Retirado de um DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”
XVII
WITTGENSTEIN: OS LIMITES DO
SENTIDO
Ludwig Joseph Johan Wittgenstein (1859-1951)
tem sido visto como candidato ao título de “o maior filósofo do século XX.” Se
o radicalismo com que alguém se compromete com a reflexão filosófica é um
parâmetro de julgamento então há razões para se acreditar que sim.
Wittgenstein foi uma pessoa de personalidade única, que viveu uma vida
aventurosa, diversamente da grande maioria dos filósofos. Karl Wittgenstein,
seu pai, foi uma pessoa que tendo começado do nada se tornou um dos homens mais
ricos da Europa, possuidor de monopólio sobre a indústria do aço na Áustria.
Era uma pessoa dominadora, que educou seus filhos com exigências extremas,
querendo transformá-los em capitães da indústria. Um resultado foi que dos
quatro irmãos de Wittgenstein, três deles se suicidaram. Percebendo seu erro
Karl relaxou as exigências com Wittgenstein, o mais novo. Ao estudar engenharia
Wittgenstein apaixonou-se por filosofia da matemática, tendo descoberto por
conta própria a obra de Gottlob Frege. Ele procurou Frege em Jena, que lhe
recomendou ir para Cambridge estudar com Bertand Russell. Em Cambridge ele se
tornou amigo de Russell, que logo o reconheceu como um gênio filosófico.
Wittgenstein era homossexual e parece ter tido certo grau de autismo,[1] o que
não é raro entre intelectuais. Juntando a isso a imensa ambição com que foi
educado dá para se entender porque ele fosse uma pessoa atormentada, que viveu
acompanhada pela ideia de suicídio.
Russell se recorda que Wittgenstein vinha visitá-lo tarde da noite e
ficava andando de um lado para outro sem falar uma palavra. Russell tinha
receio que se o mandasse embora ele se suicidasse. Uma vez perguntou: “Em que
você está pensando? Em filosofia ou em seus pecados?” A resposta foi:
“Provavelmente em ambos”. Outra recordação de Russell é a de tê-lo convencido a
assistir uma corrida de botes em Cambridge. Ele foi, mas voltou furioso,
justificando seu estado de espírito com a observação de que todo tempo que não
é gasto lendo obras geniais ou escrevendo obras geniais é tempo perdido!
Wittgenstein se distinguiu da maioria dos filósofos acadêmicos por ter
mantido um pé dentro da instituição universitária, que pessoalmente desprezava,
e outro fora dela. Após ter estudado com Russell ele se alistou no exército
austríaco para lutar na Primeira Guerra Mundial. Não tinha boas razões para
fazer isso, pois a guerra era iníqua, ele estava na Inglaterra e era judeu. Acredito
que ele queria viver situações extremas. Vendo que os oficiais receavam lhe
enviar para a frente da batalha na primeira semana, ele os procurou dizendo que
se suicidaria se não o enviassem de pronto para uma posição arriscada. Eles o
enviaram para um posto de observação avançado à noite, quando o bombardeio era
mais intenso. Ele quase morreu sim, mas de medo, por sorte voltando sem um
arranhão sequer. Mais tarde, em uma das piores batalhas na fronte russo, a
imensa maioria dos soldados foram mortos, mas outra vez ele saiu ileso. Teve
sorte. Como mais tarde comentou: “Onde quer que estejas, você precisará sempre
de um anjo bom”. Nas trincheiras escreveu o livro que resume a sua primeira
filosofia: o Tractatus
Logico-Philosophicus, publicado em 1922.
Após o
Tractatus, tendo esgotado o que tinha de importante a
dizer, ele decidiu ir viver a vida simples das pessoas comuns. Empregou-se por
algum tempo como aprendiz de jardineiro. Tentou entrar para um mosteiro, mas
foi rejeitado por falta de vocação. Buscava a pureza. Acabou decidindo ser
mestre-escola em vilarejos pobres no interior da Áustria. Trabalhou nessa
profissão por sete anos. Mas em geral os camponeses não gostavam dele, pois era
demasiado severo com os alunos. Na época os professores batiam nos meninos, mas
poupavam as meninas. Wittgenstein era mais democrático: ele batia em todos, sem
distinção. Ajudava os bons alunos, mas era o terror dos que tinham pouco
rendimento. Uma das alunas mais tarde se recordou de que certa manhã, irritada
com as reprimendas de Wittgenstein, resolveu não responder às perguntas. Ele a
puxou pelos cabelos. Ela continuou quieta. Ele fez isso outra vez. Ela não
respondeu. Ele a olhou de modo inquisitivo. Disse-lhe para ir com ele à sala ao
lado, sentando-a em uma cama. Ele então lhe perguntou: “você não está passando
bem? Está com dor de cabeça?” Ela mentiu dizendo que sim. Ele então se
ajoelhou-se diante dela, pois as mãos em prece, e rogou: “Me perdoa!” Essa
estória demonstra uma má leitura do que se possa passar nas mentes das outras
pessoas junto a um inocente e radical senso de retidão moral – ambos sintomas
de autismo.
No
sétimo ano ocorreu o incidente. Ele deu um tapa na orelha de um garoto que
desmaiou. Wittgenstein assustou-se. Ao sair da escola deu de encontro com um
camponês que lhe disse que uma pessoa como ele serviria mais para ser domador
de ursos do que mestre-escola e que iria chamar a polícia. Como não havia
policiais na aldeia de Trattenbach naquele dia, nada aconteceu. Mas
Wittgenstein teve de fugir a pé para Viena durante a noite e, meses mais tarde,
teve de mentir em um processo, o que feria profundamente seu amor próprio.
Voltando para a casa de sua família em Viena ele recebeu em 1929 visitas dos
positivistas lógicos de Viena, que queriam que ele lhes explicasse o Tractatus. Isso o fez interessar-se de novo pela
filosofia. Acabou retornando para Cambridge, onde passou a ministrar seminários
semanais nos quais expunha suas reflexões aos estudantes. O resultado foi uma
filosofia inteiramente nova.
A filosofia desenvolvida a partir daí foi
bastante diferente daquela que apareceu no Tractatus. Ambas tinham como
objetivo estabelecer os limites da linguagem significativa e dissolver as
confusões filosóficas resultantes da transgressão desses limites. A primeira
foi inspirada na lógica fregeana, objetivando mostrar como a linguagem poderia
ser logicamente analisada de modo a evidenciar as condições mínimas através das
quais ela poderia espelhar de forma representacional o mundo. Com isso seriam
estabelecidos seus limites lógicos externos, cuja transgressão conduziria a
confusões filosóficas. Em sua última filosofia Wittgenstein tinha como
inspiração as estruturas conceptuais presentes no interior linguagem natural,
que ele pretendia decompor. Nessa filosofia, cujas ideias centrais encontram-se
condensadas no livro intitulado Investigações
filosóficas, ele buscou mostrar como limites internos da linguagem, quando
transpostos, também conduzem a confusões filosóficas. Para bem compreendê-la é
preciso escavar nas quase de dez mil páginas por ele escritas desde 1929 e que
só permitiu que fossem publicadas após sua morte. Wittgenstein morreu de câncer
em 1953, aos 62 anos. Até dois dias antes de sua morte ele trabalhou
intensamente em um manuscrito profundamente original mais tarde publicado sob o
nome de Sobre a certeza (Über Gewissheit).
