SÍNDROME DE ASPERGER E FILOSOFIA
Muitos conheceram o doutor Spock, personagem da série Jornada
nas Estrelas. Ele era um ser meio alienígena e meio humano, com dificuldade
para harmonizar o seu eu vulcaniano, lógico, com o seu eu emocional, humano.
Algo não muito diverso ocorre com as pessoas portadoras de síndrome de
Asperger, uma curiosa e complexa desabilidade neurológica identificada pela
primeira vez pelo pediatra vienense Hans Asperger, em 1944.[1] Ele descreveu casos do que chamou de “psicopatia autista”:
crianças que quase não se relacionavam com as outras, não faziam amizades e
entretinham interesses obsessivos, sendo capazes de discursar exaustivamente
sobre eles, frequentemente sem domínio adequado, como se fossem “pequenos
professores”. A síndrome de Asperger é uma forma branda de autismo que só se
tornou conhecida fora dos países de língua alemã em 1981 devido ao trabalho de
Lorna Wing.[2]
Há um forte componente genético ligado à
síndrome de Asperger, como também ao autismo profundo. Contudo, já foram
encontrados casos de gêmeos univitelinos em que somente um deles desenvolveu
traços autistas. Há, portanto, alguma influência de fatores externos,
ambientais. A síndrome de Asperger ou SA é diagnosticada cerca de quatro vezes
mais em homens do que em mulheres, talvez pelas disposições sociais muito
maiores do sexo feminino. Em estatísticas antigas a prevalência da SA na
população já foi de 0,2%. Hoje se fala em mais de 1%. Uma hipótese plausível
seria a do aumento da acuidade diagnóstica[3] ou a da flexibilização dos critérios diagnósticos.[4] Minha hipótese alternativa (mero palpite) é a de que,
considerando que os padrões de avaliação não mudaram muito e que fatores externos
podem ter efeito, o aumento do número de casos de SA pode se dever à presente
diminuição dos padrões comportamentais fortemente compartilhados no
desenvolvimento social das crianças, o que poderia interferir negativamente na
aquisição de habilidades sociais (exemplos: a repetição de padrões familiares
tradicionais como o de o filho ter a mesma profissão do pai, ou a mesma
religião, ou a importância que já foi dada a traços acidentais como a cor da
pele). O Asperger não se sente estranho junto a outro Asperger; ele se sente
estranho junto a pessoas neurotípicas. Mas se os padrões de comportamento se
multiplicam, ou a falta deles, pode tornar-se mais difícil preservar a
neurotipicidade.
Hoje geralmente se admite que a SA seja
uma interessante forma limítrofe de autismo. O que existe é um continuum,
melhor dizendo, um espectro quantitativo e qualitativo de características
que vão desde o extremo do autismo profundo até a normalidade
(neurotipicidade), passando pelo autismo leve ou síndrome de Asperger. A
característica fundamental do autismo profundo é a quase completa ausência de
socialização: a criança não aprende a língua materna, não aprende a interagir
com as outras pessoas e quase nada aprende sobre o mundo, o que detém o
desenvolvimento da inteligência. Geralmente essas crianças não se tornam
capazes de cuidarem de si mesmas e acabam sendo institucionalizadas. A razão
fundamental se encontra na falta de habilidades sociais inatas. Uma
evidência disso é que, como é demonstrado por pesquisas, bebês normais tendem a
olhar para os olhos da mãe quando chamados por ela. O que falta no bebê autista
é mostrado por sua tendência a olhar para a boca da mãe ou para algum outro
lugar. A razão é que o bebê neurotípico tem uma disposição inata para ler as
expressões fisionômicas das pessoas, particularmente expressas no olhar, o que
falta no autista e se encontra pobremente existente nos casos de SA. Daí que
uma característica dos casos de SA é a dificuldade de estabelecer contato
visual com as outras pessoas. Parece-me claro que aquilo que produz a diferença
fundamental entre o autismo profundo e o autismo Asperger é que no último caso
a falta de habilidades sociais não é tão grande a ponto de impedir o
aprendizado da língua. A criança com SA tem um aprendizado normal ou quase
normal da língua materna e torna-se capaz de se comunicar. Ora, ao aprender a
língua materna (o que costuma incluir a leitura) a criança ganha acesso ao
mundo do conhecimento e da cultura, enriquecendo o seu mundo interior e
desenvolvendo normalmente suas habilidades intelectuais, mesmo que não as
desenvolva da mesma maneira que a das pessoas com habilidades sociais intactas.
