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TRÊS NÍVEIS DE AÇÃO
Quero nesse
capítulo demonstrar a existência de três níveis mais fundamentais de ação,
investigando as relações estruturais e dinâmicas entre eles vigentes e, no
final, buscando a confirmação dessas considerações na teoria do cérebro triúno
de Paul McLean: já que temos três cérebros, só pode haver mesmo três níveis de
ação...
Antes de começar, porém, quero fazer uma
análise preliminar da natureza das ações em geral.
Ações físicas
O que
caracteriza uma ação no sentido próprio e mais geral da palavra? Consideremos,
como primeira aproximação, a idéia bastante conhecida de que elas envolvem movimentos corporais. Com efeito, quando realizamos ações como a de acenar com
o braço, passear no parque, dirigir um carro, estamos realizando movimentos
corporais. Mas podemos generalizar? Podemos tomar isso como uma característica
necessária a toda e qualquer ação?
Uma primeira objeção consistiria em apontar
para uma classe especial de ações que não envolve movimentos corporais.
Trata-se dos assim chamados atos mentais, os quais são eventos
mentais produzidos pela vontade, como calcular de cabeça ou compor uma canção.
É fácil, porém, responder a essa objeção apontando para o fato de que nela está
sendo considerado um sentido derivado, ainda que importante, da palavra ‘ação’,
e não o sentido próprio e originário que pretendo analisar, que é o de ações físicas.
Uma objeção mais pertinente consiste em
observar que há ações físicas, as assim chamadas ações negativas,
que não envolvem movimentos corporais, mas a cessação deles. Esse é o caso
quando uma pessoa decide parar de respirar por um minuto, ficar em posição de
sentido, passar o dia dormindo, fazer greve de fome. Contudo, é fácil contornar
essa objeção sugerindo que uma ação precisa envolver minimamente movimentos corporais
ou a sua sustação.
Não obstante, a sugestão de que qualquer
ação envolve minimamente movimentos corporais ou a sua sustação também pode
revelar-se restritiva quando nos lembramos que ações de órgãos internos, como o
bater do coração, os movimentos peristálticos, a contração do baço, não
envolvem movimentos corporais no sentido usual da palavra. Com efeito, é
indiferente para tais ações se o corpo do ser vivo se movimenta ou não. Uma
resposta consiste em se entender por “corpo”, não a totalidade física de um ser
vivo, mas qualquer porção individualizável do corpo, o que permite a inclusão
de órgãos internos. Mas o que dizer, por
exemplo, da ação do camaleão de mudar de cor? Aqui não há nenhum movimento
corporal nem a sua sustação.
Uma outra resposta consiste na sugestão de
que aquilo que em termos físicos se encontra essencialmente envolvido nas ações
são eventos musculares, melhor dizendo, contrações (e)ou relaxamentos
musculares (e)ou, em alguns casos, a manutenção de um mesmo tônus. Essa
condição se aplica a todos os casos até agora considerados, inclusive o da ação
do camaleão de mudar de cor, pois ela é explicada pela existência de diversas
camadas de células com pigmentações diferentes, que se contraem ou não,
permitindo ou não que a luz se reflita na camada seguinte.
Contudo, há
casos incomuns ou novos, que não são acomodáveis à idéia de que um elemento
indispensável à ação é a contração/relaxamento (etc.) muscular ou mesmo o
movimento corporal. Considere a ação de certos peixes de formar um campo
elétrico em torno de si mesmos. A energia é produzida por células musculares
transformadas, mas às vezes também por células nervosas. Um caso mais sério,
porém, é o de chimpanzés capazes de, pela ativação de neurônios do córtex
motor, movimentar um braço mecânico. Nesse caso não há contração/relaxamento
muscular, ainda que talvez se possa falar do “movimento corporal” do braço
mecânico. Considere, porém, o caso de um tetraplégico, que com auxílio de
sensores dispostos em áreas motoras do cérebro, é capaz de desenhar um círculo
na tela de um computador, ou o caso das tecnologias que usam ondas
eletroencefálicas para, através de um capacete, permitir à pessoa movimentar
figuras em jogos eletrônicos sem tocar no teclado. Em todos esses casos
indubitavelmente faltam movimentos corporais. O que existe são apenas efeitos físicos.