1
Quero começar com um rápido exame da filosofia
do primeiro Wittgenstein, tal como exposta no Tractatus. No capítulo sobre
Aristóteles notamos que no desenvolvimento dos fundamentos de sua metafisica
ele foi guiado pela estrutura da linguagem. As frases factuais mais simples de
nossa linguagem têm a estrutura sujeito-predicado, por exemplo: “Sócrates é um
homem”. Partindo do suposto de que a linguagem espelha o mundo, Aristóteles
concluiu que os dois elementos fundamentais de toda a realidade são a
referência do sujeito – a substância (Sócrates) – e a
referência do predicado – seu atributo (ser um homem).
Wittgenstein, acompanhado por Bertrand Russell, seguiu um caminho semelhante.
Mas com uma diferença. A análise da linguagem feita por Aristóteles seguia a
lógica aristotélica, enquanto a análise da linguagem feita por Wittgenstein e
Russell seguiu a lógica fregeana. No final do século XIX Gottlob Frege, um
filósofo de formação matemática, produziu uma inaudita revolução na lógica
tradicional, tornando aquilo que havia sido iniciado por Aristóteles um
instrumento imensamente mais poderoso e extenso. A nova análise da linguagem
permitia mostrar que a lógica de nossos enunciados pode diferir grandemente de
sua estrutura gramatical e que filósofos no passado foram confundidos,
acreditando que a estrutura gramatical é a mesma que a estrutura lógica.
Um
exemplo de disparidade entre a estrutura gramatical e a estrutura lógica
evidenciada pela lógica quantificada de Frege foi apresentado por Russell em
sua teoria das descrições. Considere a sentença (i) “O atual rei da França é
calvo”. Do ponto de vista gramatical essa frase tem a mesma forma de (ii)
“Sócrates é um homem”, ou seja: a forma de uma frase do tipo sujeito-predicado.
Um metafísico como Alex Meinong sugeriu que em casos como esse, para que
a predicação seja possível, é preciso que o referente do sujeito subsista, mesmo que ele não exista. Mas isso tem o
inconveniente de nos forçar a superpovoar o universo com uma quantidade
inumerável de entidades subsistentes. Insatisfeito com essa ideia Russell
sugeriu, com base na lógica fregeana, que a sentença (i) possui uma estrutura
lógica completamente diferente de sua estrutura gramatical.[2]
Trata-se de uma sentença a ser analisada como a conjunção de três sentenças:
1.
Existe ao
menos um atual rei da França e
2.
existe no
máximo um atual rei da França e
3.
ele é
calvo.
Aqui o nome vazio ‘o atual rei da França’
desaparece da posição de sujeito, dando lugar a predicações quantificadas. Como
a primeira sentença é falsa, a conjunção de 1, 2 e 3 se torna falsa, disso
resultando que a frase “O atual rei da França é calvo” é falsa. A diferença
entre os enunciados (i) e (ii) fica mais clara quando os expomos formalmente.
Chamando o predicado ‘...atual rei da França’ de F e ‘...é calvo’ de C, a
expressão ‘existe ao menos um...’ de ∃, a conjunção das
três sentenças pode ser formalizada como a conjunção de (1) (x) (∃xFx), (2) (y) (Fy →
y = x) e (3) Cx, ou seja, a sentença (i) fica sendo:
(x) (∃xFx & (y) (Fy → y = x) &
Cx)
Em contraste com isso, a estrutura lógica da
primeira sentença é muito mais simples. Chamando Sócrates de ‘s’ e chamando o
predicado ‘... é um homem’ de ‘H’, a formalização fica sendo:
Hs
Para Russell foi a assimilação da estrutura
lógica complexa na estrutura gramatical do tipo sujeito-predicado que levou
filósofos como Meinong à confusão metafísica que gerou a teoria segundo a qual
aquilo que não existe precisa ao menos subsistir.
No Tractatus Wittgenstein foi profundamente influenciado
pela descoberta de Russell de que estrutura lógica e estrutura gramatical podem
ser muito diversas. Seu pressuposto básico é o de que a nossa linguagem
corrente, quando completamente analisada em seus constituintes
lógico-metafísicos, é algo que deve se demonstrar profundamente diferente e
supostamente muito mais complexo do que sua estrutura gramatical de superfície
parece evidenciar. Como ele escreve:
A linguagem corrente
é parte do organismo humano e não menos complicada do que ele. Dela é
humanamente impossível extrair imediatamente a lógica da linguagem. A linguagem
disfarça o pensamento a tal ponto que da forma externa de sua roupagem não
somos capazes de inferir a forma subjacente do pensamento, já que a forma
externa da roupagem serve a fins inteiramente diferentes dos de revelar a forma
do corpo.[3]
A tese é a de que as frases (Sätze)[4]
factuais da linguagem corrente, a ser entendida como a linguagem factual da
ciência, devem ser entendidas como funções de verdade de frases elementares,
que são as frases da linguagem completamente analisada. A noção fregeana de função de verdade é aqui fundamental. Para Frege a verdade das
frases compostas factuais é dependente das verdades das frases factuais simples
que a compõem. Considere, por exemplo, a frase disjuntiva: “Ou chove ou faz
calor”. Ela é composta pela disjunção das frases “Está chovendo” e “Faz calor”.
Para a lógica do conectivo ‘ou’ (da disjunção) basta que uma delas seja
verdadeira para que a frase composta seja verdadeira. Somente se ambas as
frases forem falsas e não estiver nem chovendo e nem fazendo calor, a frase
composta “Está chovendo ou faz calor” será falsa. Isso quer dizer que o
valor-verdade dessa frase composta é função de verdade dos valores-verdade de
suas frases componentes: ele resulta de uma certa combinação lógica do
valor-verdade de cada uma delas. Outras frases factuais compostas pelos
conectivos lógicos com ‘e’, ‘não’, ‘se... então’ e ‘se e somente se’ também são
funções de verdade de suas frases componentes, cada qual ao seu modo. A
hipótese especulativa do Tractatus é a de que as frases
de nossa linguagem, quando completamente analisadas, expressam o que ele chamou
de pensamento (Gedanke), que Wittgenstein
supunha ser alguma espécie de evento mental.
