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quinta-feira, 30 de julho de 2020

O ELEMENTO AUTISTA NA FILOSOFIA

Draft para o livro Textos esparsos a ser publicado pela editora Dialética




SÍNDROME DE ASPERGER E FILOSOFIA

 

 

 

Muitos conheceram o doutor Spock, personagem da série Jornada nas Estrelas. Ele era um ser meio alienígena e meio humano, com dificuldade para harmonizar o seu eu vulcaniano, lógico, com o seu eu emocional, humano. Algo não muito diverso ocorre com as pessoas portadoras de síndrome de Asperger, uma curiosa e complexa desabilidade neurológica identificada pela primeira vez pelo pediatra vienense Hans Asperger, em 1944.[1] Ele descreveu casos do que chamou de “psicopatia autista”: crianças que quase não se relacionavam com as outras, não faziam amizades e entretinham interesses obsessivos, sendo capazes de discursar exaustivamente sobre eles, frequentemente sem domínio adequado, como se fossem “pequenos professores”. A síndrome de Asperger é uma forma branda de autismo que só se tornou conhecida fora dos países de língua alemã em 1981 devido ao trabalho de Lorna Wing.[2]

   Há um forte componente genético ligado à síndrome de Asperger, como também ao autismo profundo. Contudo, já foram encontrados casos de gêmeos univitelinos em que somente um deles desenvolveu traços autistas. Há, portanto, alguma influência de fatores externos, ambientais. A síndrome de Asperger ou SA é diagnosticada cerca de quatro vezes mais em homens do que em mulheres, talvez pelas disposições sociais muito maiores do sexo feminino. Em estatísticas antigas a prevalência da SA na população já foi de 0,2%. Hoje se fala em mais de 1%. Uma hipótese plausível seria a do aumento da acuidade diagnóstica[3] ou a da flexibilização dos critérios diagnósticos.[4] Minha hipótese alternativa (mero palpite) é a de que, considerando que os padrões de avaliação não mudaram muito e que fatores externos podem ter efeito, o aumento do número de casos de SA pode se dever à presente diminuição dos padrões comportamentais fortemente compartilhados no desenvolvimento social das crianças, o que poderia interferir negativamente na aquisição de habilidades sociais (exemplos: a repetição de padrões familiares tradicionais como o de o filho ter a mesma profissão do pai, ou a mesma religião, ou a importância que já foi dada a traços acidentais como a cor da pele). O Asperger não se sente estranho junto a outro Asperger; ele se sente estranho junto a pessoas neurotípicas. Mas se os padrões de comportamento se multiplicam, ou a falta deles, pode tornar-se mais difícil preservar a neurotipicidade.

   Hoje geralmente se admite que a SA seja uma interessante forma limítrofe de autismo. O que existe é um continuum, melhor dizendo, um espectro quantitativo e qualitativo de características que vão desde o extremo do autismo profundo até a normalidade (neurotipicidade), passando pelo autismo leve ou síndrome de Asperger. A característica fundamental do autismo profundo é a quase completa ausência de socialização: a criança não aprende a língua materna, não aprende a interagir com as outras pessoas e quase nada aprende sobre o mundo, o que detém o desenvolvimento da inteligência. Geralmente essas crianças não se tornam capazes de cuidarem de si mesmas e acabam sendo institucionalizadas. A razão fundamental se encontra na falta de habilidades sociais inatas. Uma evidência disso é que, como é demonstrado por pesquisas, bebês normais tendem a olhar para os olhos da mãe quando chamados por ela. O que falta no bebê autista é mostrado por sua tendência a olhar para a boca da mãe ou para algum outro lugar. A razão é que o bebê neurotípico tem uma disposição inata para ler as expressões fisionômicas das pessoas, particularmente expressas no olhar, o que falta no autista e se encontra pobremente existente nos casos de SA. Daí que uma característica dos casos de SA é a dificuldade de estabelecer contato visual com as outras pessoas. Parece-me claro que aquilo que produz a diferença fundamental entre o autismo profundo e o autismo Asperger é que no último caso a falta de habilidades sociais não é tão grande a ponto de impedir o aprendizado da língua. A criança com SA tem um aprendizado normal ou quase normal da língua materna e torna-se capaz de se comunicar. Ora, ao aprender a língua materna (o que costuma incluir a leitura) a criança ganha acesso ao mundo do conhecimento e da cultura, enriquecendo o seu mundo interior e desenvolvendo normalmente suas habilidades intelectuais, mesmo que não as desenvolva da mesma maneira que a das pessoas com habilidades sociais intactas.

   No que se segue serão primeiro descritos os sinais e sintomas usuais da SA, que me parecem claramente agrupáveis em duas classes principais: (a) a do déficit na interação social (a dislexia social) e (b) a dos interesses obsessivos e restritos. A primeira classe diz respeito às relações da pessoa portadora de SA com o mundo externo. A segunda diz respeito às suas relações consigo mesma, ou seja, à vida interior que ela desenvolve.