A conclusão a que chegamos é que a ação humana é em seu fundamento último um evento físico originado da ativação
neuronal. (Alguém poderia
objetar que ações negativas não resultam de ativação neuronal, mas de bloqueio
de alguma ativação neuronal; mas como esse bloqueio dependerá de ativações
neuronais bloqueadoras, a definição fica mantida.) Esse evento físico se dá,
nos casos mais comuns, através de contrações/relaxamentos musculares
determinantes de movimentos corporais.[1]
A ocorrência de eventos físicos (geralmente
movimentos corporais e seus efeitos) causados pela atividade nervosa é, pois, a
condição mais geral das ações, ao menos no sentido próprio da palavra. É claro
que alguém ainda poderia nos lembrar de ações como a do robô apertador de parafusos,
do vírus que se instala no computador para destruir os seus programas, das
intempéries esculpindo as rochas, objetando então que nem o robô nem o vírus
têm a ver com a ativação de neurônios ou mesmo com contrações musculares. Mas
essa seria uma objeção insensata, posto que em todos esses casos estamos
tratando de sentidos adventícios ou metafóricos da palavra ‘ação’.
Mesmo que a ocorrência de eventos causados
pela ativação/desativação de neurônios eferentes seja uma condição necessária
para a ação, ela não é suficiente. Ações são sempre algo mais do que simples
eventos causados por ativações neuronais. Um tique nervoso é uma contração
muscular causada pela ativação de neurônios motores, mas não dizemos que é uma
ação. Uma crise epiléptica é uma sequência de espasmos musculares também
causados pela ativação neuronal, mas não dizemos que ela é uma sequência de
ações, uma atividade. Por conseguinte, ações são eventos físicos resultantes da
ativação neuronal e de mais alguma coisa. “O que resta”, perguntou
Wittgenstein, “quando subtraio o movimento de meu braço do fato de eu tê-lo
erguido?”[2] Deve ser
esse resto o que transforma o evento resultante da ativação neuronal em ação.
Obviamente, o que primeiro nos vem à mente
quando consideramos esse resto são estados ou eventos mentais como desejos,
crenças, intenções e decisões, que de algum modo produzem as ativações
neuronais e os subsequentes movimentos musculares e corporais. Contudo, ao
assim pensarmos temos em mente as ações humanas cotidianas, esquecendo-nos de
que o conceito de ação tem um domínio de aplicação bem mais vasto. Considere
ações como a do verme, de subir até o duodeno, ou ações de insetos em geral,
como a da aranha, de construir a sua teia. Considere o caso de ações reflexas,
como o fechamento da mão dos bebês quando algum objeto é colocado dentro delas
(o reflexo de apreensão), ou ainda as já mencionadas ações de órgãos internos,
como a do coração, de bombear o sangue, os movimentos peristálticos, a
contração do baço, o fechamento do piloro... Tudo isso é chamado de ação,
envolvendo contrações/relaxamentos musculares, mas sem envolver nenhum elemento
mental. Ora, a questão é: o que torna essas contrações/relaxamentos musculares
diferentes de simples espasmos, tiques, crises epilépticas, ou do “ato” de
roncar, que não podem ser legitimamente chamados de ações? A resposta a essa
questão nos conduzirá ao esclarecimento do primeiro nível de ação.
Ações
autônomas
Quero chamar
de ação autônoma àquela constituida por eventos físicos e/ou
contrações/relaxamentos musculares e/ou movimentos corporais que não são causados
por eventos mentais, mas apenas por uma ativação neuronal automática ou
reflexa. Embora essa seja uma característica necessária às ações autônomas,
ela não é certamente suficiente, pois se fosse assim a crise epiléptica e o
roncar seriam ações. Precisamos, pois, buscar uma outra condição para a ação
autônoma, que a distinga desses últimos casos. Essa condição não é difícil de
ser encontrada. Ela consiste na existência de um propósito, de uma finalidade
inscrita nos movimentos corporais ou eventos físicos resultantes da atividade
nervosa. Trata-se, pois, do caráter teleológico das ocorrências
musculares e corporais envolvidas; em todos os casos de ações autônomas podemos
identificar claramente um propósito ou finalidade, geralmente fundada, por
razões evolucionárias, na necessidade de sobrevivência do organismo. Assim, as
referidas ações do verme e da aranha têm como propósito a alimentação desses
animais, o reflexo de apreensão (herança atávica de nossos antepassados
arborícolas) tem a função de prender o bebê ao corpo da mãe, as atividades
respiratória e cardíaca têm respectivamente os propósitos de oxigenação e
vascularização do organismo, e assim por diante. Por outro lado, qual é o
propósito dos tiques nervosos, das crises epilépticas, dos roncos? Aqui não
encontramos nenhum caráter teleológico, nenhuma finalidade biologicamente
fundada. Trata-se apenas de desarranjos, disfunções, falhas dos organismos. Por
isso é que não são chamadas de ações.
