Retirado de um DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”
I
OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA
A história inicial da filosofia grega, especialmente de Tales a Platão,
é esplêndida. É quase demasiado boa para ser verdadeira. Na origem dela estava
sempre o pensamento crítico.
Karl Popper
A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 600 anos antes
de Cristo. Mas a filosofia enquanto tal é muito mais antiga. Para alguns ela
nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o
chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria
oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras.
Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo,
originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal
objetivo era orientar a vida humana.
A filosofia, tanto ocidental
quanto a oriental, teve origem religiosa. Como resultado disso temos uma incômoda
confusão, ainda hoje comum entre os leigos, entre filosofia e sabedoria de vida.
A filosofia acadêmica, porém, como resultado de uma especulação coletiva de
comunidades de conhecedores sedimentada sobre uma tradição milenar, pouco tem a
ver com uma simples sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação aparentemente
esotérica e inacessível ao público leigo.
Vale lembrar nesse contexto a
opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos, se
originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada é
que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião. Com
efeito, essa filosofia se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria
mística, de um aconselhamento sobre a arte do bem-viver, assemelhando-se a uma
forma mais elevada e reflexiva de autoajuda. Em contraste com isso, a filosofia
nascida com os filósofos pré-socráticos se ocupava de argumentos críticos desenvolvidos
por pessoas que em geral conheciam muito bem a ciência da época. Insatisfeitas
com explicações puramente religiosas, essas pessoas buscavam substituir o legado
do pensamento mitológico por um questionamento especulativo que, como veremos, tendia
a prefigurar o pensamento científico. A opinião de Hegel pode ser exagerada,
mas há nela algo de verdadeiro.
Para entender o nascimento da
filosofia ocidental precisamos considerar o pensamento dos filósofos
pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por
terem preocupações filosóficas cosmológicas, em geral muito diferentes das
preocupações essencialmente morais do último. Eles foram os primeiros a terem
surgido na Grécia, em um período que foi do século VI ao século V antes de
Cristo. O principal objetivo desses filósofos era o de buscar a unidade na
diversidade através de algum princípio originador e sustentador de tudo o que
existe, a assim chamada arché. Esse princípio pertencia à natureza (physis),
daí o naturalismo dos pré-socráticos. Na época a Grécia importava a
ciência nascente do Egito e da Babilônia e os filósofos pré-socráticos eram geralmente
bons cientistas, conhecedores de matemática, geometria, engenharia e
astronomia. Em razão dessa base científica, o pensamento deles se caracterizava
pelo rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto comum
era o de substituir as explicações puramente mitológicas dos acontecimentos,
principalmente os relativos à origem e natureza do universo, por princípios puramente
especulativos. Esses princípios em alguma medida mimetizavam a espécie de procedimento
já conhecido na ciência, ainda que em domínios tão amplos a verdadeira ciência fosse
na época impossível.
No que se segue quero resumir
as doutrinas de alguns filósofos pré-socráticos mais importantes, dado que meu
principal objetivo é oferecer exemplos do que eles estavam tentando fazer.
1
Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o
filósofo jônico Tales (624-546 a.C.), que viveu na cidade de Mileto, na época um
importante centro comercial situado na Ásia Menor. Ele também foi um astrônomo
e matemático, tendo previsto um eclipse solar no ano de 585 a.C. Tales acreditava
que a água fosse a substância originadora e subjacente a todas as coisas,
aquilo que seu discípulo Anaximandro pela primeira vez chamou de arché
(princípio, origem). Afinal, a vida nasce das coisas úmidas. Ele via a água
como plena de deuses e coincidente com o divino.
Com a postulação de que a água
é o princípio Tales foi a primeira pessoa a ter a intuição original de que tudo
é um,[1] ou seja, a ideia de que o universo
possui uma unidade constitutiva à qual nós podemos, em princípio, ter acesso
cognitivo. O esforço no sentido de obter uma compreensão racional unificadora de
todas as coisas, mesmo que sabidamente especulativa, foi uma característica da
filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica
ocidental.
Tales teve como discípulos dois
filósofos jônicos mais jovens: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro (610-546
a.C.) sugeriu que a arché fosse um elemento indefinido e eterno, o ápeiron,
que se traduz literalmente como o ilimitado. Essa é uma ideia importante
por tornar o princípio explicativo das coisas, pela primeira vez na história da
filosofia, algo não perceptível aos sentidos. Ele foi responsável pela ousada ideia
de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros, que não cai nem para um
lado nem para o outro, graças ao equilíbrio das forças. O filósofo da ciência
Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de inércia e até mesmo o da
gravitação.[2]
A metafísica pré-socrática operava após a mitologia e antes da ciência, tendo
por vezes alcançado uma clara antecipação especulativa da última.
Anaximandro também foi um
precursor do evolucionismo ao sugerir que os seres vivos se originaram da água
e que os primeiros humanos eram parecidos com peixes. Ele argumentou que como
as crianças humanas precisam de anos de completa dependência dos pais para só
então se tornarem capazes de cuidarem de si mesmas, os seres humanos deviam ter
sido muito diferentes nos tempos mais remotos.
Anaxímenes (594-524 a.C.), por
sua vez, rejeitou o ápeiron de Anaximandro por considerá-lo demasiado
abstrato. Ele buscava um elemento primordial que pudesse ser dado à experiência
e que originasse os outros. Ele sugeriu que esse princípio, a arché, fosse
o ar. Por rarefação o ar originaria o fogo e por condensação o vento, a
água, a terra e as pedras. Para ele o ar era o princípio vital, aquilo que nos
faz viver quando respiramos. Ao que parece ele acreditava que o mundo inteiro é
um organismo vivo que precisa do ar para se manter.[3] Como ele explicou em um
dos fragmentos:
Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem
unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo
inteiro.[4]
Anaxágoras (500-428 a.C.) foi outro importante pré-socrático. Ele foi um
filósofo jônico tardio, que viveu em Atenas por trinta anos, tendo sido depois
exilado por ateísmo. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente
em filosofia. Ele entendia a arché como sendo o nous, ou seja, a
mente ou pensamento. Para ele a mente deve ser algo que, mesmo sendo material, é
absolutamente puro:
A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo
o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.
Para ele a mente era equivalente a Deus: uma força infinita que, agindo
sobre a matéria informe, dá origem a tudo o que existe no mundo,
particularmente às mentes humanas.
Anaxágoras foi também o
defensor da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang.[5] Segundo ele, no começo o
universo inteiro se encontrava comprimido em um átomo primordial:
Todas as coisas estavam juntas, infinitas ao mesmo
tempo em número e pequenez, pois o pequeno era também infinitamente pequeno. E
como estava tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.
Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto
que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse
distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior,
jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua.
Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu
por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais
(atualmente dizemos que nossos corpos também possuem átomos das estrelas). Essa
expansão do universo existe ainda hoje e continuará existindo sempre. E além
disso ele acreditava que também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido
gerados, com sol e lua próprios e mesmo habitados por criaturas tão
inteligentes quanto nós!
Em meio a tudo isso, a única coisa que continua
a mesma e que a tudo move é a mente. Nesse último ponto o Big-Bang de
Anaxágoras difere do nosso, uma vez que em geral preferimos substituir seu
conceito animista de mente pelas leis fundamentais da natureza.
2
Princípios múltiplos. Vários filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo
múltipla. Esse foi o caso dos seguidores de Pitágoras (570-495 a.C.), que tendo
percebido que tudo na natureza possuía quantidades e formas, concluíram que as
matemáticas devem conter os princípios fundamentadores do universo, começando
do número um, que é a base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria.
Ancorados na matemática os filósofos
pitagóricos formaram uma seita que objetivava não só explicar o universo, mas
também dirigir a vida humana. Eles foram nesse aspecto o primeiro exemplo claro
de filósofos reducionistas, pois tentavam reduzir tudo o que fosse possível
ao escopo mais limitado da explicação matemática. Fundamental à sua seita era a
crença na doutrina da transmigração das almas, que acabou por influenciar o
pensamento de Platão.
