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sábado, 29 de junho de 2024

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN (Draft)

  

 Retirado de um DRAFT para o livro “Introdução histórica à filosofia”

 

 

 

 

 

XVII

WITTGENSTEIN: OS LIMITES DO SENTIDO

  

 

Ludwig Joseph Johan Wittgenstein (1859-1951) tem sido visto como candidato ao título de “o maior filósofo do século XX.” Se o radicalismo com que alguém se compromete com a reflexão filosófica é um parâmetro de julgamento então há razões para se acreditar que sim.

   Wittgenstein foi uma pessoa de personalidade única, que viveu uma vida aventurosa, diversamente da grande maioria dos filósofos. Karl Wittgenstein, seu pai, foi uma pessoa que tendo começado do nada se tornou um dos homens mais ricos da Europa, possuidor de monopólio sobre a indústria do aço na Áustria. Era uma pessoa dominadora, que educou seus filhos com exigências extremas, querendo transformá-los em capitães da indústria. Um resultado foi que dos quatro irmãos de Wittgenstein, três deles se suicidaram. Percebendo seu erro Karl relaxou as exigências com Wittgenstein, o mais novo. Ao estudar engenharia Wittgenstein apaixonou-se por filosofia da matemática, tendo descoberto por conta própria a obra de Gottlob Frege. Ele procurou Frege em Jena, que lhe recomendou ir para Cambridge estudar com Bertand Russell. Em Cambridge ele se tornou amigo de Russell, que logo o reconheceu como um gênio filosófico. Wittgenstein era homossexual e parece ter tido certo grau de autismo,[1] o que não é raro entre intelectuais. Juntando a isso a imensa ambição com que foi educado dá para se entender porque ele fosse uma pessoa atormentada, que viveu acompanhada pela ideia de suicídio.

   Russell se recorda que Wittgenstein vinha visitá-lo tarde da noite e ficava andando de um lado para outro sem falar uma palavra. Russell tinha receio que se o mandasse embora ele se suicidasse. Uma vez perguntou: “Em que você está pensando? Em filosofia ou em seus pecados?” A resposta foi: “Provavelmente em ambos”. Outra recordação de Russell é a de tê-lo convencido a assistir uma corrida de botes em Cambridge. Ele foi, mas voltou furioso, justificando seu estado de espírito com a observação de que todo tempo que não é gasto lendo obras geniais ou escrevendo obras geniais é tempo perdido!

   Wittgenstein se distinguiu da maioria dos filósofos acadêmicos por ter mantido um pé dentro da instituição universitária, que pessoalmente desprezava, e outro fora dela. Após ter estudado com Russell ele se alistou no exército austríaco para lutar na Primeira Guerra Mundial. Não tinha boas razões para fazer isso, pois a guerra era iníqua, ele estava na Inglaterra e era judeu. Acredito que ele queria viver situações extremas. Vendo que os oficiais receavam lhe enviar para a frente da batalha na primeira semana, ele os procurou dizendo que se suicidaria se não o enviassem de pronto para uma posição arriscada. Eles o enviaram para um posto de observação avançado à noite, quando o bombardeio era mais intenso. Ele quase morreu sim, mas de medo, por sorte voltando sem um arranhão sequer. Mais tarde, em uma das piores batalhas na fronte russo, a imensa maioria dos soldados foram mortos, mas outra vez ele saiu ileso. Teve sorte. Como mais tarde comentou: “Onde quer que estejas, você precisará sempre de um anjo bom”. Nas trincheiras escreveu o livro que resume a sua primeira filosofia: o Tractatus Logico-Philosophicus, publicado em 1922.

   Após o Tractatus, tendo esgotado o que tinha de importante a dizer, ele decidiu ir viver a vida simples das pessoas comuns. Empregou-se por algum tempo como aprendiz de jardineiro. Tentou entrar para um mosteiro, mas foi rejeitado por falta de vocação. Buscava a pureza. Acabou decidindo ser mestre-escola em vilarejos pobres no interior da Áustria. Trabalhou nessa profissão por sete anos. Mas em geral os camponeses não gostavam dele, pois era demasiado severo com os alunos. Na época os professores batiam nos meninos, mas poupavam as meninas. Wittgenstein era mais democrático: ele batia em todos, sem distinção. Ajudava os bons alunos, mas era o terror dos que tinham pouco rendimento. Uma das alunas mais tarde se recordou de que certa manhã, irritada com as reprimendas de Wittgenstein, resolveu não responder às perguntas. Ele a puxou pelos cabelos. Ela continuou quieta. Ele fez isso outra vez. Ela não respondeu. Ele a olhou de modo inquisitivo. Disse-lhe para ir com ele à sala ao lado, sentando-a em uma cama. Ele então lhe perguntou: “você não está passando bem? Está com dor de cabeça?” Ela mentiu dizendo que sim. Ele então se ajoelhou-se diante dela, pois as mãos em prece, e rogou: “Me perdoa!” Essa estória demonstra uma má leitura do que se possa passar nas mentes das outras pessoas junto a um inocente e radical senso de retidão moral – ambos sintomas de autismo.

   No sétimo ano ocorreu o incidente. Ele deu um tapa na orelha de um garoto que desmaiou. Wittgenstein assustou-se. Ao sair da escola deu de encontro com um camponês que lhe disse que uma pessoa como ele serviria mais para ser domador de ursos do que mestre-escola e que iria chamar a polícia. Como não havia policiais na aldeia de Trattenbach naquele dia, nada aconteceu. Mas Wittgenstein teve de fugir a pé para Viena durante a noite e, meses mais tarde, teve de mentir em um processo, o que feria profundamente seu amor próprio. Voltando para a casa de sua família em Viena ele recebeu em 1929 visitas dos positivistas lógicos de Viena, que queriam que ele lhes explicasse o Tractatus. Isso o fez interessar-se de novo pela filosofia. Acabou retornando para Cambridge, onde passou a ministrar seminários semanais nos quais expunha suas reflexões aos estudantes. O resultado foi uma filosofia inteiramente nova.

