3
FATOS EMPÍRICOS
Com a questão
“O que são fatos?”, podemos querer saber duas coisas: a) “Qual a estrutura
daquilo que chamamos de fatos?”; b) “Que tipo de entidade eles são?” É com essa
última questão que tem a ver o problema com o qual nos ocuparemos.
A discussão dessa questão tem girado em
torno de duas posições básicas. A primeira é daqueles que acreditam que fatos,
em um sentido primário, são situações ou estados de coisas empiricamente dados
no mundo externo. Chamarei a esse ponto de vista de concepção lexical de fato, dado que é essa a
maneira como a palavra vem definida nos dicionários. Tal concepção foi aceita
por Russell, pelo Wittgenstein do Tractatus
e, em tempos mais recentes, argumentativamente defendida por J. L. Austin.
A segunda posição é a dos que afirmam não
poderem pertencer os fatos a uma realidade externa. De acordo com a versão
ontologicamente realista de Frege, fatos são pensamentos (conteúdos
proposicionais) verdadeiros. Segundo a versão mentalista de Nicholas Rescher,
fatos são estados de coisas mentais. E ainda, na versão convencionalista de P.
F. Strawson, A. N. Prior e outros, fatos são entidades intralinguísticas.
Construções lógicas para Prior; correlatos pseudomateriais para Strawson.
Há também posições intermediárias, que
buscam conciliar o que parece inconciliável. Foi assim que Günter Patzig alegou
que os fatos possuem uma enigmática natureza dupla, mantendo um pé no mundo
real, sem deixar de equilibrar o outro no mundo dos signos.[1] Mas isso
soa como um recurso ad hoc de
coerência questionável. Também Alan White, em uma explicação suspeita de
verbalismo, sugeriu que a noção de fato não se aplica nem a itens no mundo, nem
ao que é dito sobre o mundo, mas ao que o mundo é, a como as coisas, necessária
ou contingentemente, são.[2]
Respostas como essas são pouco sedutoras, mas servem para reforçar a suspeita
de que o problema contém complexidades que descartam uma solução maniqueísta.
É comum em filosofia que uma questão de
detalhe, quando problemática, venha a ser resolvida segundo as conveniências da
perspectiva sistemática à luz da qual ela é tratada. A concepção lexical de
fato, um truísmo jamais posto em questão por não-filósofos, mesmo que
brilhantemente defendida em “Unfair to Facts”, o artigo póstumo no qual Austin responde
a Strawson, tem na discussão filosófica perdido terreno para a concepção
concorrente. Sugiro, porém, que na origem deste insucesso esteja menos o
equilibrado pesar dos fatos do que, em alguns casos, a intenção de defender uma
concepção não-correspondencial da verdade, e, em outros, o receio de que a
aceitação da definição lexical signifique o retorno a certas concepções
pré-críticas de conhecimento. É curioso que Tugendhat em suas Vorlesungen, e Habermas em seu artigo
sobre a verdade, acolheram quase sem discussão a tese da determinação
linguística, o primeiro com base em argumentos fregeanos, o segundo aceitando
argumentos de Strawson, mas ignorando as respostas de Austin.[3] A
suposição subjacente ao que aqui escrevo é a de que filósofos, embora com as
melhores intenções, acumularam mal-entendidos que de tal forma perverteram
nossa compreensão do uso cotidiano da palavrinha ‘fato’, que perdemos a
capacidade de vê-la como uma entidade linguística responsável, capaz de cumprir
com as suas mais elementares obrigações semânticas. Cabe, pois, recuperá-la
para a linguagem.
No que se segue, pretendo adicionar algumas
considerações a favor da ideia de que existem fatos essencialmente pertencentes
ao mundo dito empírico: fatos que chamarei de empíricos. Não obstante, antes de
passar a elas, é necessário chamar atenção para algumas importantes restrições
no escopo da argumentação. Podemos com a palavra ‘fato’ querer dizer coisas diferentes:
ela tem diversos sentidos referenciais,[4]
aplicando-se a diversas classes categoriais. Assim, ‘fato’ é uma palavra
normalmente aplicável àquilo que é exposto por enunciados comumente tidos como
analíticos, como os da lógica e da matemática; podemos dizer que a lei do
terceiro excluído e o teorema de Pitágoras são fatos – fatos formais.
Também é frequente dizermos que um certo fato não se deu, como o fato de a
grama ter sido aparada – um fato negativo; também dizemos que um fato
ocorreria ou teria ocorrido se certas condições fossem ou tivessem sido
preenchidas, como o fato de que a grama teria uma aparência uniforme, se ela
tivesse sido aparada – um fato condicional.[5] Podemos
perfeitamente dizer que é um fato que todos os cravos têm perfume – um fato universal
– e outro que existem rosas brancas – um fato existencial. Em nenhum
destes sentidos referenciais da palavra ‘fato’ pretendo defender que ela faça
referência a alguma combinação de elementos diretamente especificável
como existente no mundo real, a fatos empíricos, e considero uma questão em
aberto, exceto talvez para os fatos expressos por enunciados analíticos auto-evidentes,
saber em que medida concepções como as de Rescher ou de Strawson lhes são
adequadas. Meu ponto é o de que, ao menos para o caso dos enunciados
afirmativos singulares (predicativos ou relacionais) de tipo observacional, a
concepção lexical é plenamente aplicável, sendo a apressada assimilação deste
último caso aos casos acima uma primeira fonte de confusões. Se esse ponto me
for concedido, isso deverá bastar para, ainda que com algumas baixas,
conceder-se vitória à concepção lexical, uma vez que, por sua relação com
aquilo que primariamente verifica, é precisamente esse o caso decisivo.
I
É instrutivo
começarmos considerando um velho argumento a favor da determinação linguística,
a evidenciação de certo grau de sinonímia entre a palavra ‘fato’ e expressões
como ‘pensamento verdadeiro’ ou ‘enunciado verdadeiro’ com base na
intersubstitutibilidade de suas ocorrências. Podemos tomar como referência os
dois exemplos seguintes: a frase “É um fato que o sol é vermelho” pode ser
substituída pela frase “É verdade que o sol é vermelho” sem que o valor-verdade
se altere, o mesmo acontecendo com a frase “O que ele afirma [diz, enuncia,
pensa] é um fato”, que pode ser substituída por “O que ele afirma [diz,
enuncia, pensa] é verdadeiro”.