 

 

                                                                     I

 

Consideremos, primeiro, o déficit na interação social. Ele se constitui basicamente na incapacidade de inferência comportamental representada pela falta de habilidades sociais e evidenciada no pouco contato visual, na dificuldade de iniciar conversas, no discurso egocêntrico. Embora em geral a pessoa com autismo leve deseje estabelecer contatos e vínculos afetivos de modo a ser como as demais, ela não sabe como interagir socialmente. Ela não tem entendimento suficiente das distâncias, das convenções sociais e de sua complexa variação contextual. Ela só fala de seus interesses específicos. Ela frequentemente diz o que não deve e não diz o que deve. Por isso tende a um comportamento socialmente inadequado, estranho, bizarro, frequentemente inoportuno. Falta-lhe a espécie de empatia – de identificação – que a torne capaz de “conectar-se” emocionalmente com os outros. Falta a ela a espécie de reciprocidade afetiva e comportamental necessária ao jogo de dar e receber que alimenta os vínculos emocionais da maioria das pessoas. Ela pode ter dificuldades no entendimento da linguagem figurativa, insistência em dizer a verdade, mesmo quando isso é inapropriado, falta de autocensura, ingenuidade social e desdém pela conversa fiada – uma mola social cuja razão de ser lhe custa muito compreender. É comum a dificuldade para o pensamento abstrato, a falta de imaginação, a tendência à racionalização de sentimentos, inflexibilidade.

   A limitação na socialização já existe no autismo profundo, no qual o comprometimento da sociabilidade vem acompanhado de um comprometimento linguístico e cognitivo severo, que torna nosso mundo inacessível para ele. Por isso podemos dizer que o autista é uma pessoa que vive em seu próprio mundo, enquanto o portador de SA é uma pessoa que vive em nosso mundo, mas ao seu próprio modo.

   Uma notável característica neurológica dos portadores de SA é que, enquanto em pessoas normais a observação de expressões fisionômicas e gestos de outras pessoas estimula certas áreas do córtex pré-motor, diversamente da observação de objetos, em pessoas com autismo ou SA isso não acontece. Ou seja: a reação cortical às pessoas tende a ser semelhante à reação que se tem à observação de objetos. A precisa causa neurológica ainda é desconhecida, mas se considera uma falha no funcionamento dos “neurônios-espelho”, ou seja, de sistemas neurais inatamente preparados para descarregar diante de estímulos como o da presença de fisionomias humanas, expressões faciais, movimentos corporais. Neurônios-espelho seriam de grande importância para o aprendizado imitativo do ser humano.

   Importante é notar que esses dados neurológicos fornecem um indício explicativo da razão da alienação social do portador de SA. Eles sugerem que o portador dessa síndrome não possui um suficiente entendimento de como funcionam as mentes ditas neurotípicas, e que a cegueira emocional tenha muito a ver com a falta de identificação com essas últimas. A primeira reação do autista consiste em pensar que pessoas neurotípicas são ou deveriam ser tal como ela é, o mesmo acontecendo com o neurotípico com relação ao autista.[5] Mais particularmente, o autista carece da capacidade inata de compreender sinais comportamentais como o olhar, a expressão fisionômica, os gestos e a voz, no contexto da interação social. Por isso ele costuma fazer pouco contato visual com seu interlocutor. Pode lhe faltar, por exemplo, a disposição natural para distinguir reativamente expressões fisionômicas sutis, como a de uma surpresa triste. Uma característica complementar, associada à dificuldade de entender os sentimentos alheios, é a dificuldade que o portador de SA tem de fazer uma adequada identificação dos sentimentos que ele próprio possui. Se há falta de compreensão do heteropsíquico, ela é seguida de uma falta de compreensão do endopsíquico, dado que a linguagem pela qual identificamos o que vai em nós é de origem interpessoal. (Afinal, a linguagem é um sistema público de convenções.)

   Tudo isso causa no portador de SA ansiedade e insegurança frente ao contato social. O fardo interior do portador de Asperger foi bem resumido em uma poesia de Edgar Allan Poe intitulada Alone:

 

     From childhood’s hour I have not been

     As others were – I have not seen

     As others saw – I could not bring

     My passions from a common spring –

     From the same source I have not taken

     My sorrow – I could not awaken

     My heart to joy at the same tone –

     And all I lov’d – I lov’d alone.[6]

 

O dia-a-dia de um portador de SA já foi descrito como sendo o de alguém vivendo em um país estranho, cuja língua e convenções sociais ele praticamente desconhece. E o efeito tardio do desamparo infantil na personalidade já foi comparado com o efeito provocado pela experiência de pessoas que passaram por um campo de concentração. De fato, o repetido fracasso em lidar com situações que requerem habilidades sociais pode produzir depressão, além de um comportamento de evitação dessas situações, capaz de se transformar em fobia social.

   Do que foi exposto não se deve concluir que o portador de SA não seja capaz de saber o que os outros sentem ou pensam. A diferença é que, diversamente das pessoas neurotípicas, ele não chega a isso com base em uma reação empática espontânea, natural, imediata. Ele chega às conclusões sobre o que se passa nas mentes dos outros com base em experiências passadas e no raciocínio, inferindo que as pessoas devem sentir tais e tais emoções em tais e tais situações. É por precisar se valer da experiência e da razão para inferir ou adivinhar indutivamente o que se passa nas mentes das outras pessoas que o portador de SA leva mais tempo para reagir, além de errar frequentemente em suas avaliações. Pela própria lentidão de seus processos mentais aprendidos e não-espontâneos, ele perde o ritmo das conversações e as suas respostas imediatas são quase inevitavelmente em alguma medida inadequadas, sendo frequentemente vistas como inapropriadas ou rudes, sem que ele tenha tido a intenção de sê-lo, o que é percebido por ele sempre tarde demais, pela reação inesperada dos demais ou pelo raciocínio. Trata-se, pois, de algo muito diferente do caso da pessoa que erra “normalmente” por culpa de suas próprias limitações cognitivas, nunca chegando a entender o acontecido. Frente a tais erros o portador de SA fica embaraçado, embora não veja nem tenha razão para sentir culpa. Tais comportamentos podem facilmente levar outras pessoas a pensarem que o portador de SA é uma pessoa insensível e grosseira. Por essa falta de empatia, o portador de SA tem dificuldades em fazer amigos. Embora não seja verdade que, pela falta de interesses comuns, ele não seja capaz disso, é difícil que essas amizades sejam duradouras devido ao acúmulo de mal-entendidos de ambas as partes. Afora isso, o aspie tem o que alguém chamou de “radar curto”: enquanto as pessoas estão presentes, elas parecem vivas e intensamente influentes; uma vez distantes é como se deixassem de existir; elas desaparecem de sua mente.