   A filosofia desenvolvida a partir daí foi bastante diferente daquela que apareceu no Tractatus. Ambas tinham como objetivo estabelecer os limites da linguagem significativa e dissolver as confusões filosóficas resultantes da transgressão desses limites. A primeira foi inspirada na lógica fregeana, objetivando mostrar como a linguagem poderia ser logicamente analisada de modo a evidenciar as condições mínimas através das quais ela poderia espelhar de forma representacional o mundo. Com isso seriam estabelecidos seus limites lógicos externos, cuja transgressão conduziria a confusões filosóficas. Em sua última filosofia Wittgenstein tinha como inspiração as estruturas conceptuais presentes no interior linguagem natural, que ele pretendia decompor. Nessa filosofia, cujas ideias centrais encontram-se condensadas no livro intitulado Investigações filosóficas, ele buscou mostrar como limites internos da linguagem, quando transpostos, também conduzem a confusões filosóficas. Para bem compreendê-la é preciso escavar nas quase de dez mil páginas por ele escritas desde 1929 e que só permitiu que fossem publicadas após sua morte. Wittgenstein morreu de câncer em 1953, aos 62 anos. Até dois dias antes de sua morte ele trabalhou intensamente em um manuscrito profundamente original mais tarde publicado sob o nome de Sobre a certeza (Über Gewissheit).

 

1

 

Quero começar com um rápido exame da filosofia do primeiro Wittgenstein, tal como exposta no Tractatus. No capítulo sobre Aristóteles notamos que no desenvolvimento dos fundamentos de sua metafisica ele foi guiado pela estrutura da linguagem. As frases factuais mais simples de nossa linguagem têm a estrutura sujeito-predicado, por exemplo: “Sócrates é um homem”. Partindo do suposto de que a linguagem espelha o mundo, Aristóteles concluiu que os dois elementos fundamentais de toda a realidade são a referência do sujeito – a substância (Sócrates) – e a referência do predicado – seu atributo (ser um homem).

   Wittgenstein, acompanhado por Bertrand Russell, seguiu um caminho semelhante. Mas com uma diferença. A análise da linguagem feita por Aristóteles seguia a lógica aristotélica, enquanto a análise da linguagem feita por Wittgenstein e Russell seguiu a lógica fregeana. No final do século XIX Gottlob Frege, um filósofo de formação matemática, produziu uma inaudita revolução na lógica tradicional, tornando aquilo que havia sido iniciado por Aristóteles um instrumento imensamente mais poderoso e extenso. A nova análise da linguagem permitia mostrar que a lógica de nossos enunciados pode diferir grandemente de sua estrutura gramatical e que filósofos no passado foram confundidos, acreditando que a estrutura gramatical é a mesma que a estrutura lógica.

   Um exemplo de disparidade entre a estrutura gramatical e a estrutura lógica evidenciada pela lógica quantificada de Frege foi apresentado por Russell em sua teoria das descrições. Considere a sentença (i) “O atual rei da França é calvo”. Do ponto de vista gramatical essa frase tem a mesma forma de (ii) “Sócrates é um homem”, ou seja: a forma de uma frase do tipo sujeito-predicado. Um metafísico como Alex Meinong sugeriu que em casos como esse, para que a predicação seja possível, é preciso que o referente do sujeito subsista, mesmo que ele não exista. Mas isso tem o inconveniente de nos forçar a superpovoar o universo com uma quantidade inumerável de entidades subsistentes. Insatisfeito com essa ideia Russell sugeriu, com base na lógica fregeana, que a sentença (i) possui uma estrutura lógica completamente diferente de sua estrutura gramatical.[2] Trata-se de uma sentença a ser analisada como a conjunção de três sentenças:

 

1.    Existe ao menos um atual rei da França e

2.    existe no máximo um atual rei da França e

3.    ele é calvo.

 

Aqui o nome vazio ‘o atual rei da França’ desaparece da posição de sujeito, dando lugar a predicações quantificadas. Como a primeira sentença é falsa, a conjunção de 1, 2 e 3 se torna falsa, disso resultando que a frase “O atual rei da França é calvo” é falsa. A diferença entre os enunciados (i) e (ii) fica mais clara quando os expomos formalmente. Chamando o predicado ‘...atual rei da França’ de F e ‘...é calvo’ de C, a expressão ‘existe ao menos um...’ de , a conjunção das três sentenças pode ser formalizada como a conjunção de (1) (x) (xFx), (2) (y) (Fy y = x) e (3) Cx, ou seja, a sentença (i) fica sendo:

 

(x) (xFx & (y) (Fy y = x) & Cx)

 

Em contraste com isso, a estrutura lógica da primeira sentença é muito mais simples. Chamando Sócrates de ‘s’ e chamando o predicado ‘... é um homem’ de ‘H’, a formalização fica sendo:

 

Hs

 

Para Russell foi a assimilação da estrutura lógica complexa na estrutura gramatical do tipo sujeito-predicado que levou filósofos como Meinong à confusão metafísica que gerou a teoria segundo a qual aquilo que não existe precisa ao menos subsistir.

   No Tractatus Wittgenstein foi profundamente influenciado pela descoberta de Russell de que estrutura lógica e estrutura gramatical podem ser muito diversas. Seu pressuposto básico é o de que a nossa linguagem corrente, quando completamente analisada em seus constituintes lógico-metafísicos, é algo que deve se demonstrar profundamente diferente e supostamente muito mais complexo do que sua estrutura gramatical de superfície parece evidenciar. Como ele escreve:

 

A linguagem corrente é parte do organismo humano e não menos complicada do que ele. Dela é humanamente impossível extrair imediatamente a lógica da linguagem. A linguagem disfarça o pensamento a tal ponto que da forma externa de sua roupagem não somos capazes de inferir a forma subjacente do pensamento, já que a forma externa da roupagem serve a fins inteiramente diferentes dos de revelar a forma do corpo.[3]

 

A tese é a de que as frases (Sätze)[4] factuais da linguagem corrente, a ser entendida como a linguagem factual da ciência, devem ser entendidas como funções de verdade de frases elementares, que são as frases da linguagem completamente analisada. A noção fregeana de função de verdade é aqui fundamental. Para Frege a verdade das frases compostas factuais é dependente das verdades das frases factuais simples que a compõem. Considere, por exemplo, a frase disjuntiva: “Ou chove ou faz calor”. Ela é composta pela disjunção das frases “Está chovendo” e “Faz calor”. Para a lógica do conectivo ‘ou’ (da disjunção) basta que uma delas seja verdadeira para que a frase composta seja verdadeira. Somente se ambas as frases forem falsas e não estiver nem chovendo e nem fazendo calor, a frase composta “Está chovendo ou faz calor” será falsa. Isso quer dizer que o valor-verdade dessa frase composta é função de verdade dos valores-verdade de suas frases componentes: ele resulta de uma certa combinação lógica do valor-verdade de cada uma delas. Outras frases factuais compostas pelos conectivos lógicos com ‘e’, ‘não’, ‘se... então’ e ‘se e somente se’ também são funções de verdade de suas frases componentes, cada qual ao seu modo. A hipótese especulativa do Tractatus é a de que as frases de nossa linguagem, quando completamente analisadas, expressam o que ele chamou de pensamento (Gedanke), que Wittgenstein supunha ser alguma espécie de evento mental.

