria, engenharia e astronomia. Em razão dessa base científica, o pensamento deles se caracterizava pelo rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto comum era o de substituir as explicações puramente mitológicas dos acontecimentos, principalmente os relativos à origem e natureza do universo, por princípios puramente especulativos. Esses princípios em alguma medida mimetizavam a espécie de procedimento já conhecido na ciência, ainda que em domínios tão amplos a verdadeira ciência fosse na época impossível.

   No que se segue quero resumir as doutrinas de alguns filósofos pré-socráticos mais importantes, dado que meu principal objetivo é oferecer exemplos do que eles estavam tentando fazer.

 

1

 

Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o filósofo jônico Tales (624-546 a.C.), que viveu na cidade de Mileto, na época um importante centro comercial situado na Ásia Menor. Ele também foi um astrônomo e matemático, tendo previsto um eclipse solar no ano de 585 a.C. Tales acreditava que a água fosse a substância originadora e subjacente a todas as coisas, aquilo que seu discípulo Anaximandro pela primeira vez chamou de arché (princípio, origem). Afinal, a vida nasce das coisas úmidas. Ele via a água como plena de deuses e coincidente com o divino.

   Com a postulação de que a água é o princípio Tales foi a primeira pessoa a ter a intuição original de que tudo é um,[1] ou seja, a ideia de que o universo possui uma unidade constitutiva à qual nós podemos, em princípio, ter acesso cognitivo. O esforço no sentido de obter uma compreensão racional unificadora de todas as coisas, mesmo que sabidamente especulativa, foi uma característica da filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica ocidental.

   Tales teve como discípulos dois filósofos jônicos mais jovens: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro (610-546 a.C.) sugeriu que a arché fosse um elemento indefinido e eterno, o ápeiron, que se traduz literalmente como o ilimitado. Essa é uma ideia importante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos. Ele foi responsável pela ousada ideia de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros, que não cai nem para um lado nem para o outro, graças ao equilíbrio das forças. O filósofo da ciência Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de inércia e até mesmo o da gravitação.[2] A metafísica pré-socrática operava após a mitologia e antes da ciência, tendo por vezes alcançado uma clara antecipação especulativa da última.

   Anaximandro também foi um precursor do evolucionismo ao sugerir que os seres vivos se originaram da água e que os primeiros humanos eram parecidos com peixes. Ele argumentou que como as crianças humanas precisam de anos de completa dependência dos pais para só então se tornarem capazes de cuidarem de si mesmas, os seres humanos deviam ter sido muito diferentes nos tempos mais remotos.

   Anaxímenes (594-524 a.C.), por sua vez, rejeitou o ápeiron de Anaximandro por considerá-lo demasiado abstrato. Ele buscava um elemento primordial que pudesse ser dado à experiência e que originasse os outros. Ele sugeriu que esse princípio, a arché, fosse o ar. Por rarefação o ar originaria o fogo e por condensação o vento, a água, a terra e as pedras. Para ele o ar era o princípio vital, aquilo que nos faz viver quando respiramos. Ao que parece ele acreditava que o mundo inteiro é um organismo vivo que precisa do ar para se manter.[3] Como ele explicou em um dos fragmentos:

 

Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo inteiro.[4]

 

Anaxágoras (500-428 a.C.) foi outro importante pré-socrático. Ele foi um filósofo jônico tardio, que viveu em Atenas por trinta anos, tendo sido depois exilado por ateísmo. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente em filosofia. Ele entendia a arché como sendo o nous, ou seja, a mente ou pensamento. Para ele a mente deve ser algo que, mesmo sendo material, é absolutamente puro:

 

A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.

 

Para ele a mente era equivalente a Deus: uma força infinita que, agindo sobre a matéria informe, dá origem a tudo o que existe no mundo, particularmente às mentes humanas.

   Anaxágoras foi também o defensor da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang.[5] Segundo ele, no começo o universo inteiro se encontrava comprimido em um átomo primordial:

 

Todas as coisas estavam juntas, infinitas ao mesmo tempo em número e pequenez, pois o pequeno era também infinitamente pequeno. E como estava tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.

 

Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior, jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua. Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais (atualmente dizemos que nossos corpos também possuem átomos das estrelas). Essa expansão do universo existe ainda hoje e continuará existindo sempre. E além disso ele acreditava que também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido gerados, com sol e lua próprios e mesmo habitados por criaturas tão inteligentes quanto nós!

   Em meio a tudo isso, a única coisa que continua a mesma e que a tudo move é a mente. Nesse último ponto o Big-Bang de Anaxágoras difere do nosso, uma vez que em geral preferimos substituir seu conceito animista de mente pelas leis fundamentais da natureza.

 

2

 

Princípios múltiplos. Vários filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo múltipla. Esse foi o caso dos seguidores de Pitágoras (570-495 a.C.), que tendo percebido que tudo na natureza possuía quantidades e formas, concluíram que as matemáticas devem conter os princípios fundamentadores do universo, começando do número um, que é a base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria.

   Ancorados na matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que objetivava não só explicar o universo, mas também dirigir a vida humana. Eles foram nesse aspecto o primeiro exemplo claro de filósofos reducionistas, pois tentavam reduzir tudo o que fosse possível ao escopo mais limitado da explicação matemática. Fundamental à sua seita era a crença na doutrina da transmigração das almas, que acabou por influenciar o pensamento de Platão.

   Também acreditavam em princípios múltiplos os filósofos atomistas Leucipo, de quem quase nada sabemos, e seu discípulo Demócrito (460-370 a.C.), do qual restaram muitos fragmentos, além de Epicuro (341-270 a.C.), um atomista tardio, já pertencente ao período helenista. Para Demócrito o mundo é constituído pelo que ele chamou de átomos (não-divisíveis), que são partículas invisíveis, indivisíveis, com solidez e impenetrabilidade, tamanhos e formas sempre mais diversas e infinitos em número. Eles são os elementos constitutivos de todas as coisas visíveis. Afora os átomos, só o que existe é o espaço ou vazio. Os átomos se movem e se chocam uns contra os outros segundo leis causais deterministas. Como consequência, os atomistas foram os primeiros filósofos distintamente materialistas. Mas isso não os impedia de acreditarem no espírito, pois as almas humanas seriam constituídas de átomos muito mais sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode ser porque os átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças enquanto dormíamos, interagido com os átomos de nossas almas...

   É importante notar que os atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória decidimos chamar de os átomos que compõem a tabela periódica, mais tarde subdivididos em partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons, quarks, gluons e fótons. Mesmo que eles de maneira alguma fossem capazes de antecipar a física das partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a ideia de que o universo poderia ser formado por partículas invisíveis discretas, móveis e possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de dois mil anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas gregos seriam capazes de receber fundamentação científica.

   Além das especulações cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:

 

É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.

Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.

Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo aquele que não o procura.

A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.

Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma virtuosa é o universo.

 

É curioso notar que esses dísticos se aplicam hoje tanto quanto se aplicaram há 2500 anos. Parece que o ser humano em alguns aspectos pouco ou nada aprendeu com os erros de seus antepassados.