Também acreditavam em
princípios múltiplos os filósofos atomistas Leucipo, de quem quase nada
sabemos, e seu discípulo Demócrito (460-370 a.C.), do qual restaram muitos
fragmentos, além de Epicuro (341-270 a.C.), um atomista tardio, já pertencente ao
período helenista. Para Demócrito o mundo é constituído pelo que ele chamou de átomos
(não-divisíveis), que são partículas invisíveis, indivisíveis, com solidez e
impenetrabilidade, tamanhos e formas sempre mais diversas e infinitos em
número. Eles são os elementos constitutivos de todas as coisas visíveis. Afora
os átomos, só o que existe é o espaço ou vazio. Os átomos se movem e se chocam
uns contra os outros segundo leis causais deterministas. Como consequência, os
atomistas foram os primeiros filósofos distintamente materialistas. Mas isso
não os impedia de acreditarem no espírito, pois as almas humanas seriam constituídas
de átomos muito mais sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode
ser porque os átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças
enquanto dormíamos, interagido com os átomos de nossas almas...
É importante notar que os
atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que
ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória
decidimos chamar de os átomos que compõem a tabela periódica, mais tarde subdivididos
em partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons, quarks, gluons e fótons.
Mesmo que eles de maneira alguma fossem capazes de antecipar a física das
partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a ideia de que o
universo poderia ser formado por partículas invisíveis discretas, móveis e
possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de dois mil
anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas gregos seriam
capazes de receber fundamentação científica.
Além das especulações
cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos
ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:
É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.
Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.
Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo
aquele que não o procura.
A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.
Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma
virtuosa é o universo.
É curioso notar que esses dísticos se aplicam hoje tanto quanto se
aplicaram há 2500 anos. Parece que o ser humano em alguns aspectos pouco ou
nada aprendeu com os erros de seus antepassados.
Ainda outro pré-socrático
pluralista que merece ser lembrado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 495-430
a.C.). Ele foi um filósofo bastante vaidoso, que se considerava um deus e que segundo
a lenda deu fim à sua vida atirando-se na cratera do Etna. Ele foi um precursor
de Darwin ao sugerir especulativamente que as espécies se desenvolvem através
de uma luta entre seres vivos que por acidente nascem com as mais diversas
características, o que faz com que só os mais aptos sobrevivam.
Empédocles foi o inventor da
ideia de que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele
encontrou em filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água, o
ar, o fogo e a terra. Eles são imutáveis e combinam-se uns aos outros de modo a
formar o universo visível. Não parece impossível imaginarmos de algum modo a
terra se convertendo em árvores, que ao se incendiarem tornam-se fogo, que
fazendo fumaça que se converte em ar, o qual se converte em nuvens que se
condensam em chuvas que caem sob a forma de água, a qual finalmente se
solidifica outra vez como terra. Essa teoria, tão rudimentar quanto falsa, foi
aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair por
terra.
Para Empédocles atuam sobre os
quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o
amor) e discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com
que o universo sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos
em tempos tudo se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram
todos perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a
da harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força
da discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os
elementos e formando os objetos hoje conhecidos até quando terra, ar, água e
fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa
a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o
retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela
força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava que o mundo se
encontrava em um estágio intermediário em que as forças da discórdia agiam de
maneira cada vez efetiva.
A doutrina cíclica de
Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As
estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na
primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no
inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados
sem forma, crescendo e se diferenciando e envelhecendo até que com a morte tornam-se
outra vez matéria informe...
A ideia de um mundo cíclico foi
famosamente reapresentada no século XIX por Nietzsche sob a forma do que ele
chamou de o eterno retorno. Mas este último o entendeu sobretudo como um
experimento psicológico para testar a autenticidade de nossas atitudes perante
a vida.[6] Para tal ele imaginou que
as nossas vidas devessem se repetir identicamente, nos mais ínfimos detalhes,
um número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que
cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e
decisão, retornasse outra vez infinitamente, essa seria a prova de uma atitude
absolutamente afirmativa diante de sua existência. – O problema com o
experimento é que só depois que nossas decisões já foram tomadas é que passamos
a conhecer com certeza seus efeitos bons ou maus. Mas uma vez tendo distinguido
efeitos como sendo maus, ninguém mais desejaria em sã consciência repetir a
mesma decisão. Desejar repetir algo que se revelou um erro não demonstra
nenhuma atitude absolutamente afirmativa diante da vida, mas apenas uma atitude
absolutamente teimosa.
Finalmente, a ideia de um
mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem se encontrado presente na
cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang deverá ser
seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo
uma versão contemporânea daquilo que Empédocles propôs de forma puramente
especulativa.
3
Heráclito. Quero me deter em Heráclito e
Parmênides, uma vez que eles foram os mais influentes. Na tradição eles eram
considerados opostos, pois Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a
imobilidade do Ser. Mas veremos que nem por isso eles se opõem tão
completamente, posto que por detrás da mudança Heráclito enfatizava a unidade
da razão, que pode ser aproximada ao Ser de Parmênides.
Heráclito de Éfeso (florescimento
500 a.C.), tal como Nietzsche e Wittgenstein, foi um filósofo que se exprimia
por meio de aforismos. Muitos desses aforismos são profundos e nos dizem algo
ainda hoje. Eis alguns:
Tudo se faz por
contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e
da lira).
A harmonia invisível
é mais forte do que a visível.
O que está em cima
é idêntico ao que está embaixo.
A natureza ama
ocultar-se.
Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.
Heráclito pertencia à nobreza efésia. Foi um pensador de índole aristocrática,
misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se por meio de
aforismos oraculares. Seus dísticos eram intencionalmente obscuros de modo a
não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele desdenhava o homem
comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir racionalmente.
Heráclito era um elitista. A
razão, escreveu ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os
habitantes de sua cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem mesmo os
grandes poetas como Homero e Hesíodo, que mereciam ser vergastados.[7] Como ele escreveu:
A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um
tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem falar.
Jogos de crianças são as opiniões dos homens.
Heráclito foi também um filósofo capaz de odiar em medida pouco comum,
como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus concidadãos. Faço
aqui apenas uma breve seleção deles:
Asnos preferem a grama ao ouro.
Os porcos preferem
a lama à água limpa.
Os cães ladram
para o que não conhecem.
Tudo o que rasteja
merece ser chicoteado.
Um para mim vale mil se for o melhor.
Se você quiser ser profundamente ofensivo sem ser vulgar, basta se
recordar de algum desses aforismos.
Heráclito foi também o filósofo
do conflito e por isso o precursor do que veremos sob o nome de dialética. Para
ele o conflito entre os opostos é necessário e inevitável, pois é dele que
nasce a mais bela harmonia. Por isso ele considerava as guerras necessárias:
A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei;
de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.
A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Foi
graças à genial astúcia de um general grego, Temístocles, que a Grécia não foi
escravizada pelos persas, permitindo a continuação da produção cultural grega
com o surgimento de Sócrates, Platão e Aristóteles. Hegel, que concordava com a
função progressista da guerra, foi um admirador de Heráclito. E sua ideia de que
a razão humana é apenas um momento da razão universal pode bem ter sido
influenciada pela leitura de Heráclito.
Mas não seria a necessidade da
guerra uma ideia a ser ultrapassada, posto que esperamos que no futuro ela deixe
de existir? Essa seria uma maneira superficial de interpretar Heráclito. Afinal,
ele se referia a sua época. Mesmo que as guerras deixem de existir, como
esperamos, os conflitos entres meios sociais humanos continuarão a existir sob
formas mais elevadas, por exemplo, entre influências, valores, ideias e ideais.