No que se segue serão primeiro descritos
os sinais e sintomas usuais da SA, que me parecem claramente agrupáveis em duas
classes principais: (a) a do déficit na interação social (a dislexia social) e
(b) a dos interesses obsessivos e restritos. A primeira classe diz respeito às
relações da pessoa portadora de SA com o mundo externo. A segunda diz respeito
às suas relações consigo mesma, ou seja, à vida interior que ela desenvolve.
I
Consideremos, primeiro, o déficit na interação social. Ele
se constitui basicamente na incapacidade de inferência comportamental
representada pela falta de habilidades sociais e evidenciada no pouco contato
visual, na dificuldade de iniciar conversas, no discurso egocêntrico. Embora em
geral a pessoa com autismo leve deseje estabelecer contatos e vínculos afetivos
de modo a ser como as demais, ela não sabe como interagir socialmente. Ela não
tem entendimento suficiente das distâncias, das convenções sociais e de sua
complexa variação contextual. Ela só fala de seus interesses específicos. Ela
frequentemente diz o que não deve e não diz o que deve. Por isso tende a um
comportamento socialmente inadequado, estranho, bizarro, frequentemente
inoportuno. Falta-lhe a espécie de empatia – de identificação – que a torne
capaz de “conectar-se” emocionalmente com os outros. Falta a ela a espécie de
reciprocidade afetiva e comportamental necessária ao jogo de dar e receber que
alimenta os vínculos emocionais da maioria das pessoas. Ela pode ter
dificuldades no entendimento da linguagem figurativa, insistência em dizer a
verdade, mesmo quando isso é inapropriado, falta de autocensura, ingenuidade
social e desdém pela conversa fiada – uma mola social cuja razão de ser lhe
custa muito compreender. É comum a dificuldade para o pensamento abstrato, a
falta de imaginação, a tendência à racionalização de sentimentos,
inflexibilidade.
A limitação na socialização já existe no
autismo profundo, no qual o comprometimento da sociabilidade vem acompanhado de
um comprometimento linguístico e cognitivo severo, que torna nosso mundo
inacessível para ele. Por isso podemos dizer que o autista é uma pessoa que
vive em seu próprio mundo, enquanto o portador de SA é uma pessoa que vive em
nosso mundo, mas ao seu próprio modo.
Uma notável característica neurológica
dos portadores de SA é que, enquanto em pessoas normais a observação de
expressões fisionômicas e gestos de outras pessoas estimula certas áreas do
córtex pré-motor, diversamente da observação de objetos, em pessoas com autismo
ou SA isso não acontece. Ou seja: a reação cortical às pessoas tende a ser
semelhante à reação que se tem à observação de objetos. A precisa causa
neurológica ainda é desconhecida, mas se considera uma falha no funcionamento
dos “neurônios-espelho”, ou seja, de sistemas neurais inatamente preparados
para descarregar diante de estímulos como o da presença de fisionomias humanas,
expressões faciais, movimentos corporais. Neurônios-espelho seriam de grande
importância para o aprendizado imitativo do ser humano.
Importante é notar que esses dados
neurológicos fornecem um indício explicativo da razão da alienação social do
portador de SA. Eles sugerem que o portador dessa síndrome não possui um
suficiente entendimento de como funcionam as mentes ditas neurotípicas, e que a
cegueira emocional tenha muito a ver com a falta de identificação com essas
últimas. A primeira reação do autista consiste em pensar que pessoas
neurotípicas são ou deveriam ser tal como ela é, o mesmo acontecendo com o
neurotípico com relação ao autista.[5] Mais particularmente, o autista carece da capacidade inata
de compreender sinais comportamentais como o olhar, a expressão fisionômica, os
gestos e a voz, no contexto da interação social. Por isso ele costuma fazer
pouco contato visual com seu interlocutor. Pode lhe faltar, por exemplo, a
disposição natural para distinguir reativamente expressões fisionômicas sutis,
como a de uma surpresa triste. Uma característica complementar, associada à
dificuldade de entender os sentimentos alheios, é a dificuldade que o portador
de SA tem de fazer uma adequada identificação dos sentimentos que ele próprio
possui. Se há falta de compreensão do heteropsíquico, ela é seguida de uma
falta de compreensão do endopsíquico, dado que a linguagem pela qual
identificamos o que vai em nós é de origem interpessoal. (Afinal, a linguagem é
um sistema público de convenções.)