Antes de caracterizar a ação autônoma é
necessário ainda dizer algo sobre os efeitos das usuais contrações e/ou
relaxamentos musculares. Muitas ações incorporam efeitos que vão além das próprias contrações musculares
e movimentos corporais, por exemplo, a construção da teia pela aranha, o
levantamento do peso pelo alterofilista. Mas outras, como o acenar com o braço,
ou um mero exercício muscular, não exigem tanto. Isso não significa que essas
ações não tenham a finalidade de produzir efeitos, mas que tais efeitos podem
não pertencer à sua descrição ou limitar-se aos próprios movimentos corporais.
Por isso podemos generalizar dizendo que todas as ações são teleologicamente
voltadas para os seus efeitos, mesmo quando eles não ultrapassam os movimentos
corporais que costumam constitui-las.
Entendendo como autônoma uma atividade
neuronal destituída de mentalidade, podemos caracterizar a ação autônoma da
seguinte maneira:
1. Ação
autônoma = evento físico com caráter teleológico,
causado
pela atividade nervosa autônoma.
Em outras
palavras: a ação autônoma é o evento físico (geralmente movimento corporal)
teleologicamente fundado em ativação neuronal sem ser mentalmente causado. No
que se segue veremos que algumas características desse nível basal de ação são
repetidas nos níveis superiores de modo tranformado, pois todos eles incluem
eventos físicos resultantes de ativação neuronal e possuidores de uma base
teleológica, que nos casos interessantes será descrita em termos intencionais.
Ações
volicionais
A noção mais
vasta de ação autônoma pouco nos serve, pois não estamos, como filósofos,
preocupados em analisar a estrutura das ações de artrópodes, mas a dos seres
humanos conscientes. Queremos considerar casos como o da ação de acenar para
alguém, de dirigir um carro, de pagar o imposto de renda. Essas ações se
caracterizam por envolverem mentalidade, ou seja, os eventos físicos ou
corporais, sendo causadas por eventos mentais. Assim, se aceno para alguém pode
ser por causa do meu desejo de
me despedir da pessoa, se dirijo um carro deve ser por causa da minha intenção de ir a algum lugar, e se
pago o meu imposto de renda deve ser, no mínimo, pela razão de que não quero ser penalizado com uma multa.
O problema com as ações mentalmente causadas
consiste em identificar e classificar as suas estruturas de forma precisa. Aqui
a nossa próxima distinção pode ser de alguma ajuda. Considere casos de ações
mentalmente causadas, como a de um cidadão que decide pagar o seu imposto de
renda, a de um camponês que planta no outono para colher na primavera, a de um
marceneiro que produz uma escrivaninha. Essas ações/atividades são raciocinadas
no sentido de que resultam de um processo de deliberação racional, de silogismos práticos.
Por isso as chamaremos de ações raciocinadas.
Contudo, nem todas as ações mentalmente causadas resultam de semelhante
processo de pensamento. Considere o caso de um motorista que para o carro
diante do semáforo vermelho, ou de uma pessoa que cumprimenta outra, ou que
tranca a porta da casa ao sair, ou que acende a luz ao entrar. Na maioria das
vezes em que realizamos essas ações não fazemos nenhum raciocínio, nenhum
cálculo deliberativo. Contudo, nem por isso essas ações se tornam autônomas,
destituídas de um elemento mental, pois diversamente das últimas elas resultam
de vontade e intenção conscientes. Elas não são nem raciocinadas nem autônomas,
mas algo intermediário, que chamarei de ação volicional.
