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quinta-feira, 30 de julho de 2020

O SHAKESPEARE EM JODOROWSKY

 

Penúltimo draft para o livro Textos Esparsos

 

 O SHAKESPEARE EM JODOROWSKY



Alexandro Jodorowsky é o meu cineasta preferido. Gosto artístico é coisa pessoal, difícil de comparar. Ingmar Bergman foi extraordinário, mas muito de seus temas são um pouco gastos e convencionais. Claudio Assis é atualmente nosso melhor cineasta, pela sua união de realismo cru com compaixão. Mas Jodorowsky transcende. Ele tem demonstrado uma certa genialidade polivalente, com contribuições de interesse não só para o cinema, mas para a literatura, para a poesia, para a pintura, para os quadrinhos artísticos franceses, para a psicoterapia e mesmo para a filosofia da vida.

   Tudo é diferente nesse cineasta, a começar pela sua origem.[1] A história de sua vida é parcialmente contada no filme La Danza de la Realidad. Seus pais eram judeus que fugiram da Ucrânia para escaparem à perseguição dos cossacos. Seu avô paterno era sapateiro. Eles embarcaram em um navio sem destino certo e acabaram por aportar em Tucupilla, uma cidade mineira pobre de uns 2.000 habitantes no litoral arenoso do norte do Chile, onde não há árvores e só chove uma vez por ano, espremida entre o mar e o imenso deserto de Atacama. Seu avô, sem saber uma palavra de espanhol, praticamente perdeu a razão. Quem tomou a si a responsabilidade pela família foi o pai de Jodorowsky, um comerciante ríspido que era estalinista e que escondia em si uma agressividade infinita. Jodorowsky nota o contraste entre seu pai estalinista e seu avô, que mais se parecia com um Gandi.

    Jodorowsky nasceu em 1929. Desde cedo ele sofreu a experiência da rejeição. A rejeição das outras crianças, que eram de origem indígena e espanhola. Rejeição por ser judeu. Rejeição da família, por parte do pai, a quem não conseguia imitar e que via no garoto sensível um covarde, sem notar que o garoto possuía tudo o que reprimira em si mesmo. Rejeição da mãe, uma mulher humilhada, que se mantinha no casamento por questão de sobrevivência e que teria engravidado de Jodorowsky por ter sido estuprada pelo marido após ter recebido dele uma surra por ter supostamente aceito o flerte de um cliente. Rejeição da irmã mais velha, que era a preferida e tinha ciúmes dele. Jodorowsky aprendeu a ler sozinho aos cinco anos, devorando os livros de contos da pequena biblioteca de Tucupilla. Como ele mesmo disse, os livros o salvaram. Aprendeu a viver em sonhos, em um mundo paralelo.

   Quando tinha nove anos a família mudou-se para Santiago, mas Jodorowsky achou a cidade grande pior do que Tucupilla. Engordou feito um hipopótamo, chegando a pesar 100 kilos aos doze anos. Era troçado pelos colegas e foi fisicamente agredido por ser judeu. Ele só encontrou um espaço próprio ao entrar para a universidade, quanto se juntou aos poetas e boêmios de Santiago. Decidiu abandonar a universidade para se tornar marionetista, tentando dessa maneira dramatizar seus problemas familiares. Seu pai chorou ao saber da decisão. Foi expulso de casa. Sobreviveu trabalhando como marionetista, de favores femininos, como palhaço em circos e depois no teatro, chegando a criar uma peça.

   Aos 24 anos decidiu abandonar o Chile com uma passagem só de ida para Paris. Ele escreve que jogou seu caderno de endereços ao mar para se libertar do passado. Chegou a Paris sem saber a língua. Começou trabalhando em bares, mas logo matriculou-se em uma escola de mímica, e após um ano foi acolhido pelo grande artista mímico Marcel Marceau, que reconheceu seu talento. Nos anos que se seguiram ele acompanhou Marceau pelo mundo inventando peças mímicas, como a famosa A Jaula. Nela uma pessoa tenta sair de um quartinho fechado. Ela consegue, mas só para descobrir que se encontra encerrada em um quarto maior, dessa vez para sempre. Depois, por algum tempo ele trabalhou para o cantor Maurice Chevalier.

