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quinta-feira, 30 de julho de 2020

TRÊS NÍVEIS DE AÇÃO

 

 Penúltimo draft a ser republicado no livro Textos esparsos

 

7

 

TRÊS NÍVEIS DE AÇÃO

 

                                                 

Quero nesse capítulo demonstrar a existência de três níveis mais fundamentais de ação, investigando as relações estruturais e dinâmicas entre eles vigentes e, no final, buscando a confirmação dessas considerações na teoria do cérebro triúno de Paul McLean: já que temos três cérebros, só pode haver mesmo três níveis de ação...

   Antes de começar, porém, quero fazer uma análise preliminar da natureza das ações em geral.

 

Ações físicas

O que caracteriza uma ação no sentido próprio e mais geral da palavra? Consideremos, como primeira aproximação, a idéia bastante conhecida de que elas envolvem movimentos corporais. Com efeito, quando realizamos ações como a de acenar com o braço, passear no parque, dirigir um carro, estamos realizando movimentos corporais. Mas podemos generalizar? Podemos tomar isso como uma característica necessária a toda e qualquer ação?

   Uma primeira objeção consistiria em apontar para uma classe especial de ações que não envolve movimentos corporais. Trata-se dos assim chamados atos mentais, os quais são eventos mentais produzidos pela vontade, como calcular de cabeça ou compor uma canção. É fácil, porém, responder a essa objeção apontando para o fato de que nela está sendo considerado um sentido derivado, ainda que importante, da palavra ‘ação’, e não o sentido próprio e originário que pretendo analisar, que é o de ações físicas.

   Uma objeção mais pertinente consiste em observar que há ações físicas, as assim chamadas ações negativas, que não envolvem movimentos corporais, mas a cessação deles. Esse é o caso quando uma pessoa decide parar de respirar por um minuto, ficar em posição de sentido, passar o dia dormindo, fazer greve de fome. Contudo, é fácil contornar essa objeção sugerindo que uma ação precisa envolver minimamente movimentos corporais ou a sua sustação.

   Não obstante, a sugestão de que qualquer ação envolve minimamente movimentos corporais ou a sua sustação também pode revelar-se restritiva quando nos lembramos que ações de órgãos internos, como o bater do coração, os movimentos peristálticos, a contração do baço, não envolvem movimentos corporais no sentido usual da palavra. Com efeito, é indiferente para tais ações se o corpo do ser vivo se movimenta ou não. Uma resposta consiste em se entender por “corpo”, não a totalidade física de um ser vivo, mas qualquer porção individualizável do corpo, o que permite a inclusão de órgãos  internos. Mas o que dizer, por exemplo, da ação do camaleão de mudar de cor? Aqui não há nenhum movimento corporal nem a sua sustação.

   Uma outra resposta consiste na sugestão de que aquilo que em termos físicos se encontra essencialmente envolvido nas ações são eventos musculares, melhor dizendo, contrações (e)ou relaxamentos musculares (e)ou, em alguns casos, a manutenção de um mesmo tônus. Essa condição se aplica a todos os casos até agora considerados, inclusive o da ação do camaleão de mudar de cor, pois ela é explicada pela existência de diversas camadas de células com pigmentações diferentes, que se contraem ou não, permitindo ou não que a luz se reflita na camada seguinte.

   Contudo, há casos incomuns ou novos, que não são acomodáveis à idéia de que um elemento indispensável à ação é a contração/relaxamento (etc.) muscular ou mesmo o movimento corporal. Considere a ação de certos peixes de formar um campo elétrico em torno de si mesmos. A energia é produzida por células musculares transformadas, mas às vezes também por células nervosas. Um caso mais sério, porém, é o de chimpanzés capazes de, pela ativação de neurônios do córtex motor, movimentar um braço mecânico. Nesse caso não há contração/relaxamento muscular, ainda que talvez se possa falar do “movimento corporal” do braço mecânico. Considere, porém, o caso de um tetraplégico, que com auxílio de sensores dispostos em áreas motoras do cérebro, é capaz de desenhar um círculo na tela de um computador, ou o caso das tecnologias que usam ondas eletroencefálicas para, através de um capacete, permitir à pessoa movimentar figuras em jogos eletrônicos sem tocar no teclado. Em todos esses casos indubitavelmente faltam movimentos corporais. O que existe são apenas efeitos físicos. A conclusão a que chegamos é que a ação humana é em seu fundamento último um evento físico originado da ativação neuronal. (Alguém poderia objetar que ações negativas não resultam de ativação neuronal, mas de bloqueio de alguma ativação neuronal; mas como esse bloqueio dependerá de ativações neuronais bloqueadoras, a definição fica mantida.) Esse evento físico se dá, nos casos mais comuns, através de contrações/relaxamentos musculares determinantes de movimentos corporais.[1]