Já foram aplicados certos artifícios para
mostrar que semelhante intersubstitutibilidade não evidencia sinonímia, mas, no
máximo, uma já esperada relação inferencial. O mais instrutivo, proposto por
Austin, é o seguinte. Se a frase (a) “O que ele afirma é verdadeiro” tivesse o
mesmo sentido que a frase (b) “O que ele afirma é um fato”, então a
substituição de ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, que pode ser realizada
na frase (a) sem alteração em seu sentido, poderia ser realizada na frase (b)
com idêntico resultado. Mas tal não se dá. A frase (b’), resultante desta última
substituição é: “Sua afirmação [seu dizer, enunciar, pensar] é um fato”; – uma
frase que ou não faz sentido, ou, se insistirmos em lhe dar um significado, este
nada mais terá a ver com o original, pois referir-se-á ao fato de alguém ter
tido um certo pensamento ou ao fato de um proferimento ter-se realizado.[6]
É curioso ver até que ponto a admissão de um
outro truísmo lexical, a definição de verdade como correspondência com o fato,
faz aparecerem novas dificuldades para a ideia de que fatos são pensamentos ou
enunciados verdadeiros. Já se notou que um enunciado como “O que ele afirma é
verdadeiro se é um fato” parece dizer mais do que a tautologia trivial “O que
ele afirma é verdadeiro se é uma afirmação verdadeira”. Afora isso, enquanto a
sentença “O que ele afirma é verdadeiro se corresponde a um fato” forma um
enunciado significativo, a sentença “O que ele afirma é um fato se corresponde
a um fato” é de inteligibilidade duvidosa. E a estranheza disso torna-se
suficientemente paradoxal se considerarmos que a segunda ocorrência da palavra
‘fato’, ao identificar-se com uma afirmação verdadeira, permite a adição
recursiva da afirmação de que este fato corresponde a um outro, que corresponde
a um outro, e assim por diante. A possibilidade de semelhantes construções é
eliminada pela simples recusa da aceitação de uma sinonímia entre pensamento
verdadeiro e fato, embora também pela alegação, dificilmente justificável, de
que a definição lexical de verdade é mero idiomatismo, por misteriosa
coincidência presente em idiomas muito diversos...
Podemos também, o que é mais interessante,
argumentar mostrando que o predicado ‘é verdadeiro’ se aplica a algo mais
próximo de nossas formas linguísticas do que o predicado ‘é um fato’.
Suponhamos que o que queremos dizer com a sentença assertiva
(i) O sol é vermelho,
seja
expresso – de modo a acentuar o elemento linguístico – no interior do enunciado
metalinguístico:
(ii) O enunciado “O
sol é vermelho” é verdadeiro.
Esse último
enunciado é significativo e preserva toda a força assertórica do primeiro. Mas,
se nele substituirmos o predicado ‘é verdadeiro’ por ‘é um fato’, tendo como
resultado o enunciado metalinguístico:
(iii)
, O enunciado “O sol é vermelho” é um fato,
nós não só
eliminamos a força assertiva própria do enunciado (i), como fazemos com que o
todo perca o sentido ou receba um sentido muito diferente do original. Ora, só
a concepção lexical de fato explica isso, pois ela nos permite sugerir que
enquanto no enunciado (ii), sendo que a verdade é predicada de algo
linguisticamente determinado (supostamente o que o enunciado diz, o que
pensamos com base nele), a acentuação do elemento linguístico não impede que a
mesma predicação se mantenha, no enunciado (iii) tal acentuação exclui a
possibilidade de referência do predicado ‘é um fato’ àquilo que não é linguisticamente
dependente ou determinado, i.e., o correlato extralinguístico, o fato de
o sol ser vermelho, perdendo-se com isso a força assertiva própria da sentença
original.
Que a verdade é predicada de algo mais
próximo de nossas formas linguísticas é também evidenciado por uma descrição
como ‘a conquista da lua’, da qual podemos predicar factualidade (“A conquista
da lua é um fato”), mas não verdade (“A conquista da lua é verdadeira”). A
razão disso seria que a expressão ‘a conquista da lua’ funciona em geral como
redução nominalizada da frase “A lua foi conquistada...”: sem a complexidade
própria da frase declarativa, a forma nominalizada deixa de expressar a espécie
de articulação da qual se usa predicar a verdade.
Essas considerações nos fazem pensar na
razão pela qual na frase:
(a)
O que ele afirma é verdadeiro,
podemos substituir ‘o que ele afirma’ por ‘sua
afirmação’, tendo como resultado uma frase (a’) “Sua afirmação é verdadeira”,
sem que a proximidade semântica entre ela e a frase
(b)
O que ele afirma é um fato,
se altere, enquanto que, se a mesma substituição
for efetuada na frase (b), a frase resultante (b’) “Sua afirmação é um fato”,
perderá sua proximidade semântica com relação à frase (a).
Não
explicável de outro modo, sob o suposto das considerações anteriores quero
mostrar que a perda da proximidade semântica passa a receber uma explicação
natural. Para tal é preciso primeiro notar que ‘o que ele afirma’ é uma
expressão nominal ambígua: ela pode referir-se tanto a (i), o conteúdo
descritivo que na frase da outra pessoa é afirmado como verdadeiro, quanto a
(ii), o correlato que torna tal conteúdo verdadeiro: o fato. Como o predicado
‘é verdadeiro’ se aplica a algo linguisticamente determinado, ele se aplica a
(i) em (a), i.e., ao que geralmente se aceita como sendo o “portador” da
verdade. Já em (b) o predicado ‘é um fato’ deve aplicar-se somente ao correlato
factual, à referência (ii) da expressão nominal ambígua ‘O que ele afirma’.