   Ainda outro pré-socrático pluralista que merece ser lembrado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 495-430 a.C.). Ele foi um filósofo bastante vaidoso, que se considerava um deus e que segundo a lenda deu fim à sua vida atirando-se na cratera do Etna. Ele foi um precursor de Darwin ao sugerir especulativamente que as espécies se desenvolvem através de uma luta entre seres vivos que por acidente nascem com as mais diversas características, o que faz com que só os mais aptos sobrevivam.

   Empédocles foi o inventor da ideia de que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele encontrou em filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água, o ar, o fogo e a terra. Eles são imutáveis e combinam-se uns aos outros de modo a formar o universo visível. Não parece impossível imaginarmos de algum modo a terra se convertendo em árvores, que ao se incendiarem tornam-se fogo, que fazendo fumaça que se converte em ar, o qual se converte em nuvens que se condensam em chuvas que caem sob a forma de água, a qual finalmente se solidifica outra vez como terra. Essa teoria, tão rudimentar quanto falsa, foi aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair por terra.

   Para Empédocles atuam sobre os quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o amor) e discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com que o universo sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos em tempos tudo se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram todos perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a da harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força da discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os elementos e formando os objetos hoje conhecidos até quando terra, ar, água e fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava que o mundo se encontrava em um estágio intermediário em que as forças da discórdia agiam de maneira cada vez efetiva.

   A doutrina cíclica de Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados sem forma, crescendo e se diferenciando e envelhecendo até que com a morte tornam-se outra vez matéria informe...

   A ideia de um mundo cíclico foi famosamente reapresentada no século XIX por Nietzsche sob a forma do que ele chamou de o eterno retorno. Mas este último o entendeu sobretudo como um experimento psicológico para testar a autenticidade de nossas atitudes perante a vida.[6] Para tal ele imaginou que as nossas vidas devessem se repetir identicamente, nos mais ínfimos detalhes, um número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e decisão, retornasse outra vez infinitamente, essa seria a prova de uma atitude absolutamente afirmativa diante de sua existência. – O problema com o experimento é que só depois que nossas decisões já foram tomadas é que passamos a conhecer com certeza seus efeitos bons ou maus. Mas uma vez tendo distinguido efeitos como sendo maus, ninguém mais desejaria em sã consciência repetir a mesma decisão. Desejar repetir algo que se revelou um erro não demonstra nenhuma atitude absolutamente afirmativa diante da vida, mas apenas uma atitude absolutamente teimosa.

    Finalmente, a ideia de um mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem se encontrado presente na cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang deverá ser seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo uma versão contemporânea daquilo que Empédocles propôs de forma puramente especulativa.

 

3

 

Heráclito. Quero me deter em Heráclito e Parmênides, uma vez que eles foram os mais influentes. Na tradição eles eram considerados opostos, pois Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a imobilidade do Ser. Mas veremos que nem por isso eles se opõem tão completamente, posto que por detrás da mudança Heráclito enfatizava a unidade da razão, que pode ser aproximada ao Ser de Parmênides.

    Heráclito de Éfeso (florescimento 500 a.C.), tal como Nietzsche e Wittgenstein, foi um filósofo que se exprimia por meio de aforismos. Muitos desses aforismos são profundos e nos dizem algo ainda hoje. Eis alguns:

 

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).

A harmonia invisível é mais forte do que a visível.

O que está em cima é idêntico ao que está embaixo.

A natureza ama ocultar-se.

Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.

 

Heráclito pertencia à nobreza efésia. Foi um pensador de índole aristocrática, misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se por meio de aforismos oraculares. Seus dísticos eram intencionalmente obscuros de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir racionalmente.

   Heráclito era um elitista. A razão, escreveu ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os habitantes de sua cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem mesmo os grandes poetas como Homero e Hesíodo, que mereciam ser vergastados.[7] Como ele escreveu:

 

A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem falar.

Jogos de crianças são as opiniões dos homens.

 

Heráclito foi também um filósofo capaz de odiar em medida pouco comum, como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus concidadãos. Faço aqui apenas uma breve seleção deles:

 

Asnos preferem a grama ao ouro.

Os porcos preferem a lama à água limpa.

Os cães ladram para o que não conhecem.

Tudo o que rasteja merece ser chicoteado.

Um para mim vale mil se for o melhor.

 

Se você quiser ser profundamente ofensivo sem ser vulgar, basta se recordar de algum desses aforismos.

   Heráclito foi também o filósofo do conflito e por isso o precursor do que veremos sob o nome de dialética. Para ele o conflito entre os opostos é necessário e inevitável, pois é dele que nasce a mais bela harmonia. Por isso ele considerava as guerras necessárias:

 

A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.

 

A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Foi graças à genial astúcia de um general grego, Temístocles, que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a continuação da produção cultural grega com o surgimento de Sócrates, Platão e Aristóteles. Hegel, que concordava com a função progressista da guerra, foi um admirador de Heráclito. E sua ideia de que a razão humana é apenas um momento da razão universal pode bem ter sido influenciada pela leitura de Heráclito.

   Mas não seria a necessidade da guerra uma ideia a ser ultrapassada, posto que esperamos que no futuro ela deixe de existir? Essa seria uma maneira superficial de interpretar Heráclito. Afinal, ele se referia a sua época. Mesmo que as guerras deixem de existir, como esperamos, os conflitos entres meios sociais humanos continuarão a existir sob formas mais elevadas, por exemplo, entre influências, valores, ideias e ideais.

   Outra ideia iconoclasta de Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas oposições são interdependentes, o que deveria desfazer a ilusão utópica de que possa haver um mundo inteiramente bom e justo, embora possamos, obviamente, aspirar a um mundo melhor e mais justo. Essa ideia vale para a sociedade e também para os indivíduos. Para Heráclito o ser humano é pela sua própria condição aprisionado ao conflito, de modo que a possibilidade de que ele se eleve à afirmação de uma existência para além de qualquer conflito é enganosa. O conflito é parte da condição humana. Disso podemos concluir que é melhor para o ser humano pode admitir o conflito e conscientizar-se dele, buscando então superá-lo pela ação ou pela reflexão.

   Faço uma pausa para lembrar da estória contada no livro de Ítalo Calvino intitulado O Visconde Partido ao Meio. Nela o visconde Medardo di Terralba é um homem que na guerra contra os mouros foi partido em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o problema separando as duas metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes. Mas incorreram em um erro, pois um deles herdou a parte má do visconde, enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a parte má se transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que fosse vivo, belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era um ingênuo que esquecia de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por considerá-lo enfadonho. A estória termina quando as duas metades se encontram e entram em duelo. Curiosamente, na luta, elas pareciam querer se aproximar uma da outra. Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que reúne as duas partes, fazendo reviver o visconde original. Sem grande surpresa, esse novo visconde passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa medida, ciente outra vez dos extremos volitivos do bem e do mal, que precisa manter sob a vigilância e controle da razão. Aqui também, como em Heráclito, é a razão que harmoniza os extremos.

    Para Heráclito o principal elemento é o fogo, no qual todos os outros se desfazem. Segundo ele:

 

Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre vivente fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.

 

A escolha do fogo decorre da ênfase no conflito, posto que para ele sem o conflito o mundo se desfaria em nada.