As
frases totalmente analisadas, de maneira a corresponder perfeitamente ao que
pensamos através delas – a linguagem sem suas roupagens comunicacionais –
seriam formadas pelo que Wittgenstein chamou de frases elementares (Elementarsätze). Ele sugeriu que tais frases elementares
fossem constituídas de concatenações de nomes (Namen), os quais se referem diretamente aos objetos simples
no mundo (Gegenstände). Esses objetos precisam ser simples, caso
contrário a análise precisaria ser continuada. Assim, o nome ‘Escalibur’ na
frase “Escalibur tem uma lâmina afiada” não pode ser um nome no sentido em
questão, uma vez que aquela espada é um objeto que tem partes. Por serem
simples os objetos são também imutáveis e indestrutíveis: eles formam a
substância do mundo.[5] Uma
característica desses nomes é que eles necessariamente se referem aos seus
objetos simples. Os objetos simples, por sua vez, são concatenados uns aos
outros em cadeias de modo a formar fatos atômicos que ele chamou de estados de coisas (Sachverhalten) no mundo, cujos
objetos se encontram em correspondência biunívoca com os nomes que constituem
as frases elementares que representam esses estados de coisas. Os estados de
coisas no mundo, por sua vez, se combinam entre si formando os fatos (Tatsachen), os quais correspondem às frases que os
representam em nossa linguagem corrente. O mundo nada mais é do que a
totalidade dos estados de coisa combinados ou fatos; e a linguagem é a
totalidade das frases verdadeiras. A linguagem torna-se dessa maneira capaz de
espelhar o mundo em correlações que podem ser resumidas no seguinte diagrama:
LINGUAGEM: MUNDO:
Frases da linguagem
factual..................fatos empíricos
Frases
elementares.................................estados de coisas
Nomes....................................................objetos
simples
Essa teoria especulativa de como as frases de
nossa linguagem poderiam ser analisadas como funções de verdade de frases
elementares expressando pensamentos não é tudo. Wittgenstein adicionou a ela
uma teoria da representação, mostrando como as frases elementares podem ser
capazes de representar os estados de coisas. Trata-se de sua famosa teoria pictorial ou, como prefiro dizer, teoria da figuração (Bildtheorie).[6]
Wittgenstein teve essa ideia em Paris, quando observou a maneira como um
acidente de tráfico era representado em uma corte de justiça. Os carros e as
pessoas eram representados por miniaturas e bonecos que eram postados em uma
situação correspondente à situação na qual os objetos reais teriam se
encontrado. Ora, para ele a mesma coisa deve acontecer com as frases
elementares da linguagem e os estados de coisa por elas representados. Só que
de maneira abstrata.
Antes
de explicar como funciona a figuração é preciso introduzir um outro insight
extraordinário de Wittgenstein, segundo o qual para existir representação (ou
figuração) é preciso que exista algo em comum entre aquilo que representa e
aquilo que é representado. Considere, por exemplo, o caso da escultura de um
busto humano. O elemento comum que se destaca entre aquilo que representa e
aquilo que é representado é o espaço tridimensional. Em uma pintura naturalista
e em uma fotografia o elemento bidimensional do espaço é mantido. Considere
agora o caso de uma peça musical. O que há de comum entre a música, tal como
foi uma vez criada pelo seu compositor, e sua apresentação posterior, é que
tanto a afiguração quanto o afigurado precisam se dar no curso do tempo. Mas o
que dizer de uma frase verdadeira de nossa linguagem? O que há de comum entre
ela e aquilo que ela representa? Certamente, nenhum meio espaço-temporal.
Wittgenstein sugeriu que aquilo que precisa existir em comum entre uma frase
elementar de nossa linguagem e o estado de coisas por ela representado é a estrutura ou forma lógica. Para ele, o
pensamento expresso pela frase elementar é a figuração lógica de um estado de
coisas.[7]
Como
Wittgenstein não fornece no Tractatus exemplo algum de
frase elementar, quero lançar mão aqui de dois exemplos meramente ilustrativos
(posto que não são de frases elementares) aos quais podemos aplicar a ideia de
figuração, cuja importância independe de seu papel na metafísica do Tractatus. Suponha que em contextos demonstrativos sejam
proferidas as frases:
(i)
O carro é
amarelo.
(ii)
O gato
come a ração.
Suponha também que esses proferimentos sejam
verdadeiros para os fatos em questão. Nas próprias frases não somos capazes de
ler nada espaço-temporalmente comum entre as frases (i) e (ii) e os respectivos
fatos de o carro ser amarelo e do gato estar comendo a ração. Mas se
considerarmos a questão com maior cuidado veremos que há algo em comum entre
essas representações simbólicas e aquilo que elas representam, que é uma mesma
estrutura ou forma lógica, sendo isso que as torna representações de fatos.
Suponha que decidimos representar formalmente a frase (i) como Mc, em que a
designa o carro c’ e M designa o ser amarelo M’. Suponha também que (ii) é representada
como aCb, em que a designa o gato a’, C designa o estar comendo C’ e b designa
a ração b’. Vemos que as relações abstratas Mc e aCb tem respectivamente as
mesmas estruturas que os fatos de que o carro c’ é amarelo M’ e de que certo
gato a’ se encontra na relação de estar comendo C’ uma certa ração b’.[8]
(Note-se que uma relação de identidade de forma ou estrutura lógica é também
pré-condição para as representações musical e imagética consideradas
anteriormente). A conclusão de Wittgenstein é que a identidade entre a
estrutura ou forma lógica daquilo que representa com aquilo que é representado
é a condição última necessária a qualquer relação afigurante, sem o que não é
possível existir nenhuma representação.
Aplicando as ideias acima à frase elementar Wittgenstein sugeriu que a
figuração depende das duas condições seguintes:
A relação afigurante
consiste na correlação dos elementos da figuração com as coisas.[9]
O fato de que os
elementos da figuração estão relacionados uns aos outros de determinada maneira
representa que as coisas estão relacionadas umas às outras da mesma maneira.[10]
Ou seja: em frases elementares verdadeiras deve
haver (i) uma direta correlação de um para
um
(biunívoca) entre os nomes e seus objetos. Além disso, (ii) esses nomes devem
estar relacionados entre si do mesmo modo que os objetos por
eles representados estão relacionados entre si.
Além
disso, as relações entre os nomes da frase elementar (associados uns aos outros
de determinado modo) e os correspondentes objetos (associados uns aos outros do
mesmo modo) são para Wittgenstein imediatas:
As correlações são,
por assim dizer, como antenas dos elementos da figuração, com as quais a
figuração toca a realidade.[11]
Um nome está para uma
coisa, o outro está para outra coisa e eles estão combinados uns com os outros.