Acresce-se a isso que a proximidade semântica entre as frases (a) e (b)
deixa-se explicar como sendo devida a uma implicação vigente entre elas, a qual
só existe sob a condição de que (b) seja interpretada no sentido que ela deve
possuir se o predicado ‘é um fato’ for aplicado à referência (ii) da expressão
nominal ‘o que ele afirma’, pois existindo tal correlato factual, fica
implicada a predicação de verdade da referência (i) da ocorrência da mesma
expressão na frase (a), a qual, se justificada, também implica na verdade de
(b). Consideremos agora a expressão nominal ‘sua afirmação’. Tal expressão
refere-se apenas a (i), isto é, a um conteúdo descritivo ao qual a verdade é
atribuída, mas não a (ii), seu correlato factual. Ora, quando substituímos em
(a) ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, o predicado ‘é verdadeiro’ na frase
resultante (a’) continua a aplicar-se normalmente ao portador (i). Já ao
substituirmos em (b) ‘o que ele afirma’ por ‘sua afirmação’, como a essa última
expressão falta a possibilidade usual de referência a (ii), o predicado ‘é um
fato’ na frase resultante não tem mais como aplicar-se ao fato afirmado, como
era requerido. Com isso a frase (b’) só pode ser tornada inteligível se o
predicado ‘é um fato’ se aplicar à referência (i) da expressão nominal. Mas
isso impossibilita que se mantenha a relação implicativa entre o conteúdo da
frase (b’) e o das frases anteriores, promovendo a suspensão da esperada
proximidade semântica.
Nada
disso, é certo, chega a ser demonstrativo. No que se segue considerarei
argumentos mais fortemente ligados aos contextos ordinários de aplicação da
palavra, procurando fazer com que os fatos, por assim dizer, falem por si
mesmos.
II
Que os fatos
descritos por proferimentos observacionais são dados no mundo externo toma-se afrontosamente
óbvio quando consideramos proferimentos em que fatos são tratados como causas
de alguma coisa. Considere-se os seguintes exemplos:
(i) O fato de o fósforo ser riscado causou a chama.
(ii) Ele morreu devido ao fato de ter esquecido de
desligar o gás.
(iii)
Pelo fato de ser feriado, hoje
não haverá aula.
(iv) O fato de César ter atravessado o Rubicão teve
consequências históricas relevantes.
Não parece nem um pouco compreensível como a
chama do fósforo, a morte de alguém, a ausência de aula e as consequências
históricas da travessia do Rubicão possam ser causadas por coisas como
conteúdos proposicionais, construções lógicas, correlatos pseudo-materiais,
seja lá como essas entidades abstratas forem chamadas.
Claramente,
a admissão da existência de fatos empíricos soluciona esse tipo de problema. O
riscar do fósforo foi um fato-evento causador da chama; o fato
situacional real gerado por uma pessoa ter esquecido o gás ligado provocou
sua morte; o fato-circunstância de ser feriado fez com que não houvesse
aula; com a travessia do Rubicão concretizou-se um fato-estado de coisas
determinante de uma alteração histórica sumamente relevantes: a substituição do
poder do senado pelos reino dos césares. Não é por ser um argumento modesto que
esse deva parecer um movimento inconclusivo aos homens de boa vontade, razão
pela qual me empenharei agora em mostrar onde creio que falham as outras
objeções à empiricidade dos fatos de observação.
O
argumento mais difundido é talvez o que apela para a conjunção ‘que’, a chamada
frase ou “cláusula-que” (that-clause),
que com certa frequência precede a enunciação do fato. A maneira mais eficaz de
apresentá-lo é, como o fez Strawson e Günter Patzig,[7] a que
contrasta a palavra ‘fato’ com palavras como ‘ocorrência’ e ‘evento’, as quais
não costumam admitir a “cláusula-que”. Segundo esse modo de ver, ‘o evento da
travessia do Rubicão por César’ é datável
e localizável, pois palavras como
‘ocorrência’ e ‘evento’ servem para designar episódios espaciotemporalmente
localizados, enquanto ‘o fato de que César atravessou o Rubicão’ é atemporal e não-localizado, donde se pode concluir que a “cláusula-que” serve
para assinalar o caráter intralinguístico e, portanto, não espaciotemporal do
fato.
Há aqui
uma variedade de questões a serem aclaradas. Uma questão preliminar é a de se
saber se a palavra ‘fato’ ganha um novo sentido – supostamente intralinguístico
– quando vem acompanhada da “cláusula-que”. A resposta é negativa, na medida em
que transformações anteriormente exemplificadas também podem ser evidenciadas
em frases com a “cláusula-que”. O proferimento “O enunciado de que o sol
é vermelho é verdadeiro”, por exemplo, perde a força assertiva original quando
substituímos ‘é verdadeiro’ por ‘é um fato’. Com ou sem a “cláusula-que”,
parece que o sentido referencial da palavra ‘fato’ permanece essencialmente o
mesmo.
Outra
questão é a da sustentabilidade da conclusão de que fatos não são espacio-temporais.
Vale a pergunta: são os fatos ditos empíricos realmente não espacio-temporais –
à diferença de eventos e ocorrências – ou trata-se de mais um mero efeito
sugestivo, do efeito quase hipnótico que certos exemplos, argumentos e construções
textuais em filosofia costumam exercer sobre nós?
A
objeção pode ser em grande medida respondida pela simples apresentação de
contra-exemplos: “o colapso dos germânicos”, escreve Austin, “é um evento e é
um fato – foi um evento e foi um fato".[8] Que a
batalha de Waterloo se deu em 1815, diz-se, é um fato, assim como se diz que
Leibniz é um metafísico, querendo-se dizer apenas que ele o foi no passado, e
que isso ainda hoje importa. É perfeitamente adequado dizer que o fato de o
muro de Berlim ter sido derrubado se deu na Alemanha e que tal fato só passou a
existir depois da ocorrência de sua derrubada; que eu ontem fui ao barbeiro é
um fato que me ocorreu ontem; que meu cabelo foi cortado é visivelmente um
fato. Fatos parecem ter duração, tanto quanto ocorrências: não há nada de
errado em se dizer que a existência de conflitos religiosos nas fronteiras com
o estado de Israel é um fato que persiste ainda hoje.