   Heráclito foi também o filósofo do movimento, da mudança. A realidade é mudança. Como o fogo, tudo se encontra em movimento. Também a vida é tensão, conflito, movimento incessante:

 

Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois novas águas correm sempre por ele.

 

Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao movimento e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de opostos ele acreditava em uma ordem oculta da natureza, imposta pelas leis da razão (o logos) e só alcançável através do pensamento. É a razão que secretamente domina o mundo. Embora ele fosse uma espécie de panteísta que acreditava que Deus se encontra em todas as coisas, para ele esse Deus, o Uno, era a própria razão que revela a identidade na diferença, a unidade no todo e a medida certa de cada coisa. Contudo, embora essa razão seja comum a todos, muito poucos fazem uso dela.

    O fundamento último, a arché da filosofia de Heráclito não se encontra, portanto, no movimento, nem no conflito dos opostos, mas na ideia de que o todo possui uma unidade oculta, na ideia de que a razão, o logos que subjaz ao conflito, é capaz de unificar os opostos e dar-lhes proporção e medida. Sob a perspectiva do Deus – ou razão, ou logos – todas as tensões são reconciliadas e as diferenças harmonizadas:

 

Para o Deus todas as coisas são belas, boas e justas, mas os homens sustentam que algumas são erradas e outras certas.

 

Há também em Heráclito o que parece uma sugestão acerca da natureza da filosofia como um saber antecipador de uma forma mais consensualizável de conhecimento, algo que ele apresenta na forma do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o expõe:

 

A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos, graças ao deus que está nela.

 

Esse juízo de Heráclito sobre a sibila é na verdade sobre a sua própria filosofia. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da filosofia. Muito da filosofia pré-socrática, mesmo que figurativamente, antecipou o que seria futuramente tematizado com maior rigor e detalhe por outros filósofos ou mesmo descoberto pela ciência. Por isso a filosofia tem sido por vezes chamada de o berçário das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da ciência.

 

4

 

Parmênides. Talvez o mais influente dentre os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), o fundador da escola eleática. Ele escreveu um poema intitulado “Sobre a natureza” no qual introduziu um enigma tão sugestivo quanto indecifrável. Para ele o princípio, a arché, seria o que ele chamou de o ser. Ele definiu o ser como algo imóvel e imutável. Sua ideia central foi a de que o ser, o Uno, é, enquanto o não-ser, a mudança, o devir, não é, sendo por isso apenas ilusão. É preciso que seja assim porque se qualquer coisa vem a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem a ser do ser então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se qualquer coisa vem do não-ser, então ela nada é, pois nada pode vir do não-ser ao ser.

   Mas o que é, afinal, o ser? Ele tentou esclarecer atribuindo ao ser uma lista de propriedades nem sempre compatíveis entre si. O ser é incorruptível, nem gerado nem perecível, encontra-se inteiro em cada instante, é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel e também finito e bem redondo (dado que a esfera finita era para os gregos o símbolo da perfeição). Em conformidade com o modo de pensar dos pré-socráticos o ser parmenideano deve, além disso, pertencer à physis, à natureza, não a transcendendo.

   Vale a pena transcrever aqui o fragmento principal do poema de Parmênides:

 

E agora [disse a musa] vou falar: e tu, escutas as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que, portanto, não é não-ser; esse é o caminho da persuasão, pois segue a verdade. O segundo caminho diz que é o que não é, daí resultando que é preciso não ser; essa via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer nem dizer aquilo que não é.

 

Que é seguido da sentença:

 

...Pois ser pensado e ser são o mesmo.[8]

 

Na primeira passagem Parmênides faz algumas considerações que dão início a um domínio de investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chegou até os dias de hoje. Ele distinguiu explicitamente a via do conhecimento da via erro. O conhecimento diz respeito ao ser, enquanto o erro diz respeito ao pretenso conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é daquilo que é imutável, diversamente do pretenso conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é daquilo que aparece aos sentidos como mutável. Fica claro então que por contraste, o mundo sensível de Heráclito, o que se encontra em constante mudança não pode ser o mundo real.

   O discurso parmenideano sobre o ser é tão interessante quanto incoerente, o que explica os intermináveis debates interpretativos que posteriormente gerou. Ele é prodigamente polissêmico, dando lugar a variadas e importantes interpretações. Considere, por exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides. Eles perceberam que ao afirmar que o ser é e que não pode não ser ele estava vislumbrando os princípios lógicos da identidade (o que é, é) e da não-contradição (o que é não pode não ser). Há também um aceno epistemológico na ideia de que só podemos conhecer aquilo que é, ou seja, o verdadeiro. Além disso, ele nos faz pensar no Deus monoteísta, na vida, nas leis últimas da natureza, no logos heraclitiano. Com a substantivação do verbo ser Parmênides inventou uma espécie de metáfora universal que lhe permitiu insinuar muito mais do que o discurso literal é capaz de dizer e que foi mais tarde tornada um recurso frequente na especulação filosófica.

   É possível uma interpretação ou reconstrução capaz de resgatar o ser parmenideano em sua integridade? Em meu juízo não. Mais de dois mil anos de esforços interpretativos me dão razão. Minha sugestão é a de que Parmênides recorreu a um artifício especulativo que pode ser chamado de uso hipostasiado de um termo. Esse artifício será explicado no capítulo XVIII (sec. 3), quando for discutida a filosofia terapêutica de Wittgenstein. Ele será entendido como um equivalente filosófico do que Freud chamou de condensação, consistindo no melhor dos casos na confusão de uma diversidade de insights de interesse especulativo em um único termo ou expressão magnificadora de seu efeito.

 

5

 

 

Ciência. Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituído as explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem o que poderíamos chamar de a forma das teorias científicas, entendendo-se com isso ideações especulativas motivadas por um conhecimento prévio da natureza da investigação científica e que em alguns casos detiveram forte analogia com teorias posteriores verdadeiramente científicas. É esse insight figurativo da forma geral da teoria o que há em comum entre o atomismo especulativo de Demócrito e a teoria atômica da microfísica contemporânea, entre a especulação de Anaxágoras e a presente teoria cosmológica do Big-Bang, ou ainda, entre Empédocles e Darwin. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga explicação do cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos que eles mesmos não podiam avaliar, dado a insuficiência de meios e informações que lhes permitissem resultados concretos em um domínio de investigação ainda completamente inexistente. Era a especulação motivada pelo puro prazer intelectual.

   Tais especulações só foram possíveis porque esses filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências cujo desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a matemática importada dos egípcios e dos babilônios. Mas enquanto os últimos usavam a geometria para fins práticos, só os gregos tiveram a ideia de considerá-la pela primeira vez em abstração de suas aplicações, o que permitiu que ela fosse axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de Euclides intitulada Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia tomados dos egípcios e babilônicos. Platão já acreditava que a terra se movia. É bem sabido o notável feito de Eratóstenes (circa 300 a.C.), que conseguiu medir o diâmetro da terra com razoável precisão. Para isso ele mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a outra, devido à diferença no ângulo de incidência da luz solar. Tomando como comparação as medidas dos triângulos formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu calcular com certa precisão a circunferência da terra, um feito extraordinário que foi esquecido nos séculos seguintes. Havia também conhecimentos de engenharia e de rudimentos de física, como pôde ser ilustrado mais tarde pela lei de Alavanca de Arquimedes (287-222 a.C.) ou por sua medição da massa específica de diferentes substâncias, estabelecida pela relação entre o volume de água por elas deslocado e o peso. É evidente que os gregos já estavam cientes da incomparável vantagem teórica e prática que o conhecimento científico é capaz de trazer.