   Há outros traços menores, que têm sido relatados e de alguma forma se relacionam às deficiências acima descritas. A fala do SA tende a ser monótona e o seu tom de voz é frequentemente mais alto ou mais baixo do que as circunstâncias exigem. O portador de SA também pode ter dificuldades de concentração, além de possível hipersensibilidade sensorial. Pode faltar sensibilidade térmica, por exemplo, incapacidade de sentir frio quando a temperatura ambiente está realmente fria. Ele tende a preferir roupas confortáveis às que melhoram a aparência, pode ter falta de memória para nomes próprios... Pode haver também déficits psicomotores como o andar desajeitado e falta de motricidade fina.

 

 

 

II

 

O segundo traço mais característico dos portadores de SA constitui-se nos interesses obsessivos e restritos. Enquanto pessoas neurotípicas focam as suas mentes em muitas coisas diversas e em conjunto, pessoas com SA (como os autistas em geral) só conseguem focar suas mentes em uma coisa de cada vez, da parte para o todo. Além disso elas tendem a focar as suas mentes intensamente e repetitivamente em umas poucas coisas, geralmente com características objetuais-estruturais e não pessoais. Elas se deixam facilmente mesmerizar por algo (digamos, um quadro, uma música), não sendo capazes de interromper sua experiência. O mais característico é que o portador de SA tende a desenvolver interesses obsessivos por coisas como coleções de objetos geológicos, insetos, filmes, ou por temas científicos particulares, rejeitando outros interesses, embora possivelmente substituindo-os por outro, quando esgotados. Esses interesses obsessivos, vale notar, são voltados para a busca de estruturas, modelos, regularidades, o que lembra um pouco aquilo que o cientista faz ao procurar na realidade a ordem determinada pelas leis da ciência (Baron-Cohen).

   Uma explicação razoável para os interesses obsessivos seria a de que eles teriam surgido como um substituto “interno” para a falta de um satisfatório relacionamento com o mundo social “externo”: a pessoa passa a viver em um mundo de interesses específicos independentes do apelo social que eles possam ter, como forma de preencher o vazio ocasionado pela dislexia social característica da SA. Essa tese ganha força quando consideramos que cerca de 70% dos prazeres da maioria das pessoas advém do contato social, o que é quase vedado ao aspie, ao menos como um prazer puro. Um bom exemplo de interesse obsessivo pode ser dado pelo francês Gilles Tréhin, um jovem portador de SA que passou vinte anos de sua vida trabalhando muitas horas por dia nos desenhos extremamente detalhados de uma cidade imaginária com doze milhões de habitantes, que ele situou no sul da França.[7]

   Essas fixações cognitivas costumam servir para aprofundar a inadequação social do portador de SA, aumentando a falta de interesses comuns e o isolamento. Devido aos interesses obsessivos, a conversação autocentrada do portador de SA carece de atenção suficiente para os interesses que as demais pessoas normalmente compartilham entre si, sendo frequente que o portador de SA tenha dificuldade em se aperceber do aborrecimento que causa aos outros com seus monólogos. Por sua vez, ele se sente aborrecido pelos múltiplos e variados interesses das pessoas neurotípicas, os quais para ele se afiguram desinteressantes ou irrelevantes. Já se notou que se todas as pessoas tivessem SA essa síndrome não existiria, pois elas não perceberiam que divergem de algum padrão que desconhecem. Em compensação, o mundo seria provavelmente um vasto deserto de interações de efeito prático, incompatível com alguma ordem social eficaz.

   Sem diagnóstico e auxílio adequado, a tendência de prognóstico de pessoas com SA não costuma ser positiva, sendo alto o índice de casos que terminam em distúrbios neuróticos como o de fobia social e depressão severa. Estima-se que apenas 2 em cada 10 pessoas com SA se tornem capazes de prover seu próprio sustento. A pessoa erra constantemente em suas escolhas profissionais, sociais e afetivas, não sendo capaz de distinguir amigos de inimigos, caindo facilmente nas mãos de manipuladores no relacionamento afetivo, nos poucos casos em que esse relacionamento parece acontecer.

   Em alguns poucos casos, porém, a pessoa com SA consegue colocar os seus interesses obsessivos a serviço da sociedade, tornando a sua inserção social bem-sucedida. Esse é o caso de Vernon Smith, prêmio Nobel de economia, diagnosticado como portador de SA. Ele conta em entrevista que uma razão pela qual chegou a desenvolver uma teoria microeconômica inovadora é que ele não sentia a pressão de fazer o que os outros faziam, por indiferença ao feedback motivacional proporcionado pela sociedade científica. Isso lhe permitiu trabalhar por muitos anos em um campo desconhecido, movido apenas por sua curiosidade e por um interesse continuado.