Na distinção entre ação raciocinada e
volicional podemos encontrar a diferença entre ações mais propriamente humanas
e aquelas realizadas por animais vertebrados em geral. Quando consideramos
casos como o da ação da serpente de dar o bote, do galo de cantar ao amanhecer,
do rinoceronte macho de correr atrás da fêmea, estamos diante de casos puros de
ações volicionais, pois parece óbvio que os movimentos corporais desses
animais, embora causados por volições, não se dão como resposta a um
planejamento racional.
Diversamente
dos casos acima, primatas superiores, como chimpanzés e orangotangos, já são
capazes de algum planejamento racional de suas ações. A importância dos famosos
experimentos de Wolfgang Köhler com chimpanzés é, em meu juízo, que eles marcam
o limite entre ações volicionais e raciocinadas. Köhler demonstrou que esses
animais são capazes de formas primitivas de ações raciocinadas. Eles conseguem
refletir sobre como resolver um problema antes de iniciar a ação. Por exemplo:
pensar que devem empilhar caixas umas sobre as outras para poder, subindo
nelas, alcançar a banana pendurada no teto.[3]
Como caracterizar a ação volicional? Há duas
condições essenciais. Uma é a da ocorrência de eventos físicos causados por
ativação neuronal, que geralmente são movimentos corporais originados por
contrações/relaxamentos musculares... A outra condição essencial é uma
ocorrência volitivo-intencional que causa
o movimento corporal e que o acompanha. Essa ocorrência recebeu denominações
variadas, como o tentar[4], o sentimento
de agência[5],
a intenção proximal[6], a intenção
na ação[7],
o querer ou volição[8], o esforço.[9] Escolho
chamá-la de querer ativo ou de esforço volitivo.
Com
efeito, a expressão ‘esforço volitivo’ parece ser um candidato razoavelmente
apropriado, uma vez que ela faz diferença com a expressão ‘esforço
não-volitivo, involuntário’, com a qual nos referimos à atividade nervosa
causadora de ações autônomas como os batimentos cardíacos. Um problema que pode
surgir com a adoção do termo ‘esforço’ no lugar de termos como ‘querer’ ou
‘intenção na ação’ é que enquanto os últimos parecem designar estados puramente
mentais, o primeiro parece designar também algo físico, posto que o esforço
volitivo parece ser sensorialmente perceptível. Mas, como J. R. Searle notou,
há aqui uma ilusão. O esforço volitivo possui natureza e intensidade
exclusivamente mentais. Ele apenas aparenta ser sensorialmente experienciado,
posto que somos usualmente informados acerca de sua eficácia pela sua
retroalimentação através da experiência proprioceptiva das posições relativas
dos membros, pela consciência cinestésica dos seus movimentos, por sensações de
contração muscular, pressão, cansaço etc. Disso resulta uma impressão enganosa
de que o esforço volitivo é, enquanto tal, alguma coisa fisicamente sensível
(não obstante isso, falamos do esforço de calcular mentalmente, que é um
esforço puramente psicológico pelo qual se realiza um ato mental. Contudo, até
mesmo este último pode acompanhar-se de efeitos físicos perceptíveis. Bertrand
Russell, por exemplo, relatou ter suspendido a respiração por cerca de um
minuto quando se concentrava na solução de um problema lógico, voltando depois
ofegante a respirar. Mas aqui se torna óbvio que os efeitos físicos
acompanhantes não são parte do esforço).[10]
Juntando os conceitos de movimento
corporal e de esforço volitivo, podemos caracterizar esquematicamente a ação
volicional como se segue[11]:
2. Ação
volicional = eventos físicos (teleológicos) resultantes
da
ativação neuronal causada por um
esforço
volitivo.[12]
Os eventos
físicos são teleológicos pelo fato de serem produto da vontade, do querer. Como
o esforço volitivo – o querer ativo – causa a ação volicional, ela precisa ser
sempre acompanhada dele para existir. Se a ação for a de atravessar um rio, e o
esforço volitivo for suspenso no meio do percurso, a pessoa deixará de realizar
a ação, talvez para sempre.