    Depois disso Jodorowsky foi viver no México, precisando mais tarde de fugir para os EUA devido ao caráter blásfemo de seus filmes. No México ele dirigiu muitas peças de teatro, como Fim de Jogo de Beckett, inventando o seu próprio teatro pânico, que era uma performance não programada, ao vivo, com atores nus a simbolizar um orgasmo coletivo. O prefixo ‘pan’ significa simplesmente ‘tudo’. Junto a isso, por anos ele buscou o aprimoramento da consciência na sabedoria de mestres zen e dos xamãs mexicanos, o que lhe serviu de fundamento para uma terapia por ele inventada chamada de psicomágica. A ideia é inspirada no que ele experienciou no México.  Os xamãs agem sobre o inconsciente das pessoas, por sugestão, invocando divindades ou seres de outro mundo, embora saibam que estão enganando. Mas em muitos casos – quando há um elemento psicossomático na doença, quando a crença é capaz de influenciar – eles de fato curam. Curam pela sugestão.

   O homem moderno, com razão, não é mais capaz de crer nessas coisas. Mas, para Jodorowsky, o inconsciente crê. Como ele nota, o inconsciente interpreta a metáfora como se fosse realidade. Assim, se o psicoterapeuta lhe identificar um conflito emocional, ele poderá dar ao paciente uma incumbência pela qual ele poderá se libertar metaforicamente das causas de seus males e o inconsciente irá assimilar essa experiência.

   Por exemplo. Uma paciente encontrava-se doente porque não conseguia libertar-se do ódio que sentia por seu ex-marido. Jodorowsky sugeriu que ela pusesse uma foto do marido em uma caixa e fizesse suas necessidades sobre a foto, enviando isso pelo correio ao dito cujo. O próprio Jodorowsky enviou ao seu pai uma caixa com uma foto junto a um melão que ele havia estraçalhado com uma faca. Para curar a timidez de um paciente, Jodorowsky aconselhou que no dia da grande festa da padroeira ele se vestisse com uma bata de frade e, sem cuecas, subisse em uma árvore na praça, no meio da multidão e se masturbasse sem que ninguém percebesse.

   Podemos ter dúvidas sobre o quão eficazes são esses atos de psicomágica. Mas parece haver uma base neurofisiológica nisso. Lembro-me do neurocientista Americano Vilaynour Ramachandran, que inventou uma máquina para curar as dores do membro fantasma. Ela consistia em um simples espelho disposto lateralmente ao membro sadio.[2] O membro fantasma dói por encontrar-se preso, enganchado, incapaz de se mover. O paciente move o membro real e vê no espelho o reflexo do membro que não existe, mas que parece se mover como se fosse o membro fantasma, que ele mesmo sabe não existir. Apesar disso, o seu cérebro registra essa ilusão óptica como sendo o movimento real do membro fantasma amputado, que agora se torna livre, o que após algumas repetições produz alívio ou remissão da dor. Essa experiência me parece uma comprovação que a neurociência dá à teoria de Jodorowsky. O cérebro registra a ilusão óptica como se fosse a coisa real e reage a ela. A quantas falsas associações de acontecimentos atuais com acontecimentos passados traumáticos nossos cérebros não devem reagir inadequadamente, na independência do quanto sejamos capazes de lhes dar justificação racional?

   Junto à psicomágica e aos profundos estudos do Tarot, entendido como uma técnica de exploração do inconsciente, Jodorowsky construiu uma espécie de filosofia da vida. Essa filosofia provém principalmente de seu estudo de árvores genealógicas. Para ele, a sociedade nos torna prisioneiros de um falso eu. Somos ou nos esforçamos para sermos aquilo que nossos pais achavam que deveríamos ser. Não somente nossos pais e familiares, mas nossos avós e, para além deles, nosso próprio meio cultural. Tudo isso, pensa ele, é limitador, para não dizer, eliminador daquilo que seríamos capazes de nos tornar, de nosso eu verdadeiro, expressão de nosso ser essencial. Esse eu verdadeiro, que pode ser adivinhado como um ego independente, solitário e único, me parece mais um eu abismal, posto que sem reflexo na alteridade.