 

6

 

Auguste Comte. O estudo dos filósofos pré-socráticos nos oferece uma excelente oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos perguntamos sobre o que eles estavam fazendo em sua relação com a ciência, alguma luz pode ser trazida pela consideração da assim chamada “lei dos três estágios” desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o mais importante filósofo francês do século XIX.

   A chamada lei dos três estágios da evolução da civilização, embora já antevista por outros, foi sistematicamente desenvolvida por Comte em seu Curso de filosofia positiva.[9] Esses estágios são o teológico, o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar essa lei de modo que ela ainda possa ser reconhecida como plausível. Uma primeira observação, com a qual Comte estaria de inteiro acordo, é que não se trata de uma lei no sentido mais estrito das leis das ciências duras, mas de uma lei a ser entendida como regularidade tendencial. Trata-se da identificação de uma vaga sucessão de três largos estágios, que se sobrepõem de modo parcial e irregular no desenvolvimento da civilização. Eis como Comte a apresentou:

 

A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes estágios teóricos: o estágio teológico ou fictício; o estágio metafísico ou abstrato; o estágio científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três métodos de filosofar (...)[10]

 

O estágio teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o subestágio do fetichismo, caracterizado pelo animismo, a ideia de que objetos como plantas e animais também incorporam deidades. O estágio teológico passa então ao politeísmo, no qual um grande número de deuses concorre na explicação das anomalias da natureza. Nesses dois subestágios, cada anomalia pode ser explicada por um deus diferente, não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa unificação só é ambicionada no terceiro subestágio, o do monoteísmo, que se caracteriza pela crença na existência de um único Deus. O monoteísmo tem a vantagem de permitir uma explicação unificada do mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estágio teológico corresponde à infância da humanidade. Em suas fases iniciais ele é repetição do que ocorre no crescimento cognitivo do indivíduo humano, quando a criança acredita na existência de fadas, bruxas e gnomos.

   O estágio metafísico é o que faz a transição entre os estágios teológico e positivo. Nele os seres humanos buscam substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem do imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações hipostasiadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de preferência reduzindo-se tudo a um princípio único. Embora em franca divergência com Comte (que certamente pouco conhecia dos pré-socráticos) eu diria que o exemplo mais claro de abstração hipostasiada ou mesmo personificada são as archai dos pré-socráticos. O estágio metafísico apresenta-se aqui de maneira evidente como uma especulação intermediária que deixou de ser religião, mas que não chega a ser ciência.

   Os estágios religioso e metafísico são importantes para Comte por motivarem os seres humanos a continuarem buscando uma forma científica de conhecimento, mesmo quando ela ainda não é possível. Foi por isso que o ser humano persistiu observando os movimentos dos astros por milhares de anos, na tentativa de fazer predições. Essa persistência foi indispensável, pois foi só por meio do suporte a crenças supersticiosas sobre os astros que o ser humano se permitiu, após longo período de observação infrutífera, chegar a descobertas astronômicas consistentes, desde a medição, distinção e previsão dos movimentos das estrelas e planetas, que permitiu o geocentrismo de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura epistêmica que consistiu no heliocentrismo de Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Galileu e Newton. Sem um longo estágio de especulação pré-científica nada disso poderia ter ocorrido.

   Para Comte o estágio metafísico foi o momento da adolescência do espírito humano, correspondendo no crescimento cognitivo individual ao período no qual adolescentes se comportam como aprendizes de feiticeiros, crendo tudo poder saber sem suficiente aprendizado e experiência. Essa comparação não é sem base psicológica: Jean Piaget identificou a tendência “metafísica” do adolescente de raciocinar sem conhecimento suficiente com o domínio intuitivo da lógica proposicional surgido no estágio operatório-formal depois dos 12 anos de idade.

   Em um entendimento plausível, os três estágios se sobrepõem parcialmente, além de ocorrerem em tempos diferentes para cada ciência, como veremos na seção seguinte. Isso torna uma pretensa datação dos estágios uma tarefa simplificadora e equívoca. Comte parece não ter querido perceber esse ponto de maneira suficiente, o que o levou a uma visão precipitada e obviamente falsa da questão. Para ele o estágio teológico foi especialmente o anterior à revolução francesa, o estágio metafísico foi datado como estando sobretudo entre aquela revolução e a queda de Napoleão, depois disso iniciando-se o estágio positivo... Essa maneira completamente implausível de resolver a questão só pode ter contribuído para o descrédito de sua versão da teoria.

    De nosso ponto de vista atual é difícil negar que no Ocidente o estágio metafísico começou com os pré-socráticos e continuou pelo menos até Hegel, enfraquecendo-se depois com filósofos ainda pertencentes ao estágio metafísico como, por exemplo, Edmund Husserl. O estágio religioso, particularmente forte na Idade Média, tem diminuído constantemente seu papel, muito por força do desenvolvimento da ciência. E o estágio científico só se instaurou de maneira definitiva no Renascimento, ganhando cada vez maior proeminência em nossa atual visão de mundo. E a ciência aplicada é hoje o que domina nossas vidas, pois acreditamos mais em átomos do que em deuses ou em supostas elocubrações metafísicas. Os três estágios se sobrepõem e só podem ser classificados em termos de sua importância em nossas vidas.

   O que importa para mim no momento é salientar que o mais flagrante exemplo de emergência do estágio metafísico intermediário entre religião e ciência é o que encontramos entre os pré-socráticos. Essa admissão nos permite compreender melhor o que aqueles filósofos estavam fazendo, pois os princípios ou archai por eles buscados encontravam-se de algum modo entre os deuses da mitologia e as leis naturais.

   Para fins de análise podemos distinguir aqui dois extremos entre as archai: o das excessivas e o das escassas. As excessivas são as que adicionam a entidades naturais propostas como princípios ou formas de leis, entidades assemelhadas aos deuses, com vida e consciência própria na forma de abstrações personificadas. As escassas são as que se restringem a entidades naturais propostas na forma de leis, sem a adição de entidades supernaturais. Assim, a água de Tales era um princípio excessivo: ela funcionava como se fosse uma condição nomológica natural possibilitadora da vida, mas encontrava-se ao mesmo tempo repleta de deuses. Também para os pitagóricos os princípios eram números e formas tornadas exuberantes, posto que não só satisfaziam relações matemáticas e geométricas, mas deviam exercer um papel mágico na determinação do destino dos seres vivos. O ar de Anaximandro era necessário à respiração e assim a fonte da vida de todo o universo. O mesmo aconteceu com a mente de Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico se encontrava presente, ainda que essas entidades devessem (com razão) pertencer à physis. Mas ainda assim elas representam princípios espirituais capazes de comandar o curso do universo. Em Empédocles, os quatro elementos eram regidos pelas forças do Amor e do Ódio, que apesar de receberem nomes de afetos são melhor interpretadas como forças físicas regulando o curso cíclico do universo, o que já os aproximava de archai escassas. Contudo, os exemplos mais flagrantes de archai escassas são elementos ou formas decididamente não espirituais como os átomos de Demócrito, o Ápeiron de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e mesmo o ser de Parmênides. Neles o aspecto espiritual tende a desaparecer, permanecendo uma realidade postulada e em si mesma indecifrável, uma abstração hipostasiada que toma o lugar da inalcançável compreensão do todo.