A evidência a favor da tese de que a ação
volicional é geralmente constituida de eventos físicos causados por um esforço
volitivo constitui-se no fato de que quando consideramos uma coisa sem a outra
não temos a ação. Searle tornou isso claro auxiliado por dois exemplos tomados
respectivamente de William James e Wilder Penfield. O experimento relatado por
James diz respeito a uma pessoa com os olhos vendados e com o braço
completamente anestesiado amarrado a uma mesa. O experimentador pede que ela
levante o braço, retirando-lhe em seguida a venda. A pessoa fica surpresa pelo
fato de o seu braço não se ter levantado. Nesse caso, não dizemos que a ação se
deu, pois mesmo que tenha havido um esforço da vontade, confirmado pela
ausência de retroalimentação negativa da parte do membro paralizado, não houve
movimento físico-corporal nem contração muscular. O outro caso é o relatado
pelo neurocirurgião Penfield, que estimulando diretamente com eletrodos os
cérebros de pacientes conscientes, era capaz de fazer com que eles movessem o
braço ou vocalizassem. Quando ele perguntava ao paciente se ele havia realizado
a ação, o último invariavelmente respondia que não, que era o próprio Penfield
quem a havia realizado. Com efeito, o paciente não realizava a ação, pois mesmo
havendo contração muscular e movimento corporal, não era ele que se esforçava
para levantar o seu braço, mas o próprio Penfield, por meio de uma ação instrumental
sua.
Uma objeção à noção de ação volicional é a
de que há muitas ações, como o ato automático de pressionar a letra ‘e’ ao
digitar uma mensagem no computador, ou o de levantar a perna direita ao andar,
ações nas quais o movimento corporal não costuma vir acompanhado de um elemento
volitivo-intencional consciente. Em meu juízo essa objeção resulta de não se
ter notado que não há uma fronteira fixa entre ação volicional e autônoma.
Ações que inicialmente são volitivo-intencionais, como resultados de um querer
consciente precedido ou não de deliberação racional, podem se transformar em
ações autônomas, ainda que dentro do escopo consciente de uma atividade
voluntária, como é o caso de se pressionar automaticamente a letra ‘e’ ao
digitar uma mensagem. Com isso a mente tem liberado um espaço maior para outras
funções e níveis de ação, sem deixar de, conjuntamente e na independência
disso, continuar exercitando e desenvolvendo as ações tornadas autônomas. Como
veremos mais tarde, isso se fundamenta no fato de que a ação volicional é uma
adição evolucionária à atividade autônoma. Ela preserva certas características
da última, como a de ser teleológica, embora a teleologia se faça aqui em um
sentido mentalista ao se tornar volitivo-intencional.
Ações raciocinadas
Como já
vimos, ações mentalmente causadas podem ser também resultado de um processo de
deliberação racional. Dizemos que um animal como a ovelha é capaz de ação
voluntária, mas sentimo-nos pouco inclinados a atribuir-lhe racionalidade,
devido à ausência de planejamento e controle conscientes. Também minha ação de
parar o carro diante do sinal vermelho não costuma resultar de um processo de
deliberação racional, embora eu possa atribuir racionalidade a ela ao fazer-me
consciente de suas razões implícitas (em sentidos derivados podemos atribuir
racionalidade tanto a ela quanto às ações em geral). Muito diferente, porém, é
a atividade de um camponês que decide semear em certos dias da primavera para
colher no outono, ou do engenheiro que constrói uma ponte. Trata-se, então, não
só de ações volicionais, mas também de ações que resultam de deliberação
racional em um sentido que não é alcançado por outras espécies animais.
Chegamos aqui a um terceiro e mais complexo nível de ação, o mais propriamente
humano, que é o da ação raciocinada.