   Especula-se também se a SA não seria capaz de fornecer uma pista para o que se convencionou chamar de “gênio”.[8] Afinal, pessoas com interesses obsessivos associados a uma incessante busca, consciente ou não, de estruturas, modelos ou regularidades, e fazendo coisas na independência do que os outros delas esperam, podem bem ser uma fonte do inesperado, e entre as coisas inesperadas podem por vezes acontecer que algumas sejam úteis, originais, verdadeiras, relevantes. Com base nessa ideia se sugeriu que figuras exponenciais e excêntricas em ciência, como Isaac Newton, Einstein, Henry Cavendish, ou em arte, como Mozart e Glenn Gould, pudessem ser classificadas como pertencentes ao espectro autista. A ideia faz sentido. Newton foi um recluso que trabalhou muitos anos em Cambridge, e que ao mudar-se para Londres não deixou para trás amigo algum. Vivendo na Inglaterra, nunca se deu ao trabalho de ir ver o mar. Membro da sociedade real de ciências, nunca falava (uma vez, aliás, falou: pediu para abrirem as cortinas). Segundo uma testemunha, Einstein, embora muito cordial, era emocionalmente inacessível, sugerindo a ideia de que o gênio, para poder ser exercido, exige um esvaziamento do envolvimento emocional com as outras pessoas. Henry Cavendish, o químico descobridor do oxigênio, só contactava seus empregados através de bilhetes escritos. Se essa lista for correta, então não será difícil estendê-la, incluindo nela outras figuras, como as de Kurt Gödel, que só mantinha contato com o seu departamento em Princeton por telefone.

   Isso pode valer também para as artes: afinal, uma melodia, um romance, é resultado da busca por vezes quase obsessiva de modelos. Mozart e Beethoven parecem ter possuído alguns traços autistas. Um caso melhor conhecido é o de Glenn Gold. Aos trinta e dois anos esse pianista, cuja carreira havia sido espetacular, abandonou as salas de concerto, passando a viver uma vida noturna solitária em seu apartamento em Toronto. No final de sua curta vida ele sofria de obsessões, depressão e hipertensão, só se comunicando com as pessoas por telefone e por cartas. Poderíamos incluir romancistas nessa lista? Ora, considere o caso de Emily Brönte – em nível, talvez o único escritor inglês comparável a Shakespeare – a qual (segundo consta) preferia mais o contato com os animais a estar junto a outros seres humanos. A imaginação social necessária ao relacionamento social pode ser adequada à produção de folhetins baratos capazes de satisfazer imaginariamente um wishful thinking socialmente compartilhado. Mas a falta dessa imaginação social convencional na pessoa com SA poderia ser compensada pela presença da crítica social consciente inerente à boa literatura. Pessoas com traços autistas podem ser capazes de produzir fantasias que, sendo inteligentes e acompanhadas do necessário distanciamento crítico, da falta de preconceitos emocionais que levem ao envolvimento a favor do wishful thinking socialmente compartilhado, pode ser fonte de insight sobre aquilo que uma sociedade não deseja nem ousa enxergar em si mesma. Podemos estender essa lista a um poeta investigador da disparidade entre sua subjetividade e o mundo que o envolvia, como Fernando Pessoa, ou a um escritor hedonista e anarquista, cujos contos podem ser entendidos sob a perspectiva de uma devastadora crítica social, como Charles Bukowski.

   É interessante notar que o absolutamente neurotípico também deve ter suas dificuldades. Dificilmente essa pessoa encontrará forças para se concentrar em si mesma de modo se tornar um engenheiro, mas supostamente poderá se tornar uma excelente RH. Como notou Hans Asperger, uma gota de autismo é necessária a qualquer trabalho criativo em arte e em ciência.

   Não há cura para a SA, mas a consciência da condição é importante, tanto para o seu portador quanto para as pessoas que o circundam, pois permite um entendimento mais adequado do que acontece e o recurso a estratégias de tratamento eficazes. A síndrome é facilmente diagnosticável em crianças (nos primeiros dias de escola elas se isolam dos outros alunos), mas torna-se difícil de ser diagnosticada em adultos mais velhos, que já aprenderam a mascarar os sintomas. Adultos podem aprender a mimetizar o comportamento social, fazendo de conta que são normais, mas é difícil crer que eles se tornem capazes de internalizar essas representações sem perderem a si mesmos. O fazer de conta da normalidade causa esforço e não traz como retorno todo o prazer espontâneo das trocas sociais naturais.

   Como foi enfatizado pelo próprio Asperger[9], é possível que portadores de SA se tornem pessoas úteis para a sociedade. Biólogos notaram que se as combinações de genes que produzem a SA e que podem produzir graus mais profundos de autismo trouxessem apenas resultados ruins, a seleção natural teria feito com que tais combinações fossem bloqueadas e desaparecessem. Elas só são possíveis porque se demonstraram evolucionariamente úteis à sobrevivência da espécie, posto que uma sociedade precisa de neurodiversidade para que cada indivíduo possa combinar suas habilidades próprias com as dos demais, de modo produzir resultados melhores para todos. (Podemos supor que o cacique de uma tribo seja o neurotípico, enquanto o xamã, distanciado da comunidade e sendo visto por ela como um estranho, esteja mais próximo do autista.) Por isso, antes de rotular a SA como uma patologia, devemos nos perguntar se não seria melhor considerá-la uma das variadas formas limítrofes da natureza humana – neste caso, aquilo que pode propiciar mudanças ao prover as condições para as rupturas com valores e pensamentos culturalmente sedimentados, quando estas se tornam necessárias. Por desprender o ser humano das convenções habituais dentro das quais ele aprendeu a pensar, o ingrediente autista consistiria então, como potencialidade, o princípio ativo responsável pela renovação em qualquer âmbito da experiência humana.