Tudo isso causa no
portador de SA ansiedade e insegurança frente ao contato social. O fardo
interior do portador de Asperger foi bem resumido em uma poesia de Edgar Allan
Poe intitulada Alone:
From childhood’s
hour I have not been
As others were – I have not
seen
As others saw – I could not
bring
My passions from a common
spring –
From the same source I have
not taken
My sorrow – I could not
awaken
My heart to joy at the same tone
–
And all I lov’d – I lov’d
alone.[6]
O dia-a-dia de um portador de SA já foi descrito como sendo
o de alguém vivendo em um país estranho, cuja língua e convenções sociais ele
praticamente desconhece. E o efeito tardio do desamparo infantil na personalidade
já foi comparado com o efeito provocado pela experiência de pessoas que
passaram por um campo de concentração. De fato, o repetido fracasso em lidar
com situações que requerem habilidades sociais pode produzir depressão, além de
um comportamento de evitação dessas situações, capaz de se transformar em fobia
social.
Do que foi exposto não se deve concluir
que o portador de SA não seja capaz de saber o que os outros sentem ou pensam.
A diferença é que, diversamente das pessoas neurotípicas, ele não chega a isso
com base em uma reação empática espontânea, natural, imediata. Ele chega às
conclusões sobre o que se passa nas mentes dos outros com base em experiências
passadas e no raciocínio, inferindo que as pessoas devem sentir tais e tais
emoções em tais e tais situações. É por precisar se valer da experiência e da
razão para inferir ou adivinhar indutivamente o que se passa nas mentes das
outras pessoas que o portador de SA leva mais tempo para reagir, além de errar
frequentemente em suas avaliações. Pela própria lentidão de seus processos
mentais aprendidos e não-espontâneos, ele perde o ritmo das conversações e as
suas respostas imediatas são quase inevitavelmente em alguma medida
inadequadas, sendo frequentemente vistas como inapropriadas ou rudes, sem que
ele tenha tido a intenção de sê-lo, o que é percebido por ele sempre tarde
demais, pela reação inesperada dos demais ou pelo raciocínio. Trata-se, pois,
de algo muito diferente do caso da pessoa que erra “normalmente” por culpa de
suas próprias limitações cognitivas, nunca chegando a entender o acontecido.
Frente a tais erros o portador de SA fica embaraçado, embora não veja nem tenha
razão para sentir culpa. Tais comportamentos podem facilmente levar outras
pessoas a pensarem que o portador de SA é uma pessoa insensível e grosseira.
Por essa falta de empatia, o portador de SA tem dificuldades em fazer amigos.
Embora não seja verdade que, pela falta de interesses comuns, ele não seja
capaz disso, é difícil que essas amizades sejam duradouras devido ao acúmulo de
mal-entendidos de ambas as partes. Afora isso, o aspie tem o que alguém
chamou de “radar curto”: enquanto as pessoas estão presentes, elas parecem
vivas e intensamente influentes; uma vez distantes é como se deixassem de
existir; elas desaparecem de sua mente.
Há outros traços menores, que têm sido
relatados e de alguma forma se relacionam às deficiências acima descritas. A
fala do SA tende a ser monótona e o seu tom de voz é frequentemente mais alto
ou mais baixo do que as circunstâncias exigem. O portador de SA também pode ter
dificuldades de concentração, além de possível hipersensibilidade sensorial.
Pode faltar sensibilidade térmica, por exemplo, incapacidade de sentir frio
quando a temperatura ambiente está realmente fria. Ele tende a preferir roupas
confortáveis às que melhoram a aparência, pode ter falta de memória para nomes
próprios... Pode haver também déficits psicomotores como o andar desajeitado e
falta de motricidade fina.
II
O segundo traço mais característico dos portadores de SA
constitui-se nos interesses obsessivos e restritos. Enquanto pessoas
neurotípicas focam as suas mentes em muitas coisas diversas e em conjunto,
pessoas com SA (como os autistas em geral) só conseguem focar suas mentes em
uma coisa de cada vez, da parte para o todo. Além disso elas tendem a focar as
suas mentes intensamente e repetitivamente em umas poucas coisas, geralmente
com características objetuais-estruturais e não pessoais. Elas se deixam facilmente
mesmerizar por algo (digamos, um quadro, uma música), não sendo capazes de
interromper sua experiência. O mais característico é que o portador de SA tende
a desenvolver interesses obsessivos por coisas como coleções de objetos
geológicos, insetos, filmes, ou por temas científicos particulares, rejeitando
outros interesses, embora possivelmente substituindo-os por outro, quando
esgotados. Esses interesses obsessivos, vale notar, são voltados para a busca
de estruturas, modelos, regularidades, o que lembra um pouco aquilo que o
cientista faz ao procurar na realidade a ordem determinada pelas leis da
ciência (Baron-Cohen).