   A ocorrência de eventos físicos (geralmente movimentos corporais e seus efeitos) causados pela atividade nervosa é, pois, a condição mais geral das ações, ao menos no sentido próprio da palavra. É claro que alguém ainda poderia nos lembrar de ações como a do robô apertador de parafusos, do vírus que se instala no computador para destruir os seus programas, das intempéries esculpindo as rochas, objetando então que nem o robô nem o vírus têm a ver com a ativação de neurônios ou mesmo com contrações musculares. Mas essa seria uma objeção insensata, posto que em todos esses casos estamos tratando de sentidos adventícios ou metafóricos da palavra ‘ação’.

     Mesmo que a ocorrência de eventos causados pela ativação/desativação de neurônios eferentes seja uma condição necessária para a ação, ela não é suficiente. Ações são sempre algo mais do que simples eventos causados por ativações neuronais. Um tique nervoso é uma contração muscular causada pela ativação de neurônios motores, mas não dizemos que é uma ação. Uma crise epiléptica é uma sequência de espasmos musculares também causados pela ativação neuronal, mas não dizemos que ela é uma sequência de ações, uma atividade. Por conseguinte, ações são eventos físicos resultantes da ativação neuronal e de mais alguma coisa. “O que resta”, perguntou Wittgenstein, “quando subtraio o movimento de meu braço do fato de eu tê-lo erguido?”[2] Deve ser esse resto o que transforma o evento resultante da ativação neuronal em ação.

     Obviamente, o que primeiro nos vem à mente quando consideramos esse resto são estados ou eventos mentais como desejos, crenças, intenções e decisões, que de algum modo produzem as ativações neuronais e os subsequentes movimentos musculares e corporais. Contudo, ao assim pensarmos temos em mente as ações humanas cotidianas, esquecendo-nos de que o conceito de ação tem um domínio de aplicação bem mais vasto. Considere ações como a do verme, de subir até o duodeno, ou ações de insetos em geral, como a da aranha, de construir a sua teia. Considere o caso de ações reflexas, como o fechamento da mão dos bebês quando algum objeto é colocado dentro delas (o reflexo de apreensão), ou ainda as já mencionadas ações de órgãos internos, como a do coração, de bombear o sangue, os movimentos peristálticos, a contração do baço, o fechamento do piloro... Tudo isso é chamado de ação, envolvendo contrações/relaxamentos musculares, mas sem envolver nenhum elemento mental. Ora, a questão é: o que torna essas contrações/relaxamentos musculares diferentes de simples espasmos, tiques, crises epilépticas, ou do “ato” de roncar, que não podem ser legitimamente chamados de ações? A resposta a essa questão nos conduzirá ao esclarecimento do primeiro nível de ação.

 