 

 

III

 

O ingrediente autista (expressão com a qual quero ressaltar traços de autismo, sem me comprometer com um diagnóstico completo da SA) pode ser utilizado em proveito do autista no que diz respeito a profissões que requerem que a pessoa se aparte do mundo e se volte para si mesma na busca da satisfação de interesses obsessivos. Exemplos são coisas como engenharia, ciências formais, computação e profissões acadêmicas, além da ciência e da arte. Mas também um exemplo pode ser a própria filosofia. Certamente, entram aqui em curso as disposições individuais específicas de cada um. Não tenho dúvidas de que a filosofia, tal como foi praticada na época moderna, em considerável isolamento, por pessoas como Descartes, Leibniz, Spinoza, Kant, Hegel, Nietzsche... requeria algum ingrediente autista. Há registros de que Descartes mudava de moradia constantemente e de que mesmo sendo uma pessoa socialmente agradável, ele evitava contato pessoal prolongado com outras pessoas, o qual pudesse perturbar sua vida interior. A inflexibilidade dos hábitos de Kant também é um traço revelador. Embora trouxesse amigos inofensivos da sociedade local para almoçar consigo em um ambiente descontraído e previsível, é sabido que evitava contatos com os seus pares na universidade, certamente, para reduzir ao mínimo dissonâncias cognitivas capazes de lhe afastar de seus interesses intelectuais. Conta-se que Goethe queria conhecer pessoalmente Kant. Esse último, porém, tornou o encontro tão difícil, que em um acesso de raiva Goethe desistiu da ideia. Leibniz, cuja racionalidade era tão poderosa que destruía em si qualquer forma de paixão, morreu só e esquecido. Spinoza recusou um convite para ensinar em Heidelberg, preferindo viver como polidor de lentes de modo a preservar sua liberdade. E de todos eles somente Hegel se casou. Já Nietzsche, como é bem sabido, passou cerca de dez anos vivendo como um eremita antes de enlouquecer. Um caso estudado pelo Dr. Christopher Gillberg[10] foi o de Ludwig Wittgenstein, que além de autista era homossexual.[11] Embora Wittgenstein fizesse amigos, discípulos em geral, a convivência com ele podia ser muito difícil (geralmente as pessoas tinham medo de sua presença). E para concentrar-se em filosofia ele precisava por vezes passar longos períodos só, em recantos da Noruega ou da Irlanda. Uma vida de convulsões emocionais pode ser adequada a um artista, cuja arte pode ser construída como uma reação a ela, como no caso de um escritor como Charles Bukowski, de um poeta como Edgar Allan Poe, ou de um pintor como Francis Bacon. Mas ela é inadequada ao filósofo, que precisa distanciar-se das paixões humanas o suficiente para poder sazonar ideias em sua mente como se elas fossem queijos Roquefort a serem maturados em cavernas. Wittgenstein alternava um pouco as duas coisas. Diversamente, filósofos tradicionais sistemáticos poderiam passar muitos anos colecionando insights que pudessem ser reunidos em um corpo argumentativo coerente. Um bom exemplo sendo Locke, que passou cerca de 18 anos escrevendo o seu Ensaio concernente ao entendimento humano, algo semelhante acontecendo com a Ética de Spinoza, que só foi publicada postumamente. Olhando para esse cenário, parece que a filosofia é um dos domínios nos quais pessoas com as habilidades adequadas e algum grau de autismo se sentiriam à vontade. Mas que dizer das escolas da filosofia antiga? Filósofos antigos conviviam em grupos, como na famosa academia de Platão... Contudo, devemos notar que aquilo que unia mestre e discípulos eram os interesses obsessivos dos mestres, cujos resultados seriam aperfeiçoados por discípulos de interesses próximos. Trata-se, pois, de uma amostra viciada.

 

 

IV

 

Antes de continuarmos vale dizer alguma coisa sobre a natureza da filosofia. É bem sabido que no início quase tudo era filosofia, pois à parte o saber comum ligado aos afazeres humanos, o mundo era misterioso e desconhecido. As ciências particulares nasceram do berçário filosófico: as matemáticas já entre os gregos antigos; a física experimental com Galileu, a teórica com Newton; a química com Lavoisieur e outros; a psicologia e a sociologia, junto às suas ramificações, ainda hoje não se estabeleceram completamente como ciências particulares... Por isso a filosofia hoje se restringe, em seu centro, a tentar dizer algo daqueles estratos superiores do que podemos conhecer que ainda não foram capazes de ganhar a espécie de consenso entre especialistas própria da ciência. Exemplos máximos são a ontologia, a epistemologia e a ética. O filósofo pode tentar desvendar especulativamente a forma desses extratos superiores, mas para isso terá de apartá-los de tudo o que as ciências particulares já nos revelaram, ainda que as pressupondo. A filosofia pode ser, nesse sentido, uma protociência, à qual é acrescido um elemento metafórico, que a torna, em maior ou menor medida, uma espécie de “arte da razão”.

   Um exemplo esclarecedor de como a filosofia adivinha pelo menos a forma daquilo que se tornará ciência foi o caso dos atomistas gregos. Eles adivinharam que nosso mundo deveria ser constituído de uma variedade infinita de partículas invisíveis e indivisíveis. Hoje a física se debate entre quarks e microcordas, confirmando a intuição formal de Demócrito.

   Os aforismos de Heráclito ainda hoje nos impressionam. Por quê? O próprio Heráclito tinha a resposta:

 

A Sibila, que com seus lábios delirantes diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem perfumes, as faz ressoar por mil anos graças ao deus que nela habita. (Diels 92)

 

Ora, quem seria essa sibila heracliteana senão a própria Filosofia? Afinal, só ela foi capaz de projetar sua voz mil anos adiante.