Uma explicação razoável para os
interesses obsessivos seria a de que eles teriam surgido como um substituto
“interno” para a falta de um satisfatório relacionamento com o mundo social
“externo”: a pessoa passa a viver em um mundo de interesses específicos
independentes do apelo social que eles possam ter, como forma de preencher o
vazio ocasionado pela dislexia social característica da SA. Essa tese ganha
força quando consideramos que cerca de 70% dos prazeres da maioria das pessoas
advém do contato social, o que é quase vedado ao aspie, ao menos como um prazer
puro. Um bom exemplo de interesse obsessivo pode ser dado pelo francês Gilles
Tréhin, um jovem portador de SA que passou vinte anos de sua vida trabalhando
muitas horas por dia nos desenhos extremamente detalhados de uma cidade
imaginária com doze milhões de habitantes, que ele situou no sul da França.[7]
Essas fixações cognitivas costumam servir
para aprofundar a inadequação social do portador de SA, aumentando a falta de
interesses comuns e o isolamento. Devido aos interesses obsessivos, a
conversação autocentrada do portador de SA carece de atenção suficiente para os
interesses que as demais pessoas normalmente compartilham entre si, sendo
frequente que o portador de SA tenha dificuldade em se aperceber do
aborrecimento que causa aos outros com seus monólogos. Por sua vez, ele se
sente aborrecido pelos múltiplos e variados interesses das pessoas
neurotípicas, os quais para ele se afiguram desinteressantes ou irrelevantes.
Já se notou que se todas as pessoas tivessem SA essa síndrome não existiria,
pois elas não perceberiam que divergem de algum padrão que desconhecem. Em
compensação, o mundo seria provavelmente um vasto deserto de interações de
efeito prático, incompatível com alguma ordem social eficaz.
Sem diagnóstico e auxílio adequado, a
tendência de prognóstico de pessoas com SA não costuma ser positiva, sendo alto
o índice de casos que terminam em distúrbios neuróticos como o de fobia social
e depressão severa. Estima-se que apenas 2 em cada 10 pessoas com SA se tornem
capazes de prover seu próprio sustento. A pessoa erra constantemente em suas
escolhas profissionais, sociais e afetivas, não sendo capaz de distinguir
amigos de inimigos, caindo facilmente nas mãos de manipuladores no
relacionamento afetivo, nos poucos casos em que esse relacionamento parece
acontecer.
Em alguns poucos casos, porém, a pessoa
com SA consegue colocar os seus interesses obsessivos a serviço da sociedade,
tornando a sua inserção social bem-sucedida. Esse é o caso de Vernon Smith,
prêmio Nobel de economia, diagnosticado como portador de SA. Ele conta em
entrevista que uma razão pela qual chegou a desenvolver uma teoria
microeconômica inovadora é que ele não sentia a pressão de fazer o que os
outros faziam, por indiferença ao feedback
motivacional proporcionado pela sociedade científica. Isso lhe permitiu
trabalhar por muitos anos em um campo desconhecido, movido apenas por sua
curiosidade e por um interesse continuado.
Especula-se também se a SA não seria
capaz de fornecer uma pista para o que se convencionou chamar de “gênio”.[8] Afinal, pessoas com interesses obsessivos associados a uma
incessante busca, consciente ou não, de estruturas, modelos ou regularidades, e
fazendo coisas na independência do que os outros delas esperam, podem bem ser
uma fonte do inesperado, e entre as coisas inesperadas podem por vezes
acontecer que algumas sejam úteis, originais, verdadeiras, relevantes. Com
base nessa ideia se sugeriu que figuras exponenciais e excêntricas em ciência,
como Isaac Newton, Einstein, Henry Cavendish, ou em arte, como Mozart e Glenn
Gould, pudessem ser classificadas como pertencentes ao espectro autista. A
ideia faz sentido. Newton foi um recluso que trabalhou muitos anos em
Cambridge, e que ao mudar-se para Londres não deixou para trás amigo algum.