Outra ideia iconoclasta de
Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para
que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas
oposições são interdependentes, o que deveria desfazer a ilusão utópica de que
possa haver um mundo inteiramente bom e justo, embora possamos, obviamente,
aspirar a um mundo melhor e mais justo. Essa ideia vale para a sociedade e
também para os indivíduos. Para Heráclito o ser humano é pela sua própria
condição aprisionado ao conflito, de modo que a possibilidade de que ele se
eleve à afirmação de uma existência para além de qualquer conflito é enganosa. O
conflito é parte da condição humana. Disso podemos concluir que é melhor para o
ser humano pode admitir o conflito e conscientizar-se dele, buscando então
superá-lo pela ação ou pela reflexão.
Faço uma pausa para lembrar da
estória contada no livro de Ítalo Calvino intitulado O Visconde Partido ao
Meio. Nela o visconde Medardo di Terralba é um homem que na guerra contra
os mouros foi partido em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões
conseguiram resolver o problema separando as duas metades de modo a formar duas
pessoas, dois viscondes. Mas incorreram em um erro, pois um deles herdou a
parte má do visconde, enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a
parte má se transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que
fosse vivo, belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era um
ingênuo que esquecia de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por
considerá-lo enfadonho. A estória termina quando as duas metades se encontram e
entram em duelo. Curiosamente, na luta, elas pareciam querer se aproximar uma
da outra. Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que
reúne as duas partes, fazendo reviver o visconde original. Sem grande surpresa,
esse novo visconde passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa
medida, ciente outra vez dos extremos volitivos do bem e do mal, que precisa
manter sob a vigilância e controle da razão. Aqui também, como em Heráclito, é a
razão que harmoniza os extremos.
Para Heráclito o principal
elemento é o fogo, no qual todos os outros se desfazem. Segundo ele:
Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre
vivente fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.
A escolha do fogo decorre da ênfase no conflito, posto que para ele sem
o conflito o mundo se desfaria em nada.
Heráclito foi também o filósofo do movimento,
da mudança. A realidade é mudança. Como o fogo, tudo se encontra em movimento. Também
a vida é tensão, conflito, movimento incessante:
Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois
novas águas correm sempre por ele.
Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao
movimento e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de opostos ele
acreditava em uma ordem oculta da natureza, imposta pelas leis da razão
(o logos) e só alcançável através do pensamento. É a razão que secretamente
domina o mundo. Embora ele fosse uma espécie de panteísta que acreditava que Deus
se encontra em todas as coisas, para ele esse Deus, o Uno, era a própria razão
que revela a identidade na diferença, a unidade no todo e a medida certa de
cada coisa. Contudo, embora essa razão seja comum a todos, muito poucos fazem
uso dela.
O fundamento último, a arché da
filosofia de Heráclito não se encontra, portanto, no movimento, nem no conflito
dos opostos, mas na ideia de que o todo possui uma unidade oculta, na ideia de
que a razão, o logos que subjaz ao conflito, é capaz de unificar os
opostos e dar-lhes proporção e medida. Sob a perspectiva do Deus – ou razão, ou
logos – todas as tensões são reconciliadas e as diferenças harmonizadas:
Para o Deus todas as coisas são belas, boas e justas,
mas os homens sustentam que algumas são erradas e outras certas.
Há também em Heráclito o que parece uma sugestão acerca da natureza da
filosofia como um saber antecipador de uma forma mais consensualizável de
conhecimento, algo que ele apresenta na forma do saber adivinhatório do
oráculo. Eis como ele o expõe:
A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem
alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos,
graças ao deus que está nela.
Esse juízo de Heráclito sobre a sibila é na verdade sobre a sua própria
filosofia. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da
filosofia. Muito da filosofia pré-socrática, mesmo que figurativamente, antecipou
o que seria futuramente tematizado com maior rigor e detalhe por outros
filósofos ou mesmo descoberto pela ciência. Por isso a filosofia tem sido por
vezes chamada de o berçário das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da
ciência.
4
Parmênides. Talvez o mais influente dentre
os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), o
fundador da escola eleática. Ele escreveu um poema intitulado “Sobre a
natureza” no qual introduziu um enigma tão sugestivo quanto indecifrável. Para
ele o princípio, a arché, seria o que ele chamou de o ser. Ele
definiu o ser como algo imóvel e imutável. Sua ideia central foi a de que o ser,
o Uno, é, enquanto o não-ser, a mudança, o devir, não é, sendo por isso apenas
ilusão. É preciso que seja assim porque se qualquer coisa vem a ser então ou
ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem a ser do ser então ela já é,
caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se qualquer coisa vem do não-ser,
então ela nada é, pois nada pode vir do não-ser ao ser.
Mas o que é, afinal, o ser? Ele
tentou esclarecer atribuindo ao ser uma lista de propriedades nem sempre
compatíveis entre si. O ser é incorruptível, nem gerado nem perecível,
encontra-se inteiro em cada instante, é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel
e também finito e bem redondo (dado que a esfera finita era para os gregos
o símbolo da perfeição). Em conformidade com o modo de pensar dos
pré-socráticos o ser parmenideano deve, além disso, pertencer à physis,
à natureza, não a transcendendo.
Vale a pena transcrever aqui o
fragmento principal do poema de Parmênides:
E agora [disse a musa] vou falar: e tu, escutas as
minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da
investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que, portanto, não é
não-ser; esse é o caminho da persuasão, pois segue a verdade. O segundo caminho
diz que é o que não é, daí resultando que é preciso não ser; essa via, digo-te,
é imperscrutável; pois não podes conhecer nem dizer aquilo que não é.
Que é seguido da sentença:
...Pois ser pensado e ser são o mesmo.[8]
Na primeira passagem Parmênides faz algumas considerações que dão início
a um domínio de investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chegou
até os dias de hoje. Ele distinguiu explicitamente a via do conhecimento da via
erro. O conhecimento diz respeito ao ser, enquanto o erro diz respeito ao
pretenso conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é daquilo que é imutável,
diversamente do pretenso conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é
daquilo que aparece aos sentidos como mutável. Fica claro então que por
contraste, o mundo sensível de Heráclito, o que se encontra em constante
mudança não pode ser o mundo real.
O discurso parmenideano sobre o
ser é tão interessante quanto incoerente, o que explica os intermináveis
debates interpretativos que posteriormente gerou. Ele é prodigamente
polissêmico, dando lugar a variadas e importantes interpretações. Considere,
por exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides. Eles
perceberam que ao afirmar que o ser é e que não pode não ser ele estava
vislumbrando os princípios lógicos da identidade (o que é, é) e da
não-contradição (o que é não pode não ser). Há também um aceno epistemológico
na ideia de que só podemos conhecer aquilo que é, ou seja, o verdadeiro. Além
disso, ele nos faz pensar no Deus monoteísta, na vida, nas leis últimas da
natureza, no logos heraclitiano. Com a substantivação do verbo ser Parmênides
inventou uma espécie de metáfora universal que lhe permitiu insinuar
muito mais do que o discurso literal é capaz de dizer e que foi mais tarde
tornada um recurso frequente na especulação filosófica.
É possível uma interpretação ou
reconstrução capaz de resgatar o ser parmenideano em sua integridade? Em meu
juízo não. Mais de dois mil anos de esforços interpretativos me dão razão. Minha
sugestão é a de que Parmênides recorreu a um artifício especulativo que pode
ser chamado de uso hipostasiado de um termo. Esse artifício será
explicado no capítulo XVIII (sec. 3), quando for discutida a filosofia
terapêutica de Wittgenstein. Ele será entendido como um equivalente filosófico
do que Freud chamou de condensação, consistindo no melhor dos casos na
confusão de uma diversidade de insights de interesse especulativo em um único
termo ou expressão magnificadora de seu efeito.