   Foi assim com todos os grandes filósofos da tradição: Platão, Aristóteles, Kant e Hegel, entre vários outros. No século XX tivemos ao menos dois filósofos exponenciais, que foram Frege e Wittgenstein. Nada apareceu depois com originalidade e abrangência comparáveis.  Esse caráter abrangente é o que difere ontologia, metafísica e ética de, digamos, protociências particulares como a sociologia. Todos eles tiveram uma maior ou menor ambição de abrangência em suas tentativas de compreender o mundo, mesmo que como hipótese plausível (Locke) ou com conclusão aniquiladora da hipótese plausível (Hume) – tudo isso sob o pano de fundo do que era permitido pela ciência e cultura da época.

   Hoje a ciência tornou-se extremamente complexa  e variada, de modo que nossos sistemas educacionais acadêmicos – aparentemente o último reduto da filosofia possível – não se encontram aparelhados para permitir-nos alcançar uma base de cultura científica conjugada a uma base de cultura humanística e do saber comum que permita o ressurgimento de filosofias de maior abrangência, naturalmente sob uma forma contemporânea. Restou uma mais ou menos fragmentada filosofia cientificista, a filosofia desse ou daquele ramo da ciência, ou então a filosofia fragmentada inspirada nesse ou naquele ramo da ciência que é por ela hipostasiado fora de seu domínio próprio.

   Por isso o contexto da filosofia contemporânea é muito diferente do contexto da filosofia moderna, ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Em tal contexto a filosofia é cada vez mais uma atividade coletiva. Já ouvi dizer que o autismo se tornou impropício para o exercício da filosofia sob tais condições. Receio mais a afirmação oposta: que a falta ou supressão do ingrediente autista apropriado em filosofia possa ser negativa para um exercício mais autêntico da filosofia. Tentarei me explicar.

   Nós vivemos o que Max Weber diagnosticou como sendo o desencantamento do mundo (Entsauberung der Welt) de uma forma cada vez mais acelerada. Para Weber a sociedade humana passa a girar cada vez mais em torno da cultura científica e tecnológica em detrimento de outras dimensões da cultura, que se lhe tornaram de algum modo caudatárias. Isso se reflete socialmente por um contínuo acréscimo da burocracia, que se conduz pelo que ele chamou de razão instrumental, em detrimento da razão valorativa. Parece plausível a ideia já presente em Weber de que esse movimento tem sido empobrecedor para a cultura humanística em geral, o que inclui as religiões, as artes e a filosofia. Com isso a filosofia, embora enquanto tal não pertencendo ao mundo da ciência, acabou sendo indebitamente capturada pela ciência. Em boa parte, ela passou da posição (falsa) de algo superior às ciências particulares à posição (também falsa) de uma espécie de desorientado vassalo da ciência. Como resultado ela perdeu em muito características que lhe eram próprias, como a do nível de abrangência e a força do elemento metafórico. Devido a essa perda, ela alienou-se das condições necessárias para tratar propriamente de seus problemas centrais. Mal comparando, podemos dizer que assim como a filosofia francesa foi corrompida pela literatura, a filosofia analítica anglo-americana-australiana contemporânea hoje dominante foi corrompida pela ciência.[12]

   Em meu juízo, esse movimento de burocratização e substituição da razão valorativa pela razão instrumental na sociedade ajuda a explicar a superficialização e mesmo a futilidade de boa parte da filosofia contemporânea. O filósofo contemporâneo encontra-se perdido em meio a cientistas e técnicos pertencentes a uma sociedade burocratizada e hierarquizada em torno de um telos científico. Ele se encontra envolvido por um meio pragmático, que desconsidera o que foge à linguagem da ciência. Isso faz com que ele perca a visão para formas mais amplas e integradas de pensamento, capazes de trazer resultados mais propriamente filosóficos. Há muito tempo ele perdeu qualquer objetivo de compreender as coisas sub specie totius, que ao final visasse obter maior clareza em nosso entendimento do mundo, como filósofos tradicionais tentaram até pelo menos Husserl e Wittgenstein (o evolver da consciência do todo para a parte, à qual se aplica o argumento da melhor explicação). Ele é estimulado a satisfazer expectativas próprias da comunidade científica, junto à qual é convidado a trazer um constante aporte de novidades especulativas, compartilhando, corrigindo e avançando pequenos palpites ou soluções mais ou menos implausíveis, que por mais caricatas que pareçam são tomadas a sério pela tribo a qual pertence, dedicada a alguma intransparente ramificação especulativa apenas internamente aquilatável, dado que redutivamente separada do todo. Essa fragmentação parece então necessária no interior de uma mainstream que só pode funcionar se for sobre um fundo de valores e crenças compartilhadas, o que forçosamente limita seu nível de abrangência, posto que os pequenos palpites devem ser tais que possam ser rapidamente avaliados, entendidos e discutidos por todos os participantes. Foi assim que a filosofia acadêmica passou a ser vista como precisando dar um retorno rápido, deixando de ser o despreocupado entretenimento intelectual de uma elite ociosa, que era capaz de ser entendida por alguns poucos devido ao seu alto nível de abrangência.[13] Essa transformação, contudo, bloqueia possibilidades ao afogar verdades importantes em um oceano de trivialidades. Por exemplo: na filosofia, mais do que em outros âmbitos do saber, não podemos prescindir da consciência individual. Isso também se dá em certos domínios da ciência. Não podemos imaginar a conjectura de Poincaré sendo resolvida por um time de matemáticos e não por Grigori Perelman. Mas é mais comum na arte. Não podemos imaginar Macbeth sendo escrito por um time de beletristas, ou a Quinta Sinfonia sendo composta, não por Beethoven, mas por vários compositores em conjunto, como se faz com certos sambas enredos. Aqui devemos reconhecer o caráter exclusivista da filosofia. Se tomarmos como exemplo de comparação a música, devemos admitir que nem todos se encontram preparados para perceber que a Quinta Sinfonia de Beethoven é superior à Nona, tão popular, ou que o Magnificat de Bach é em geral musicalmente superior a sua bem mais conhecida Paixão Segundo São Mateus (considere o fato de que há pessoas que por natureza não possuem qualquer sensibilidade musical).