Vivendo na Inglaterra, nunca se deu ao trabalho de ir ver o mar. Membro da
sociedade real de ciências, nunca falava (uma vez, aliás, falou: pediu para
abrirem as cortinas). Segundo uma testemunha, Einstein, embora muito cordial,
era emocionalmente inacessível, sugerindo a ideia de que o gênio, para poder
ser exercido, exige um esvaziamento do envolvimento emocional com as outras
pessoas. Henry Cavendish, o químico descobridor do oxigênio, só contactava seus
empregados através de bilhetes escritos. Se essa lista for correta, então não
será difícil estendê-la, incluindo nela outras figuras, como as de Kurt Gödel,
que só mantinha contato com o seu departamento em Princeton por telefone.
Isso pode valer
também para as artes: afinal, uma melodia, um romance, é resultado da busca por
vezes quase obsessiva de modelos. Mozart e Beethoven parecem ter possuído
alguns traços autistas. Um caso melhor conhecido é o de Glenn Gold. Aos trinta
e dois anos esse pianista, cuja carreira havia sido espetacular, abandonou as
salas de concerto, passando a viver uma vida noturna solitária em seu
apartamento em Toronto. No final de sua curta vida ele sofria de obsessões,
depressão e hipertensão, só se comunicando com as pessoas por telefone e por
cartas. Poderíamos incluir romancistas nessa lista? Ora, considere o caso de
Emily Brönte – em nível, talvez o único escritor inglês comparável a
Shakespeare – a qual (segundo consta) preferia mais o contato com os animais a
estar junto a outros seres humanos. A imaginação social necessária ao
relacionamento social pode ser adequada à produção de folhetins baratos capazes
de satisfazer imaginariamente um wishful thinking socialmente
compartilhado. Mas a falta dessa imaginação social convencional na pessoa com
SA poderia ser compensada pela presença da crítica social consciente inerente à
boa literatura. Pessoas com traços autistas podem ser capazes de produzir
fantasias que, sendo inteligentes e acompanhadas do necessário distanciamento
crítico, da falta de preconceitos emocionais que levem ao envolvimento a favor
do wishful thinking socialmente
compartilhado, pode ser fonte de insight sobre aquilo que uma sociedade
não deseja nem ousa enxergar em si mesma. Podemos estender essa lista a um
poeta investigador da disparidade entre sua subjetividade e o mundo que o
envolvia, como Fernando Pessoa, ou a um escritor hedonista e anarquista, cujos
contos podem ser entendidos sob a perspectiva de uma devastadora crítica
social, como Charles Bukowski.
É interessante
notar que o absolutamente neurotípico também deve ter suas dificuldades.
Dificilmente essa pessoa encontrará forças para se concentrar em si mesma de
modo se tornar um engenheiro, mas supostamente poderá se tornar uma excelente
RH. Como notou Hans Asperger, uma gota de autismo é necessária a qualquer
trabalho criativo em arte e em ciência.
Não há cura para a SA, mas a consciência
da condição é importante, tanto para o seu portador quanto para as pessoas que
o circundam, pois permite um entendimento mais adequado do que acontece e o
recurso a estratégias de tratamento eficazes. A síndrome é facilmente
diagnosticável em crianças (nos primeiros dias de escola elas se isolam dos
outros alunos), mas torna-se difícil de ser diagnosticada em adultos mais
velhos, que já aprenderam a mascarar os sintomas. Adultos podem aprender a
mimetizar o comportamento social, fazendo de conta que são normais, mas é
difícil crer que eles se tornem capazes de internalizar essas representações
sem perderem a si mesmos. O fazer de conta da normalidade causa esforço e não
traz como retorno todo o prazer espontâneo das trocas sociais naturais.
Como foi
enfatizado pelo próprio Asperger[9], é possível que portadores de SA se tornem pessoas úteis
para a sociedade. Biólogos notaram que se as combinações de genes que produzem
a SA e que podem produzir graus mais profundos de autismo trouxessem apenas
resultados ruins, a seleção natural teria feito com que tais combinações fossem
bloqueadas e desaparecessem. Elas só são possíveis porque se demonstraram
evolucionariamente úteis à sobrevivência da espécie, posto que uma sociedade
precisa de neurodiversidade para que cada indivíduo possa combinar suas
habilidades próprias com as dos demais, de modo produzir resultados melhores
para todos. (Podemos supor que o cacique de uma tribo seja o neurotípico,
enquanto o xamã, distanciado da comunidade e sendo visto por ela como um
estranho, esteja mais próximo do autista.) Por isso, antes de rotular a SA como
uma patologia, devemos nos perguntar se não seria melhor considerá-la uma das
variadas formas limítrofes da natureza humana – neste caso, aquilo que pode
propiciar mudanças ao prover as condições para as rupturas com valores e
pensamentos culturalmente sedimentados, quando estas se tornam necessárias. Por
desprender o ser humano das convenções habituais dentro das quais ele aprendeu
a pensar, o ingrediente autista consistiria então, como potencialidade, o
princípio ativo responsável pela renovação em qualquer âmbito da experiência
humana.