5
Ciência. Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem
substituído as explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem
o que poderíamos chamar de a forma das teorias científicas,
entendendo-se com isso ideações especulativas motivadas por um conhecimento
prévio da natureza da investigação científica e que em alguns casos detiveram forte
analogia com teorias posteriores verdadeiramente científicas. É esse insight figurativo
da forma geral da teoria o que há em comum entre o atomismo especulativo de
Demócrito e a teoria atômica da microfísica contemporânea, entre a especulação de
Anaxágoras e a presente teoria cosmológica do Big-Bang, ou ainda, entre
Empédocles e Darwin. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga explicação do
cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos que
eles mesmos não podiam avaliar, dado a insuficiência de meios e informações que
lhes permitissem resultados concretos em um domínio de investigação ainda completamente
inexistente. Era a especulação motivada pelo puro prazer intelectual.
Tais especulações só foram possíveis porque
esses filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências cujo
desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a matemática importada dos
egípcios e dos babilônios. Mas enquanto os últimos usavam a geometria para fins
práticos, só os gregos tiveram a ideia de considerá-la pela primeira vez em
abstração de suas aplicações, o que permitiu que ela fosse axiomatizada no
trabalho que culminou com a obra de Euclides intitulada Os Elementos.
Havia o conhecimento de astronomia tomados dos egípcios e babilônicos. Platão
já acreditava que a terra se movia. É bem sabido o notável feito de Eratóstenes
(circa 300 a.C.), que conseguiu medir o diâmetro da terra com razoável
precisão. Para isso ele mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais
de mil quilômetros uma da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a
outra, devido à diferença no ângulo de incidência da luz solar. Tomando como
comparação as medidas dos triângulos formados pelas estacas e suas sombras, ele
conseguiu calcular com certa precisão a circunferência da terra, um feito
extraordinário que foi esquecido nos séculos seguintes. Havia também conhecimentos
de engenharia e de rudimentos de física, como pôde ser ilustrado mais tarde pela
lei de Alavanca de Arquimedes (287-222 a.C.) ou por sua medição da massa
específica de diferentes substâncias, estabelecida pela relação entre o volume
de água por elas deslocado e o peso. É evidente que os gregos já estavam
cientes da incomparável vantagem teórica e prática que o conhecimento
científico é capaz de trazer.
6
Auguste Comte. O estudo dos filósofos pré-socráticos nos oferece uma
excelente oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos
perguntamos sobre o que eles estavam fazendo em sua relação com a ciência, alguma
luz pode ser trazida pela consideração da assim chamada “lei dos três estágios”
desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o mais importante filósofo francês
do século XIX.
A chamada lei dos três estágios
da evolução da civilização, embora já antevista por outros, foi
sistematicamente desenvolvida por Comte em seu Curso de filosofia positiva.[9] Esses estágios são o teológico,
o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar essa
lei de modo que ela ainda possa ser reconhecida como plausível. Uma primeira
observação, com a qual Comte estaria de inteiro acordo, é que não se trata de
uma lei no sentido mais estrito das leis das ciências duras, mas de uma lei a
ser entendida como regularidade tendencial. Trata-se da identificação de
uma vaga sucessão de três largos estágios, que se sobrepõem de modo parcial e
irregular no desenvolvimento da civilização. Eis como Comte a apresentou:
A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções,
cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes estágios
teóricos: o estágio teológico ou fictício; o estágio metafísico ou abstrato; o estágio
científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza,
emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três métodos de
filosofar (...)[10]
O estágio teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus
imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas
chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o subestágio do fetichismo,
caracterizado pelo animismo, a ideia de que objetos como plantas e animais também
incorporam deidades. O estágio teológico passa então ao politeísmo, no qual um
grande número de deuses concorre na explicação das anomalias da natureza.
Nesses dois subestágios, cada anomalia pode ser explicada por um deus
diferente, não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa unificação só
é ambicionada no terceiro subestágio, o do monoteísmo, que se caracteriza pela
crença na existência de um único Deus. O monoteísmo tem a vantagem de permitir
uma explicação unificada do mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estágio
teológico corresponde à infância da humanidade. Em suas fases iniciais ele é repetição
do que ocorre no crescimento cognitivo do indivíduo humano, quando a criança acredita
na existência de fadas, bruxas e gnomos.
O estágio metafísico é o que
faz a transição entre os estágios teológico e positivo. Nele os seres humanos
buscam substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem
do imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações
hipostasiadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de
preferência reduzindo-se tudo a um princípio único. Embora em franca divergência
com Comte (que certamente pouco conhecia dos pré-socráticos) eu diria que o
exemplo mais claro de abstração hipostasiada ou mesmo personificada são as archai
dos pré-socráticos. O estágio metafísico apresenta-se aqui de maneira evidente
como uma especulação intermediária que deixou de ser religião, mas que não
chega a ser ciência.
Os estágios religioso e
metafísico são importantes para Comte por motivarem os seres humanos a continuarem
buscando uma forma científica de conhecimento, mesmo quando ela ainda não é
possível. Foi por isso que o ser humano persistiu observando os movimentos dos
astros por milhares de anos, na tentativa de fazer predições. Essa persistência
foi indispensável, pois foi só por meio do suporte a crenças supersticiosas
sobre os astros que o ser humano se permitiu, após longo período de observação
infrutífera, chegar a descobertas astronômicas consistentes, desde a medição,
distinção e previsão dos movimentos das estrelas e planetas, que permitiu o
geocentrismo de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura epistêmica que consistiu no
heliocentrismo de Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Galileu e
Newton. Sem um longo estágio de especulação pré-científica nada disso poderia
ter ocorrido.
Para Comte o estágio metafísico foi o momento
da adolescência do espírito humano, correspondendo no crescimento cognitivo
individual ao período no qual adolescentes se comportam como aprendizes de
feiticeiros, crendo tudo poder saber sem suficiente aprendizado e experiência. Essa
comparação não é sem base psicológica: Jean Piaget identificou a tendência
“metafísica” do adolescente de raciocinar sem conhecimento suficiente com o domínio
intuitivo da lógica proposicional surgido no estágio operatório-formal depois
dos 12 anos de idade.
Em um entendimento plausível,
os três estágios se sobrepõem parcialmente, além de ocorrerem em tempos
diferentes para cada ciência, como veremos na seção seguinte. Isso torna uma pretensa
datação dos estágios uma tarefa simplificadora e equívoca. Comte parece não ter
querido perceber esse ponto de maneira suficiente, o que o levou a uma visão
precipitada e obviamente falsa da questão. Para ele o estágio teológico foi
especialmente o anterior à revolução francesa, o estágio metafísico foi datado
como estando sobretudo entre aquela revolução e a queda de Napoleão, depois
disso iniciando-se o estágio positivo... Essa maneira completamente implausível
de resolver a questão só pode ter contribuído para o descrédito de sua versão
da teoria.
De nosso ponto de vista atual é difícil negar
que no Ocidente o estágio metafísico começou com os pré-socráticos e continuou
pelo menos até Hegel, enfraquecendo-se depois com filósofos ainda pertencentes
ao estágio metafísico como, por exemplo, Edmund Husserl. O estágio religioso,
particularmente forte na Idade Média, tem diminuído constantemente seu papel,
muito por força do desenvolvimento da ciência. E o estágio científico só se
instaurou de maneira definitiva no Renascimento, ganhando cada vez maior proeminência
em nossa atual visão de mundo. E a ciência aplicada é hoje o que domina nossas
vidas, pois acreditamos mais em átomos do que em deuses ou em supostas
elocubrações metafísicas. Os três estágios se sobrepõem e só podem ser
classificados em termos de sua importância em nossas vidas.
O que importa para mim no
momento é salientar que o mais flagrante exemplo de emergência do estágio
metafísico intermediário entre religião e ciência é o que encontramos entre os
pré-socráticos. Essa admissão nos permite compreender melhor o que aqueles
filósofos estavam fazendo, pois os princípios ou archai por eles
buscados encontravam-se de algum modo entre os deuses da mitologia e as leis
naturais.