Uma expressão como ‘o fato de César ter
atravessado o Rubicão’ expõe um caso bem conhecido, mas enganador. A frase
parece descrever um fato – o da travessia de um rio – o qual tem a ver com um
certo evento – o da travessia do mesmo rio – que é precisamente localizável na
fronteira italiana e datável para uma certa noite do ano de 49 a.C., o que,
pode-se argumentar, não parece ter muito a ver com o fato que realmente
temos em mente. Mas a expressão ‘a travessia do Rubicão por César’ possui
geralmente um sentido metafórico, denotando, não a travessia do rio pelas
hostes de César, mas uma situação histórica complexa, real e duradoura,
decorrente da decisão de César de voltar-se contra Pompeu. Trata-se de um fato
complexo, do qual podemos adquirir conhecimento mais e mais preciso pelo
acréscimo de informação histórica. Mesmo que um tal fato não seja tão
precisamente datável e localizável como o da travessia, parece perfeitamente
correto dizer-se que ele se deu no império romano e no primeiro século antes de
Cristo.
A
afirmação de que fatos empíricos não são datáveis nem localizáveis não se
funda, pois, em nossa efetiva intuição linguística, não podendo ser assimilada
a espécies não propriamente empíricas, como o fato de que 2 + 2 = 4, obviamente
nem datável nem localizável. E que alguém possa dizer do fato, que ele, uma vez
um fato, será sempre um fato, não é, pois, indício da eternidade dos fatos, mas
um modo simplesmente retórico de nos reportarmos à inalterabilidade dos
acontecimentos passados.
Se a
nossa própria linguagem demonstra que, em oposição à superstição filosófica
mais corrente, os fatos, quando empíricos, são também localizados no espaço e
no tempo, o que resta da tão celebrada distinção categorial entre fatos, de um
lado, e, de outro, eventos, ocorrências etc.? Minha sugestão é a de que tal
distinção deva ser substituída pela distinção mais adequada a ser esboçada a
seguir.
III
Penso que a
verdadeira diferença entre fatos e eventos pode ser melhor esclarecida se
começarmos por distinguir entre os dois seguintes grupos de palavras:
(A) circunstância,
estado de coisas, situação, condição, vicissitude...
(B) evento,
acontecimento, episódio, manifestação, ocorrência, processo, sucessão...
Qual a diferença
entre eles? A resposta é que o grupo (A) é constituído de palavras cujos
designata são concebidos como não envolvendo mudança no todo, possuindo
estruturas formadas de relações entre elementos, as quais costumam ser, como
eles próprios, estáticas, inalteráveis. Assim são os casos dos estados de
coisas de que a minha vassoura está no canto, de que o livro está sobre a mesa.
Mesmo quando eles envolvem mudanças internas cíclicas, como o fato de a terra
girar em torno do sol, podemos dizer que eles como um todo não se alteram
enquanto duram. Quanto ao grupo (B), ele constitui-se de palavras cujos
designata são concebidos como envolvendo mudança no todo, digamos, entidades
cuja estrutura é formada de relações que se alteram no período de sua
existência. São os casos do evento do raio que ilumina o horizonte, da
ocorrência do cair da pedra. O grupo (B) pode ser dividido ainda, segundo a
espécie de alteração que se tem em vista, em (B1) e (B2). O grupo (Bl) consiste
em palavras como ‘evento’, ‘episódio’, ‘acontecimento’, ‘ocorrência’, que
geralmente designam algo mais do ponto de vista de seu surgimento e
desaparecimento no tempo, além de enfatizar limitações de duração (por exemplo,
a ocorrência de um eclipse); o grupo (B2) consiste de palavras como ‘processo’,
‘ocorrência’, ‘sucessão’, que costumam designar algo mais do ponto de vista de
suas modificações no tempo (exemplo: o processo de mudança de cor do camaleão,
que antes era vermelho e agora é verde). Tanto (B1) quanto (B2) como um todo
se alteram enquanto duram.
Podemos agora nos perguntar sobre a relação
entre o âmbito de aplicação da palavra ‘fato’ e o das palavras acima.
Consideremos, para tal, exemplos daquilo que é comumente designado pelas
palavras de ambos os grupos. Quais são também fatos? No caso do grupo (A) é
certo que em aplicações apropriadas tudo o que é designado são também fatos: a
circunstância de a vassoura estar no canto, o estado de coisas de que o livro
se encontra sobre a mesa, a situação do trânsito estar congestionado, são
fatos. No caso do grupo (B) a resposta não parece ser outra: o evento da queda
do império germânico, a ocorrência do repicar dos sinos, o processo de mudança
de cor do camaleão, parecem não se distinguir enquanto tais dos fatos de que o
império germânico caiu, de que os sinos repicam, de que a cor do camaleão
mudou, e já vimos que não há boas razões para sustentar tal distinção. A
palavra ‘fato’ se aplica, portanto, indiferenciadamente, às entidades às quais
se aplicam as palavras de ambos os grupos, (A) e (B). A distinção entre fatos e
eventos reduz-se, segundo esse raciocínio, a uma diferença entre gênero e
espécie, podendo as relações ser ilustradas por meio do seguinte esquema:
FATOS EMPÍRICOS:
_____________________________∩____________________________
(A) (B)
QUE COMO UM TODO QUE COMO UM TODO
NÃO SE
ALTERAM SE ALTERAM
ENQUANTO
DURAM ENQUANTO DURAM:
estados de
coisas eventos
condições ocorrências
situações acontecimentos
circunstâncias processos...
A classe dos
eventos, como a classe dos estados de coisas, não passam de subclasses da
classe dos fatos, diferindo dela intencionalmente ao menos pela adição de
critérios que restringem suas extensões. E o ponto mais relevante é que, como
as classes formadas pelos elementos costumeiramente designados pelas palavras
dos grupos (A) e (B) são mutuamente exclusivas, só a classe dos fatos inclui a
ambas.