Ações autônomas

Quero chamar de ação autônoma àquela constituida por eventos físicos e/ou contrações/relaxamentos musculares e/ou movimentos corporais que não são causados por eventos mentais, mas apenas por uma ativação neuronal automática ou reflexa. Embora essa seja uma característica necessária às ações autônomas, ela não é certamente suficiente, pois se fosse assim a crise epiléptica e o roncar seriam ações. Precisamos, pois, buscar uma outra condição para a ação autônoma, que a distinga desses últimos casos. Essa condição não é difícil de ser encontrada. Ela consiste na existência de um propósito, de uma finalidade inscrita nos movimentos corporais ou eventos físicos resultantes da atividade nervosa. Trata-se, pois, do caráter teleológico das ocorrências musculares e corporais envolvidas; em todos os casos de ações autônomas podemos identificar claramente um propósito ou finalidade, geralmente fundada, por razões evolucionárias, na necessidade de sobrevivência do organismo. Assim, as referidas ações do verme e da aranha têm como propósito a alimentação desses animais, o reflexo de apreensão (herança atávica de nossos antepassados arborícolas) tem a função de prender o bebê ao corpo da mãe, as atividades respiratória e cardíaca têm respectivamente os propósitos de oxigenação e vascularização do organismo, e assim por diante. Por outro lado, qual é o propósito dos tiques nervosos, das crises epilépticas, dos roncos? Aqui não encontramos nenhum caráter teleológico, nenhuma finalidade biologicamente fundada. Trata-se apenas de desarranjos, disfunções, falhas dos organismos. Por isso é que não são chamadas de ações.

   Antes de caracterizar a ação autônoma é necessário ainda dizer algo sobre os efeitos das usuais contrações e/ou relaxamentos musculares. Muitas ações incorporam efeitos que vão além das próprias contrações musculares e movimentos corporais, por exemplo, a construção da teia pela aranha, o levantamento do peso pelo alterofilista. Mas outras, como o acenar com o braço, ou um mero exercício muscular, não exigem tanto. Isso não significa que essas ações não tenham a finalidade de produzir efeitos, mas que tais efeitos podem não pertencer à sua descrição ou limitar-se aos próprios movimentos corporais. Por isso podemos generalizar dizendo que todas as ações são teleologicamente voltadas para os seus efeitos, mesmo quando eles não ultrapassam os movimentos corporais que costumam constitui-las.

   Entendendo como autônoma uma atividade neuronal destituída de mentalidade, podemos caracterizar a ação autônoma da seguinte maneira:

 

      1. Ação autônoma     =    evento físico com caráter teleológico, causado

                                               pela atividade nervosa autônoma.

 

Em outras palavras: a ação autônoma é o evento físico (geralmente movimento corporal) teleologicamente fundado em ativação neuronal sem ser mentalmente causado. No que se segue veremos que algumas características desse nível basal de ação são repetidas nos níveis superiores de modo tranformado, pois todos eles incluem eventos físicos resultantes de ativação neuronal e possuidores de uma base teleológica, que nos casos interessantes será descrita em termos intencionais.

 

Ações volicionais

A noção mais vasta de ação autônoma pouco nos serve, pois não estamos, como filósofos, preocupados em analisar a estrutura das ações de artrópodes, mas a dos seres humanos conscientes. Queremos considerar casos como o da ação de acenar para alguém, de dirigir um carro, de pagar o imposto de renda. Essas ações se caracterizam por envolverem mentalidade, ou seja, os eventos físicos ou corporais, sendo causadas por eventos mentais. Assim, se aceno para alguém pode ser por causa do meu desejo de me despedir da pessoa, se dirijo um carro deve ser por causa da minha intenção de ir a algum lugar, e se pago o meu imposto de renda deve ser, no mínimo, pela razão de que não quero ser penalizado com uma multa.

   O problema com as ações mentalmente causadas consiste em identificar e classificar as suas estruturas de forma precisa. Aqui a nossa próxima distinção pode ser de alguma ajuda. Considere casos de ações mentalmente causadas, como a de um cidadão que decide pagar o seu imposto de renda, a de um camponês que planta no outono para colher na primavera, a de um marceneiro que produz uma escrivaninha. Essas ações/atividades são raciocinadas no sentido de que resultam de um processo de deliberação racional, de silogismos práticos. Por isso as chamaremos de ações raciocinadas. Contudo, nem todas as ações mentalmente causadas resultam de semelhante processo de pensamento. Considere o caso de um motorista que para o carro diante do semáforo vermelho, ou de uma pessoa que cumprimenta outra, ou que tranca a porta da casa ao sair, ou que acende a luz ao entrar. Na maioria das vezes em que realizamos essas ações não fazemos nenhum raciocínio, nenhum cálculo deliberativo. Contudo, nem por isso essas ações se tornam autônomas, destituídas de um elemento mental, pois diversamente das últimas elas resultam de vontade e intenção conscientes. Elas não são nem raciocinadas nem autônomas, mas algo intermediário, que chamarei de ação volicional.