   As frases totalmente analisadas, de maneira a corresponder perfeitamente ao que pensamos através delas – a linguagem sem suas roupagens comunicacionais – seriam formadas pelo que Wittgenstein chamou de frases elementares (Elementarsätze). Ele sugeriu que tais frases elementares fossem constituídas de concatenações de nomes (Namen), os quais se referem diretamente aos objetos simples no mundo (Gegenstände). Esses objetos precisam ser simples, caso contrário a análise precisaria ser continuada. Assim, o nome ‘Escalibur’ na frase “Escalibur tem uma lâmina afiada” não pode ser um nome no sentido em questão, uma vez que aquela espada é um objeto que tem partes. Por serem simples os objetos são também imutáveis e indestrutíveis: eles formam a substância do mundo.[5] Uma característica desses nomes é que eles necessariamente se referem aos seus objetos simples. Os objetos simples, por sua vez, são concatenados uns aos outros em cadeias de modo a formar fatos atômicos que ele chamou de estados de coisas (Sachverhalten) no mundo, cujos objetos se encontram em correspondência biunívoca com os nomes que constituem as frases elementares que representam esses estados de coisas. Os estados de coisas no mundo, por sua vez, se combinam entre si formando os fatos (Tatsachen), os quais correspondem às frases que os representam em nossa linguagem corrente. O mundo nada mais é do que a totalidade dos estados de coisa combinados ou fatos; e a linguagem é a totalidade das frases verdadeiras. A linguagem torna-se dessa maneira capaz de espelhar o mundo em correlações que podem ser resumidas no seguinte diagrama:

 

LINGUAGEM:                                     MUNDO:

Frases da linguagem factual..................fatos empíricos

Frases elementares.................................estados de coisas

Nomes....................................................objetos simples

 

Essa teoria especulativa de como as frases de nossa linguagem poderiam ser analisadas como funções de verdade de frases elementares expressando pensamentos não é tudo. Wittgenstein adicionou a ela uma teoria da representação, mostrando como as frases elementares podem ser capazes de representar os estados de coisas. Trata-se de sua famosa teoria pictorial ou, como prefiro dizer, teoria da figuração (Bildtheorie).[6] Wittgenstein teve essa ideia em Paris, quando observou a maneira como um acidente de tráfico era representado em uma corte de justiça. Os carros e as pessoas eram representados por miniaturas e bonecos que eram postados em uma situação correspondente à situação na qual os objetos reais teriam se encontrado. Ora, para ele a mesma coisa deve acontecer com as frases elementares da linguagem e os estados de coisa por elas representados. Só que de maneira abstrata.

   Antes de explicar como funciona a figuração é preciso introduzir um outro insight extraordinário de Wittgenstein, segundo o qual para existir representação (ou figuração) é preciso que exista algo em comum entre aquilo que representa e aquilo que é representado. Considere, por exemplo, o caso da escultura de um busto humano. O elemento comum que se destaca entre aquilo que representa e aquilo que é representado é o espaço tridimensional. Em uma pintura naturalista e em uma fotografia o elemento bidimensional do espaço é mantido. Considere agora o caso de uma peça musical. O que há de comum entre a música, tal como foi uma vez criada pelo seu compositor, e sua apresentação posterior, é que tanto a afiguração quanto o afigurado precisam se dar no curso do tempo. Mas o que dizer de uma frase verdadeira de nossa linguagem? O que há de comum entre ela e aquilo que ela representa? Certamente, nenhum meio espaço-temporal. Wittgenstein sugeriu que aquilo que precisa existir em comum entre uma frase elementar de nossa linguagem e o estado de coisas por ela representado é a estrutura ou forma lógica. Para ele, o pensamento expresso pela frase elementar é a figuração lógica de um estado de coisas.[7]

   Como Wittgenstein não fornece no Tractatus exemplo algum de frase elementar, quero lançar mão aqui de dois exemplos meramente ilustrativos (posto que não são de frases elementares) aos quais podemos aplicar a ideia de figuração, cuja importância independe de seu papel na metafísica do Tractatus. Suponha que em contextos demonstrativos sejam proferidas as frases:

 

(i)             O carro é amarelo.

(ii)           O gato come a ração.

 

Suponha também que esses proferimentos sejam verdadeiros para os fatos em questão. Nas próprias frases não somos capazes de ler nada espaço-temporalmente comum entre as frases (i) e (ii) e os respectivos fatos de o carro ser amarelo e do gato estar comendo a ração. Mas se considerarmos a questão com maior cuidado veremos que há algo em comum entre essas representações simbólicas e aquilo que elas representam, que é uma mesma estrutura ou forma lógica, sendo isso que as torna representações de fatos. Suponha que decidimos representar formalmente a frase (i) como Mc, em que a designa o carro c’ e M designa o ser amarelo M’. Suponha também que (ii) é representada como aCb, em que a designa o gato a’, C designa o estar comendo C’ e b designa a ração b’. Vemos que as relações abstratas Mc e aCb tem respectivamente as mesmas estruturas que os fatos de que o carro c’ é amarelo M’ e de que certo gato a’ se encontra na relação de estar comendo C’ uma certa ração b’.[8] (Note-se que uma relação de identidade de forma ou estrutura lógica é também pré-condição para as representações musical e imagética consideradas anteriormente). A conclusão de Wittgenstein é que a identidade entre a estrutura ou forma lógica daquilo que representa com aquilo que é representado é a condição última necessária a qualquer relação afigurante, sem o que não é possível existir nenhuma representação.

   Aplicando as ideias acima à frase elementar Wittgenstein sugeriu que a figuração depende das duas condições seguintes:

 

A relação afigurante consiste na correlação dos elementos da figuração com as coisas.[9]

O fato de que os elementos da figuração estão relacionados uns aos outros de determinada maneira representa que as coisas estão relacionadas umas às outras da mesma maneira.[10]

 

Ou seja: em frases elementares verdadeiras deve haver (i) uma direta correlação de um para um (biunívoca) entre os nomes e seus objetos. Além disso, (ii) esses nomes devem estar relacionados entre si do mesmo modo que os objetos por eles representados estão relacionados entre si.