Esse
ponto é relevante porque, se estivermos em busca do correlato empírico
verificador de enunciados, a palavra ‘fato’ evidencia-se como a única
suficientemente abrangente e, nessa medida, a mais adequada para o papel, pois
as palavras dos grupos (A) ou (B), sendo eles exclusivos, não podem se aplicar
a todos os fazedores de verdade: que o livro está sobre a mesa não pode ser
verificado por uma ocorrência; que o camaleão muda de cor não pode ser
verificado por uma situação. Finalmente, é porque eventos etc., revelam-se como
exemplares de uma espécie de fato empírico que falar de eventos etc., implica
em falar de fatos.
Contra essa conclusão simples e
esclarecedora pode ser inventariada em defesa de Strawson uma multiplicidade de
considerações visando mostrar que, diversamente de nossa tese, que é a de que
eventos formam uma espécie do gênero dos fatos, fatos e eventos constituem
gêneros diferentes de entidades. Argumenta-se que ao falarmos de eventos, de
ocorrências, buscamos captar uma dinâmica que diz mais respeito que os fatos à
intimidade da natureza empírica, o que bem pode ser verdade. Diz-se assim do
fato, que ele ocorreu; mas não se diz da ocorrência, que ela se factualizou. Há
ocorrências que se alastram e processos que mudam de lugar, mas isso não parece
ser algo que se possa dizer de fatos. Podemos seguir um acontecimento, não um
fato. O evento da queda de uma pedra pode ser obstado, mas não o fato de sua
queda. Pense-se no fato de uma partida de futebol, que se deu ontem, e no
processo do desenrolar desta partida, ao qual importam o começo, o meio e o
fim, e ter-se-á uma ideia das diferenças envolvidas. E ainda há a distinção, que
encontro em um texto de Wittgenstein, entre fato e complexo:[9] um
complexo é um objeto espacial constituído de objetos espaciais e capaz de
mover-se de um lugar para outro; já dos fatos não se diz que eles se movem.
Nada disso, a meu ver, exige modificação
relevante nas explicações e distinções conceituais anteriormente sugeridas; mas
há acréscimos em nível conotativo e há trabalho de faxina no interior trapiche
filosófico.
Com efeito, fatos empíricos não são
concebidos dinamicamente. Eles são concebidos como sendo em um sentido
importante estáticos, inalteráveis; como concatenações contingentes de
elementos que formam totalidades cuja estrutura é então concebida como fixa,
invariável, o que parece ser mesmo um requisito necessário à preservação da
pretensão de invariância da verdade nos enunciados observacionais dos quais
eles seriam correlatos verificadores. Mas isso não nos obriga a concebermos os
fatos sempre como espécimens de estados de coisas, como o de que o livro se
encontra sobre a mesa. Não só podemos
dar conta de eventos, ocorrências, processos etc., concebendo-os, em um
tratamento mais detalhado, como encadeamentos sequenciais de estados de coisas,
de fatos; nós também podemos concebê-los como fatos unitários, na medida em nos
reportarmos a eles fixando a alteração como um elemento dinâmico, o que permite
concebermos o seu todo, uma vez formado, como inalterável. Assim, as ações de
morder e de mudar de cor podem ser fixadas como elementos dinâmicos dos fatos
de que o cão mordeu a perna do carteiro (aRb) e de que o camaleão mudou de cor
(Ra). Mesmo envolvendo mudanças, tais eventos podem ser concebidos como totalidades
cuja estrutura dinâmica torna-se post factum invariável. Considere ainda
o fato de a Segunda Guerra Mundial ter ocorrido...
As outras objeções consideradas respondem-se
diversamente. O fato que ocorreu (deu-se) ontem é o fato explicitado como
evento (Bl), ou seja, do ponto de vista de sua duração, surgimento e
desaparecimento no tempo. O fato da partida de futebol ter ocorrido envolve
muito mais do que a partida: ele envolve todo um dado contexto temporal e
local; isso pode ser algo mais amplo do que a consideração do processo da
partida – mas esse processo também é um fato, que, concebido como um processo
(B2) tem enfatizadas as suas modificações internas. Daí podemos nos
perguntar se em contextos que requerem a consideração de modificações temporais
de algo, falar de um fato no lugar de se falar de evento ou ocorrência torma-se
uma inadequação. Nesse caso frases como “Segui o fato do cair da pedra” e “O
fato do cair da pedra foi obstado” não são, a rigor, incorretas, mas estranhas por
falta de uso; quando falamos de acontecimentos relativos a um fato dinâmico, é
mais conveniente falarmos de eventos.
As questões relacionadas à localização espaciotemporal
e à observação, feita por Wittgenstein, de que não se diz dos fatos que eles se
movem, podem ser respondidas de maneira semelhante. Embora os fatos empíricos
sejam espaciotemporalmente localizados, há alguns cuja localização torna-se
apenas aproximadamente determinável, e isso pode ocorrer de diferentes
maneiras. Um exemplo é o fato de que o filósofo Leibniz usava uma grande
peruca. Aqui poderia emergir a objeção de que tratamos os fatos como se eles
fossem complexos móveis: Leibniz, que usava uma grande peruca, mudava de lugar
no espaço; se esse fato é empírico, alguém podería considerá-lo uma espécie de
“fato ambulante”, que por algum tempo poderia ter sido encontrado em certas
regiões da Europa. A resposta é que, não obstante as aparências, tal
consideração não é incorreta. Ela apenas não precisa, não costuma, não merece
ser feita: que certas construções linguísticas sejam raras, inabituais, e que
então soem estranhas, não quer dizer que elas sejam rigorosamente incorretas –
tais construções podem ser incomuns por serem desnecessárias, inconvenientes,
deselegantes, inadequadas, enganosas... Alguém poderia também dizer que o fato
de Leibniz usar uma vasta cabeleira foi um “fato intermitente”, pois ele não a
usava o tempo inteiro, e isso também é correto. Mas que utilidade, que sentido
possui, em condições normais, semelhante observação? Identicamente, a
observação de que esse foi um fato móvel é geralmente inútil, creio que pela
seguinte razão: se o que chamamos de fato tem a função básica de servir de
correlato verificador de um enunciado constatativo, parece que não é geralmente
útil nos reportarmos à sua possível mobilidade (nem que lhe ocorra ser obstado,
ser intermitente etc.), pois para isso teríamos de passar a concebê-lo como
simples elemento do fato relatado na constatação mais ampla dessa mobilidade, abstraindo-nos
dele como o todo a ser considerado. Tendo o fato a função de correlato
verificador de um enunciado, é inconveniente considerarmos sua mobilidade, pois
aí já estaremos tratando do correlato verificador de um outro enunciado, de um
outro fato, cuja possível mobilidade também é desconsiderada.