Para fins de análise podemos
distinguir aqui dois extremos entre as archai: o das excessivas e
o das escassas. As excessivas são as que adicionam a entidades naturais propostas
como princípios ou formas de leis, entidades assemelhadas aos deuses, com vida
e consciência própria na forma de abstrações personificadas. As escassas são as
que se restringem a entidades naturais propostas na forma de leis, sem a adição
de entidades supernaturais. Assim, a água de Tales era um princípio excessivo: ela
funcionava como se fosse uma condição nomológica natural possibilitadora da
vida, mas encontrava-se ao mesmo tempo repleta de deuses. Também para os
pitagóricos os princípios eram números e formas tornadas exuberantes, posto que
não só satisfaziam relações matemáticas e geométricas, mas deviam exercer um papel
mágico na determinação do destino dos seres vivos. O ar de Anaximandro era
necessário à respiração e assim a fonte da vida de todo o universo. O mesmo
aconteceu com a mente de Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico se encontrava
presente, ainda que essas entidades devessem (com razão) pertencer à physis.
Mas ainda assim elas representam princípios espirituais capazes de comandar o
curso do universo. Em Empédocles, os quatro elementos eram regidos pelas forças
do Amor e do Ódio, que apesar de receberem nomes de afetos são melhor
interpretadas como forças físicas regulando o curso cíclico do universo, o que já
os aproximava de archai escassas. Contudo, os exemplos mais flagrantes de
archai escassas são elementos ou formas decididamente não espirituais
como os átomos de Demócrito, o Ápeiron de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e mesmo
o ser de Parmênides. Neles o aspecto espiritual tende a desaparecer,
permanecendo uma realidade postulada e em si mesma indecifrável, uma abstração
hipostasiada que toma o lugar da inalcançável compreensão do todo.
Os pré-socráticos são os
melhores exemplos de filósofos metafísicos no sentido proposto pela lei dos
três estágios, uma vez que suas archai apresentam o inteiro espectro, já
que eles suspeitavam da mitologia e aspiravam a ciência, mas sem ter condições
de alcançá-la em âmbitos tão ambiciosamente amplos, disso resultando suas
especulações. Mas o estágio metafísico apenas começou com os pré-socráticos. As
archai, os princípios metafísicos fundamentadores da realidade como um
todo, continuaram sendo propostos ao longo de toda a história da filosofia. Foi
assim que Platão tinha como princípio as ideias, Aristóteles a substância,
os medievais o Deus dos filósofos, Leibniz as mônadas, Kant o noumenon,
Hegel o absoluto, Husserl o Eu transcendental, Heidegger o
Ser, Wittgenstein o indizível... Sob essa perspectiva o período
metafísico foi mantido em filosofia até pelo menos a primeira metade do século
XX, em rematada discrepância com a perspectiva reducionista do próprio Comte.
O último estágio do
desenvolvimento civilizatório seria para Comte o científico ou positivo. Aqui o
ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta pelo “como”. Ele desiste
da tarefa impossível de buscar princípios últimos explicativos de todo o
universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados,
ou seja: leis da natureza aplicáveis em âmbitos mais ou menos específicos. Ao
invés da busca inútil de uma verdade absoluta, o ser humano passa a buscar
verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente de poder sempre estar
errado. Além do mais, abandonando a ambição de unificar todo o conhecimento em
uma única ciência, o conhecimento passa a ser reduzido às unificações parciais
alcançadas pelas ciências particulares, mesmo que elas sejam complementares
umas às outras. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da humanidade,
correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem adulto, ainda
que um resíduo dos estágios anteriores possa permanecer em seu psiquismo...
Um ponto importante é que se no
final de tudo a lei dos três estágios for essencialmente correta então parece
que as questões fundamentais da filosofia – compreendida naquilo que Comte chamou
de metafísica – poderá chegar a ser toda ela em algum momento futuro
substituída por alguma forma de ciência. Esse é um ponto controverso ao qual voltarei
ainda nesse capítulo.
7
Classificação das ciências. A lei dos três estágios
precisa ser complementada pela classificação das ciências básicas feita por
Comte. Ele percebeu que os estágios religioso e metafísico em geral antecederam,
o nascimento das ciências básicas e que elas nascem sucessivamente formando uma
hierarquia de dependências. Isso introduz um elemento de complicação no
processo.
Para Comte as ciências empíricas
básicas podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a
sua complexidade. A generalidade opõe-se à complexidade e vice-versa.
Quanto mais geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto
mais complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte
das ciências básicas (que era limitada pelo desenvolvimento científico de sua
própria época) nós chegamos resumidamente ao seguinte quadro:
PSICOLOGIA
BIOLOGIA
QUÍMICA
FÍSICA Maior generalidade
(MATEMÁTICAS)
Embora a matemática tenha surgido primeiro, ela não é propriamente uma
ciência natural e fica fora de nossa lista. Assim, a lista deve começar com a
física, que é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em
compensação, suas leis devem se aplicar ao universo inteiro, possuindo assim
maior generalidade. A química é um fenômeno emergente que diz respeito às inúmeras
combinações atômicas. Ela se aplica aos compostos químicos que existem na
terra, mas não se aplica à parte do universo que não permite a mais complexa química
do carbono. A bioquímica, que é a química dos organismos vivos, tem seu escopo
ainda mais reduzido, constituindo os fundamentos da biologia, que se aplica à
vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que cobrem
parte da terra. A psicologia (ignorada por Comte) diz respeito apenas aos seres
vivos conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não
se aplicando, por exemplo, aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres
vivos conscientes capazes de se reunir na formação de sociedades complexas, o
que nos permite perguntar se essas sociedades não serão também um fenômeno
emergente. A sociologia é a ciência básica de menor generalidade e de maior
complexidade em seus princípios
Há um grande número de outras ciências, mas
elas são derivadas, utilizando o conhecimento adquirido pelas ciências básicas
a certos domínios específicos. Um exemplo é a geologia, que usa conhecimentos
da física, da química, da biologia, etc. com o objetivo de estudar a terra e as
rochas. Outro é a neurociência, que intenta aplicar nosso conhecimento de
biologia, bioquímica, biofísica, etc. à investigação do funcionamento do
cérebro. Ainda outro exemplo é a astronomia (que Comte erroneamente considerava
uma ciência básica), que aplica conhecimentos de física, química e matemática
ao estudo do cosmo.
Mais importante é notar que a
passagem do estágio metafísico para o estágio científico – a assim chamada ruptura
epistemológica – se deu no emergir de cada ciência particular em tempos
diferentes e de maneiras diversas. As ciências mais gerais surgiram primeiro,
uma vez que seu conhecimento costuma ser pressuposto para o desenvolvimento das
outras. A “física” aristotélica (enquanto física) era puramente especulativa e completamente
errônea, prevalecendo até o fim da Idade Média. Ela se tornou realmente ciência
só após Galileu, no século XVI, quando pôde ser matematizada. Entre as ciências
empíricas a física surgiu primeiro, uma vez que ela é pressuposta pelas outras
ciências básicas, mas não as pressupõe, passando então ao estágio positivo. A
química só passou de seu estágio metafísico, como alquimia, para o estágio
científico no final do século XVIII, pressupondo em muito a física e suas
aplicações matematizáveis em experimentos. A biologia só se libertou
definitivamente de crendices como a da geração espontânea através da
investigação de Pasteur no século XIX, pressupondo para seu desenvolvimento o
conhecimento de ciências mais básicas, o que incluiu as tecnologias por elas
possibilitadas, como a invenção do microscópio. E tanto a psicologia quanto a
sociologia se encontram ainda hoje em um estágio parcialmente conjectural (a
dizer, “metafísico”), a despeito do excessivo otimismo de Comte quanto à última.