Dessa maneira todo o grupo – como um tableau vivant – apresenta um
estado de coisas.[12]
O que essas considerações sugerem é uma versão
mais sofisticada da teoria correspondencial da verdade, na qual a
correspondência é entendida como um isomorfismo
estrutural entre a figuração e o estado de coisas.[13] Uma
frase elementar é verdadeira quando seus nomes estão concatenados do mesmo modo pelo qual os objetos simples estão
concatenados, o mesmo valendo para as frases não-elementares verdadeiras. E uma
frase elementar é falsa quando seus nomes estão concatenados de uma maneira que
é diferente da maneira pela qual os objetos simples estão concatenados, o mesmo
valendo para as frases não-elementares falsas.
Voltando aos nossos exemplos ilustrativos, a frase Mc (“O carro é
amarelo”) é verdadeira quando M’c’ é um fato, e a frase aCb (“O gato come a
ração”) é verdadeira quando a’C’b’ é um fato. O isomorfismo estrutural das
frases verdadeiras com os fatos por elas representados fica aqui claramente
mostrado. As frases são verdadeiras quando, em cada caso, cada elemento da
figuração se encontra biunivocamente relacionado ao elemento do fato, enquanto
os elementos da figuração estão dispostos entre si do mesmo modo que os
elementos correspondentes nos fatos estão dispostos entre si. Certamente, essas
mesmas frases são falsas quando isso não acontece, por exemplo, quando os
estados de coisas reais são, digamos, o de que o carro é verde e que por isso
ele não é amarelo, ou que o gato rejeita a ração e que por isso ele não a come.
As frases verdadeiras nesses últimos casos terão (i) a forma ~Mc (dado que,
simbolizando verde por V, “Vc & (Vc → ~Ac), logo ~Mc”), e
(ii) a forma ~aCb (dado que, simbolizando por R a recusa, “aRb & (aRb →
~aCb), logo ~aCb”).
Junto
a essa teoria da verdade como correspondência o Tractatus contém uma teoria
referencialista do significado. O significado de um nome é tão somente o objeto
simples ao qual ele se refere: “Um nome significa um objeto; o objeto é o seu
significado”.[14] Quanto à questão de se
saber qual é o sentido (ou significado) da frase elementar, Wittgenstein
escreveu:
Uma frase mostra o seu sentido. Uma frase mostra como as coisas são
se ela é verdadeira. E diz que elas são assim.[15]
Ao invés de “essa
frase tem tal e tal sentido” nós podemos simplesmente dizer “essa proposição
representa tal e tal situação”.[16]
À primeira vista pode parecer que ele entende o
sentido ou significado da frase como sendo o estado de coisas realmente obtido
no mundo. Mas isso deixaria de fora as frases falsas, que não se referem a
estados de coisas reais. Por isso o sentido ou significado da frase deve ser
entendido como o possível estado de coisas por
ela representado.[17]
2
Com a teoria da figuração Wittgenstein
pretendeu explicar como a linguagem da ciência empírica é possível. Mas o que
dizer da linguagem do próprio Tractatus? Para ele a teoria
da figuração não poderia ser aplicada à própria teoria da figuração. Filosofia,
lógica, matemática, ética, estética, o significado da vida e a religião não
possuem linguagem propriamente factual, ficando excluídas de sua teoria. O que
dizer de seu significado?
A
resposta está na assim chamada mística do Tractatus. Wittgenstein introduziu aqui uma distinção
essencial entre o dizer (sagen) e o mostrar (zeigen). A linguagem factual da ciência empírica explicada
pela teoria da figuração é a única capaz de nos dizer como as coisas são.
Outras linguagens são capazes apenas de mostrar. As frases da lógica, por
exemplo, são as que são sempre verdadeiras, as chamadas de tautologias, ou as que são sempre falsas, as contradições. A frase tautológica “p v ~p” pertence a
lógica, sendo sempre verdadeira.
instanciada em “Está chovendo ou não está chovendo”. Ela é sempre
verdadeira, do mesmo modo que a frase contraditória da forma “p & ~p” é
sempre falsa. Tautologias e contradições são frases degeneradas, incapazes de
nos dizer algo sobre o mundo. Elas não nos dizem nada, mas mostram algo, qual seja, verdades e contradições
lógicas. O mesmo acontece com a forma ou estrutura lógica. Não somos capazes de
dizer o que a forma lógica é, mas apenas de mostrá-la através de exemplos. E a
razão disso é que a forma lógica é algo comum tanto à linguagem quanto ao
mundo. Por sua própria ubiquidade ela se encontra além de qualquer possibilidade
de figuração através da linguagem. O mesmo vale, segundo Wittgenstein, para a
teoria desenvolvida no Tractatus. Ao falarmos de como
a linguagem factual é capaz de dizer algo sobre o mundo precisamos ir além
dela, penetrando no domínio do que pode ser apenas mostrado. Para ele o Tractatus é apenas um meio pelo qual encontramos maior
clareza na compreensão de nossa representação linguística do mundo empírico.
Como ele escreveu:
Minhas frases
esclarecem na medida em que aquele que me compreende no final as reconhece como
sem significado, quando ele as tiver superado. (Ele precisa, por assim dizer,
lançar a escada fora após ter subido por ela.) Ele precisa superar essas frases
para então ver o mundo corretamente.[18]
O que não pode ser
dito deve ser calado.[19]
Aqui a diferença é mais entre o que ele
considera sem sentido (sinnlos) e o absurdo (unsinnig). A filosofia do Tractatus é destituída de
sentido factual por não poder ser abrangida pela teoria da figuração, uma vez
que ela a expõe. Ela nada nos diz sobre como o mundo é. Mas nem por isso ela é
absurda, dado que ela serve para alguma coisa.
Quanto
à filosofia tradicional, a posição de Wittgenstein seria dupla. Uma teoria como
a de Meinong, resultante de falta de clareza lógica, seria por ele considerada
absurda (unsinnig). Mas ele não faria o mesmo juízo de um
metafísico como Shopenhauer, que lhe causou grande impressão. Para ele as
frases desse filósofo não deveriam ser tomadas literalmente, posto que elas não
são capazes de dizer nada de propriamente verdadeiro sobre o mundo empírico.
Mas elas são expressivas, elas nos dispõem a tomar certas atitudes, elas
mostram algo acerca do mundo e de nós mesmos, algo que vai além daquilo que a
linguagem factual é capaz de dizer. Para Wittgenstein o mesmo pode ser dito de
nossos julgamentos morais e das frases da estética e da religião.