   Os pré-socráticos são os melhores exemplos de filósofos metafísicos no sentido proposto pela lei dos três estágios, uma vez que suas archai apresentam o inteiro espectro, já que eles suspeitavam da mitologia e aspiravam a ciência, mas sem ter condições de alcançá-la em âmbitos tão ambiciosamente amplos, disso resultando suas especulações. Mas o estágio metafísico apenas começou com os pré-socráticos. As archai, os princípios metafísicos fundamentadores da realidade como um todo, continuaram sendo propostos ao longo de toda a história da filosofia. Foi assim que Platão tinha como princípio as ideias, Aristóteles a substância, os medievais o Deus dos filósofos, Leibniz as mônadas, Kant o noumenon, Hegel o absoluto, Husserl o Eu transcendental, Heidegger o Ser, Wittgenstein o indizível... Sob essa perspectiva o período metafísico foi mantido em filosofia até pelo menos a primeira metade do século XX, em rematada discrepância com a perspectiva reducionista do próprio Comte.

   O último estágio do desenvolvimento civilizatório seria para Comte o científico ou positivo. Aqui o ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta pelo “como”. Ele desiste da tarefa impossível de buscar princípios últimos explicativos de todo o universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados, ou seja: leis da natureza aplicáveis em âmbitos mais ou menos específicos. Ao invés da busca inútil de uma verdade absoluta, o ser humano passa a buscar verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente de poder sempre estar errado. Além do mais, abandonando a ambição de unificar todo o conhecimento em uma única ciência, o conhecimento passa a ser reduzido às unificações parciais alcançadas pelas ciências particulares, mesmo que elas sejam complementares umas às outras. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da humanidade, correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem adulto, ainda que um resíduo dos estágios anteriores possa permanecer em seu psiquismo...

   Um ponto importante é que se no final de tudo a lei dos três estágios for essencialmente correta então parece que as questões fundamentais da filosofia – compreendida naquilo que Comte chamou de metafísica – poderá chegar a ser toda ela em algum momento futuro substituída por alguma forma de ciência. Esse é um ponto controverso ao qual voltarei ainda nesse capítulo.

 

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Classificação das ciências. A lei dos três estágios precisa ser complementada pela classificação das ciências básicas feita por Comte. Ele percebeu que os estágios religioso e metafísico em geral antecederam, o nascimento das ciências básicas e que elas nascem sucessivamente formando uma hierarquia de dependências. Isso introduz um elemento de complicação no processo.

   Para Comte as ciências empíricas básicas podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a sua complexidade. A generalidade opõe-se à complexidade e vice-versa. Quanto mais geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto mais complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte das ciências básicas (que era limitada pelo desenvolvimento científico de sua própria época) nós chegamos resumidamente ao seguinte quadro:

 

Maior complexidade              SOCIOLOGIA

                                               PSICOLOGIA

                                               BIOLOGIA

                                               QUÍMICA

                                                FÍSICA                          Maior generalidade                 

                                               (MATEMÁTICAS)

 

Embora a matemática tenha surgido primeiro, ela não é propriamente uma ciência natural e fica fora de nossa lista. Assim, a lista deve começar com a física, que é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em compensação, suas leis devem se aplicar ao universo inteiro, possuindo assim maior generalidade. A química é um fenômeno emergente que diz respeito às inúmeras combinações atômicas. Ela se aplica aos compostos químicos que existem na terra, mas não se aplica à parte do universo que não permite a mais complexa química do carbono. A bioquímica, que é a química dos organismos vivos, tem seu escopo ainda mais reduzido, constituindo os fundamentos da biologia, que se aplica à vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que cobrem parte da terra. A psicologia (ignorada por Comte) diz respeito apenas aos seres vivos conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não se aplicando, por exemplo, aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres vivos conscientes capazes de se reunir na formação de sociedades complexas, o que nos permite perguntar se essas sociedades não serão também um fenômeno emergente. A sociologia é a ciência básica de menor generalidade e de maior complexidade em seus princípios

   Há um grande número de outras ciências, mas elas são derivadas, utilizando o conhecimento adquirido pelas ciências básicas a certos domínios específicos. Um exemplo é a geologia, que usa conhecimentos da física, da química, da biologia, etc. com o objetivo de estudar a terra e as rochas. Outro é a neurociência, que intenta aplicar nosso conhecimento de biologia, bioquímica, biofísica, etc. à investigação do funcionamento do cérebro. Ainda outro exemplo é a astronomia (que Comte erroneamente considerava uma ciência básica), que aplica conhecimentos de física, química e matemática ao estudo do cosmo.

   Mais importante é notar que a passagem do estágio metafísico para o estágio científico – a assim chamada ruptura epistemológica – se deu no emergir de cada ciência particular em tempos diferentes e de maneiras diversas. As ciências mais gerais surgiram primeiro, uma vez que seu conhecimento costuma ser pressuposto para o desenvolvimento das outras. A “física” aristotélica (enquanto física) era puramente especulativa e completamente errônea, prevalecendo até o fim da Idade Média. Ela se tornou realmente ciência só após Galileu, no século XVI, quando pôde ser matematizada. Entre as ciências empíricas a física surgiu primeiro, uma vez que ela é pressuposta pelas outras ciências básicas, mas não as pressupõe, passando então ao estágio positivo. A química só passou de seu estágio metafísico, como alquimia, para o estágio científico no final do século XVIII, pressupondo em muito a física e suas aplicações matematizáveis em experimentos. A biologia só se libertou definitivamente de crendices como a da geração espontânea através da investigação de Pasteur no século XIX, pressupondo para seu desenvolvimento o conhecimento de ciências mais básicas, o que incluiu as tecnologias por elas possibilitadas, como a invenção do microscópio. E tanto a psicologia quanto a sociologia se encontram ainda hoje em um estágio parcialmente conjectural (a dizer, “metafísico”), a despeito do excessivo otimismo de Comte quanto à última.

   Ciências derivadas, como a neurociência contemporânea, dependem para o seu aparecimento de toda espécie de desenvolvimentos anteriores de outras ciências, particularmente no que concerne à produção dos instrumentos e meios de pesquisa. Quando consideramos mais detidamente o que realmente se deu fica agora claro que a lei dos três estágios diz respeito apenas a uma tendência geral de sucessão, não existindo nenhum tempo histórico a ser definido para cada estágio, visto que eles se sobrepõem de tal maneira que ainda hoje somos capazes de encontrar resíduos do estágio metafísico e até mesmo do estágio teológico em muito do que fazemos.