   Além disso, as relações entre os nomes da frase elementar (associados uns aos outros de determinado modo) e os correspondentes objetos (associados uns aos outros do mesmo modo) são para Wittgenstein imediatas:

 

As correlações são, por assim dizer, como antenas dos elementos da figuração, com as quais a figuração toca a realidade.[11]

Um nome está para uma coisa, o outro está para outra coisa e eles estão combinados uns com os outros. Dessa maneira todo o grupo – como um tableau vivant – apresenta um estado de coisas.[12]

 

O que essas considerações sugerem é uma versão mais sofisticada da teoria correspondencial da verdade, na qual a correspondência é entendida como um isomorfismo estrutural entre a figuração e o estado de coisas.[13] Uma frase elementar é verdadeira quando seus nomes estão concatenados do mesmo modo pelo qual os objetos simples estão concatenados, o mesmo valendo para as frases não-elementares verdadeiras. E uma frase elementar é falsa quando seus nomes estão concatenados de uma maneira que é diferente da maneira pela qual os objetos simples estão concatenados, o mesmo valendo para as frases não-elementares falsas.

   Voltando aos nossos exemplos ilustrativos, a frase Mc (“O carro é amarelo”) é verdadeira quando M’c’ é um fato, e a frase aCb (“O gato come a ração”) é verdadeira quando a’C’b’ é um fato. O isomorfismo estrutural das frases verdadeiras com os fatos por elas representados fica aqui claramente mostrado. As frases são verdadeiras quando, em cada caso, cada elemento da figuração se encontra biunivocamente relacionado ao elemento do fato, enquanto os elementos da figuração estão dispostos entre si do mesmo modo que os elementos correspondentes nos fatos estão dispostos entre si. Certamente, essas mesmas frases são falsas quando isso não acontece, por exemplo, quando os estados de coisas reais são, digamos, o de que o carro é verde e que por isso ele não é amarelo, ou que o gato rejeita a ração e que por isso ele não a come. As frases verdadeiras nesses últimos casos terão (i) a forma ~Mc (dado que, simbolizando verde por V, “Vc & (Vc ~Ac), logo ~Mc”), e (ii) a forma ~aCb (dado que, simbolizando por R a recusa,  “aRb & (aRb ~aCb), logo ~aCb”).

   Junto a essa teoria da verdade como correspondência o Tractatus contém uma teoria referencialista do significado. O significado de um nome é tão somente o objeto simples ao qual ele se refere: “Um nome significa um objeto; o objeto é o seu significado”.[14] Quanto à questão de se saber qual é o sentido (ou significado) da frase elementar, Wittgenstein escreveu:

 

Uma frase mostra o seu sentido. Uma frase mostra como as coisas são se ela é verdadeira. E diz que elas são assim.[15]

Ao invés de “essa frase tem tal e tal sentido” nós podemos simplesmente dizer “essa proposição representa tal e tal situação”.[16]

 

À primeira vista pode parecer que ele entende o sentido ou significado da frase como sendo o estado de coisas realmente obtido no mundo. Mas isso deixaria de fora as frases falsas, que não se referem a estados de coisas reais. Por isso o sentido ou significado da frase deve ser entendido como o possível estado de coisas por ela representado.[17]

 

2

 

Com a teoria da figuração Wittgenstein pretendeu explicar como a linguagem da ciência empírica é possível. Mas o que dizer da linguagem do próprio Tractatus? Para ele a teoria da figuração não poderia ser aplicada à própria teoria da figuração. Filosofia, lógica, matemática, ética, estética, o significado da vida e a religião não possuem linguagem propriamente factual, ficando excluídas de sua teoria. O que dizer de seu significado?

   A resposta está na assim chamada mística do Tractatus. Wittgenstein introduziu aqui uma distinção essencial entre o dizer (sagen) e o mostrar (zeigen). A linguagem factual da ciência empírica explicada pela teoria da figuração é a única capaz de nos dizer como as coisas são. Outras linguagens são capazes apenas de mostrar. As frases da lógica, por exemplo, são as que são sempre verdadeiras, as chamadas de tautologias, ou as que são sempre falsas, as contradições. A frase tautológica “p v ~p” pertence a lógica, sendo sempre verdadeira.  instanciada em “Está chovendo ou não está chovendo”. Ela é sempre verdadeira, do mesmo modo que a frase contraditória da forma “p & ~p” é sempre falsa. Tautologias e contradições são frases degeneradas, incapazes de nos dizer algo sobre o mundo. Elas não nos dizem nada, mas mostram algo, qual seja, verdades e contradições lógicas. O mesmo acontece com a forma ou estrutura lógica. Não somos capazes de dizer o que a forma lógica é, mas apenas de mostrá-la através de exemplos. E a razão disso é que a forma lógica é algo comum tanto à linguagem quanto ao mundo. Por sua própria ubiquidade ela se encontra além de qualquer possibilidade de figuração através da linguagem. O mesmo vale, segundo Wittgenstein, para a teoria desenvolvida no Tractatus. Ao falarmos de como a linguagem factual é capaz de dizer algo sobre o mundo precisamos ir além dela, penetrando no domínio do que pode ser apenas mostrado. Para ele o Tractatus é apenas um meio pelo qual encontramos maior clareza na compreensão de nossa representação linguística do mundo empírico. Como ele escreveu:

 

Minhas frases esclarecem na medida em que aquele que me compreende no final as reconhece como sem significado, quando ele as tiver superado. (Ele precisa, por assim dizer, lançar a escada fora após ter subido por ela.) Ele precisa superar essas frases para então ver o mundo corretamente.[18]

O que não pode ser dito deve ser calado.[19]

 

Aqui a diferença é mais entre o que ele considera sem sentido (sinnlos) e o absurdo (unsinnig). A filosofia do Tractatus é destituída de sentido factual por não poder ser abrangida pela teoria da figuração, uma vez que ela a expõe. Ela nada nos diz sobre como o mundo é. Mas nem por isso ela é absurda, dado que ela serve para alguma coisa.

  Quanto à filosofia tradicional, a posição de Wittgenstein seria dupla. Uma teoria como a de Meinong, resultante de falta de clareza lógica, seria por ele considerada absurda (unsinnig). Mas ele não faria o mesmo juízo de um metafísico como Shopenhauer, que lhe causou grande impressão. Para ele as frases desse filósofo não deveriam ser tomadas literalmente, posto que elas não são capazes de dizer nada de propriamente verdadeiro sobre o mundo empírico. Mas elas são expressivas, elas nos dispõem a tomar certas atitudes, elas mostram algo acerca do mundo e de nós mesmos, algo que vai além daquilo que a linguagem factual é capaz de dizer. Para Wittgenstein o mesmo pode ser dito de nossos julgamentos morais e das frases da estética e da religião.