Ciências derivadas, como a neurociência contemporânea,
dependem para o seu aparecimento de toda espécie de desenvolvimentos anteriores
de outras ciências, particularmente no que concerne à produção dos instrumentos
e meios de pesquisa. Quando consideramos mais detidamente o que realmente se
deu fica agora claro que a lei dos três estágios diz respeito apenas a uma tendência
geral de sucessão, não existindo nenhum tempo histórico a ser definido para
cada estágio, visto que eles se sobrepõem de tal maneira que ainda hoje somos
capazes de encontrar resíduos do estágio metafísico e até mesmo do estágio
teológico em muito do que fazemos.
Um ponto a ser adicionado é que
a ruptura epistemológica abrupta que aconteceu com o surgimento da física no
renascimento e da química na virada do século XIX não precisa nem é para se
repetir no surgimento de outras ciências, pois por sua maior complexidade elas
dependem do estabelecimento de um número cada vez maior de pressupostos. A
passagem da psicologia para a ciência, por exemplo, tem sido gradual. Os
resultados da psicologia experimental são científicos, mas ela é limitada, como
aconteceu com a teoria do reforço (Skinner). A chamada “psicologia profunda”
(Freud), embora constitua um avanço indiscutível, ainda não encontrou
suficiente consenso entre especialistas, sequer entre os psicanalistas. E a
sociologia, embora tenha se estabelecido muito lentamente como um domínio do
conhecimento, constitui-se de uma plêiade de teorias em parte divergentes e em
parte complementares, encontrando-se ainda mais longe de alcançar o consenso público
que se espera de uma ciência. Nesses últimos casos encontramos um
desenvolvimento muito mais gradual, acrescido de pequenos avanços, do que
propriamente uma ruptura, uma vez que o apoio teórico demandado para a
certificação consensual precisará ser muito mais diversificado e complexo,
ainda mais devendo ser esperado dos domínios mais centrais da filosofia.
A constatação acima tem uma moral com relação
à filosofia. Se domínios da filosofia como a epistemologia e a ética passarem
ao nível de ciência, isso não significa que isso deverá acontecer através de
uma ruptura com a epistemologia e ética tradicionais, que ao que tudo indica ainda
conservam verdades que foram sendo fragmentariamente e obscuramente reveladas
desde o início. Essa passagem será gradual e dependerá de suportes não apenas
verticais, menos abstratos, mas de suportes oriundos de outros domínios também
mais abstratos, inclusive os de outras áreas da filosofia, sob formas múltiplas
e variadas do que pode ser chamado de reforço teórico. Afora isso, como logo
veremos, se domínios centrais da filosofia forem capazes de passar ao nível de “ciência”
então precisaremos ao menos considerar com muito mais cuidado que conceito de
ciência estamos levando em consideração.
Filósofos geralmente torceram o
nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam indignados pelo seu positivismo
reducionista, por sua maneira apressada de substituir a conjectura filosófica
pela ciência, sem falar de sua trajetória mística posterior como o fundador da
religião da humanidade. Jean Paul Sartre chegou a dizer que Comte está na
origem do fascismo... Contudo, quando sensatamente revisadas as principais suposições
de Comte sobre a evolução das formas de investigação se demonstram capazes de
ser absorvidas de maneira proveitosa.
8
J. L. Austin. A consideração da lei dos três estágios nos leva
diretamente a uma outra ideia, qual seja, a de que a filosofia pode ser vista
como uma protociência. Segundo ela, a filosofia é aquilo que é
possível fazer antes do surgimento da ciência. Quando ainda não
sabemos o suficiente sobre os métodos a serem empregados, quando ainda não temos
domínio sobre os métodos a ser empregados, quando não sabemos sequer quais são os
dados que devem ser considerados mais fundamentais, falta-nos qualquer critério
para saber que teoria será preciso desenvolver. O que nos restam são
conjecturas filosóficas, ou seja: há uma grande diversidade de ideias cujo
valor desconhecemos e que podem servir de pressupostos para a especulação. Um
filósofo escolhe um conjunto delas e as usa como pressuposto para a construção
de uma linha de raciocínio que levará a resultados plausíveis ou pelo menos
interessantes. Outro filósofo escolhe um outro conjunto de pressupostos,
construindo uma outra linha de raciocínio, uma outra filosofia. É claro que
depois disso não será possível comparar os resultados, ficando a escolha final
na dependência do gosto de cada um.
Essa situação também permite um
uso relativamente livre da imaginação na busca de soluções meramente
especulativas. E isso é o que mais caracteriza o trabalho do filósofo. Esse
sentir-se bem no pensamento especulativo é o que motivou Bertrand Russell a
comparar os filósofos a certos Pais Peregrinos, que insistiam em ir viver
sempre mais para o Oeste, de modo a fugir da civilização que deles se
aproximava.
Como observou J. L. Austin em uma famosa
metáfora que não me canso de citar, com a qual prepara o terreno para seu projeto
de retirar do domínio conjectural da filosofia uma ciência da interação comunicativa:
Na história da investigação humana, a filosofia ocupa
o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele
lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta,
frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante.
Isso aconteceu há muito tempo atrás com o nascimento da matemática, e ainda com
o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o
nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos
outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da
linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá
ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar
da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.[11]
Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos
de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos
de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar,
batizar... disso resultando o que ele chamou de uma “teoria dos atos de fala,”
que hoje é estudada nos cursos de linguística mais do que nos de filosofia.[12] Exemplifica-se aqui o
conceito de filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. E
o sol inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição
da filosofia originária dos pré-socráticos.
O exemplo da teoria dos atos de
fala também nos mostra que o papel de protociência da filosofia não é o de
antecipar ciências que já existem, mesmo as que já existem de forma embrionária,
pois isso tende a acabar em uma contraprodutiva forma de reducionismo. A
filosofia é protociência no sentido de antecipar coisas inteiramente novas e
inesperadas, a exemplo dos múltiplos insights filosóficos sobre a interação
linguística formulados antes da teoria dos atos de fala.
Há nesse ponto uma objeção à
ideia de filosofia como protociência que pode ocorrer a alguns, mas que resulta
de simples confusão. Ela foi feita por Sir Anthony Kenny. Ele observou que pelo
menos os domínios centrais da filosofia, como os da metafisica, das teorias do
significado e da ética, continuarão para sempre filosóficos.[13] Essa conclusão se deve sem
dúvida à aceitação de uma concepção positivista da natureza da ciência
que Kenny e muitos outros tinham e ainda tem em mente. Essa concepção foi muito
difundida por influência do positivismo lógico e pelo fato de que os primeiros
filósofos contemporâneos da ciência empírica eram filósofos da física. Trata-se
da definição da ciência pelo emprego de experimentos verificacionais (Carnap)
ou falseadores (Popper), notadamente aqueles passíveis de controle preciso e de
repetição. Tais concepções se aplicam quando muito à física, mas não se aplicam
a um domínio obviamente científico, como a teoria da evolução, que não é
passível de experimentos repetíveis. Ademais, o que dizer de muitas outras
atividades geralmente consideradas científicas, como a linguística, a história,
a antropologia física? Concepções positivistas da ciência costumam ser
reducionistas, por isso mesmo deixando de corresponder ao que cientistas e
pessoas com educação científica costumam chamar de ciência, que é algo muito
mais amplo. Se quisermos entender a ideia de filosofia como protociência mantendo
uma estreita concepção positivista da natureza da ciência, a conclusão de Kenny
é correta e inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo que ele tem de mais
central, jamais poderá dar lugar à ciência, a menos que isso seja feito caricaturalmente
através de formas brutais de reducionismo positivista.