Para se entender o que é uma ação voluntária
raciocinada, vejamos um exemplo típico. Digamos que amanhã seja o último dia do
prazo para a minha declaração de imposto de renda. A razão que me conduz à decisão de declarar é constituída (como as
razões em geral) de um desejo
adicionado a uma crença, o desejo
sendo o de não ser multado, a crença sendo a de que se eu declarar até amanhã,
não serei multado. Sendo tal desejo e tal crença suficientemente fortes e não
havendo conflito com outros desejos e crenças (ou seja, com outras razões), é
de se esperar que a minha razão para a decisão de declarar o imposto de renda
amanhã se torne operante, causando (pela chamada inferência prática) uma decisão,
que nada mais é do que a emergência de um querer
prévio (chamado por Searle de intenção prévia), contendo a minha intenção
de pagar o imposto de renda amanhã, que inclui ao menos o esquema de um plano
de ação. Essa intenção irá causar, a seu tempo, a emergência de um querer ativo, ou seja, do esforço volitivo (chamado por
Searle de intenção na ação e por Brian O’Shaughnessy de o tentar),
que no caso produzirá e acompanhará as contrações/relaxamentos musculares e
correspondentes movimentos corporais constitutivos da ação, juntamente com
efeitos intencionados outros, como o registro de minha declaração pelo fisco.
Sem ambicionar uma definição, podemos
caracterizar minimamente a ação raciocinada como se segue:
3. Ação raciocinada = eventos
físicos resultantes de ativação ner-
vosa e intencionalmente originados à luz
de um processo de deliberação racional.
Dizemos que a
ação raciocinada precisa ser intencionalmente e portanto teleologicamente
originada à luz do processo de deliberação racional porque queremos
garantir não só que o raciocínio causa o evento físico ou movimento corporal e,
possivelmente, o efeito intencionado, mas que ele o causa de modo apropriado. E
a única maneira pela qual o raciocínio pode fazer isso é indiretamente, através
do querer e de um esforço volitivo inerentemente intencional. Por ser assim,
uma outra caracterização da ação raciocinada é a que torna explícita a sua
inevitável dependência de uma ação volicional:
4. Ação
raciocinada = ação apropriadamente causada por um
esforço volitivo originado à luz de um
processo
de deliberação racional.
Finalmente, assim como a ação volicional pode ser
transformada em uma ação autônoma, a ação raciocinada também pode ser
transformada em ação volicional, de modo a deixar espaço livre para a mente tratar
de novos negócios. Podemos exemplificar isso relembrando o ato de pressionar a
letra ‘e’ quando digitamos um texto. Suponhamos que você esteja iniciando um
curso de datilografia. Nesse caso, ao ler a letra ‘e’ em uma palavra, você
inicialmente examina um diagrama que lhe mostra que você deve pressionar uma
tecla usando o dedo médio da mão esquerda para reproduzi-la. Essa crença e o
desejo de reproduzir a letra ‘e’ constituem a razão geradora da volição que faz
você pressionar a tecla. Temos aqui, claramente, uma ação raciocinada. Imagine
agora que você já está fazendo o curso há alguns dias e deva outra vez
reproduzir a letra ‘e’. Agora ao ler essa letra você já é capaz de apertar a
tecla correspondente com o dedo médio da mão esquerda sem pensar no que deve
fazer, por força apenas de sua vontade consciente e da intenção de acertar.
Aqui a mesma ação, que antes era raciocinada, já se tornou meramente
volicional. Finalmente, no final do curso, tendo se tornado um exímio
datilógrafo, você certamente realiza a ação de digitar a letra ‘e’ sem mais
saber nem quando o faz nem sequer quantas vezes o faz. Você realiza a ação
mecanicamente, de forma não intencional, não-consciente. A ação volicional
transforma-se, pois, em autônoma. É verdade que a ação autônoma de digitar a
letra ‘e’ se dá dentro do escopo de uma ação volicional de digitar expressões
ou frases, as quais por sua vez usualmente se dão dentro da ação raciocinada
que o fez tomar a decisão de copiar o texto... Mas isso não precisa nos
confundir.
Podemos resumir as distinções semânticas que
fizemos como resultantes de duas dicotomias. A primeira delas é entre (A) o
nível das ações autônomas, que não depende da mente consciente, e (B) o
nível das ações mentalmente causadas, que dela dependem. A segunda
dicotomia diz respeito apenas às ações mentalmente causadas, as quais se
subdividem em (B1) ações volicionais, originadas apenas de causação
volitivo-intencional, e (B2) ações raciocinadas, em cuja origem está um
processo de deliberação racional.