   Na distinção entre ação raciocinada e volicional podemos encontrar a diferença entre ações mais propriamente humanas e aquelas realizadas por animais vertebrados em geral. Quando consideramos casos como o da ação da serpente de dar o bote, do galo de cantar ao amanhecer, do rinoceronte macho de correr atrás da fêmea, estamos diante de casos puros de ações volicionais, pois parece óbvio que os movimentos corporais desses animais, embora causados por volições, não se dão como resposta a um planejamento racional.

   Diversamente dos casos acima, primatas superiores, como chimpanzés e orangotangos, já são capazes de algum planejamento racional de suas ações. A importância dos famosos experimentos de Wolfgang Köhler com chimpanzés é, em meu juízo, que eles marcam o limite entre ações volicionais e raciocinadas. Köhler demonstrou que esses animais são capazes de formas primitivas de ações raciocinadas. Eles conseguem refletir sobre como resolver um problema antes de iniciar a ação. Por exemplo: pensar que devem empilhar caixas umas sobre as outras para poder, subindo nelas, alcançar a banana pendurada no teto.[3]

   Como caracterizar a ação volicional? Há duas condições essenciais. Uma é a da ocorrência de eventos físicos causados por ativação neuronal, que geralmente são movimentos corporais originados por contrações/relaxamentos musculares... A outra condição essencial é uma ocorrência volitivo-intencional que causa o movimento corporal e que o acompanha. Essa ocorrência recebeu denominações variadas, como o tentar[4], o sentimento de agência[5], a intenção proximal[6], a intenção na ação[7], o querer ou volição[8], o esforço.[9] Escolho chamá-la de querer ativo ou de esforço volitivo.

   Com efeito, a expressão ‘esforço volitivo’ parece ser um candidato razoavelmente apropriado, uma vez que ela faz diferença com a expressão ‘esforço não-volitivo, involuntário’, com a qual nos referimos à atividade nervosa causadora de ações autônomas como os batimentos cardíacos. Um problema que pode surgir com a adoção do termo ‘esforço’ no lugar de termos como ‘querer’ ou ‘intenção na ação’ é que enquanto os últimos parecem designar estados puramente mentais, o primeiro parece designar também algo físico, posto que o esforço volitivo parece ser sensorialmente perceptível. Mas, como J. R. Searle notou, há aqui uma ilusão. O esforço volitivo possui natureza e intensidade exclusivamente mentais. Ele apenas aparenta ser sensorialmente experienciado, posto que somos usualmente informados acerca de sua eficácia pela sua retroalimentação através da experiência proprioceptiva das posições relativas dos membros, pela consciência cinestésica dos seus movimentos, por sensações de contração muscular, pressão, cansaço etc. Disso resulta uma impressão enganosa de que o esforço volitivo é, enquanto tal, alguma coisa fisicamente sensível (não obstante isso, falamos do esforço de calcular mentalmente, que é um esforço puramente psicológico pelo qual se realiza um ato mental. Contudo, até mesmo este último pode acompanhar-se de efeitos físicos perceptíveis. Bertrand Russell, por exemplo, relatou ter suspendido a respiração por cerca de um minuto quando se concentrava na solução de um problema lógico, voltando depois ofegante a respirar. Mas aqui se torna óbvio que os efeitos físicos acompanhantes não são parte do esforço).[10]

     Juntando os conceitos de movimento corporal e de esforço volitivo, podemos caracterizar esquematicamente a ação volicional como se segue[11]:

 

     2. Ação volicional  =  eventos físicos (teleológicos)  resultantes  da

                                        ativação  neuronal causada por um esforço

                                        volitivo.[12]

 

Os eventos físicos são teleológicos pelo fato de serem produto da vontade, do querer. Como o esforço volitivo – o querer ativo – causa a ação volicional, ela precisa ser sempre acompanhada dele para existir. Se a ação for a de atravessar um rio, e o esforço volitivo for suspenso no meio do percurso, a pessoa deixará de realizar a ação, talvez para sempre.