   Podemos nos perguntar se com sua mística Wittgenstein não tentou abranger uma gama excessivamente grande de coisas através de uma única distinção, ela própria questionável. Rudolf Carnap se queixou de que Wittgenstein teria sido inconsistente ao dizer-nos que não podemos dizer frases filosóficas e então, ao invés de ficar em silêncio, escrever todo um livro de filosofia.[20] E seu amigo Frank Ramsey escreveu que “o que não pode ser dito não pode ser dito e não pode ser sequer assoviado”.[21]

   Também é possível entender a teoria exposta no Tractatus como uma metalinguagem. Sua teoria da relação afigurante entre a linguagem factual e o mundo poderia ser vista como uma teoria metalinguística, sujeita a exigências similares às da teoria da relação afigurante, só que agora aplicando-se à relação entre ela própria e a linguagem factual. Além disso, por que aCb não pode afigurar de modo metalinguístico a forma lógica de “O gato come a ração”? E por que a ideia de figuração não pode ser aplicada não só à lógica, mas também à matemática e mesmo a outros domínios não primariamente factuais do conhecimento?

   Finalmente, que julgamento podemos fazer sobre o Tractatus? A melhor maneira de se avaliá-lo me parece ser considerá-lo como um esplêndido texto de metafísica especulativa, tal como foi, digamos, a Monadologia de Leibniz. Ele apresenta um mundo logicamente possível que não é certamente o nosso, pois em nosso mundo objetos simples e estados de coisas elementares não existem. Mesmo assim, a concepção é grandiosa e há insights importantes que podem ser em princípio adaptados para aplicação ao nosso mundo. Afinal, sem a ideia de figuração não temos como conceber nossa capacidade de representar.

 

3

 

A última filosofia de Wittgenstein foi caracterizada pela sua atenção aos usos ordinários da linguagem, certamente influenciada pelos anos em que viveu como mestre-escola. A hipótese fundamental do Tractatus, segundo a qual nossas frases da linguagem corrente são sempre analisáveis como funções de verdade de frases primitivas de estrutura completamente diversa foi abandonada. Por isso, em sua última filosofia ele não concebeu mais a linguagem ordinária como demandando análise lógica, mas decomposição em componentes, também eles pertencentes a ela: “a filosofia deixa tudo como está”.[22]

   Uma mudança radical foi feita em sua teoria do significado. No Tractatus ele defendeu uma forma de referencialismo semântico na qual o significado do nome seria a sua referência. Problemas com o referencialismo na linguagem corrente saltam à vista: afinal, se roubam a minha carteira, não roubam o significado da expressão “minha carteira”; se a pessoa de nome NN morre, não morre com ela o significado de NN; as expressões nominais ‘Napoleão’ e ‘o homem do destino’ tem sentidos diferentes, embora se refiram à mesma pessoa; e nomes sem referência como ‘Eldorado’ e ‘Vulcano’ nem por isso deixam de ter significado. Mesmo quando os termos são aprendidos em situações indexicais a concepção referencialista não é bem sucedida. Imagine, para exemplificar, que o significado do termo ‘vermelhão da China’ seja aprendido através de um exemplo, digamos, um modelo da cor que é apresentado. Seria o modelo seu significado? Obviamente não. Esse modelo é memorizado, de modo que a pessoa consegue reconhecer a cor quando apresentada a ela. Mesmo assim, o significado do termo não é o modelo, mas o elo semântico entre a palavra e a coisa, o qual deve ser alguma regra que associa a palavra ao modelo e seus similares. O mais perto que chegamos de admitir uma teoria referencialista do significado é aceitar que em casos como esse o contato com a propriedade que permite a formação da regra semântica é imprescindível (um cego não poderá saber o significado fenomenal de ‘vermelhão da China’).

   Rejeitando o referencialismo Wittgenstein acabou por chegar à conclusão de que o significado de uma palavra deve consistir princialmente em seu uso,[23] melhor dizendo, em seu modo de uso. Isso fica bem explícito em uma de suas últimas observações sobre a questão:

 

O significado de uma palavra é o seu modo de aplicação (Art der Verwendung)... Assim, há uma correspondência entre os conceitos de ‘sentido’ e ‘regra’.[24]

 

Ou seja: o uso aqui é o modo de uso, ou seja, o uso correto, o que conduz às regras que determinam o uso episódico da palavra. Por conseguinte, o conceito de significado deve corresponder ao conceito de regra. Em meu juízo podemos até mesmo dar um passo além do que ele escreveu, admitindo que um significado de uma expressão (palavra, frase) possa ser reduzido às regras ou (como veremos) combinações de regras com base nas quais com ela realizamos certos usos episódicos.

   Wittgenstein também percebeu que o uso de uma expressão se dá sempre em um contexto que estabelece as regras de sua aplicação. Isso é importante porque muitas vezes alterando-se o contexto teremos de aplicar regras diferentes disso resultando nuances de significado diferentes. Ele decidiu dar a esse contexto de uso da expressão o nome de jogo de linguagem (Sprachspiel) ou prática linguística (Praktik) ou mesmo região da linguagem (sprachliche Region) ou sublinguagem (Sprache).

   Nas Investigações filosóficas ele apresentou uma lista de jogos de linguagem:

 

Comandar, e agir segundo comandos / Descrever um objeto conforme aparências ou conforme medidas / Desenhar um objeto segundo uma descrição / Relatar um acontecimento / Conjecturar sobre o acontecimento / Expor uma hipótese e prová-la / Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas / Inventar uma história, ler / Representar teatro / Cantar uma cantiga de roda / Resolver enigmas / Fazer uma anedota, contar / Resolver um exemplo de cálculo aplicado / Traduzir de uma língua para outra / Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar.[25]

 

Para ele a nossa linguagem é constituída por um número ilimitado de diferentes de jogos de linguagem ou práticas.

   Para esclarecermos o que é um jogo de linguagem podemos lançar mão da distinção semiótica entre regras sintáticas, semânticas e pragmáticas.[26] Uma linguagem é um sistema de regras. Suas regras são sintáticas quando estabelecem relações entre os signos, por exemplo, a ligação entre o termo geral e o termo singular em uma frase predicativa, ou a relação de conjunção entre duas frases. As regras semânticas são as que relacionam a linguagem com os objetos por ela referidos. Por exemplo, a regra que relaciona um nome com o seu referente, uma frase com o fato por ela referido. Há, por fim, a dimensão pragmática, a exemplo das regras que estabelecem o tipo de relação entre o falante e ouvinte (as forças ilocucionárias) como as de dar uma ordem, fazer um pedido, uma pergunta, uma promessa, etc.