A mesma observação de que um fato é móvel
pode ser também enganadora ao nos levar a confundir o fato contingente com o
complexo (o objeto físico unitário) Leibniz, do qual pode ser preciso dizer que
se move. Além disso, o fato de que Leibniz usava uma peruca não precisa ser
considerado móvel, se considerado com relação ao corpo de Leibniz, e é isso o
que normalmente e naturalmente fazemos. Por razões semelhantes, não diríamos
que o fato de o camaleão ter mudado de cor é móvel porque o aquário no qual ele
se encontra está sobre a Terra, a qual se encontra em movimento. Mas diríamos,
com muito mais propriedade que, como um certo camaleão estava se movendo ao
mudar de cor, o fato (ocorrência) de ele mudar de cor era móvel. E isso é
perfeitamente correto, mesmo que seja algo que (pela razão já aludida) é inútil
e inconveniente de se dizer, e que por isso venha a parecer impróprio aos
ouvidos de um ortodoxo filósofo da linguagem ordinária. Ainda, segundo
Wittgenstein, embora um complexo móvel não seja um fato, que o complexo se move
é um fato.[10]
Mas isso é assim porque, sendo o complexo uma coisa material, pensamos nele
como uma unidade: se o complexo móvel for um carrinho de supermercado cheio de pacotes,
que ele se encontra cheio de pacotes é um fato, uma concatenação fortuita de
elementos, sendo supérfluo, embora possível, reportarmo-nos aqui ao seu
movimento. Em suma: quando uma concatenação móvel de elementos é tratada como
fato, o fato de sua mobilidade costuma ser abstraído.
Voltemos à “cláusula-que”. Austin argumentou
que a conexão considerada é contingente e relativamente recente em língua
inglesa, servindo para evitar construções gerundiais.[11] As
considerações anteriores conduzem-nos à sugestão de que a “cláusula-que” possui
realmente um papel linguístico, embora diverso daquele que os críticos da
concepção lexical propõem. Enquanto construções que se seguem a palavras do
grupo A, como ‘circunstâncias’, ‘situações’, ‘estados de coisas’, costumam vir
precedidas da “cláusula-que”, construções que se seguem a palavras do grupo B,
cujo designatum envolve mudança, como ‘ocorrências’, ‘eventos’,
‘processos’, ‘acontecimentos’, não se fazem preceder dela. Não seria então a
“cláusula-que” um dispositivo gramatical usado justamente para enfatizar o
caráter estático, próprio dos elementos e relações constitutivos do designatum de construções com o
primeiro grupo de palavras, por oposição ao caráter dinâmico do que é concebido
através de construções com o segundo grupo de palavras? Sendo assim, não seria
a palavra ‘fato’ passível de associação com a “cláusula-que” pela simples razão
de dela participarem as palavras do grupo (A)? Compare-se as transformações:
(a)
O fato (circunstância, estado
de coisas, situação...) de o livro estar sobre a mesa.
O fato (circunstância, estado
de coisas, situação...) de que o livro está sobre a mesa.
(b)
O fato (evento, ocorrência,
sucessão, processo...) do repicar dos sinos.
O fato (circunstância, estado
de coisas, situação) de que os sinos repicam.
Fato é uma
palavra que admite a introdução da “cláusula que” tanto no caso (a) quanto no
caso (b), o mesmo não sendo possível com palavras como evento, ocorrência,
processo etc. Parece, pois, que é por poder ser aplicada também nos casos de
palavras do grupo (A), que a palavra ‘fato’, em sua inespecificidade, pode ser
aplicada acompanhada da “cláusula que” também nos casos designáveis por
palavras do grupo (B). Já por conotarem especificamente o elemento de mudança,
as palavras do grupo (B) continuam sem admitir o acompanhamento da “cláusula
que”. Não dizemos ‘o evento de que os sinos repicam’, mas ‘o evento do repicar
dos sinos’, não dizemos ‘o processo de que o aquecimento global’, mas
simplesmente ‘o processo do aquecimento global’, Mas podemos dizer ‘o fato de
que os sinos repicam’ e ‘o fato de que o aquecimento global se dá’.
Ainda restam outras objeções. Filósofos como
Strawson objetaram que fatos, ao contrário de coisas materiais, não podem ser
criados ou destruídos, testemunhados, apontados ou evitados, chutados,
consertados, vistos e ouvidos.[12]
Mas, tanto quanto ela se aplica, a objeção é
falha. Se os fatos empíricos são, como a concepção lexical sugere, concatenações
contingentes de elementos quaisquer, eles devem obviamente distinguir-se de
tais elementos, entre os quais encontrar-se-iam, supostamente, coisas
materiais. Mesmo desconsiderando isso, querer que se possa dizer de fatos
empíricos o que comumente se diz de coisas materiais (quebráveis, chutáveis,
consertáveis, audíveis, fixáveis por nossas vistas, apontáveis etc.), é
incorrer em um erro primário, que é o de assimilar a gramática da descrição dos
fatos à gramática da referência a coisas materiais. Tanto quanto a objeção não
se aplica, podemos encontrar contra-exemplos. Fatos não costumam ser visíveis
ou apontáveis porque envolvem em geral contextos mais amplos. Mas há exceções:
a frase “O fato de o rei estar nu foi visto por todos os que assistiam à procissão”
não parece incorreta; há, pois, fatos dos quais dizemos serem visíveis. Embora
não habitual, pois o verbo ‘apontar’ é geralmente aplicável àquilo que se pode
mostrar com o dedo, que geralmente são objetos concretos, com limites
definidos, não parece ilegítimo dizer que alguém apontou para o fato de a lua
estar nascendo, e isso sem nenhum sentido figurado. Um fato pode ser evitado:
“O ato heróico de Catarina evitou que a invasão da cidade se transformasse em
um fato”. Um fato pode ocorrer: “Alguns anos atrás ocorreu aqui um fato
desagradável”; e é possível que se produzam e que se criem novos fatos.