   A evidência a favor da tese de que a ação volicional é geralmente constituida de eventos físicos causados por um esforço volitivo constitui-se no fato de que quando consideramos uma coisa sem a outra não temos a ação. Searle tornou isso claro auxiliado por dois exemplos tomados respectivamente de William James e Wilder Penfield. O experimento relatado por James diz respeito a uma pessoa com os olhos vendados e com o braço completamente anestesiado amarrado a uma mesa. O experimentador pede que ela levante o braço, retirando-lhe em seguida a venda. A pessoa fica surpresa pelo fato de o seu braço não se ter levantado. Nesse caso, não dizemos que a ação se deu, pois mesmo que tenha havido um esforço da vontade, confirmado pela ausência de retroalimentação negativa da parte do membro paralizado, não houve movimento físico-corporal nem contração muscular. O outro caso é o relatado pelo neurocirurgião Penfield, que estimulando diretamente com eletrodos os cérebros de pacientes conscientes, era capaz de fazer com que eles movessem o braço ou vocalizassem. Quando ele perguntava ao paciente se ele havia realizado a ação, o último invariavelmente respondia que não, que era o próprio Penfield quem a havia realizado. Com efeito, o paciente não realizava a ação, pois mesmo havendo contração muscular e movimento corporal, não era ele que se esforçava para levantar o seu braço, mas o próprio Penfield, por meio de uma ação instrumental sua.

   Uma objeção à noção de ação volicional é a de que há muitas ações, como o ato automático de pressionar a letra ‘e’ ao digitar uma mensagem no computador, ou o de levantar a perna direita ao andar, ações nas quais o movimento corporal não costuma vir acompanhado de um elemento volitivo-intencional consciente. Em meu juízo essa objeção resulta de não se ter notado que não há uma fronteira fixa entre ação volicional e autônoma. Ações que inicialmente são volitivo-intencionais, como resultados de um querer consciente precedido ou não de deliberação racional, podem se transformar em ações autônomas, ainda que dentro do escopo consciente de uma atividade voluntária, como é o caso de se pressionar automaticamente a letra ‘e’ ao digitar uma mensagem. Com isso a mente tem liberado um espaço maior para outras funções e níveis de ação, sem deixar de, conjuntamente e na independência disso, continuar exercitando e desenvolvendo as ações tornadas autônomas. Como veremos mais tarde, isso se fundamenta no fato de que a ação volicional é uma adição evolucionária à atividade autônoma. Ela preserva certas características da última, como a de ser teleológica, embora a teleologia se faça aqui em um sentido mentalista ao se tornar volitivo-intencional.

 

Ações raciocinadas

Como já vimos, ações mentalmente causadas podem ser também resultado de um processo de deliberação racional. Dizemos que um animal como a ovelha é capaz de ação voluntária, mas sentimo-nos pouco inclinados a atribuir-lhe racionalidade, devido à ausência de planejamento e controle conscientes. Também minha ação de parar o carro diante do sinal vermelho não costuma resultar de um processo de deliberação racional, embora eu possa atribuir racionalidade a ela ao fazer-me consciente de suas razões implícitas (em sentidos derivados podemos atribuir racionalidade tanto a ela quanto às ações em geral). Muito diferente, porém, é a atividade de um camponês que decide semear em certos dias da primavera para colher no outono, ou do engenheiro que constrói uma ponte. Trata-se, então, não só de ações volicionais, mas também de ações que resultam de deliberação racional em um sentido que não é alcançado por outras espécies animais. Chegamos aqui a um terceiro e mais complexo nível de ação, o mais propriamente humano, que é o da ação raciocinada.