Importa ainda notar que tais distinções
concernem ao sentido e não à
referência: é uma mesma ação – um mesmo evento físico, movimento corporal ou
acontecimento muscular, por exemplo, o de digitar a letra ‘e’ – que pode se dar
em um nível autônomo, em um nível volicional ou em um nível raciocinado. Essas
distinções têm importância não apenas sistemática, mas também propedêutica, na
medida em que nos permitem eliminar eventuais equívocos resultantes da confusão
entre os níveis de ação.
Bases
filogenéticas
Um último
ponto diz respeito ao fundamento biológico-evolucionário das distinções
semânticas aqui delineadas. Ele pode ser encontrado na importante teoria do cérebro
triuno, desenvolvida pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul
McLean.[13] Segundo
essa teoria, não possuímos um único cérebro, mas três, que operam como três
computadores biológicos interdependentes, cada qual representando um extrato
evolucionário mais novo que se sobrepôs ao outro, como em um sítio
arqueológico. Podemos chamar esses três sistemas de arquiencéfalo (archipallium),
paleoencéfalo (paleomammalian brain) e neoencéfalo (neopallium).
O arquiencéfalo é o cérebro primitivo, já existente nos invertebrados
superiores. Ele corresponde no homem a estruturas como o bulbo raquideano e o
cerebelo. Este cérebro primitivo é mecânico, compulsivo e ritualístico,
atendendo a funções autônomas como a da respiração, pressão arterial e sono. Ao
arquiencéfalo veio a se sobrepor o paleoencéfalo, que já possui alguma forma de
mentalidade e cuja estrutura característica foi batizada por McLean com o nome
de sistema límbico. Ele é responsável por emoções e instintos
relacionados à alimentação, luta, fuga, e pelo comportamento sexual.
Vertebrados como répteis e pássaros possuem já paleoencéfalo, além do
arquiencéfalo. O neoencéfalo, por fim, é constituido pelo neocórtex e por
alguns grupos neuronais subcorticais. Ele forma os hemisférios cerebrais, sendo
particularmente desenvolvido nos primatas e constituindo cerca de 83% do
cérebro humano. O neoencéfalo é responsável pelos processos de raciocínio e
pela consciência introspectiva. O neocórtex e o sistema límbico são vastamente
interconectados, de modo que as funções cerebrais não são puramente límbicas
nem puramente corticais.
Dados os três níveis de ação aqui
distinguidos, e dada a teoria do cérebro triuno, as correlações se tornam
evidentes: a ação autônoma (ao menos enquanto sistema nervoso central estiver
envolvido) deve encontrar o seu locus
neurofisiológico primário no arquiencéfalo, a ação volicional no paleoencéfalo
e a ação racional no neoencéfalo, como mostra o esquema:
NÍVEIS
DE AÇÃO: LOCUS NEUROANATÔMICO
PRIMÁRIO:
AÇÃO RACIONAL .............. NEOENCÉFALO
(causada por processo (cérebro superior
de deliberação racional) neomamífero)
AÇÃO VOLICIONAL ............. PALEOENCÉFALO
(causada por volições)
(antigo cérebro mamífero)
AÇÃO AUTÔNOMA .............. ARQUIENCÉFALO
(causada por descargas (cérebro reptiliano ou
nervosas automáticas) complexo-R)
O fundamento
neuroanatômico da ação autônoma geralmente se encontra no cérebro primitivo ou
arquiencéfalo, sendo essa a razão pela qual ela não é consciente, embora nela
se possa encontrar um caráter teleológico evolucionariamente originado. Isso é
válido de maneira genérica (por exemplo, o ato de respirar), embora em certos
casos (como o dos movimentos peristálticos ou dos batimentos cardíacos) haja
uma maior ou menor independência da atividade do sistema nervoso central. O
segundo nível, o da ação volicional, tem a sua base cerebral predominante no
paleoencéfalo, no sistema límbico e nas emoções/desejos/intenções nele
originadas (as quais também devem poder depender do neoencéfalo, indispensável
à interpretação cognitiva da experiência). A ação raciocinada, por fim, depende
predominantemente do neoencéfalo (embora inevitavelmente dependa também da
colaboração de emoções e desejos originados no paleoencéfalo...).