   Considerando os inúmeros exemplos de jogos de linguagem apresentados por Wittgenstein, podemos seguramente caracterizá-los como sistemas de regras sintáticas, semânticas e pragmáticas. Mesmo que nem todos os jogos de linguagem precisem ter a conjunção dessas três espécies de regras, a presença dessa conjunção é aquilo que mais os tipifica. Isso fica claro nos jogos de linguagem mais simples exemplificados por ele, como o do pedreiro e seu ajudante:[27]

 

Um pedreiro diz ao seu ajudante: “Traga aquela tábua!” O ajudante lhe traz a tábua indicada. Pouco depois o pedreiro lhe diz: “Traga dois tijolos!” O ajudante lhe traz os dois tijolos.

 

Na segunda frase há uma regra sintática ligando as palavras ‘tijolo’ e ‘dois’. Nesses proferimentos há regras semânticas ligando as palavras ‘tábua’ ao objeto apontado e ‘tijolo’ ao tipo de objeto referido. Finalmente, há pelo menos uma regra pragmática (ilocucionária): o pedreiro está dando ordens ao seu ajudante, que deve lhe trazer os objetos referidos. Jogos de linguagem ou práticas linguísticas podem nos escritos de Wittgenstein variar imensamente, mas é de se esperar que eles possuam esses três tipos de regras.[28]

   Para Wittgenstein a linguagem pode ser decomposta das mais diversas maneiras em um número indeterminado de jogos de linguagem. No Livro Marrom ele comparou a linguagem com uma nebulosa e nas Investigações ele a comparou com uma grande cidade antiga. Vale a pena citar:

 

A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem natural, rodeada por mais ou menos definidos jogos de linguagem, que são as linguagens técnicas.[29]

Nossa linguagem pode ser vista como uma velha cidade: um novelo de pequenas ruas e pracinhas, velhas e novas casas e casas com construções de diversos tempos; e isso tendo como contorno uma porção de novos bairros com ruas retas e regradas e com casas idênticas.[30]

 

Para Wittgenstein nós somos capazes de dividir a linguagem natural de múltiplas e variadas maneiras em jogos de linguagens.[31] De modo similar podemos dividir uma cidade em bairros (as “regiões da linguagem”) ou, digamos, em zonas, que podem incluir uma variedade de bairros. Podemos ter um condomínio de casas ou grupos de casas ou simplesmente casas, que podem se dividir em recintos, mas também em salas, quartos, etc. Importante é que sejamos capazes de reconhecer algo como pertencente a uma certa maneira de se dividir a linguagem nas práticas semióticas chamadas de jogos de linguagem. É importante notar que essa divisão em jogos de linguagem é muito mais variada e flexível do que as distinções dos tipos de interações linguísticas mais tarde investigadas por filósofos como J. L. Austin, John Searle e mesmo Jürgen Habermas. Como veremos, elas serão instrumentalmente úteis ao aspecto terapêutico da filosofia de Wittgenstein.

   Além de uso, regra e jogo de linguagem, um último conceito fundamental é o de forma de vida (Lebensform), que para Wittgenstein é “o dado”, aquilo que é aceito como mais fundamental e que poderíamos tentar caracterizar como o complexo de atividades (linguísticas e não-linguísticas) caracterizador da vida das pessoas em um meio social específico. Para ele é a forma de vida que provê os fundamentos últimos do significado. Segundo consta, a noção de forma de vida teria sido inspirada pela leitura que Wittgenstein fez de um artigo do antropólogo Bronislaw Malinowski defendendo que só somos capazes de compreender a linguagem de um povo primitivo se participarmos da maneira como eles vivem. Em um exemplo: nós só compreendemos o significado da expressão ‘remamos em um lugar’ usada pelos nativos das ilhas Trobiand se soubermos que as águas ao redor daquelas ilhas são muito profundas, não permitindo varar a canoa, o que exige que se reme até chegar a alguma vila, aqui chamada de ‘lugar’.[32] Uma das melhores qualidades de Wittgenstein como filósofo era saber ver as implicações de uma boa ideia.

   O conceito de forma de vida é importante porque os usos de nossas expressões produzidos pelas regras constitutivas dos jogos de linguagem nos quais eles ocorrem só chegam a fazer sentido por estarem enraizados no interior de uma forma de vida. É por não se encontrar devidamente enraizado em uma forma de vida biológica que o uso de uma palavra por um computador, por exemplo, jamais poderá adquirir significado, a menos que seja interpretado por nós mesmos.

   Com tudo o que dissemos acima podemos agora arriscar uma definição reconstrutiva do significado no último Wittgenstein:

 

(I)             Um significado de uma expressão W (Df.) = um modo de uso de W estabelecido por regras ou combinações de regras de um jogo de linguagem enraizado em uma forma de vida.

 

Note que identifico aqui o significado não somente com regra, mas também como combinação de regras. A expressão “dois tijolos” nos faz combinar regras. Wittgenstein brincou com a ideia de combinação de regras ao aproximar o significado de um cálculo; afinal, o significado de uma conta em aritmética parece residir no cálculo que produz sua solução.[33] A mim parece que a definição (I) proporciona o que nas palavras de Wittgenstein poderia ser chamado de uma “representação panorâmica da gramática do conceito de significado.”[34]

  Podemos nos perguntar agora para que serve essa maneira de se entender o significado voltada para a aplicação cotidiana de nossas expressões? Ora, ela serve como um artifício pelo qual somos capazes de identificar as nuances corretas nos usos de nossas palavras e assim refutar as transgressões sutis dos limites internos da linguagem que são comuns à filosofia praticada como metafísica. Com efeito, Wittgenstein entendeu a filosofia como sendo de dois tipos intrinsecamente e mesmo dialeticamente associados um com o outro. Eles são o que poderíamos chamar de filosofia como metafísica, e a filosofia como terapia ou crítica da linguagem. De acordo com ele, no curso de nossas reflexões filosóficas somos inevitavelmente levados a produzir confusões metafísicas em nossos usos das palavras e frases, precisando em um segundo momento corrigir esses usos equívocos através de terapias linguísticas. A maneira como isso acontece é quando confundimos o uso de uma palavra em um jogo de linguagem com o seu uso em um outro jogo. Uma mesma expressão pode ser usada em diferentes jogos de linguagem. Há aqui duas possibilidades. A primeira é o que podemos chamar de uso equívoco de uma expressão: quando a usamos no jogo de linguagem (ou contexto) B segundo as regras que ela tem quando usada no jogo de linguagem (contexto) A. A segunda possibilidade de confusão é o que podemos chamar de uso hipostasiado da expressão, que ocorre quando usamos a expressão de modo confuso, tentando sustentar as regras de seu uso em diferentes jogos de linguagem (contextos) ao mesmo tempo, como se isso acontecesse em um mesmo jogo (contexto).[35]