   Para se entender o que é uma ação voluntária raciocinada, vejamos um exemplo típico. Digamos que amanhã seja o último dia do prazo para a minha declaração de imposto de renda. A razão que me conduz à decisão de declarar é constituída (como as razões em geral) de um desejo adicionado a uma crença, o desejo sendo o de não ser multado, a crença sendo a de que se eu declarar até amanhã, não serei multado. Sendo tal desejo e tal crença suficientemente fortes e não havendo conflito com outros desejos e crenças (ou seja, com outras razões), é de se esperar que a minha razão para a decisão de declarar o imposto de renda amanhã se torne operante, causando (pela chamada inferência prática) uma decisão, que nada mais é do que a emergência de um querer prévio (chamado por Searle de intenção prévia), contendo a minha intenção de pagar o imposto de renda amanhã, que inclui ao menos o esquema de um plano de ação. Essa intenção irá causar, a seu tempo, a emergência de um querer ativo, ou seja, do esforço volitivo (chamado por Searle de intenção na ação e por Brian O’Shaughnessy de o tentar), que no caso produzirá e acompanhará as contrações/relaxamentos musculares e correspondentes movimentos corporais constitutivos da ação, juntamente com efeitos intencionados outros, como o registro de minha declaração pelo fisco.

   Sem ambicionar uma definição, podemos caracterizar minimamente a ação raciocinada como se segue:

 

     3. Ação raciocinada   =    eventos físicos resultantes de ativação ner-

                                              vosa e intencionalmente originados à luz

                                              de um processo de deliberação racional.

 

Dizemos que a ação raciocinada precisa ser intencionalmente e portanto teleologicamente originada à luz do processo de deliberação racional porque queremos garantir não só que o raciocínio causa o evento físico ou movimento corporal e, possivelmente, o efeito intencionado, mas que ele o causa de modo apropriado. E a única maneira pela qual o raciocínio pode fazer isso é indiretamente, através do querer e de um esforço volitivo inerentemente intencional. Por ser assim, uma outra caracterização da ação raciocinada é a que torna explícita a sua inevitável dependência de uma ação volicional:

 

     4. Ação raciocinada   =   ação apropriadamente causada por um

                                             esforço volitivo originado à luz de um

                                             processo de deliberação racional.

 

Finalmente, assim como a ação volicional pode ser transformada em uma ação autônoma, a ação raciocinada também pode ser transformada em ação volicional, de modo a deixar espaço livre para a mente tratar de novos negócios. Podemos exemplificar isso relembrando o ato de pressionar a letra ‘e’ quando digitamos um texto. Suponhamos que você esteja iniciando um curso de datilografia. Nesse caso, ao ler a letra ‘e’ em uma palavra, você inicialmente examina um diagrama que lhe mostra que você deve pressionar uma tecla usando o dedo médio da mão esquerda para reproduzi-la. Essa crença e o desejo de reproduzir a letra ‘e’ constituem a razão geradora da volição que faz você pressionar a tecla. Temos aqui, claramente, uma ação raciocinada. Imagine agora que você já está fazendo o curso há alguns dias e deva outra vez reproduzir a letra ‘e’. Agora ao ler essa letra você já é capaz de apertar a tecla correspondente com o dedo médio da mão esquerda sem pensar no que deve fazer, por força apenas de sua vontade consciente e da intenção de acertar. Aqui a mesma ação, que antes era raciocinada, já se tornou meramente volicional. Finalmente, no final do curso, tendo se tornado um exímio datilógrafo, você certamente realiza a ação de digitar a letra ‘e’ sem mais saber nem quando o faz nem sequer quantas vezes o faz. Você realiza a ação mecanicamente, de forma não intencional, não-consciente. A ação volicional transforma-se, pois, em autônoma. É verdade que a ação autônoma de digitar a letra ‘e’ se dá dentro do escopo de uma ação volicional de digitar expressões ou frases, as quais por sua vez usualmente se dão dentro da ação raciocinada que o fez tomar a decisão de copiar o texto... Mas isso não precisa nos confundir.

   Podemos resumir as distinções semânticas que fizemos como resultantes de duas dicotomias. A primeira delas é entre (A) o nível das ações autônomas, que não depende da mente consciente, e (B) o nível das ações mentalmente causadas, que dela dependem. A segunda dicotomia diz respeito apenas às ações mentalmente causadas, as quais se subdividem em (B1) ações volicionais, originadas apenas de causação volitivo-intencional, e (B2) ações raciocinadas, em cuja origem está um processo de deliberação racional.