III
O ingrediente autista (expressão com a qual quero
ressaltar traços de autismo, sem me comprometer com um diagnóstico completo da
SA) pode ser utilizado em proveito do autista no que diz respeito a profissões
que requerem que a pessoa se aparte do mundo e se volte para si mesma na busca
da satisfação de interesses obsessivos. Exemplos são coisas como engenharia,
ciências formais, computação e profissões acadêmicas, além da ciência e da
arte. Mas também um exemplo pode ser a própria filosofia. Certamente, entram
aqui em curso as disposições individuais específicas de cada um. Não tenho
dúvidas de que a filosofia, tal como foi praticada na época moderna, em
considerável isolamento, por pessoas como Descartes, Leibniz, Spinoza, Kant,
Hegel, Nietzsche... requeria algum ingrediente autista. Há registros de que
Descartes mudava de moradia constantemente e de que mesmo sendo uma pessoa
socialmente agradável, ele evitava contato pessoal prolongado com outras
pessoas, o qual pudesse perturbar sua vida interior. A inflexibilidade dos
hábitos de Kant também é um traço revelador. Embora trouxesse amigos
inofensivos da sociedade local para almoçar consigo em um ambiente descontraído
e previsível, é sabido que evitava contatos com os seus pares na universidade,
certamente, para reduzir ao mínimo dissonâncias cognitivas capazes de lhe
afastar de seus interesses intelectuais. Conta-se que Goethe queria conhecer
pessoalmente Kant. Esse último, porém, tornou o encontro tão difícil, que em um
acesso de raiva Goethe desistiu da ideia. Leibniz, cuja racionalidade era tão
poderosa que destruía em si qualquer forma de paixão, morreu só e esquecido. Spinoza
recusou um convite para ensinar em Heidelberg, preferindo viver como polidor de
lentes de modo a preservar sua liberdade. E de todos eles somente Hegel se
casou. Já Nietzsche, como é bem sabido, passou cerca de dez anos vivendo como
um eremita antes de enlouquecer. Um caso estudado pelo Dr. Christopher Gillberg[10] foi o de Ludwig Wittgenstein, que além de autista era
homossexual.[11] Embora Wittgenstein fizesse amigos, discípulos em geral, a
convivência com ele podia ser muito difícil (geralmente as pessoas tinham medo
de sua presença). E para concentrar-se em filosofia ele precisava por vezes
passar longos períodos só, em recantos da Noruega ou da Irlanda. Uma vida de
convulsões emocionais pode ser adequada a um artista, cuja arte pode ser
construída como uma reação a ela, como no caso de um escritor como Charles
Bukowski, de um poeta como Edgar Allan Poe, ou de um pintor como Francis Bacon.
Mas ela é inadequada ao filósofo, que precisa distanciar-se das paixões humanas
o suficiente para poder sazonar ideias em sua mente como se elas fossem queijos
Roquefort a serem maturados em cavernas. Wittgenstein alternava um pouco as
duas coisas. Diversamente, filósofos tradicionais sistemáticos poderiam passar
muitos anos colecionando insights que pudessem ser reunidos em um corpo
argumentativo coerente. Um bom exemplo sendo Locke, que passou cerca de 18 anos
escrevendo o seu Ensaio concernente ao entendimento humano, algo
semelhante acontecendo com a Ética de Spinoza, que só foi publicada
postumamente. Olhando para esse cenário, parece que a filosofia é um dos
domínios nos quais pessoas com as habilidades adequadas e algum grau de autismo
se sentiriam à vontade. Mas que dizer das escolas da filosofia antiga?
Filósofos antigos conviviam em grupos, como na famosa academia de Platão...
Contudo, devemos notar que aquilo que unia mestre e discípulos eram os
interesses obsessivos dos mestres, cujos resultados seriam aperfeiçoados por
discípulos de interesses próximos. Trata-se, pois, de uma amostra viciada.