   Quando esse tipo de coisa acontece nós caímos em um equívoco linguístico comum em filosofia. E aqui deve entrar em cena a filosofia terapêutica, que tem por função “trazer as palavras de suas férias metafísicas de volta para o seu labor ordinário.”[36] Por exemplo: Platão dizia que a tênue realidade do mundo visível depende de seu espelhamento do único mundo real, que é o mundo inteligível das ideias eternas e imutáveis. Mas aqui ele está usando a palavra ‘realidade’ em um sentido metafísico equivocado, cabendo ao crítico da linguagem demonstrar isso ao expor a maneira como a palavra ‘realidade’ é realmente usada nos jogos de linguagem constitutivos de nossa forma de vida. A crítica da linguagem pode ser também aplicada ao empirismo inglês: foi por ter ignorado que que a gramática de nossa linguagem proíbe falarmos da percepção de nossas ideias (sense-data) que Locke preparou o caminho para o idealismo de Berkeley e o ceticismo de Hume.

   A importância do pensamento de Wittgenstein está em ter mostrado o quanto de confusão linguística se encontra incorporado nas assim chamadas “teses” filosóficas. A importância de Nietzsche está em ter trazido à tona importantes motivações enganosas que tem operado por trás de um bom número dessas confusões. E Marx mostrou ainda como as bases econômicas podem ser propícias para a formação de ideologias que suportam motivações enganosas.

   Pode parecer que essa concepção de filosofia seja radicalmente contrária à concepção progressista de filosofia como protociência apresentada no primeiro capítulo desse livro. Mas não é forçoso que seja assim. A filosofia como antecipação da ciência no sentido considerado é uma tentativa de dizer algo sobre aquilo que não temos condições de saber, o que se encontra inevitavelmente entremeado com confusões linguísticas. Quando essas confusões são profundas, elas são como cruzes que indicam caminhos a serem ou mesmo a não serem seguidos. Desfazer as confusões pode nos levar adiante, seja por mostrar que direção poderíamos, seja para nos mostrar qual o caminho a não ser seguido.

 

4

 

Considerando a ênfase no uso como significado pode parecer que o último Wittgenstein tenha rejeitado por completo a concepção pictorial da linguagem do Tractatus e a relação do significado com a representação de estados de coisas. Mas pensar assim pode trair confusão entre mudança de perspectiva com mudança de opinião. O que certamente aconteceu é que ele passou a desenvolver insights que pesavam sobre a pragmática e não mais sobre a sintaxe lógica da linguagem factual. Esse é o caso do que poderia ser chamado de princípio semântico da verificação, proposto por ele em 1929 junto a Friedrich Waismann e repetido nos anos seguintes. Segundo esse princípio: “O sentido de uma frase é seu modo de verificação. O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido.”[37] Ou, tentando expor isso de modo algo mais qualificado:

 

(II)          Um significado factual de uma frase declarativa P (Df.) = uma resultante das possíveis combinações de regras procedurais, através das quais se pode avaliar o valor-verdade de P em jogos de linguagem factuais.

 

Ou seja: aquilo que a sentença declarativa diz, a proposição por ela expressa, o pensamento (Gedanke), seu conteúdo cognitivo, nada mais é do que o modo de verificação, que geralmente é algo múltiplo, variando com o domínio da linguagem.[38] Para dar uma ideia de como ele pensou a questão, considere a seguinte frase: “O Cristo Redentor se localiza em uma montanha no Rio de Janeiro?” Como Wittgenstein traduziria seu significado em termos de modos de verificação? A resposta é: de múltiplas maneiras. Muitos sabem disso só por terem ouvido dizer. Pode ser também que alguém abra um guia turístico encontrando lá uma foto do Cristo Redentor com informações a respeito. Outra pessoa pode aprender sobre o Cristo lendo sobre a história da cidade. Pode ainda ser que alguém esteja no Rio de Janeiro e outra pessoa lhe aponta para o cristo em um dos morros da cidade pretendendo conduzi-lo até lá. Note-se que todos esses procedimentos de verificação se encontram fundamentados por regras procedurais conhecidas. Por exemplo: se alguém me aponta para algo e me diz um nome, ao apreender a palavra dita como o nome do objeto apontado estou seguindo uma regra. E se justifico que o Cristo Redentor se encontra na cidade do Rio de Janeiro com base em algum texto histórico, estou fundamentando o que digo com base em regras da prática de conferir dados histórico-geográficos. Os diversos procedimentos de verificação estão interligados uns com os outros e possuem pesos semânticos diversos. Saber que o Cristo se encontra no Rio por tê-lo visitado ou lido em um guia turístico sobre o Cristo tem mais peso do que ter ouvido dizer. A tese de Wittgenstein é a de que os diferentes modos de verificação são partes do significado. “Se retirarmos alguns procedimentos,” observou ele, “a frase perde parte de seu significado; e se retirarmos todos os procedimentos a frase deixa de ter qualquer significado.[39]

   Embora a explicação do procedimento verificacional aqui esboçada demande desenvolvimento, ela é, de um ponto de vista metodológico, muito mais adequada do que as tentativas de precisar a verificação feitas pelos filósofos do positivismo lógico. Esses últimos não fizeram mais do que tentar construir uma versão formalista simplista da ideia de Wittgenstein com o objetivo de destruir a metafísica, só para constatar que tal versão era insustentável. Como reação eles refutaram a própria versão, acreditando ter assim refutado a formulação mais rigorosa do que Wittgenstein lhes havia sugerido, o que acabou por se transformar na “sabedoria herdada” segundo a qual o princípio da verificação foi refutado. Sem dúvida ele foi refutado, só que na versão positivista que Wittgenstein sempre rejeitou.

  

5

 

Como vimos, existe em Wittgenstein uma filosofia como metafísica, transgressora das fronteiras da linguagem, e uma filosofia como terapia ou crítica da linguagem, que desfaz essas transgressões. Mas há também uma terceira espécie de filosofia. Trata-se de uma teoria da linguagem e do significado que é pressuposta pelo último Wittgenstein e que foi exposta acima, quando falamos de usos, regras, jogos de linguagem, formas de vida... Trata-se de uma teoria de textura aberta, vaga, orgânica, dinâmica, cuja finalidade é meramente filosófica, mas que acaba sendo indispensável, pois constitui o fundamento justificador da crítica da linguagem. Ela é como que a poção indispensável à eficácia da terapia linguística. Wittgenstein escreveu algo a respeito: “Temos agora uma teoria. Uma teoria dinâmica da frase, da linguagem, mas ela não se nos afigura como teoria.”[40] Nas Investigações filosóficas ele expôs esse ponto de forma particularmente pregnante:

 

Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não possuímos uma visão panorâmica do uso de nossas palavras. Falta caráter panorâmico à nossa gramática. – A representação panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar as articulações intermediárias.