   Importa ainda notar que tais distinções concernem ao sentido e não à referência: é uma mesma ação – um mesmo evento físico, movimento corporal ou acontecimento muscular, por exemplo, o de digitar a letra ‘e’ – que pode se dar em um nível autônomo, em um nível volicional ou em um nível raciocinado. Essas distinções têm importância não apenas sistemática, mas também propedêutica, na medida em que nos permitem eliminar eventuais equívocos resultantes da confusão entre os níveis de ação.

 

Bases filogenéticas

Um último ponto diz respeito ao fundamento biológico-evolucionário das distinções semânticas aqui delineadas. Ele pode ser encontrado na importante teoria do cérebro triuno, desenvolvida pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean.[13] Segundo essa teoria, não possuímos um único cérebro, mas três, que operam como três computadores biológicos interdependentes, cada qual representando um extrato evolucionário mais novo que se sobrepôs ao outro, como em um sítio arqueológico. Podemos chamar esses três sistemas de arquiencéfalo (archipallium), paleoencéfalo (paleomammalian brain) e neoencéfalo (neopallium). O arquiencéfalo é o cérebro primitivo, já existente nos invertebrados superiores. Ele corresponde no homem a estruturas como o bulbo raquideano e o cerebelo. Este cérebro primitivo é mecânico, compulsivo e ritualístico, atendendo a funções autônomas como a da respiração, pressão arterial e sono. Ao arquiencéfalo veio a se sobrepor o paleoencéfalo, que já possui alguma forma de mentalidade e cuja estrutura característica foi batizada por McLean com o nome de sistema límbico. Ele é responsável por emoções e instintos relacionados à alimentação, luta, fuga, e pelo comportamento sexual. Vertebrados como répteis e pássaros possuem já paleoencéfalo, além do arquiencéfalo. O neoencéfalo, por fim, é constituido pelo neocórtex e por alguns grupos neuronais subcorticais. Ele forma os hemisférios cerebrais, sendo particularmente desenvolvido nos primatas e constituindo cerca de 83% do cérebro humano. O neoencéfalo é responsável pelos processos de raciocínio e pela consciência introspectiva. O neocórtex e o sistema límbico são vastamente interconectados, de modo que as funções cerebrais não são puramente límbicas nem puramente corticais.

   Dados os três níveis de ação aqui distinguidos, e dada a teoria do cérebro triuno, as correlações se tornam evidentes: a ação autônoma (ao menos enquanto sistema nervoso central estiver envolvido) deve encontrar o seu locus neurofisiológico primário no arquiencéfalo, a ação volicional no paleoencéfalo e a ação racional no neoencéfalo, como mostra o esquema:

 

       NÍVEIS DE AÇÃO:                     LOCUS NEUROANATÔMICO

                                                             PRIMÁRIO:

       AÇÃO RACIONAL   ..............    NEOENCÉFALO

       (causada por processo                   (cérebro superior

        de deliberação racional)                neomamífero)

       AÇÃO VOLICIONAL .............   PALEOENCÉFALO

       (causada por volições)                  (antigo cérebro mamífero)

       AÇÃO AUTÔNOMA  ..............   ARQUIENCÉFALO

       (causada por descargas                  (cérebro reptiliano ou

        nervosas automáticas)                    complexo-R)

 

O fundamento neuroanatômico da ação autônoma geralmente se encontra no cérebro primitivo ou arquiencéfalo, sendo essa a razão pela qual ela não é consciente, embora nela se possa encontrar um caráter teleológico evolucionariamente originado. Isso é válido de maneira genérica (por exemplo, o ato de respirar), embora em certos casos (como o dos movimentos peristálticos ou dos batimentos cardíacos) haja uma maior ou menor independência da atividade do sistema nervoso central. O segundo nível, o da ação volicional, tem a sua base cerebral predominante no paleoencéfalo, no sistema límbico e nas emoções/desejos/intenções nele originadas (as quais também devem poder depender do neoencéfalo, indispensável à interpretação cognitiva da experiência). A ação raciocinada, por fim, depende predominantemente do neoencéfalo (embora inevitavelmente dependa também da colaboração de emoções e desejos originados no paleoencéfalo...).