   Um ponto a ser adicionado é que a ruptura epistemológica abrupta que aconteceu com o surgimento da física no renascimento e da química na virada do século XIX não precisa nem é para se repetir no surgimento de outras ciências, pois por sua maior complexidade elas dependem do estabelecimento de um número cada vez maior de pressupostos. A passagem da psicologia para a ciência, por exemplo, tem sido gradual. Os resultados da psicologia experimental são científicos, mas ela é limitada, como aconteceu com a teoria do reforço (Skinner). A chamada “psicologia profunda” (Freud), embora constitua um avanço indiscutível, ainda não encontrou suficiente consenso entre especialistas, sequer entre os psicanalistas. E a sociologia, embora tenha se estabelecido muito lentamente como um domínio do conhecimento, constitui-se de uma plêiade de teorias em parte divergentes e em parte complementares, encontrando-se ainda mais longe de alcançar o consenso público que se espera de uma ciência. Nesses últimos casos encontramos um desenvolvimento muito mais gradual, acrescido de pequenos avanços, do que propriamente uma ruptura, uma vez que o apoio teórico demandado para a certificação consensual precisará ser muito mais diversificado e complexo, ainda mais devendo ser esperado dos domínios mais centrais da filosofia.

   A constatação acima tem uma moral com relação à filosofia. Se domínios da filosofia como a epistemologia e a ética passarem ao nível de ciência, isso não significa que isso deverá acontecer através de uma ruptura com a epistemologia e ética tradicionais, que ao que tudo indica ainda conservam verdades que foram sendo fragmentariamente e obscuramente reveladas desde o início. Essa passagem será gradual e dependerá de suportes não apenas verticais, menos abstratos, mas de suportes oriundos de outros domínios também mais abstratos, inclusive os de outras áreas da filosofia, sob formas múltiplas e variadas do que pode ser chamado de reforço teórico. Afora isso, como logo veremos, se domínios centrais da filosofia forem capazes de passar ao nível de “ciência” então precisaremos ao menos considerar com muito mais cuidado que conceito de ciência estamos levando em consideração.

   Filósofos geralmente torceram o nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam indignados pelo seu positivismo reducionista, por sua maneira apressada de substituir a conjectura filosófica pela ciência, sem falar de sua trajetória mística posterior como o fundador da religião da humanidade. Jean Paul Sartre chegou a dizer que Comte está na origem do fascismo... Contudo, quando sensatamente revisadas as principais suposições de Comte sobre a evolução das formas de investigação se demonstram capazes de ser absorvidas de maneira proveitosa.

 

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J. L. Austin. A consideração da lei dos três estágios nos leva diretamente a uma outra ideia, qual seja, a de que a filosofia pode ser vista como uma protociência. Segundo ela, a filosofia é aquilo que é possível fazer antes do surgimento da ciência. Quando ainda não sabemos o suficiente sobre os métodos a serem empregados, quando ainda não temos domínio sobre os métodos a ser empregados, quando não sabemos sequer quais são os dados que devem ser considerados mais fundamentais, falta-nos qualquer critério para saber que teoria será preciso desenvolver. O que nos restam são conjecturas filosóficas, ou seja: há uma grande diversidade de ideias cujo valor desconhecemos e que podem servir de pressupostos para a especulação. Um filósofo escolhe um conjunto delas e as usa como pressuposto para a construção de uma linha de raciocínio que levará a resultados plausíveis ou pelo menos interessantes. Outro filósofo escolhe um outro conjunto de pressupostos, construindo uma outra linha de raciocínio, uma outra filosofia. É claro que depois disso não será possível comparar os resultados, ficando a escolha final na dependência do gosto de cada um.

   Essa situação também permite um uso relativamente livre da imaginação na busca de soluções meramente especulativas. E isso é o que mais caracteriza o trabalho do filósofo. Esse sentir-se bem no pensamento especulativo é o que motivou Bertrand Russell a comparar os filósofos a certos Pais Peregrinos, que insistiam em ir viver sempre mais para o Oeste, de modo a fugir da civilização que deles se aproximava.

   Como observou J. L. Austin em uma famosa metáfora que não me canso de citar, com a qual prepara o terreno para seu projeto de retirar do domínio conjectural da filosofia uma ciência da interação comunicativa:

 

Na história da investigação humana, a filosofia ocupa o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta, frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante. Isso aconteceu há muito tempo atrás com o nascimento da matemática, e ainda com o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.[11]

 

Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar, batizar... disso resultando o que ele chamou de uma “teoria dos atos de fala,” que hoje é estudada nos cursos de linguística mais do que nos de filosofia.[12] Exemplifica-se aqui o conceito de filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. E o sol inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição da filosofia originária dos pré-socráticos.

   O exemplo da teoria dos atos de fala também nos mostra que o papel de protociência da filosofia não é o de antecipar ciências que já existem, mesmo as que já existem de forma embrionária, pois isso tende a acabar em uma contraprodutiva forma de reducionismo. A filosofia é protociência no sentido de antecipar coisas inteiramente novas e inesperadas, a exemplo dos múltiplos insights filosóficos sobre a interação linguística formulados antes da teoria dos atos de fala.

   Há nesse ponto uma objeção à ideia de filosofia como protociência que pode ocorrer a alguns, mas que resulta de simples confusão. Ela foi feita por Sir Anthony Kenny. Ele observou que pelo menos os domínios centrais da filosofia, como os da metafisica, das teorias do significado e da ética, continuarão para sempre filosóficos.[13] Essa conclusão se deve sem dúvida à aceitação de uma concepção positivista da natureza da ciência que Kenny e muitos outros tinham e ainda tem em mente. Essa concepção foi muito difundida por influência do positivismo lógico e pelo fato de que os primeiros filósofos contemporâneos da ciência empírica eram filósofos da física. Trata-se da definição da ciência pelo emprego de experimentos verificacionais (Carnap) ou falseadores (Popper), notadamente aqueles passíveis de controle preciso e de repetição. Tais concepções se aplicam quando muito à física, mas não se aplicam a um domínio obviamente científico, como a teoria da evolução, que não é passível de experimentos repetíveis. Ademais, o que dizer de muitas outras atividades geralmente consideradas científicas, como a linguística, a história, a antropologia física? Concepções positivistas da ciência costumam ser reducionistas, por isso mesmo deixando de corresponder ao que cientistas e pessoas com educação científica costumam chamar de ciência, que é algo muito mais amplo. Se quisermos entender a ideia de filosofia como protociência mantendo uma estreita concepção positivista da natureza da ciência, a conclusão de Kenny é correta e inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo que ele tem de mais central, jamais poderá dar lugar à ciência, a menos que isso seja feito caricaturalmente através de formas brutais de reducionismo positivista.