IV
Antes de continuarmos vale
dizer alguma coisa sobre a natureza da filosofia. É bem sabido que no início
quase tudo era filosofia, pois à parte o saber comum ligado aos afazeres
humanos, o mundo era misterioso e desconhecido. As ciências particulares
nasceram do berçário filosófico: as matemáticas já entre os gregos antigos; a
física experimental com Galileu, a teórica com Newton; a química com Lavoisieur
e outros; a psicologia e a sociologia, junto às suas ramificações, ainda hoje
não se estabeleceram completamente como ciências particulares... Por isso a
filosofia hoje se restringe, em seu centro, a tentar dizer algo daqueles
estratos superiores do que podemos conhecer que ainda não foram capazes de
ganhar a espécie de consenso entre especialistas própria da ciência. Exemplos
máximos são a ontologia, a epistemologia e a ética. O filósofo pode tentar
desvendar especulativamente a forma desses extratos superiores, mas para isso
terá de apartá-los de tudo o que as ciências particulares já nos revelaram,
ainda que as pressupondo. A filosofia pode ser, nesse sentido, uma protociência,
à qual é acrescido um elemento metafórico, que a torna, em maior ou menor
medida, uma espécie de “arte da razão”.
Um exemplo esclarecedor de como a filosofia
adivinha pelo menos a forma daquilo que se tornará ciência foi o caso dos
atomistas gregos. Eles adivinharam que nosso mundo deveria ser constituído de
uma variedade infinita de partículas invisíveis e indivisíveis. Hoje a física
se debate entre quarks e microcordas, confirmando a intuição formal de
Demócrito.
Os aforismos de Heráclito ainda hoje nos
impressionam. Por quê? O próprio Heráclito tinha a resposta:
A Sibila, que com seus lábios delirantes diz coisas
sem alegria, sem ornatos e sem perfumes, as faz ressoar por mil anos graças ao
deus que nela habita. (Diels 92)
Ora, quem seria essa sibila
heracliteana senão a própria Filosofia? Afinal, só ela foi capaz de projetar
sua voz mil anos adiante.
Foi assim com todos os grandes filósofos da
tradição: Platão, Aristóteles, Kant e Hegel, entre vários outros. No século XX
tivemos ao menos dois filósofos exponenciais, que foram Frege e Wittgenstein.
Nada apareceu depois com originalidade e abrangência comparáveis. Esse caráter abrangente é o que difere
ontologia, metafísica e ética de, digamos, protociências particulares como a
sociologia. Todos eles tiveram uma maior ou menor ambição de abrangência em
suas tentativas de compreender o mundo, mesmo que como hipótese plausível
(Locke) ou com conclusão aniquiladora da hipótese plausível (Hume) – tudo isso
sob o pano de fundo do que era permitido pela ciência e cultura da época.
Hoje a ciência tornou-se extremamente
complexa e variada, de modo que nossos
sistemas educacionais acadêmicos – aparentemente o último reduto da filosofia
possível – não se encontram aparelhados para permitir-nos alcançar uma base de
cultura científica conjugada a uma base de cultura humanística e do saber comum
que permita o ressurgimento de filosofias de maior abrangência, naturalmente
sob uma forma contemporânea. Restou uma mais ou menos fragmentada filosofia
cientificista, a filosofia desse ou daquele ramo da ciência, ou
então a filosofia fragmentada inspirada nesse ou naquele ramo da
ciência que é por ela hipostasiado fora de seu domínio próprio.
Por isso o
contexto da filosofia contemporânea é muito diferente do contexto da filosofia
moderna, ao menos até a Segunda Guerra Mundial. Em tal contexto a filosofia é
cada vez mais uma atividade coletiva. Já ouvi dizer que o autismo se tornou
impropício para o exercício da filosofia sob tais condições. Receio mais a
afirmação oposta: que a falta ou supressão do ingrediente autista apropriado em
filosofia possa ser negativa para um exercício mais autêntico da filosofia.
Tentarei me explicar.
Nós vivemos o que
Max Weber diagnosticou como sendo o desencantamento
do mundo (Entsauberung der Welt)
de uma forma cada vez mais acelerada. Para Weber a sociedade humana passa a
girar cada vez mais em torno da cultura científica e tecnológica em detrimento
de outras dimensões da cultura, que se lhe tornaram de algum modo caudatárias.