   Compare-se tais constatações com a fragmentação cientificista da filosofia, que passa a aplicar métodos e procedimentos redutivos que buscam mimetizar criativamente o trabalho da ciência de uma forma cada vez mais caricatural. Essa fragmentação é reducionista no sentido de que rompe com a totalidade do conhecimento, o que inclui não só a ruptura com outros domínios da filosofia, como também as rupturas dentro de um subdomínio da filosofia (como dentro da epistemologia, da metafísica e da ética), sem falar na ruptura com o senso comum mooreano, que não se opõe à ciência (ex: “existe um mundo externo”), com a cultura e mesmo com outros domínios próprios da ciência amadurecida. Disso resulta uma espécie de escolasticismo setorializado: discussões filosoficamente estéreis entre membros de cliques[14] (uma clique é definida pelo dicionário como um pequeno grupo de pessoas com interesses comuns, que passam muito tempo juntas e que não permitem facilmente que outras venham a juntar-se a elas), ou seja, grupos que se ignoram uns aos outros e nos quais a adequada fiação neuronal e o conhecimento amplo e variado, necessário para o desenvolvimento de filosofia em maior nível de abrangência, é completamente desencorajado. O resultado é um rebaixamento de nível coetâneo à diminuição da abrangência. (Não estou com isso negando que nesse meio haja progresso – pode haver, em vários sentidos. Apenas que esse progresso não deve ser o mais propriamente filosófico, visto que nada nele nos permite uma abordagem plausível de qualquer um dos problemas mais centrais da filosofia.)

   Esse ambiente de filosofia comunitária não é o mais apropriado para o autista enquanto tal. Mesmo uma suposta formação de “neurotribos”[15] de autistas-filósofos apenas encobre o esforço para domesticar o ingrediente autista em favor de um mundo apressadamente desencantado, posto que indebitamente determinado pela ciência & tecnologia. A eliminação do ingrediente autista atuando conscientemente na independência do sistema pode bem ser a principal razão de não encontrarmos hoje quase mais nada de original e simultaneamente relevante nessa área. Na discussão coletiva, o que vale é aquilo que pode se ajustar ao que for acessível a todos, em um espaço no qual o ‘todos’ só pode se referir a uma massa intelectual aparelhada pela medianidade e fiel aos preconceitos dispostos por uma questionável sabedoria herdada, a qual não precisa ser mais que competentemente esmiuçada em um visível sinal de decadência. O resultado pode ser a formação de uma massa acadêmica culturalmente despreparada para compreender o que há de mais próprio ao jogo intelectual da filosofia, o que só pode ser dimensionado por quem tiver compreendido antes, em seus contextos, algo como os grandes sistemas e concepções da tradição, cimentado por um acesso de princípio à cultura científica e humanista como um todo – o que hoje não parece mais assim tão impossível, dada a Biblioteca de Babel cada vez mais à disposição na Internet (um intelectual competente do ano de 2050 nos verá como homens de Neandertal).

   Isso me faz pensar nas habilidades intelectuais que o filósofo deveria ter ou desenvolver para ser capaz de compreender as coisas sub specie totius. Parece que deveriam ser múltiplas, pois tal trabalho exigirá habilidades e conhecimentos variados. Considere-se, por exemplo, a distinção feita por Temple Grandin entre três diferentes tipos de pensadores dentro do espectro autista:

 

(a) pensadores visuais (pensamento imagístico, com dificuldade para as matemáticas),

(b) pensadores que usam modelos (aptos ao pensamento formal e à música, mas incapazes de pensar por imagens),

(c) pensadores verbais (boa memória simbólica, mas podem faltar modelos).[16]

 

Não importa o quão precisa ou adequada seja essa distinção, já que a uso somente como ilustração. Importante é notar, como o fez a autora, que as habilidades de um pensador não excluem forçosamente as de outros, e que eles também podem ser pensadores mais ou menos mistos. Minha sugestão é a de que a mente filosófica precisa conter ou adaptar-se a um misto mais ou menos equilibrado de diferentes habilidades para que seu pensamento alcance um nível de abrangência capaz de apreender o todo relevante ao questionamento. Essa sugestão parece confirmar-se quando consideramos um filósofo clássico como Aristóteles, que desenvolveu a silogística (domínio formal), mas que era biólogo (domínio empírico). Ela se assume quando consideramos o aspecto complementar das duas filosofias de Wittgenstein, a primeira orientada pela lógica matemática (domínio formal), a segunda pela linguagem natural (domínio empírico), ou quando consideramos a amplitude dos interesses de um filósofo como Bertrand Russell. Ela também parece confirmar-se quando consideramos o valor que damos a coisas aparentemente dispensáveis, como o estilo.[17]

   Como já fiz notar, em oposição aos ideais acima expostos, para que o maquinário acadêmico produtor da filosofia cientificista seja posto a funcionar é preciso que pressupostos comuns indiscutíveis sejam rapidamente estabelecidos sem questionamento, de modo a possibilitar a discussão, contrariando a ideia de que a filosofia deva ser em princípio um questionamento renovador de pressupostos. A fragmentação da filosofia em campos específicos de questionamento e grupos estanques de pesquisadores, que compartilham sem discutir pressupostos questionáveis, torna a verdade inalcançável por impossibilitar o encontro de ideias que se tornam plausíveis por sua maior coerência com todos mais complexos (como os que formam o senso comum mooreano e mesmo domínios mais distantes da ciência), obstando a possibilidade da assim chamada consiliência[18] – a possibilidade de produzir estruturas teóricas coerentes entre si, partindo do pressuposto de que a natureza consiste em um todo internamente coerente[19] – o que termina por perverter o pensamento de tal modo que a pedra de toque que permitiria avaliar externamente o que esses filósofos-especialistas estão fazendo se perca.