   Há, porém, uma definição não-reducionista de ciência que se complementa perfeitamente com a ideia de filosofia como protociência e que além disso corresponde com exatidão ao que cientistas e pessoas com educação científica costumam chamar de ciência. Trata-se do que John Ziman, um físico e sociólogo da ciência sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais fundamental da investigação científica é que ela é um conhecimento público consensualizável (public consensualizable knowledge).[14] A ideia é intuitiva: o conhecimento dito científico é aquele apto à obtenção de um consenso possível quanto aos seus resultados da parte de uma apropriada comunidade de ideias, que é a comunidade dos cientistas, dos conhecedores do assunto, a metodologia diferindo de caso em caso. A ideia de Ziman, além de intuitiva pode ser bem fundamentada se adicionarmos a ela a exigência de que a comunidade de especialistas seja semelhante àquilo que Jürgen Habermas chamou de “comunidade ideal de fala” (ideale Sprachgemeinschaft), vale dizer, uma comunidade crítica com participantes igualmente competentes, com idêntico acesso à informação, iguais direitos de manifestação e crítica, absoluta liberdade de expressão e real comprometimento heurístico. Com isso ter-se-á alcançado razoáveis condições públicas de avaliação de resultados.[15]

   A definição de ciência como conhecimento público consensualizável resgata perfeitamente o que os cientistas e leigos cultos admitem chamar de ciência. A teoria da evolução é científica porque há suficiente consenso entre os cientistas quanto aos seus resultados. A antropologia física é científica porque a comunidade científica é capaz de concordar com os seus resultados. Por exemplo: admitimos que os seres humanos atuais emigraram da África há cerca de entre 70 a 100 mil anos atrás em levas sucessivas, espalhando-se então pelo mundo. A teoria das cordas da microfísica é hoje objeto de disputa e mesmo de descrédito: será ciência se for ao menos fisicamente (ainda que não praticamente) possível que ela venha a obter alguma comprovação experimental com a qual os físicos possam se pôr de acordo, caso contrário não passará de especulação. Mas o mesmo não acontece com a astrologia, visto que os astrólogos nunca conseguiram chegar a um acordo sobre suas teorias e resultados. Apesar de Freud ter acreditado que não, a própria psicanálise, embora aproxime-se mais da ciência do que uma psicologia de cadeira de balanço, não chegou a ser ciência no sentido mais forte de seus resultados serem integralmente aceitos por todos os psicanalistas. O mesmo também não acontece de modo muito mais radical com a filosofia. Restringindo-nos aos pré-socráticos, não temos como dizer quem estava certo, se Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou Demócrito. Assim colocada a pergunta sequer faz sentido.

   Alguns poderão objetar que nada disso resolve o problema, pois, diversamente da ciência, a especulação filosófica é demasiado abstrata, de sorte que a aquisição de consenso a respeito dela restará sempre impossível, a menos que se proceda de maneira artificiosa. Penso que a resposta tem a ver com o conceito de consiliência, tal como foi interpretado por Susan Haack. Trata-se da assunção de uma unidade na totalidade do que é real.[16] Trata-se de algo que lembra as ideias da razão de Kant (ver cap. XII, sec. 12), que eram conceitos diretivos que serviam para orientar a pesquisa. Os cientistas precisam adotar o pressuposto heurístico de que a realidade possui unidade de modo justificarem sua busca por sínteses teóricas. A autora adiciona algo mais no que diz respeito à consiliência: é que se a realidade possui unidade então as ideias científicas verdadeiras devem ser capazes de se se complementar e reforçar umas às outras em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que corroboram e são corroborados pela teoria da evolução natural, a qual é corroborada por dados geológicos...

   Haack aplicou a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Na medida em que diferentes subáreas da filosofia possuem algo de verdadeiro e se encontram interligadas entre si, as ideias verdadeiras desenvolvidas nessas subáreas devem ser capazes de se reforçar heuristicamente. Mais além, ideias pertencentes a áreas do conhecimento contíguas ou complementares a um certo domínio da filosofia devem ser capazes de reforçar ideias verdadeiras pertencentes a esse mesmo domínio e a enfraquecer ideias falsas. Admitindo a consiliência é possível pensar que a sobreposição do conhecimento proveniente de diversas direções seja capaz de estreitar os fios da teia do conhecimento e gradualmente aproximar os resultados da especulação filosófica de matéria de consenso, melhor dizendo, da ciência no sentido de um conhecimento público consensualizável.

   Se admitirmos a concepção suficientemente liberal de ciência proposta por Ziman, a possibilidade de que todas as áreas centrais da filosofia tradicional venham aos poucos a se tornarem científicas se torna factível, uma vez que a filosofia contrasta com a ciência precisamente por sua falta de consenso público. Quando teorias pertencentes a domínios centrais da filosofia, como a epistemologia e a ética, se tornarem objeto de consenso entre os filósofos, elas deixarão de ser filosóficas para se tornarem científicas. E não precisaremos nos tornar reducionistas ou positivistas no sentido derrisório da palavra para admitirmos essa possibilidade.

 

9

  

O triângulo metafilosófico. Há, por fim, ainda outra maneira de se entender a natureza da filosofia que considero complementar ao que foi sugerido até aqui e que nos proporciona um quadro mais completo. Trata-se da ideia de que a filosofia é uma prática cultural derivada. Um exemplo de prática cultural derivada é a ópera. Ela resulta basicamente de três práticas artístico-culturais que são: a poesia, o enredo e a música (a melodia instrumental junto ao canto lírico). Tendo em vista a filosofia, parece que podemos considerá-la como uma prática cultural derivada de três práticas culturais mais fundamentais, que são as práticas religiosa, artística e científica. A filosofia não se reduz a nenhuma dessas três práticas, mas retira motivações, métodos e materiais delas.

   Pode ser sugerido que da prática religiosa ela retira uma motivação que podemos chamar de “mística”, a ser realizada em termos de profundidade e abrangência. Trata-se aqui da motivação que podemos chamar de totalizante ou holística, que contém o fator integrador, visível no esforço de direcionar as conjecturas rumo à maior amplitude possível. Assim, quando o filósofo busca “uma explicação última do universo e do lugar do homem nele” (Aquino), quando alguém se pergunta “de onde viemos, quem somos, para onde vamos” (Gauguin), ou ainda quando se põe a questão “por que o ente e não antes o nada?” (Heidegger). Aqui vemos a inclinação mística. Mesmo que se conclua negativamente: “Não é o nada porque se fosse o nada ninguém estaria aqui para fazer essa pergunta” (Steven Hawkins), o interlocutor está demostrando uma preocupação filosófica pertencente ao mesmo escopo místico-holístico, mesmo que negativa.

   Da prática artística o filósofo retira o caráter inevitavelmente metafórico de seus conceitos fundamentadores de sua linguagem (como os do ser, do conceito, da ideia, da coisa em si, do absoluto, do indizível...), além de suas metáforas, alegorias, aforismos, de sua retórica e da estrutura mesma do discurso, como aconteceu com Platão, Spinoza e Wittgenstein. Ao dizer que que “da luta dos opostos nasce a mais bela harmonia” (Heráclito), que “o tempo é a imagem móvel da eternidade” (Platão), que “a angústia é a disposição fundamental que nos coloca diante do nada” (Heidegger), ou ainda que “todo objeto amado é o centro de um paraíso” (Novalis), o filósofo cede a recursos estéticos como veículos de suas intuições.

   Finalmente, da prática científica o filósofo retira seu objetivo heurístico, a intenção de aproximação da verdade, os recursos metodológicos formais ou empíricos geralmente tomados de empréstimo das ciências, além de parte do material com o qual trabalha, a outra parte derivada de nosso saber comum. Ao dizer que “o mundo é feito de átomos e do vazio” (Demócrito), que “nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto” (Aristóteles), ou que “o pensamento de minha própria existência não pode ser por mim mesmo agora posto em questão” (Descartes), o filósofo procura fundamentar seu discurso em verdades acerca do mundo, aproximando-se assim da ciência.