Há, porém, uma definição não-reducionista
de ciência que se complementa perfeitamente com a ideia de filosofia como
protociência e que além disso corresponde com exatidão ao que cientistas e
pessoas com educação científica costumam chamar de ciência. Trata-se do que John
Ziman, um físico e sociólogo da ciência sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais
fundamental da investigação científica é que ela é um conhecimento público
consensualizável (public consensualizable knowledge).[14] A ideia é intuitiva: o
conhecimento dito científico é aquele apto à obtenção de um consenso possível quanto
aos seus resultados da parte de uma apropriada comunidade de ideias, que é a
comunidade dos cientistas, dos conhecedores do assunto, a metodologia diferindo
de caso em caso. A ideia de Ziman, além de intuitiva pode ser bem fundamentada
se adicionarmos a ela a exigência de que a comunidade de especialistas seja semelhante
àquilo que Jürgen Habermas chamou de “comunidade ideal de fala” (ideale
Sprachgemeinschaft), vale dizer, uma comunidade crítica com
participantes igualmente competentes, com idêntico acesso à informação, iguais
direitos de manifestação e crítica, absoluta liberdade de expressão e real
comprometimento heurístico. Com isso ter-se-á alcançado razoáveis condições
públicas de avaliação de resultados.[15]
A definição de ciência como
conhecimento público consensualizável resgata perfeitamente o que os cientistas
e leigos cultos admitem chamar de ciência. A teoria da evolução é científica
porque há suficiente consenso entre os cientistas quanto aos seus resultados. A
antropologia física é científica porque a comunidade científica é capaz de
concordar com os seus resultados. Por exemplo: admitimos que os seres humanos
atuais emigraram da África há cerca de entre 70 a 100 mil anos atrás em levas sucessivas,
espalhando-se então pelo mundo. A teoria das cordas da microfísica é hoje
objeto de disputa e mesmo de descrédito: será ciência se for ao menos
fisicamente (ainda que não praticamente) possível que ela venha a obter alguma comprovação
experimental com a qual os físicos possam se pôr de acordo, caso contrário não
passará de especulação. Mas o mesmo não acontece com a astrologia, visto que os
astrólogos nunca conseguiram chegar a um acordo sobre suas teorias e resultados.
Apesar de Freud ter acreditado que não, a própria psicanálise, embora
aproxime-se mais da ciência do que uma psicologia de cadeira de balanço, não
chegou a ser ciência no sentido mais forte de seus resultados serem integralmente
aceitos por todos os psicanalistas. O mesmo também não acontece de modo muito
mais radical com a filosofia. Restringindo-nos aos pré-socráticos, não temos
como dizer quem estava certo, se Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou
Demócrito. Assim colocada a pergunta sequer faz sentido.
Alguns poderão objetar que nada
disso resolve o problema, pois, diversamente da ciência, a especulação
filosófica é demasiado abstrata, de sorte que a aquisição de consenso a
respeito dela restará sempre impossível, a menos que se proceda de maneira
artificiosa. Penso que a resposta tem a ver com o conceito de consiliência,
tal como foi interpretado por Susan Haack. Trata-se da assunção de uma
unidade na totalidade do que é real.[16] Trata-se de algo que lembra
as ideias da razão de Kant (ver cap. XII, sec. 12), que eram conceitos
diretivos que serviam para orientar a pesquisa. Os cientistas precisam adotar o
pressuposto heurístico de que a realidade possui unidade de modo justificarem
sua busca por sínteses teóricas. A autora adiciona algo mais no que diz respeito
à consiliência: é que se a realidade possui unidade então as ideias científicas
verdadeiras devem ser capazes de se se complementar e reforçar umas às outras
em sua relação com a verdade. Um exemplo clássico é o da genética molecular.
Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que corroboram e são
corroborados pela teoria da evolução natural, a qual é corroborada por dados
geológicos...
Haack aplicou a ideia de consiliência às
teorias filosóficas. Na medida em que diferentes subáreas da filosofia possuem
algo de verdadeiro e se encontram interligadas entre si, as ideias verdadeiras desenvolvidas
nessas subáreas devem ser capazes de se reforçar heuristicamente. Mais além,
ideias pertencentes a áreas do conhecimento contíguas ou complementares a um
certo domínio da filosofia devem ser capazes de reforçar ideias verdadeiras
pertencentes a esse mesmo domínio e a enfraquecer ideias falsas. Admitindo a
consiliência é possível pensar que a sobreposição do conhecimento proveniente
de diversas direções seja capaz de estreitar os fios da teia do conhecimento e gradualmente
aproximar os resultados da especulação filosófica de matéria de consenso,
melhor dizendo, da ciência no sentido de um conhecimento público
consensualizável.
Se admitirmos a concepção
suficientemente liberal de ciência proposta por Ziman, a possibilidade de que
todas as áreas centrais da filosofia tradicional venham aos poucos a se tornarem
científicas se torna factível, uma vez que a filosofia contrasta com a ciência
precisamente por sua falta de consenso público. Quando teorias pertencentes a
domínios centrais da filosofia, como a epistemologia e a ética, se tornarem
objeto de consenso entre os filósofos, elas deixarão de ser filosóficas para se
tornarem científicas. E não precisaremos nos tornar reducionistas ou
positivistas no sentido derrisório da palavra para admitirmos essa
possibilidade.
9
O triângulo metafilosófico. Há, por fim,
ainda outra maneira de se entender a natureza da filosofia que considero
complementar ao que foi sugerido até aqui e que nos proporciona um quadro mais
completo. Trata-se da ideia de que a filosofia é uma prática cultural derivada.
Um exemplo de prática cultural derivada é a ópera. Ela resulta basicamente de
três práticas artístico-culturais que são: a poesia, o enredo e a música (a melodia
instrumental junto ao canto lírico). Tendo em vista a filosofia, parece que
podemos considerá-la como uma prática cultural derivada de três práticas
culturais mais fundamentais, que são as práticas religiosa, artística e
científica. A filosofia não se reduz a nenhuma dessas três práticas, mas retira
motivações, métodos e materiais delas.
Pode ser sugerido que da prática religiosa ela
retira uma motivação que podemos chamar de “mística”, a ser realizada em termos
de profundidade e abrangência. Trata-se aqui da motivação que podemos chamar de
totalizante ou holística, que contém o fator integrador, visível no
esforço de direcionar as conjecturas rumo à maior amplitude possível. Assim,
quando o filósofo busca “uma explicação última do universo e do lugar do homem
nele” (Aquino), quando alguém se pergunta “de onde viemos, quem somos, para
onde vamos” (Gauguin), ou ainda quando se põe a questão “por que o ente e não
antes o nada?” (Heidegger). Aqui vemos a inclinação mística. Mesmo que se
conclua negativamente: “Não é o nada porque se fosse o nada ninguém estaria
aqui para fazer essa pergunta” (Steven Hawkins), o interlocutor está demostrando
uma preocupação filosófica pertencente ao mesmo escopo místico-holístico, mesmo
que negativa.
Da prática artística o filósofo
retira o caráter inevitavelmente metafórico de seus conceitos fundamentadores de
sua linguagem (como os do ser, do conceito, da ideia, da coisa em si, do
absoluto, do indizível...), além de suas metáforas, alegorias, aforismos, de
sua retórica e da estrutura mesma do discurso, como aconteceu com Platão,
Spinoza e Wittgenstein. Ao dizer que que “da luta dos opostos nasce a mais bela
harmonia” (Heráclito), que “o tempo é a imagem móvel da eternidade” (Platão),
que “a angústia é a disposição fundamental que nos coloca diante do nada”
(Heidegger), ou ainda que “todo objeto amado é o centro de um paraíso”
(Novalis), o filósofo cede a recursos estéticos como veículos de suas intuições.
Finalmente, da prática
científica o filósofo retira seu objetivo heurístico, a intenção de aproximação
da verdade, os recursos metodológicos formais ou empíricos geralmente tomados
de empréstimo das ciências, além de parte do material com o qual trabalha, a
outra parte derivada de nosso saber comum. Ao dizer que “o mundo é feito de
átomos e do vazio” (Demócrito), que “nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e
sob o mesmo aspecto” (Aristóteles), ou que “o pensamento de minha própria
existência não pode ser por mim mesmo agora posto em questão” (Descartes), o
filósofo procura fundamentar seu discurso em verdades acerca do mundo,
aproximando-se assim da ciência.