A interdependência dos níveis de ação
considerados encontra as suas bases biológicas na interdependência entre os
três extratos biológicos. A pressuposição da ação volicional pela ação
racional, a existência do elemento comum de mentalidade entre ambas, e mesmo a
tendência das ações em passar de um nível superior a um mais inferior, tudo
isso é fundamentado na hierarquização evolucionária dos loci
neuroanatômicos, um deles se sucedendo ao outro em uma divisão de trabalho
possibilitadora da realização de tarefas crescentemente maleáveis e
complexas.
[1] Não obstante, como movimentos
corporais, no sentido mais amplo, são elementos essenciais indispensáveis ao
reconhecimento da maioria das ações humanas, pode ser útil caracterizar a ação
com base neles. Além disso, embora contrações musculares sejam indispensáveis ao
ato de acenar com o braço, por exemplo, os correspondentes movimentos corporais
também são, pois sem eles não haveria o acenar.
[2] Ludwig Wittgenstein: Philosophische
Untersuchungen (Suhrkamp:
Frankfurt 1983) I, seção 621.
[3] Wolfgang Köhler: The Mentality of Apes
(Routledge & Kegan Paul: London 1973 (1921)).
[4] Brian O’Shaughnessy: “Trying (as the
Mental ‘Pineal Gland’)”, Journal of Philosophy 70, 1973, pp. 365-86.
[5] Alvin Goldman: “Action”, in S. Guttenplan
(ed.): A Companion to the Philosophy of Mind (Blackwell: Oxford 1995),
p. 120.
[6] A. R. Mele & P. K.
Moser, “Intentional Action”, Noûs 28, 1994, p. 46.
[7] John R. Searle: Intentionality:
an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge University Press: Cambridge
1983), p. 84 ss. Ver também, do mesmo autor, Rationality in Action
(MIT-Press: Cambridge Mass. 2001), cap. 2.
[8] Prefiro as
expressões querer prévio e querer ativo respectivamente no lugar do
que Searle chama de intenção prévia e
intenção na ação. Geralmente a
intenção envolve algum plano de ação, enquanto o ‘querer’ pode envolver
qualquer coisa. Ações volicionais rudimentares como, por exemplo, o cantar do
galo, não envolvem intenção, mas mesmo assim podemos dizer que envolvem alguma
espécie de querer bem forte (Você já tentou fazer um galo parar de cantar?
Garanto que não é nada fácil). Por ser suficientemente abrangente, considero a
palavra ‘querer’ mais adequada.
[9] Contra o
uso essencialmente psicológico do termo ‘esforço’ poderia ser alegado que
falamos de um esforço “maior” ou “menor”, ou mesmo de um “grande esforço”,
tendo em mente alguma coisa física. Mas aqui se esquece de distinguir entre o
esforço físico e o esforço da vontade. Além disso, mesmo falando do esforço da
vontade podemos considerar intensidades, como quando notamos a persistência de
um estado intencional que não se deixou deter sequer por acompanhamentos
físicos muito desagradáveis. Claro que também dizemos que fazemos muitas coisas
“sem esforço algum”, mas isso é de fato um eufemismo. Uma terminologia similar,
também distinguindo entre esforço volicional e esforço físico já foi usada
William James em The Principles of Psychology (Dover: New York 1950
(1890)), ver vol II, cap. XXVI, Cf. nota da página 562.
[10] Contra a
idéia aceita por muitos autores de que a ação é um composto psicofísico
constituído por um movimento corporal adicionado a sua causa mental, Ted
Honderich apresentou bons argumentos no sentido de mostrar que a ação é mais
propriamente caracterizável como um movimento corporal, ainda que
mentalmente causado por uma intenção Ver seu livro How Free are You? The Determinism Problem (Oxford University
Press: Oxford 2002), cap. 5.
[11] J. R. Searle: Intentionality, pp.
89-90.
[12] Para uma
análise do papel das razões na determinação da ação, ver Robert Audi: “Acting
for Reasons”, Philosophical Review 95, 1986.
[13] Paul D. McLean: A Triune Concept of the
Brain and Behaviour (University of Toronto Press: Toronto 1973).
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