   A interdependência dos níveis de ação considerados encontra as suas bases biológicas na interdependência entre os três extratos biológicos. A pressuposição da ação volicional pela ação racional, a existência do elemento comum de mentalidade entre ambas, e mesmo a tendência das ações em passar de um nível superior a um mais inferior, tudo isso é fundamentado na hierarquização evolucionária dos loci neuroanatômicos, um deles se sucedendo ao outro em uma divisão de trabalho possibilitadora da realização de tarefas crescentemente maleáveis e complexas.  

 

 

 

 

 

 

 



[1] Não obstante, como movimentos corporais, no sentido mais amplo, são elementos essenciais indispensáveis ao reconhecimento da maioria das ações humanas, pode ser útil caracterizar a ação com base neles. Além disso, embora contrações musculares sejam indispensáveis ao ato de acenar com o braço, por exemplo, os correspondentes movimentos corporais também são, pois sem eles não haveria o acenar.

[2] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Suhrkamp: Frankfurt 1983) I, seção 621.

 

[3] Wolfgang Köhler: The Mentality of Apes (Routledge & Kegan Paul: London 1973 (1921)).

[4] Brian O’Shaughnessy: “Trying (as the Mental ‘Pineal Gland’)”, Journal of Philosophy 70, 1973, pp. 365-86.

[5] Alvin Goldman: “Action”, in S. Guttenplan (ed.): A Companion to the Philosophy of Mind (Blackwell: Oxford 1995), p. 120.

[6] A. R. Mele & P. K. Moser, “Intentional Action”, Noûs 28, 1994, p. 46.

[7] John R. Searle: Intentionality: an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge University Press: Cambridge 1983), p. 84 ss. Ver também, do mesmo autor, Rationality in Action (MIT-Press: Cambridge Mass. 2001), cap. 2.

[8] Prefiro as expressões querer prévio e querer ativo respectivamente no lugar do que Searle chama de intenção prévia e intenção na ação. Geralmente a intenção envolve algum plano de ação, enquanto o ‘querer’ pode envolver qualquer coisa. Ações volicionais rudimentares como, por exemplo, o cantar do galo, não envolvem intenção, mas mesmo assim podemos dizer que envolvem alguma espécie de querer bem forte (Você já tentou fazer um galo parar de cantar? Garanto que não é nada fácil). Por ser suficientemente abrangente, considero a palavra ‘querer’ mais adequada.

[9] Contra o uso essencialmente psicológico do termo ‘esforço’ poderia ser alegado que falamos de um esforço “maior” ou “menor”, ou mesmo de um “grande esforço”, tendo em mente alguma coisa física. Mas aqui se esquece de distinguir entre o esforço físico e o esforço da vontade. Além disso, mesmo falando do esforço da vontade podemos considerar intensidades, como quando notamos a persistência de um estado intencional que não se deixou deter sequer por acompanhamentos físicos muito desagradáveis. Claro que também dizemos que fazemos muitas coisas “sem esforço algum”, mas isso é de fato um eufemismo. Uma terminologia similar, também distinguindo entre esforço volicional e esforço físico já foi usada William James em The Principles of Psychology (Dover: New York 1950 (1890)), ver vol II, cap. XXVI, Cf. nota da página 562.

[10] Contra a idéia aceita por muitos autores de que a ação é um composto psicofísico constituído por um movimento corporal adicionado a sua causa mental, Ted Honderich apresentou bons argumentos no sentido de mostrar que a ação é mais propriamente caracterizável como um movimento corporal, ainda que mentalmente causado por uma intenção Ver seu livro How Free are You? The Determinism Problem (Oxford University Press: Oxford 2002), cap. 5.

[11] J. R. Searle: Intentionality, pp. 89-90.

[12] Para uma análise do papel das razões na determinação da ação, ver Robert Audi: “Acting for Reasons”, Philosophical Review 95, 1986.

 

[13] Paul D. McLean: A Triune Concept of the Brain and Behaviour (University of Toronto Press: Toronto 1973).

 


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