O conceito de representação panorâmica é para nós de importância fundamental. Designa nossa forma de representação, o modo pelo qual vemos as coisas (é isso uma ‘visão do mundo’?)

 

 Em suma: a terapia filosófica de Wittgenstein depende de pressupostos anteriores sobre o funcionamento da linguagem. Esses pressupostos podem ser explicitados em representações panorâmicas que constituem naquilo que pode com razão ser chamado de uma teoria filosófica, oposta à forma científica das teorias. Se a crítica da linguagem não estivesse fundada em assunções teóricas, ainda que implícitas, ela não teria poder de convencimento.[41]

   Com isso voltamos mais uma vez à noção de filosofia como protociência. A representação panorâmica é a filosofia como protociência em Wittgenstein.

 

 

 



[1] Christopher Gillberg: A Guide to Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University Press 2005), cap. 15.

[2] Ver Bertrand Russell “On Denoting”. Mind 14, n. 4, 1905, pp. 479- 493. A teoria de Russell foi desafiada por P. F. Strawson no artigo intitulado “On Referring”. Mind 59, 1950, 320-344.

[3] Tractatus 4.002.

[4] Como Frege, Wittgenstein usa a palavra ‘Satz’, cuja tradução mais literal é ‘frase.’ Em geral a palavra ‘Satz’ é traduzida como ‘proposição’, ‘enunciado’ ou ‘sentença’. Preferi manter a tradução literal sob o suposto de que com a palavra ‘frase’ se entenda aquilo que a sentença está dizendo e não a mera expressão linguística.

[5] Tractatus 2.021.

[6] Outro problema de tradução: a palavra Bild, usada por Wittgenstein, significa literalmente ‘quadro’. Contudo, suas conotações são intraduzíveis. A tradução inglesa ‘picture’ possui deficiências semelhantes. Por isso prefiro traduzir Bildtheorie por ‘teoria da afiguração’, tal como J. A. Giannotti uma vez sugeriu.

[7] Tractatus 3.

[8] Esses exemplos não tem nada a ver com as frases elementares do Tractatus porque nem o carro nem gato nem o comer e nem a ração são objetos simples. Além disso o predicado monádico ‘...é vermelho’ e o predicado relacional ‘...come...’ não são nomes, mas predicados que poderiam ser respectivamente caracterizados como “a cor primária oposta ao verde” e como a “ação de um animal de engolir mastigando.” Mesmo assim serve como ilustração.

[9] Tractatus 2.1514.

[10] Tractatus 2.15.

[11] Tractatus 2.1515.

[12] Tractatus 4.0311.

[13] Ver a interpretação de Erik Stenius: “Die Bildtheorie des Satzes”. Erkenntnis 9, 1975, pp. 35-55. Stenius demonstrou que a teoria da figuração pode ser aplicada a frases de nossa linguagem ordinária sem a necessidade da espécie de análise atomista sugerida no Tractatus.

[14] Tractatus 3.203.

[15] Tractatus 4.022.

[16] Tractatus 4. 031.

[17] O termo ‘estado de coisas’ (Sachverhalt) é ambíguo, querendo dizer também a possível combinação de objetos representada pela proposição elementar, razão pela qual também podemos dizer que o sentido ou significado da frase é simplesmente o estado de coisas (ver 2.201 ss.).

[18] Tractatus 6.54.

[19] Tractatus 7.

[20] Rudolf Carnap: Philosophy and the logical syntax (London 1955), p. 37 ss.

[21]  Frank Ramsey, Philosophical Papers (Cambridge: Cambridge University Press 1990) p. 146.

[22]  Investigações filosóficas I, sec. 124.

[23]  Investigações filosóficas I, sec. 43.

[24] Sobre a Certeza, sec. 61-62.

[25] Ver Investigações filosóficas parte I, sec. 23

[26] C. W. Morris: The foundations of the theory of signs (Chicago: University of Chicago Press 1938)

[27] Investigações filosóficas sec. 20.

[28]  O que não as torna necessárias: o jogo de solitária, por exemplo,  não possui regras pragmáticas.

[29] Das braune Buch (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 122.

[30] Investigações Filosóficas parte I, sec. 18.

[31] Investigações Filosóficas parte I, sec. 48.

[32] O artigo foi publicado como apêndice no livro de C. K. Ogden & I. A. Richards: The Meaning of ‘Meaning’. (Orlando: Harcourt Brace 1984 (1922)).

[33] Alice Ambrose (ed.): Wittgenstein’s Lectures 1932-1935 (Oxford: Oxford University Press 1979), pp. 96-97. Ver também Wittgenstein The Big Typescript (John Willey & Sons 2012), sec. 35.

[34] Em complemento à dimensão crítico-terapêutica ele reconhece uma dimensão construtiva da filosofia na seguinte bem conhecida passagem: “Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma apresentação panorâmica (übersichtliche Darstellung) do uso de nossas palavras. – Falta caráter panorâmico a nossa gramática. A representação panorâica permite a compreensão, que consiste justamente em ‘ver as conexões’. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias.” Investigações filosóficas I, sec. 22.

[35] É interessante a relação que pode ser encontrada entre o que chamei de equívoco e hipóstase e o que Freud chamou respectivamente de deslocamento e condensação. É também interessante notar que esses são os mecanismos fundamentais do que Freud chamava de processo primário, que é o mecanismo pelo qual produtos do inconsciente, como os sonhos, a obra de arte e mesmo a filosofia se concretizam.

[36] Investigações filosóficas I, sec. 116.

[37] Wittgenstein und der Wiener Kreis (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 244.

[38] Podemos nos perguntar se em seus limites esses procedimentos não acabariam por demandar isomorfismo estrutural com aspectos do fato referido, como em um palimpsesto da concepção figurativa. 

[39] Para um exemplo e observações similares, ver Alice Ambrose (ed.): Wittgenstein’s Lectures 1932-35. (New York: Prometheus Books 2001), p. 29. Considerações mais detalhadas encontram-se em C. F. Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy (Newcastle upon Tyne: CSP, 2018), cap. VI.

[40] Wittgenstein: Zettell sec. 444.

[41] Claudio Costa: Wittgenstein’s Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik (Konstanz: Hartung Gorre Verlag 1990).



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