Podemos nos perguntar se com sua mística Wittgenstein não tentou
abranger uma gama excessivamente grande de coisas através de uma única
distinção, ela própria questionável. Rudolf Carnap se queixou de que
Wittgenstein teria sido inconsistente ao dizer-nos que não podemos dizer frases
filosóficas e então, ao invés de ficar em silêncio, escrever todo um livro de
filosofia.[20] E seu amigo Frank Ramsey
escreveu que “o que não pode ser dito não pode ser dito e não pode ser sequer
assoviado”.[21]
Também
é possível entender a teoria exposta no Tractatus
como
uma metalinguagem. Sua teoria da relação afigurante entre a
linguagem factual e o mundo poderia ser vista como uma teoria metalinguística,
sujeita a exigências similares às da teoria da relação afigurante, só que agora
aplicando-se à relação entre ela própria e a linguagem factual. Além disso, por
que aCb não pode afigurar de modo metalinguístico a forma lógica de “O gato
come a ração”? E por que a ideia de figuração não pode ser aplicada não só à
lógica, mas também à matemática e mesmo a outros domínios não primariamente
factuais do conhecimento?
Finalmente, que julgamento podemos fazer sobre o Tractatus? A melhor maneira de se avaliá-lo me parece
ser considerá-lo como um esplêndido texto de metafísica especulativa, tal como
foi, digamos, a Monadologia de Leibniz. Ele
apresenta um mundo logicamente possível que não é certamente o nosso, pois em
nosso mundo objetos simples e estados de coisas elementares não existem. Mesmo
assim, a concepção é grandiosa e há insights importantes que podem ser em
princípio adaptados para aplicação ao nosso mundo. Afinal, sem a ideia de
figuração não temos como conceber nossa capacidade de representar.
3
A última filosofia de Wittgenstein foi
caracterizada pela sua atenção aos usos ordinários da linguagem, certamente
influenciada pelos anos em que viveu como mestre-escola. A hipótese fundamental
do Tractatus, segundo a qual nossas frases da linguagem
corrente são sempre analisáveis como funções de verdade de frases primitivas de
estrutura completamente diversa foi abandonada. Por isso, em sua última
filosofia ele não concebeu mais a linguagem ordinária como demandando análise
lógica, mas decomposição em componentes, também eles pertencentes a ela: “a
filosofia deixa tudo como está”.[22]
Uma
mudança radical foi feita em sua teoria do significado. No Tractatus ele defendeu uma forma de referencialismo
semântico na qual o significado do nome seria a sua referência. Problemas com o
referencialismo na linguagem corrente saltam à vista: afinal, se roubam a minha
carteira, não roubam o significado da expressão “minha carteira”; se a pessoa
de nome NN morre, não morre com ela o significado de NN; as expressões nominais
‘Napoleão’ e ‘o homem do destino’ tem sentidos diferentes, embora se refiram à
mesma pessoa; e nomes sem referência como ‘Eldorado’ e ‘Vulcano’ nem por isso
deixam de ter significado. Mesmo quando os termos são aprendidos em situações indexicais
a concepção referencialista não é bem sucedida. Imagine, para exemplificar, que
o significado do termo ‘vermelhão da China’ seja aprendido através de um
exemplo, digamos, um modelo da cor que é apresentado. Seria o modelo seu
significado? Obviamente não. Esse modelo é memorizado, de modo que a pessoa
consegue reconhecer a cor quando apresentada a ela. Mesmo assim, o significado
do termo não é o modelo, mas o elo semântico entre a palavra e a coisa, o qual
deve ser alguma regra que associa a palavra ao modelo e seus similares. O mais
perto que chegamos de admitir uma teoria referencialista do significado é
aceitar que em casos como esse o contato com a propriedade que permite a
formação da regra semântica é imprescindível (um cego não poderá saber o significado
fenomenal de ‘vermelhão da China’).
Rejeitando o referencialismo Wittgenstein acabou por chegar à conclusão
de que o significado de uma palavra deve consistir princialmente em seu uso,[23]
melhor dizendo, em seu modo de uso. Isso fica
bem explícito em uma de suas últimas observações sobre a questão:
O significado de uma
palavra é o seu modo de aplicação (Art der Verwendung)... Assim, há uma correspondência entre os
conceitos de ‘sentido’ e ‘regra’.[24]
Ou seja: o uso aqui é o modo de uso, ou seja, o
uso correto, o que conduz às regras que determinam o uso episódico da palavra.
Por conseguinte, o conceito de significado deve corresponder ao conceito de
regra. Em meu juízo podemos até mesmo dar um passo além do que ele escreveu,
admitindo que um significado de uma expressão (palavra, frase) possa ser
reduzido às regras ou (como veremos) combinações de regras com base nas quais
com ela realizamos certos usos episódicos.
Wittgenstein também percebeu que o uso de uma expressão se dá sempre em um
contexto que estabelece as regras de sua aplicação. Isso é importante porque
muitas vezes alterando-se o contexto teremos de aplicar regras diferentes disso
resultando nuances de significado diferentes. Ele decidiu dar a esse contexto
de uso da expressão o nome de jogo de linguagem (Sprachspiel) ou prática linguística (Praktik) ou mesmo região
da linguagem (sprachliche Region) ou sublinguagem (Sprache).
Nas Investigações filosóficas ele apresentou uma
lista de jogos de linguagem:
Comandar, e agir segundo
comandos / Descrever um objeto conforme aparências ou conforme medidas /
Desenhar um objeto segundo uma descrição / Relatar um acontecimento /
Conjecturar sobre o acontecimento / Expor uma hipótese e prová-la / Apresentar
os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas / Inventar uma
história, ler / Representar teatro / Cantar uma cantiga de roda / Resolver
enigmas / Fazer uma anedota, contar / Resolver um exemplo de cálculo aplicado /
Traduzir de uma língua para outra / Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar.[25]
Para ele a nossa linguagem é constituída por um
número ilimitado de diferentes de jogos de linguagem ou práticas.
Para
esclarecermos o que é um jogo de linguagem podemos lançar mão da distinção
semiótica entre regras sintáticas, semânticas e pragmáticas.[26] Uma
linguagem é um sistema de regras. Suas regras são sintáticas quando estabelecem
relações entre os signos, por exemplo, a ligação entre o termo geral e o termo
singular em uma frase predicativa, ou a relação de conjunção entre duas frases.
As regras semânticas são as que relacionam a linguagem com os objetos por ela
referidos. Por exemplo, a regra que relaciona um nome com o seu referente, uma
frase com o fato por ela referido. Há, por fim, a dimensão pragmática, a exemplo
das regras que estabelecem o tipo de relação entre o falante e ouvinte (as forças ilocucionárias) como as de dar uma
ordem, fazer um pedido, uma pergunta, uma promessa, etc.