Uma última objeção, respondida por Austin de
modo bastante elíptico,[13] pode
ser resumida na alegação de que fatos são sujeitos de atitudes proposicionais,
de uma multiplicidade de operações discursivas, cognitivas etc., podendo ser
(da mesma forma que enunciados) asseridos, descritos, disputados, comentados,
comunicados, provados, revisados, sumarizados, além de poderem ser aprendidos,
experienciados, esquecidos, assumidos (...), enquanto que coisas, eventos e
ocorrências, por não pertencerem nem à linguagem nem ao entendimento, mas ao
mundo – esse o moto intrínseco da objeção – não são passíveis de semelhante
tratamento.
A objeção, ou se aplica, mas falha, por
desconsiderar as peculiaridades relativas à gramática própria de cada conceito,
ou não é geralmente aplicável. Ela considera que asserimos fatos, mas não
eventos, ocorrências e coisas. Contudo, uma coisa é o conteúdo asserido, outra
é o objeto de asserção, e a ambiguidade da linguagem natural nos permite
aplicar a palavra ‘fato’ também ao primeiro caso, como acontece com fatos
formais, gerais etc. Entretanto, se digo “O que ele afirmou é um fato já
conhecido de todos nós”, posso frequentemente substituir a palavra fato pelas
palavras ‘evento’ e ‘ocorrência’ (não, obviamente, por ‘coisa’, pois coisas
concretas não são vistas como concatenações estáticas e fortuitas de elementos,
tal como acontece com os fatos). Também se não dizemos que aprendemos um
evento, uma coisa concreta, é pelo mesmo motivo pelo qual raramente dizemos que
aprendemos um fato empírico, isto é, porque o verbo ‘aprender’ costuma
expressar a aquisição de esquemas conceituais relevantes e reaplicáveis, como
podem sê-lo certos fatos abstratos. Podemos, além do mais, esquecer eventos,
assim como descrevê-los, comunicá-los, comentá-los. Podemos – por que não? –
revisar uma conjunção de eventos aprendida, provar uma ocorrência, descrever um
evento, um processo etc.
Com respeito ao chamado moto intrínseco,
essa objeção parece repousar no provisório esquecimento de que não possuímos
meios de comunicarmos nosso acesso cognitivo ao que chamamos de mundo, exceto
através da linguagem: o que sabemos acerca do mundo é sabido por intermédio de
esquemas linguístico-conceptuais, e aquilo que experienciamos como a ele
pertencente é para ser, portanto, conceptualmente, linguisticamente manejado, o
que também inclui o discurso acerca de eventos, ocorrências, coisas etc.,
considerados por filósofos como Strawson como pertencentes ao mundo. Se
coerente com a sua razão intrínseca, a objeção deveria ser adaptada à suposição
de que nem estados de coisas reais, nem eventos, nem ocorrências, nem coisa
alguma pertencente ao mundo real é passível de acesso linguístico. Mas isso equivale
a defender que o mundo real tem o caráter hipotético de uma “coisa em si”, cuja
natureza não é linguisticamente acessível, o que contradiz a própria gramática
conceitual do que todos nós entendemos com palavras como ‘realidade’,
‘objetividade’, ‘empiricidade’, ‘mundo’... que entendemos como sendo plural.
Por outro lado, se aceitamos que temos acesso
linguístico a coisas, eventos, ocorrências, por que então, como diria Austin, o
preconceito contra os fatos? Por que pensar que, por serem eles comunicados
através de sentenças assertivas que possuem no mínimo termo singular e termo
geral, isso os torna intralinguísticos, como se a função de tais sentenças
fosse a de afirmar o que elas próprias dizem, e não, como seria mais natural, a
de representar descritivamente a realidade? Essa maneira de ver natural é
reforçada pela convicção que temos da existência de fatos empíricos acerca dos
quais não temos conhecimento algum: é perfeitamente correta e trivial a
afirmação de que inúmeros desses fatos nos são completamente desconhecidos. Se
tais fatos fossem meras construções linguísticas, eles teriam de ser
conhecidos. Poder-se-ia aventar que tal conclusão não é necessária, pois
tratar-se-iam de construções potenciais, linguisticamente e cognitivamente
irrealizadas. Mas isso não basta, pois se assim fosse poderíamos vir a conhecer
tais fatos sem o recurso à experiência, através da mera articulação de novas
frases declarativas.
Claro, a palavra ‘fato’ lembra em sua função
palavras como ‘existência’, o que não passou despercebido a Austin. Fatos não
parecem ser tão imediatamente empíricos como seriam a dureza desta mesa, sua
asperidade, sua cor; se supusermos que sua estrutura seja a de concatenações
estáticas e contingentes de elementos categorialmente diversificáveis, eles
podem ser considerados como constituídos em um sentido fraco da palavra, qual
seja, no sentido de que eles dependem, mais do que seus elementos, da maneira
como seres cognoscentes escolhem (ou são compelidos a) dividir o mundo: aquilo
que escolhemos (ou precisamos) tomar como elementos do que se dá em uma certa
região espaciotemporal depende de nós, tanto quanto a escolha de uma dada
concatenação de elementos de preferência a outra. Mas, como o homem só põe o
que o mundo dispõe, não é aceitável uma afirmativa tão forte como a do caráter
não-empírico daquilo que dividimos.