Sob tais condições podemos construir um
triângulo em cujos vértices se encontram a religião, a arte e a ciência,
encontrando-se a filosofia no espaço interior do triângulo, como é sugerido
abaixo:
Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos
esses elementos presentes. É evidente o elemento estético nos aforismos de
Heráclito ou mesmo no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreveu em tom
oracular e o poema de Parmênides é apresentado por uma deusa, o que revela a
influência totalizante do elemento místico. Além disso, o primeiro buscava a
sabedoria no logos, na razão que governa o mundo, enquanto o segundo tinha
por objeto o conhecimento do ser como algo ultimamente verdadeiro, o que só
poderia ser motivado por quem tivesse a motivação heurística de compreender a
verdadeira natureza das coisas, o que tem a ver com a ciência.
Podemos intuitivamente situar
os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo.
Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e
heurísticos, podem ser postados na área central do triângulo. O melhor exemplo é
o de Platão, que pode ser considerado o filósofo par excellence. Filósofos
cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados
próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Agostinho, Aquino, Schelling
e Hegel. Filósofos com predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos
como Nietzsche e mesmo Heráclito, podem ser postados próximos do vértice
artístico do triângulo. Filósofos com predominância conjunta dos elementos
estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger, podem ser postados próximos à
linha de baixo do triângulo. E ainda filósofos com interesses particularmente
heurísticos, como Locke e Russell, sem falar de Rudolph Carnap, W. V-O. Quine e
Saul Kripke, podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo.
Por fim, há aqueles que se encontram na fronteira entre filosofia e outra
coisa, como Novalis e o poeta Hölderlin, cujos escritos possuíam insights
filosóficos, o filósofo-místico medieval Meister Eckhart, cujos seus sermões
são prédicas religiosas filosoficamente coloridas. E quanto à zona limítrofe
entre filosofia e ciência temos ainda o caso de Freud e da psicanálise: no
ambiente controlado da prática psicoterápica ele teve condições de aprofundar
conceitualmente a psicologia filosófica, mesmo sem alcançar o alto consenso
científico por ele ambicionado.
O triângulo metafilosófico nos
ajuda até mesmo a classificar direcionamentos das filosofias em diferentes
culturas. Filósofos alemães, desde figuras limítrofes como Meister Eckhart até
filósofos de grande estatura como Kant e Husserl, geralmente demonstravam maior
proximidade do vértice místico-religioso, com sua ambição de abrangência totalizante
grandiosamente exemplificada em um sistema omniabrangente como o idealismo
absoluto de Hegel. Alguns, como Schelling, Hegel e Heidegger, estudaram em
seminários religiosos.
A filosofia francesa desde
Descartes, ainda muito mais em Sartre, mas em um nível extremo no movimento
pós-modernista da retórica filosófica de pensadores como Michel Foucault, Gilles
Deleuze e Jacques Derrida, possuiu ênfase estética fronteiriça, tendendo ao
extremo artístico, certamente sob a influência da extraordinária literatura que
foi produzida em língua francesa.
Finalmente, a filosofia
anglo-americano-australiana, sob a influência maior dos desenvolvimentos
científicos e técnicos, pôs ênfase no aspecto heurístico próprio do vértice
científico. Basta considerar exemplos de filósofos como Locke, Stuart Mill, Russell,
W. V-O. Quine, Saul Kripke, e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin, Paul
Grice e John Searle.
Também deve ser notada uma direção
no interior do triângulo, a direção verticalizadora da ciência. A tendência
geral é a de que as investigações filosóficas pouco a pouco se aproximem do vértice
científico, que essas discussões, de início inteiramente aporéticas, aos
poucos, pelo reforço interteorético proveniente de diversas direções, estreitem
cada vez mais as exigências de suas teias argumentativas de modo a se elevarem
gradualmente à forma de um conhecimento público consensualizável. Quando isso
acontecer é provável que os domínios centrais da filosofia desapareçam ou que tomem
formas menores, assim como aconteceu com a ópera. É possível que estejamos nos
aproximando desse ponto. Nesse caso teremos a morte da filosofia, pelo menos
daquela com a qual nos acostumamos pela leitura da tradição até tempos bastante
recentes. O grande risco é que se tente apressar essa morte através de formas
aparentemente assépticas de eutanásia, como a da fragmentação cientificista da
filosofia em obscuros guetos de proficiente miséria intelectual – o que alguns
receiam estar hoje acontecendo (ver cap. XX do presente livro).
Muito do que será exposto no
presente livro servirá quase incidentalmente como comprovação das teses
metafilosóficas recém apresentadas.
10
A filosofia dos pré-socráticos foi no século IV substituída pela
filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Os dois últimos, junto a filósofos como Leibniz, Hume, Kant e Hegel, constituem
o cânone, se assim podemos dizer, da tradição filosófica ocidental, pela
amplitude, coesão lógica e força imaginativa de seus sistemas. Eles realizaram
tentativas de unificar especulativamente nosso entendimento do mundo e do lugar
que o homem nele ocupa com base no conhecimento e na cultura do tempo em que
viveram.
[1] Friedrich Nietzsche: “Os
filósofos Trágicos”, in Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e
comentários, col. Os pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1978),
pp. 10-12.
[2] Karl Popper: “Back to the Pre-Socratics.” In Conjectures
and Refutations (London: Routledge 1989), p. 138.
[3] Ver discussão em W. K. Guthrie, A History of
Greek Philosophy I: The earlier Presocratics and the Pythagoreans
(Cambridge: Cambridge University Press 1962), pp. 119-133.
[4] Farei nas citações dos
pré-socráticos livre uso de G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield: The
Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), além
das traduções que podem ser encontradas em Os Pré-Socráticos: Fragmentos,
doxografia e comentários, Col. Os Pensadores (São Paulo: Abril
Cultural 1973).
[5] Encontro essa
sugestão em Anthony Kenny: A New History of Western Philosophy (Oxford:
Oxford University Press 2004) vol. I, p 25.
[6] Friedrich
Nietzsche: A gaia ciência (1882, 1887) sec. 285, 341.
[7] Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e
comentários, Col.
Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1978), fragmentos 42, 106, 121.
[8] A sentença grega original, “To gar auto noein estin
te kai einain” não deve ser traduzida como “Pensar e ser são o mesmo”, como
fizeram alguns. Ela já foi mais corretamente traduzida de diversas maneiras: “Das seiende
Denken und das Sein ist dasselbe” (Diels/Kranz), “The same thing is there to be
thought and is there to be” (Edward Hussey), “It is the same thing that can be
thought and can be” (W. K. Guthrie), “Being thought and being are one” (Anthony
Kenny)…
[9] Auguste Comte, Cours de
philosophie positive (Paris: Rouen Fréres 2830), p 3 e ss.
[10] Auguste Comte, Ibid., Prèmier
Lesson, p. 2.
[11] J. L. Austin: Philosophical Papers (Oxford:
Oxford University Press 1979), p. 232.
[12] O livro foi publicado após a
morte do autor sob o título de How to Do Things with Words (Oxford:
Clarendon Press 1962)
[13] Anthony Kenny: Aquinas
on Mind (London: Routledge 1993) cap. 1, p. 4.
[14] John Ziman: O Homem e a Ciência (Belo
Horizonte: Itatiaia 1979), pp. 24-27.
[15] Ver meu livro The
Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory (Langham: UPA 2002), cap. III
[16] Ver Susan Haack: “The Fragmentation of
Philosophy, The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy. Ed.
J. F. Göhner, Eva-Maria Junger (Springer Verlag 2016), p. 15 ss.