Considerando os inúmeros exemplos de jogos de linguagem apresentados por
Wittgenstein, podemos seguramente caracterizá-los como sistemas de regras
sintáticas, semânticas e pragmáticas. Mesmo que nem todos os jogos de linguagem
precisem ter a conjunção dessas três espécies de regras, a presença dessa
conjunção é aquilo que mais os tipifica. Isso fica claro nos jogos de linguagem
mais simples exemplificados por ele, como o do pedreiro e seu ajudante:[27]
Um pedreiro diz ao
seu ajudante: “Traga aquela tábua!” O ajudante lhe traz a tábua indicada. Pouco
depois o pedreiro lhe diz: “Traga dois tijolos!” O ajudante lhe traz os dois
tijolos.
Na segunda frase há uma regra sintática ligando
as palavras ‘tijolo’ e ‘dois’. Nesses proferimentos há regras semânticas ligando
as palavras ‘tábua’ ao objeto apontado e ‘tijolo’ ao tipo de objeto referido.
Finalmente, há pelo menos uma regra pragmática (ilocucionária): o pedreiro está
dando ordens ao seu ajudante, que deve lhe trazer os objetos referidos. Jogos
de linguagem ou práticas linguísticas podem nos escritos de Wittgenstein variar
imensamente, mas é de se esperar que eles possuam esses três tipos de regras.[28]
Para
Wittgenstein a linguagem pode ser decomposta das mais diversas maneiras em um
número indeterminado de jogos de linguagem. No Livro
Marrom
ele comparou a linguagem com uma nebulosa e nas Investigações ele a comparou com
uma grande cidade antiga. Vale a pena citar:
A linguagem do adulto
apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem natural,
rodeada por mais ou menos definidos jogos de linguagem, que são as linguagens
técnicas.[29]
Nossa linguagem pode
ser vista como uma velha cidade: um novelo de pequenas ruas e pracinhas, velhas
e novas casas e casas com construções de diversos tempos; e isso tendo como
contorno uma porção de novos bairros com ruas retas e regradas e com casas
idênticas.[30]
Para Wittgenstein nós somos capazes de dividir
a linguagem natural de múltiplas e variadas maneiras em jogos de linguagens.[31] De
modo similar podemos dividir uma cidade em bairros (as “regiões da linguagem”)
ou, digamos, em zonas, que podem incluir uma variedade de bairros. Podemos ter
um condomínio de casas ou grupos de casas ou simplesmente casas, que podem se
dividir em recintos, mas também em salas, quartos, etc. Importante é que
sejamos capazes de reconhecer algo como pertencente a uma certa maneira de se
dividir a linguagem nas práticas semióticas chamadas de jogos de linguagem. É
importante notar que essa divisão em jogos de linguagem é muito mais variada e
flexível do que as distinções dos tipos de interações linguísticas mais tarde
investigadas por filósofos como J. L. Austin, John Searle e mesmo Jürgen
Habermas. Como veremos, elas serão instrumentalmente úteis ao aspecto
terapêutico da filosofia de Wittgenstein.
Além
de uso, regra e jogo de linguagem, um último conceito fundamental é o de forma de vida (Lebensform), que para
Wittgenstein é “o dado”, aquilo que é aceito como mais fundamental e que
poderíamos tentar caracterizar como o complexo de atividades (linguísticas e
não-linguísticas) caracterizador da vida das pessoas em um meio social
específico. Para ele é a forma de vida que provê os fundamentos últimos do
significado. Segundo consta, a noção de forma de vida teria sido inspirada pela
leitura que Wittgenstein fez de um artigo do antropólogo Bronislaw Malinowski
defendendo que só somos capazes de compreender a linguagem de um povo primitivo
se participarmos da maneira como eles vivem. Em um exemplo: nós só
compreendemos o significado da expressão ‘remamos em um lugar’ usada pelos
nativos das ilhas Trobiand se soubermos que as águas ao redor daquelas ilhas
são muito profundas, não permitindo varar a canoa, o que exige que se reme até
chegar a alguma vila, aqui chamada de ‘lugar’.[32] Uma
das melhores qualidades de Wittgenstein como filósofo era saber ver as
implicações de uma boa ideia.
O
conceito de forma de vida é importante porque os usos de nossas expressões
produzidos pelas regras constitutivas dos jogos de linguagem nos quais eles
ocorrem só chegam a fazer sentido por estarem enraizados no interior de uma
forma de vida. É por não se encontrar devidamente enraizado em uma forma de
vida biológica que o uso de uma palavra por um computador, por exemplo, jamais
poderá adquirir significado, a menos que seja interpretado por nós mesmos.
Com
tudo o que dissemos acima podemos agora arriscar uma definição reconstrutiva do
significado no último Wittgenstein:
(I)
Um significado de uma expressão W (Df.) = um modo de uso
de W estabelecido por regras ou combinações de regras de um jogo de
linguagem enraizado em uma forma de vida.
Note que identifico aqui o significado não
somente com regra, mas também como combinação de regras. A expressão “dois
tijolos” nos faz combinar regras. Wittgenstein brincou com a ideia de
combinação de regras ao aproximar o significado de um cálculo; afinal, o
significado de uma conta em aritmética parece residir no cálculo que produz sua
solução.[33] A mim parece que a
definição (I) proporciona o que nas palavras de Wittgenstein poderia ser
chamado de uma “representação panorâmica da gramática do conceito de
significado.”[34]
Podemos
nos perguntar agora para que serve essa maneira de se entender o significado
voltada para a aplicação cotidiana de nossas expressões? Ora, ela serve como um
artifício pelo qual somos capazes de identificar as nuances corretas nos usos de
nossas palavras e assim refutar as transgressões sutis dos limites internos da
linguagem que são comuns à filosofia praticada como metafísica. Com efeito,
Wittgenstein entendeu a filosofia como sendo de dois tipos intrinsecamente e
mesmo dialeticamente associados um com o outro. Eles são o que poderíamos
chamar de filosofia como metafísica, e a filosofia como terapia ou crítica da linguagem. De acordo com ele,
no curso de nossas reflexões filosóficas somos inevitavelmente levados a
produzir confusões metafísicas em nossos usos das palavras e frases, precisando
em um segundo momento corrigir esses usos equívocos através de terapias
linguísticas. A maneira como isso acontece é quando confundimos o uso de uma
palavra em um jogo de linguagem com o seu uso em um outro jogo. Uma mesma
expressão pode ser usada em diferentes jogos de linguagem. Há aqui duas
possibilidades. A primeira é o que podemos chamar de uso equívoco de uma expressão: quando a usamos no jogo de
linguagem (ou contexto) B segundo as regras que ela tem quando usada no jogo de
linguagem (contexto) A. A segunda possibilidade de confusão é o que podemos
chamar de uso hipostasiado da expressão, que
ocorre quando usamos a expressão de modo confuso, tentando sustentar as regras
de seu uso em diferentes jogos de linguagem (contextos) ao mesmo tempo, como se
isso acontecesse em um mesmo jogo (contexto).[35]
Quando
esse tipo de coisa acontece nós caímos em um equívoco linguístico comum em
filosofia. E aqui deve entrar em cena a filosofia terapêutica, que tem por
função “trazer as palavras de suas férias metafísicas de volta para o seu labor
ordinário.”[36] Por exemplo: Platão
dizia que a tênue realidade do mundo visível depende de seu espelhamento do
único mundo real, que é o mundo inteligível das ideias eternas e imutáveis. Mas
aqui ele está usando a palavra ‘realidade’ em um sentido metafísico equivocado,
cabendo ao crítico da linguagem demonstrar isso ao expor a maneira como a
palavra ‘realidade’ é realmente usada nos jogos de linguagem constitutivos de
nossa forma de vida. A crítica da linguagem pode ser também aplicada ao
empirismo inglês: foi por ter ignorado que que a gramática de nossa linguagem
proíbe falarmos da percepção de nossas ideias (sense-data) que Locke preparou o caminho para o idealismo
de Berkeley e o ceticismo de Hume.