Finalmente, a questão da empiricidade dos
fatos se confunde com a questão mesma da empiricidade. Parece que ao
considerarmos as diferentes espécies de fatos empíricos, devemos admitir que
eles possuem diferentes níveis de empiricidade, embora seja difícil explicar o
que se possa querer dizer com isso. Elementos mais basicamente empíricos
parecem ser, nos exemplos dados, propriedades sensíveis como as da capa do
livro de ser azul, a ocorrência de uma alta temperatura criada pelo riscar do
fósforo, a propriedade disposicional de certos gases de, quando inalados,
bloquearem a cadeia respiratória etc. Também são usualmente chamados de empíricos
objetos materiais como o livro, o prédio da escola, a perna do carteiro. Mas de
que espécie é o fato institucionalmente determinado de que em um certo dia do
ano ocorreu um feriado escolar, ou o fato histórico criado pela travessia da
fronteira italiana pelo exército de César? O conhecimento de tais fatos envolve
mais do que elementos mais basicamente empíricos, como certos edifícios ou
pessoas físicas. Deveríamos considerar tais fatos como sendo apenas
parcialmente empíricos ou essencialmente não-empíricos? A resposta deve ser
não, na medida em que seria um erro usarmos um conceito reduzido de
empiricidade para defendermos que tais fatos não se encontram no mundo. Que o
feriado escolar ocorreu, que César atravessou o Rubicão, que os Estados Unidos
são uma democracia... são fatos empíricos, pois o nosso conceito usual de
empiricidade é suficientemente amplo para abranger fatos de tal natureza.[14]
[1] Günter Patzig:
"Satz und Tatsache", in: Tatsachen, Normen, Sätze, Göttingen 2001,
pp. 15-16.
[2] Alan White: Truth,
London 1970, p. 85.
[3] Ernst Tugendhat: Vorlesungen
zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, Frankfurt 1976, p. 62,
Jürgen Habermas: “Wahrheitstheorien”, in Fahrenbach (ed.): Wirklichkeit und
Reflexion, Pfullingen 1973, p. 215-216.
[4] Pelo
sentido no qual uma palavra é referencialmente aplicada entendo algo que
costuma sofrer mais variações que os simples sentidos lexicais. Um tal sentido
referencial pode ser aquele dado pela maneira como a palavra é intencionalmente
relacionada, nas circunstâncias de seu emprego, a um certo objeto ou classe de
objetos. Assim, embora uma palavra como ‘roupa’ possa ter um único sentido
lexical, ela poderá adquirir diferentes sentidos referenciais, conforme os
objetos designados nas circunstâncias de seu emprego. Se peço a alguém:
“Traga-me a peça de roupa que está sobre a poltrona”, é necessário que se saiba
identificar a peça do vestuário que repousa sobre a poltrona, se uma camisa,
uma calça, uma blusa etc., como sendo “roupa”, mesmo que seu nome mais
específico não seja por mim sabido ou que ele não exista; com isso varia a
classe de objetos à qual a palavra é intencionalmente aplicada, i. e.,
varia a constelação criterial que permite a identificação, o sentido no qual
ela é referencialmente aplicada. Sobre as diferentes espécies de fato ver A. J.
Ayer: “Truth”, in The Concept of a Person, London 1963, pp. 172 ss.
[5] Daí porque
também é certo dizer que fatos negativos, assim como os fatos possíveis, não
existem.
[6] Cf. J. L. Austin: “Unfair to
Facts”, in: Philosophical Papers, Oxford 1979, pp. 170-171.
[7] Gunter Patzig: “Das
Problem der Objektivität und der Tatsachenbegriff”, p. 91. Cf. também P.
F. Strawson: “Truth”, in: Logico-linguistic Papers, London 1971, pp.
197-8.
[8] J. L. Austin, p. 156.
[9] Ludwig Wittgenstein: Philosophische
Betrachtungen, Frankfurt: Suhrkamp 1984, Anhang 1.
[10] Ernst Tugendhat, p.
163.
[11] J. L. Austin, p. 163
[12] P. F. Strawson, p. 196.
[13] J. L. Austin, pp.
166-8.
[14] Há várias
objeções que deixei de considerar. Uma delas é a de que fatos são o que (what)
enunciados (quando verdadeiros) enunciam, e não aquilo sobre o que eles são (what
they are about). Essa distinção apontada por Strawson (e repetida por
Habermas) parece ser de um tipo tão intangivelmente sutil, que não seria de
qualquer prejuízo para a linguagem se a invertêssemos, afirmando que fatos não
são o que enunciados enunciam, mas, obviamente, aquilo sobre o que eles são.
Outra objeção formulada por Strawson pode ser
apresentada como se segue. Uma autêntica relação correspondencial seria como,
digamos, a relação existente entre uma fotografia do Cristo Redentor e a
própria estátua do Cristo: nós identificamos a fotografia e a estátua na
independência uma da outra, e então concluímos que a foto está em uma relação
de correspondência com a estátua. Mas o fato não é como a estátua, que pode ser
identificada separadamente de sua fotografia: para identificar o fato
precisamos já reconhecer seu enunciado como sendo verdadeiro. A relação entre
fato e enunciado é, pois, interna à linguagem.
A resposta é que a constatação acima não nos força a
aceitar as consequências pretendidas. Mal comparando, a relação
correspondencial entre enunciado e fato é mais como a relação de projeção entre
um objeto e a sua sombra. Como o fato com o enunciado, a sombra, uma vez
percebida, nos força a reconhecer a existência de um objeto que a projeta. Mas
não só são ambos radicalmente diversos, como também o ato de identificar a
sombra independe do ato de concluir algo sobre o objeto que a projeta. Através
da teoria correspondencial, que admito como sendo um outro óbvio lugar comum lexical,
podem ser apresentados argumentos para demonstrar que a identificação
de um fato é inicialmente feita de uma forma pré-cognitiva, sem que saibamos
que o enunciado correspondente é verdadeiro. Para outras considerações e para
uma resposta a outros argumentos, como o exposto por Donald Davidson (segundo o
qual um enunciado verdadeiro pode corresponder a qualquer fato), remetemos o
leitor ao capítulo 9 do livro de John Searle: The Construction of the Social
Reality, Free Press 1997.
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