   Falta aqui um genuíno labor filosófico. Falta o pensar de través, o desbaratamento dos pressupostos cristalizados que uma decadente mainstream pluri-escolástica não ousa questionar, porque são pilares das alentadas construções passadas que sustentam tudo aquilo que lhe é aceitável dizer. Falta, pois, aquilo que marca a perspectiva independente, demonstrável como a propriedade justificadora do ingrediente autista no pensar consciente. É assim que, sem que ninguém perceba, o filósofo atual corre o risco de ser excluído da academia mesmo antes de nela ter entrado.

 

 

 

 

 

 



[1] Hans Asperger: “Die ‘autistischen Psychopaten’ in Kindersalten”, in Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 1944, 117, 76-136. Segundo Steve Silberman, Asperger e seus colegas haviam descoberto o espectro autista já na década de 30. Para uma introdução, ver Tony Atwood: Asperger’s Syndrome: A Guide for Parents and Professionals. Jessica Kingsley Publisher, 1998. Há hoje uma vasta literatura sobre o assunto.

[2] Lorna Wing: “Asperger Syndrome: A Clinical Account”, in Psychological Medicine 11, 1981, 115-130. (Uma síndrome é um conjunto mais ou menos definido de sinais e sintomas; um caso típico é a insuficiência cardíaca direita ou esquerda. É importante notar que os sinais e sintomas costumam vir causalmente ligados uns aos outros, o que explica porque eles costumam aparecer em feixes mais ou menos diversificados.)

[3] Ver Steve Silberman: Neurotribes: The Legacy of Autism and the Future of Neurodiversity. Penguin, 2016.

[4] Ver também Temple Grandin: The Autistic Brain: Helping Different Kinds of Minds Succeed. Mariner Books, 2014, cap. 1.

[5] São importantes as pesquisas experimentais de Simon Baron-Cohen. Ver Mind Blindness: An Essay on Autism and Theory of Mind. MIT Press, 1995. Ele demonstra o quão pouco a criança portadora de AS pode ser capaz de se colocar no lugar do outro de modo a entender estados mentais heteropsíquicos.

[6] “Desde as minhas primeiras horas da infância não fui como os outros eram – não via como os outros viam – não era capaz de fazer nascer minhas paixões de uma fonte comum – da mesma fonte eu não trazia minhas tristezas – não podia elevar meu coração para o prazer no mesmo tom – e tudo o que amei, amei sozinho”.

[7] Gilles Tréhin: Urville. Jessika Kingsley Publishers, 2006.

[8] A palavra ‘gênio’ é enganosa, dando a impressão de uma misteriosa capacidade superior. Trata-se, porém, apenas de um lento e gradual acúmulo, geralmente inconsciente, de insights, os quais em certo momento se articulam, rompem as barreiras e afluem à consciência na forma do que é chamado de “inspiração”.

[9] Die “autistischen psychopaten” in Kindesaltern, pp. 132-5.

[10] Cristopher Gillberg: A Guide to Asperger Syndrome. Cambridge University Press, 2002, cap. 15. Gillberg considera muito difícil o diagnóstico diferencial entre uma pessoa com síndrome de Asperger e uma pessoa muito inteligente. A pergunta é se não haveria uma relação causal intrínseca entre uma coisa e outra.

[11] Homossexualidade junto com autismo também parece ter sido uma característica de Isaac Newton, Michelangelo e outros. A epilepsia também é uma característica frequente em escritores (Dostoievsky, Flaubert, Machado de Assis...). Ela é mais frequente em autistas, o que sugere algum vínculo entre as duas condições.

[12] Ver Susan Haack: Reintegrating Philosophy. Ed. Göhner & Jung, Springer Verlag, 2016.

[13] Note-se que não estou sugerindo algo dépassé como a crianção de sistemas! Considerando o atual estado da arte, penso na abrangência objetivada um pouco como em um vasto compêndio, contendo grande número de ideias interligadas e suficientemente plausíveis. O que é filosofia hoje um dia poderá se tornar ciência no sentido de alcançar consenso entre os conhecedores. Mas tentativas cientificistas de abreviar o caminho de pouco servem.

[14] O termo é de Susan Haack.

[15] Ver Silberman, 2015.

[16] Cf. Temple Grandin: The Way I See It: A Personal Look at Autism & Aspergers. Future Horizons, 2015.

[17] Uma teoria da natureza da filosofia que busca dar conta de seus diferentes aspectos foi esboçada em meu livro The Philosophical Enquiry: Toward a Global Account. UPA, 2002.

[18] Cf. Susan Haack. Scientism and its Discontents. Rounded Globe, 2017.

[19] Um bom exemplo dentre muitos outros em ciência é o das relações entre genética molecular, genética mendeliana e evolucionismo darwiniano: são teorias complementares que se reforçam entre si porque a natureza é por suposto consiliente.



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