A
importância do pensamento de Wittgenstein está em ter mostrado o quanto de
confusão linguística se encontra incorporado nas assim chamadas “teses”
filosóficas. A importância de Nietzsche está em ter trazido à tona importantes
motivações enganosas que tem operado por trás de um bom número dessas
confusões. E Marx mostrou ainda como as bases econômicas podem ser propícias
para a formação de ideologias que suportam motivações enganosas.
Pode
parecer que essa concepção de filosofia seja radicalmente contrária à concepção
progressista de filosofia como protociência apresentada no primeiro capítulo
desse livro. Mas não é forçoso que seja assim. A filosofia como antecipação da
ciência no sentido considerado é uma tentativa de dizer algo sobre aquilo que
não temos condições de saber, o que se encontra inevitavelmente entremeado com
confusões linguísticas. Quando essas confusões são profundas, elas são como
cruzes que indicam caminhos a serem ou mesmo a não serem seguidos. Desfazer as
confusões pode nos levar adiante, seja por mostrar que direção poderíamos, seja
para nos mostrar qual o caminho a não ser seguido.
4
Considerando a ênfase no uso como significado
pode parecer que o último Wittgenstein tenha rejeitado por completo a concepção
pictorial da linguagem do Tractatus e a relação do
significado com a representação de estados de coisas. Mas pensar assim pode trair
confusão entre mudança de perspectiva com mudança de opinião. O que certamente
aconteceu é que ele passou a desenvolver insights que pesavam sobre a
pragmática e não mais sobre a sintaxe lógica da linguagem factual. Esse é o
caso do que poderia ser chamado de princípio semântico da verificação, proposto
por ele em 1929 junto a Friedrich Waismann e repetido nos anos seguintes.
Segundo esse princípio: “O sentido de uma frase é seu modo de verificação. O
método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido.”[37] Ou,
tentando expor isso de modo algo mais qualificado:
(II)
Um significado factual de uma frase declarativa P (Df.) =
uma resultante das possíveis combinações de regras procedurais, através das
quais se pode avaliar o valor-verdade de P em jogos de linguagem
factuais.
Ou seja: aquilo que a sentença declarativa diz, a proposição por ela expressa, o pensamento (Gedanke), seu conteúdo cognitivo, nada mais é do que o
modo de verificação, que geralmente é algo múltiplo, variando com o domínio da
linguagem.[38] Para dar uma ideia de
como ele pensou a questão, considere a seguinte frase: “O Cristo Redentor se
localiza em uma montanha no Rio de Janeiro?” Como Wittgenstein traduziria seu
significado em termos de modos de verificação? A resposta é: de múltiplas
maneiras. Muitos sabem disso só por terem ouvido dizer. Pode ser também que
alguém abra um guia turístico encontrando lá uma foto do Cristo Redentor com
informações a respeito. Outra pessoa pode aprender sobre o Cristo lendo sobre a
história da cidade. Pode ainda ser que alguém esteja no Rio de Janeiro e outra
pessoa lhe aponta para o cristo em um dos morros da cidade pretendendo
conduzi-lo até lá. Note-se que todos esses procedimentos de verificação se
encontram fundamentados por regras procedurais conhecidas. Por exemplo: se
alguém me aponta para algo e me diz um nome, ao apreender a palavra dita como o
nome do objeto apontado estou seguindo uma regra. E se justifico que o Cristo
Redentor se encontra na cidade do Rio de Janeiro com base em algum texto
histórico, estou fundamentando o que digo com base em regras da prática de
conferir dados histórico-geográficos. Os diversos procedimentos de verificação
estão interligados uns com os outros e possuem pesos semânticos diversos. Saber
que o Cristo se encontra no Rio por tê-lo visitado ou lido em um guia turístico
sobre o Cristo tem mais peso do que ter ouvido dizer. A tese de Wittgenstein é
a de que os diferentes modos de verificação são partes do significado. “Se
retirarmos alguns procedimentos,” observou ele, “a frase perde parte de seu
significado; e se retirarmos todos os procedimentos a frase deixa de ter
qualquer significado.[39]
Embora
a explicação do procedimento verificacional aqui esboçada demande
desenvolvimento, ela é, de um ponto de vista metodológico, muito mais adequada
do que as tentativas de precisar a verificação feitas pelos filósofos do
positivismo lógico. Esses últimos não fizeram mais do que tentar construir uma
versão formalista simplista da ideia de Wittgenstein com o objetivo de destruir
a metafísica, só para constatar que tal versão era insustentável. Como reação
eles refutaram a própria versão, acreditando ter assim refutado a formulação
mais rigorosa do que Wittgenstein lhes havia sugerido, o que acabou por se
transformar na “sabedoria herdada” segundo a qual o princípio da verificação
foi refutado. Sem dúvida ele foi refutado, só que na versão positivista que
Wittgenstein sempre rejeitou.
5
Como vimos, existe em Wittgenstein uma
filosofia como metafísica, transgressora das fronteiras da linguagem, e uma
filosofia como terapia ou crítica da linguagem, que desfaz essas transgressões.
Mas há também uma terceira espécie de filosofia. Trata-se de uma teoria da
linguagem e do significado que é pressuposta pelo último Wittgenstein e que foi
exposta acima, quando falamos de usos, regras, jogos de linguagem, formas de
vida... Trata-se de uma teoria de textura aberta, vaga, orgânica, dinâmica,
cuja finalidade é meramente filosófica, mas que acaba sendo indispensável, pois
constitui o fundamento justificador da crítica da linguagem. Ela é como que a
poção indispensável à eficácia da terapia linguística. Wittgenstein escreveu
algo a respeito: “Temos agora uma teoria. Uma teoria dinâmica da frase, da
linguagem, mas ela não se nos afigura como teoria.”[40] Nas Investigações filosóficas ele expôs esse ponto
de forma particularmente pregnante:
Uma fonte principal
de nossa incompreensão é que não possuímos uma visão panorâmica do uso de
nossas palavras. Falta caráter panorâmico à nossa gramática. – A representação
panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”.