   O que mais limita é a família, a sociedade, a religião, a pátria. A única maneira de nos encontrarmos a nós mesmos é pela libertação de tudo isso, como fez o próprio Jodorowsky. Sua pátria, diz ele, são os seus sapatos. Sua religião é nenhuma. Ele é um “ateu místico”. Ele observa que nenhuma de suas mulheres foi judia; a última delas é uma pintora vietnamita com uma fina educação francesa. Sua ética é algo spinoziana. Ela se baseia no princípio de que nada deve ser para nós mesmos que não seja para os outros, de que aquilo que não damos, nós nos tiramos, que só precisamos do essencial. E a finalidade metafísica última da vida humana é a de nos tornarmos a consciência do universo...

   O mais importante são os seus filmes. Os melhores são por vezes extremamente violentos e profundamente metafóricos. Se você não perceber que essa violência é uma metáfora multiplamente interpretável, que objetiva ampliar sua consciência, tornando-lhe capaz de compreender e aceitar melhor o mundo, você não os entenderá e os rejeitará como perversos e bizarros. Nada disso eles são. Jodorowsky lembra-nos que a violência faz parte da vida: um nascimento é violento, a morte é uma violência. A tragédia Grega e a de Shakespeare são violentas. Mas não se trata da violência gratuita, daquela forma infantil de liberarmos nossa agressividade represada do dia-a-dia, como acontece com os horrendos enlatados de Hollywood; filmes nos quais, insiste Jodorowsky, você entra tonto e sai tonto. Trata-se da violência libertadora, capaz de aprofundar nosso entendimento emocional do mundo.

   Um exemplo encontra-se no filme A Montanha Sagrada. Um chefe de polícia de um estado totalitário coleciona os testículos de seus policiais. Para se tornar um policial o candidato deve ter a grande honra de ter seus testículos extraídos a sangue frio em praça pública, ao som de mil cavaleiros rufando seus tambores em um espetáculo com símbolos nazistas. Depois os testículos são colocados em um jarro de vidro com clorofórmio, de modo a fazerem parte da grande coleção de mais de 1.000 testículos do chefe de polícia. As imagens seriam mero mau gosto se não fossem uma poderosa metáfora crítica sobre as perversões do poder, que emasculam os seus seguidores, limitando e aviltando tanto as ações quanto as mentes. Nenhum tirano gostaria de assistir tal cena. Noam Chomsky notou corretamente que todo poder precisa ser constantemente vigiado, pois um destino quase inevitável do poder não controlado é degenerar em perversão. Nenhum sistema de dominação pode prevenir tal degradação.

   O melhor exemplo está no filme Santa Sangre (sangue santo). Nesse filme um menino vê seu pai adúltero cortar ambos os braços de sua mãe, que lhe havia jogado ácido sulfúrico no órgão genital, e depois se suicidar. Quando o menino se torna adulto ele vive atrás de sua mãe fazendo os seus braços atuarem como se fossem os dela, seguindo os seus desejos como se estivesse hipnotizado. Ele fica atrás dela e os atos de ambos são sincrônicos, como se um adivinhasse o pensamento do outro. Em alguns atos eles concordam, como nas extraordinárias performances teatrais da mãe. Em outros eles discordam, como quando a sua mãe decide vingar-se das outras mulheres cometendo assassinatos com os braços do filho. Para mim essa pode ser uma metáfora de nossos conflitos internos, do conflito entre o que queremos ser e o que outros esperam que devamos ser, ou do conflito internalizado entre duas unidades psíquicas que ora se harmonizam entre si, ora se opõem penosamente. É também uma metáfora sobre o tão comum poder da vontade daqueles que amamos sobre a nossa própria. A polissemia abstrata, materializada no perceptível, é o que torna poderosa a metáfora estética. Ela é a essência do que já foi chamado de arte própria, a arte produtora de uma polissemia potencialmente conscientizadora e sublimadora.

   Os melhores filmes são os já citados, junto a El Topo. Há, certamente, deficiências. O elemento místico possui algo de enganador, de escapista. Há um hiper-simbolismo que não me diz muito e os enredos são artificiais... Mas a arte não precisa ser perfeita. Não importa que a mula manque. Shakespeare está aí para nos provar isso.

 



[1] Alexandro Jodorowski: Donde Mehor Canta um Passaro. Debolsillo 2005.

[2] Vilayanur Ramachandran, W. Hirsten. “The Perception of phanton Limbs”. The D. O. Hebb Lecture. In Brain 121 (9),1998,  pp. 1603-30.



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