   Sob tais condições podemos construir um triângulo em cujos vértices se encontram a religião, a arte e a ciência, encontrando-se a filosofia no espaço interior do triângulo, como é sugerido abaixo:

 

                                                    CIÊNCIA

 

                                                  FILOSOFIA

 

                RELIGIÃO                                                     ARTE

 

Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos esses elementos presentes. É evidente o elemento estético nos aforismos de Heráclito ou mesmo no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreveu em tom oracular e o poema de Parmênides é apresentado por uma deusa, o que revela a influência totalizante do elemento místico. Além disso, o primeiro buscava a sabedoria no logos, na razão que governa o mundo, enquanto o segundo tinha por objeto o conhecimento do ser como algo ultimamente verdadeiro, o que só poderia ser motivado por quem tivesse a motivação heurística de compreender a verdadeira natureza das coisas, o que tem a ver com a ciência.

   Podemos intuitivamente situar os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo. Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e heurísticos, podem ser postados na área central do triângulo. O melhor exemplo é o de Platão, que pode ser considerado o filósofo par excellence. Filósofos cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Agostinho, Aquino, Schelling e Hegel. Filósofos com predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos como Nietzsche e mesmo Heráclito, podem ser postados próximos do vértice artístico do triângulo. Filósofos com predominância conjunta dos elementos estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger, podem ser postados próximos à linha de baixo do triângulo. E ainda filósofos com interesses particularmente heurísticos, como Locke e Russell, sem falar de Rudolph Carnap, W. V-O. Quine e Saul Kripke, podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo. Por fim, há aqueles que se encontram na fronteira entre filosofia e outra coisa, como Novalis e o poeta Hölderlin, cujos escritos possuíam insights filosóficos, o filósofo-místico medieval Meister Eckhart, cujos seus sermões são prédicas religiosas filosoficamente coloridas. E quanto à zona limítrofe entre filosofia e ciência temos ainda o caso de Freud e da psicanálise: no ambiente controlado da prática psicoterápica ele teve condições de aprofundar conceitualmente a psicologia filosófica, mesmo sem alcançar o alto consenso científico por ele ambicionado.

   O triângulo metafilosófico nos ajuda até mesmo a classificar direcionamentos das filosofias em diferentes culturas. Filósofos alemães, desde figuras limítrofes como Meister Eckhart até filósofos de grande estatura como Kant e Husserl, geralmente demonstravam maior proximidade do vértice místico-religioso, com sua ambição de abrangência totalizante grandiosamente exemplificada em um sistema omniabrangente como o idealismo absoluto de Hegel. Alguns, como Schelling, Hegel e Heidegger, estudaram em seminários religiosos.

 A filosofia francesa desde Descartes, ainda muito mais em Sartre, mas em um nível extremo no movimento pós-modernista da retórica filosófica de pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, possuiu ênfase estética fronteiriça, tendendo ao extremo artístico, certamente sob a influência da extraordinária literatura que foi produzida em língua francesa.

   Finalmente, a filosofia anglo-americano-australiana, sob a influência maior dos desenvolvimentos científicos e técnicos, pôs ênfase no aspecto heurístico próprio do vértice científico. Basta considerar exemplos de filósofos como Locke, Stuart Mill, Russell, W. V-O. Quine, Saul Kripke, e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin, Paul Grice e John Searle.

   Também deve ser notada uma direção no interior do triângulo, a direção verticalizadora da ciência. A tendência geral é a de que as investigações filosóficas pouco a pouco se aproximem do vértice científico, que essas discussões, de início inteiramente aporéticas, aos poucos, pelo reforço interteorético proveniente de diversas direções, estreitem cada vez mais as exigências de suas teias argumentativas de modo a se elevarem gradualmente à forma de um conhecimento público consensualizável. Quando isso acontecer é provável que os domínios centrais da filosofia desapareçam ou que tomem formas menores, assim como aconteceu com a ópera. É possível que estejamos nos aproximando desse ponto. Nesse caso teremos a morte da filosofia, pelo menos daquela com a qual nos acostumamos pela leitura da tradição até tempos bastante recentes. O grande risco é que se tente apressar essa morte através de formas aparentemente assépticas de eutanásia, como a da fragmentação cientificista da filosofia em obscuros guetos de proficiente miséria intelectual – o que alguns receiam estar hoje acontecendo (ver cap. XX do presente livro).

   Muito do que será exposto no presente livro servirá quase incidentalmente como comprovação das teses metafilosóficas recém apresentadas.

 

10

 

A filosofia dos pré-socráticos foi no século IV substituída pela filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles. Os dois últimos, junto a filósofos como Leibniz, Hume, Kant e Hegel, constituem o cânone, se assim podemos dizer, da tradição filosófica ocidental, pela amplitude, coesão lógica e força imaginativa de seus sistemas. Eles realizaram tentativas de unificar especulativamente nosso entendimento do mundo e do lugar que o homem nele ocupa com base no conhecimento e na cultura do tempo em que viveram.

 

 

 

 

 



[1] Friedrich Nietzsche: “Os filósofos Trágicos”, in Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, col. Os pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1978), pp. 10-12.

[2]  Karl Popper: “Back to the Pre-Socratics.” In Conjectures and Refutations (London: Routledge 1989), p. 138.

[3] Ver discussão em W. K. Guthrie, A History of Greek Philosophy I: The earlier Presocratics and the Pythagoreans (Cambridge: Cambridge University Press 1962), pp. 119-133.

[4] Farei nas citações dos pré-socráticos livre uso de G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield: The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), além das traduções que podem ser encontradas em Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, Col. Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1973).

[5] Encontro essa sugestão em Anthony Kenny: A New History of Western Philosophy (Oxford: Oxford University Press 2004) vol. I, p 25.

[6] Friedrich Nietzsche: A gaia ciência (1882, 1887) sec. 285, 341.

[7] Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, Col. Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1978), fragmentos 42, 106, 121.

[8] A sentença grega original, “To gar auto noein estin te kai einain” não deve ser traduzida como “Pensar e ser são o mesmo”, como fizeram alguns. Ela já foi mais corretamente traduzida de diversas maneiras: “Das seiende Denken und das Sein ist dasselbe” (Diels/Kranz), “The same thing is there to be thought and is there to be” (Edward Hussey), “It is the same thing that can be thought and can be” (W. K. Guthrie), “Being thought and being are one” (Anthony Kenny)…

 

[9] Auguste Comte, Cours de philosophie positive (Paris: Rouen Fréres 2830), p 3 e ss.

[10] Auguste Comte, Ibid., Prèmier Lesson, p. 2.

[11]  J. L. Austin: Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1979), p. 232.

[12] O livro foi publicado após a morte do autor sob o título de How to Do Things with Words (Oxford: Clarendon Press 1962)

[13]  Anthony Kenny: Aquinas on Mind (London: Routledge 1993) cap. 1, p. 4.

[14] John Ziman: O Homem e a Ciência (Belo Horizonte: Itatiaia 1979), pp. 24-27.

[15] Ver meu livro The Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory (Langham: UPA 2002), cap. III

[16] Ver Susan Haack: “The Fragmentation of Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed. J. F. Göhner, Eva-Maria Junger (Springer Verlag 2016), p. 15 ss.