Daí a importância de encontrar e inventar as articulações intermediárias.
O conceito de
representação panorâmica é para nós de importância fundamental. Designa nossa
forma de representação, o modo pelo qual vemos as coisas (é isso uma ‘visão do
mundo’?)
Em suma:
a terapia filosófica de Wittgenstein depende de pressupostos anteriores sobre o
funcionamento da linguagem. Esses pressupostos podem ser explicitados em
representações panorâmicas que constituem naquilo que pode com razão ser
chamado de uma teoria filosófica, oposta à forma
científica das teorias. Se a crítica da linguagem não estivesse fundada em
assunções teóricas, ainda que implícitas, ela não teria poder de convencimento.[41]
Com
isso voltamos mais uma vez à noção de filosofia como protociência. A
representação panorâmica é a filosofia como protociência em Wittgenstein.
[1] Christopher
Gillberg: A Guide to Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University
Press 2005), cap. 15.
[2] Ver Bertrand
Russell “On Denoting”. Mind 14, n. 4, 1905, pp. 479- 493. A teoria de Russell foi
desafiada por P. F. Strawson no artigo intitulado “On Referring”. Mind
59, 1950, 320-344.
[3] Tractatus 4.002.
[4] Como Frege, Wittgenstein usa
a palavra ‘Satz’, cuja tradução mais literal é ‘frase.’ Em geral a
palavra ‘Satz’ é traduzida como ‘proposição’, ‘enunciado’ ou ‘sentença’.
Preferi manter a tradução literal sob o suposto de que com a palavra ‘frase’ se
entenda aquilo que a sentença está dizendo e não a mera expressão linguística.
[5] Tractatus 2.021.
[6] Outro problema de tradução: a
palavra Bild, usada por Wittgenstein, significa literalmente ‘quadro’.
Contudo, suas conotações são intraduzíveis. A tradução inglesa ‘picture’
possui deficiências semelhantes. Por isso prefiro traduzir Bildtheorie
por ‘teoria da afiguração’, tal como J. A. Giannotti uma vez sugeriu.
[7] Tractatus 3.
[8] Esses exemplos não tem nada a
ver com as frases elementares do Tractatus porque nem o carro nem gato
nem o comer e nem a ração são objetos simples. Além disso o predicado monádico
‘...é vermelho’ e o predicado relacional ‘...come...’ não são nomes, mas
predicados que poderiam ser respectivamente caracterizados como “a cor primária
oposta ao verde” e como a “ação de um animal de engolir mastigando.” Mesmo
assim serve como ilustração.
[9] Tractatus 2.1514.
[10] Tractatus 2.15.
[11] Tractatus 2.1515.
[12] Tractatus 4.0311.
[13] Ver a interpretação de Erik
Stenius: “Die Bildtheorie des Satzes”. Erkenntnis 9, 1975, pp. 35-55.
Stenius demonstrou que a teoria da figuração pode ser aplicada a frases de
nossa linguagem ordinária sem a necessidade da espécie de análise atomista
sugerida no Tractatus.
[14] Tractatus 3.203.
[15] Tractatus 4.022.
[16] Tractatus 4. 031.
[17] O termo ‘estado de coisas’ (Sachverhalt)
é ambíguo, querendo dizer também a possível combinação de objetos representada
pela proposição elementar, razão pela qual também podemos dizer que o sentido ou
significado da frase é simplesmente o estado de coisas (ver 2.201 ss.).
[18] Tractatus 6.54.
[19] Tractatus 7.
[20] Rudolf Carnap: Philosophy
and the logical syntax (London 1955), p. 37 ss.
[21] Frank Ramsey, Philosophical Papers (Cambridge:
Cambridge University Press 1990) p. 146.
[22] Investigações filosóficas I, sec. 124.
[23] Investigações filosóficas I, sec.
43.
[24] Sobre a Certeza, sec. 61-62.
[25] Ver Investigações
filosóficas parte I, sec. 23
[26] C. W. Morris: The
foundations of the theory of signs (Chicago: University of Chicago Press
1938)
[27] Investigações filosóficas sec. 20.
[28] O que não as
torna necessárias: o jogo de solitária, por exemplo, não possui regras pragmáticas.
[29] Das braune Buch (Frankfurt: Suhrkamp
1984), p. 122.
[30] Investigações Filosóficas parte I, sec. 18.
[31] Investigações Filosóficas parte I, sec. 48.
[32] O artigo foi publicado como
apêndice no livro de C. K. Ogden & I. A. Richards: The Meaning of
‘Meaning’. (Orlando: Harcourt Brace 1984 (1922)).
[33] Alice Ambrose
(ed.): Wittgenstein’s Lectures 1932-1935 (Oxford: Oxford University
Press 1979), pp. 96-97. Ver também Wittgenstein The Big Typescript (John
Willey & Sons 2012), sec. 35.
[34] Em complemento à dimensão
crítico-terapêutica ele reconhece uma dimensão construtiva da filosofia na
seguinte bem conhecida passagem: “Uma fonte principal de nossa incompreensão é
que não temos uma apresentação panorâmica (übersichtliche Darstellung) do uso
de nossas palavras. – Falta caráter panorâmico a nossa gramática. A
representação panorâica permite a compreensão, que consiste justamente em ‘ver
as conexões’. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias.”
Investigações filosóficas I, sec. 22.
[35] É interessante a relação que
pode ser encontrada entre o que chamei de equívoco e hipóstase e o que Freud
chamou respectivamente de deslocamento e condensação. É também interessante
notar que esses são os mecanismos fundamentais do que Freud chamava de processo
primário, que é o mecanismo pelo qual produtos do inconsciente, como os sonhos,
a obra de arte e mesmo a filosofia se concretizam.
[36] Investigações filosóficas I, sec. 116.
[37] Wittgenstein und der
Wiener Kreis (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 244.
[38] Podemos nos perguntar se em
seus limites esses procedimentos não acabariam por demandar isomorfismo
estrutural com aspectos do fato referido, como em um palimpsesto da concepção
figurativa.
[39] Para um exemplo e observações
similares, ver Alice Ambrose (ed.): Wittgenstein’s Lectures 1932-35.
(New York: Prometheus Books 2001), p. 29. Considerações mais detalhadas
encontram-se em C. F. Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy (Newcastle upon Tyne: CSP, 2018), cap. VI.
[40] Wittgenstein: Zettell
sec. 444.
[41] Claudio Costa: Wittgenstein’s
Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik (Konstanz: Hartung Gorre
Verlag 1990).
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