Isso se reflete socialmente por um contínuo acréscimo da burocracia, que
se conduz pelo que ele chamou de razão instrumental, em detrimento da razão
valorativa. Parece plausível a ideia já presente em Weber de que esse
movimento tem sido empobrecedor para a cultura humanística em geral, o que
inclui as religiões, as artes e a filosofia. Com isso a filosofia, embora
enquanto tal não pertencendo ao mundo da ciência, acabou sendo indebitamente
capturada pela ciência. Em boa parte, ela passou da posição (falsa) de algo
superior às ciências particulares à posição (também falsa) de uma espécie de
desorientado vassalo da ciência. Como resultado ela perdeu em muito
características que lhe eram próprias, como a do nível de abrangência e a força
do elemento metafórico. Devido a essa perda, ela alienou-se das condições
necessárias para tratar propriamente de seus problemas centrais. Mal
comparando, podemos dizer que assim como a filosofia francesa foi corrompida
pela literatura, a filosofia analítica anglo-americana-australiana
contemporânea hoje dominante foi corrompida pela ciência.[12]
Em meu juízo, esse
movimento de burocratização e substituição da razão valorativa pela razão
instrumental na sociedade ajuda a explicar a superficialização e mesmo a
futilidade de boa parte da filosofia contemporânea. O filósofo contemporâneo
encontra-se perdido em meio a cientistas e técnicos pertencentes a uma
sociedade burocratizada e hierarquizada em torno de um telos científico.
Ele se encontra envolvido por um meio pragmático, que desconsidera o que foge à
linguagem da ciência. Isso faz com que ele perca a visão para formas mais
amplas e integradas de pensamento, capazes de trazer resultados mais
propriamente filosóficos. Há muito tempo ele perdeu qualquer objetivo de
compreender as coisas sub specie totius, que ao final visasse obter
maior clareza em nosso entendimento do mundo, como filósofos tradicionais
tentaram até pelo menos Husserl e Wittgenstein (o evolver da consciência do
todo para a parte, à qual se aplica o argumento da melhor explicação). Ele é
estimulado a satisfazer expectativas próprias da comunidade científica, junto à
qual é convidado a trazer um constante aporte de novidades especulativas,
compartilhando, corrigindo e avançando pequenos palpites ou soluções mais ou
menos implausíveis, que por mais caricatas que pareçam são tomadas a sério pela
tribo a qual pertence, dedicada a alguma intransparente ramificação
especulativa apenas internamente aquilatável, dado que redutivamente separada
do todo. Essa fragmentação parece então necessária no interior de uma mainstream que só pode funcionar se for
sobre um fundo de valores e crenças compartilhadas, o que forçosamente limita
seu nível de abrangência, posto que os pequenos palpites devem ser tais que
possam ser rapidamente avaliados, entendidos e discutidos por todos os
participantes. Foi assim que a filosofia acadêmica passou a ser vista como
precisando dar um retorno rápido, deixando de ser o despreocupado
entretenimento intelectual de uma elite ociosa, que era capaz de ser entendida
por alguns poucos devido ao seu alto nível de abrangência.[13] Essa transformação, contudo, bloqueia possibilidades ao
afogar verdades importantes em um oceano de trivialidades. Por exemplo: na
filosofia, mais do que em outros âmbitos do saber, não podemos prescindir da consciência
individual. Isso também se dá em certos domínios da ciência. Não podemos
imaginar a conjectura de Poincaré sendo resolvida por um time de matemáticos e
não por Grigori Perelman. Mas é mais comum na arte. Não podemos imaginar Macbeth
sendo escrito por um time de beletristas, ou a Quinta Sinfonia sendo
composta, não por Beethoven, mas por vários compositores em conjunto, como se
faz com certos sambas enredos. Aqui devemos reconhecer o caráter exclusivista
da filosofia. Se tomarmos como exemplo de comparação a música, devemos admitir
que nem todos se encontram preparados para perceber que a Quinta Sinfonia
de Beethoven é superior à Nona, tão popular, ou que o Magnificat de
Bach é em geral musicalmente superior a sua bem mais conhecida Paixão
Segundo São Mateus (considere o fato de que há pessoas que por natureza não
possuem qualquer sensibilidade musical).
Compare-se tais
constatações com a fragmentação cientificista da filosofia, que passa a aplicar
métodos e procedimentos redutivos que buscam mimetizar criativamente o trabalho
da ciência de uma forma cada vez mais caricatural. Essa fragmentação é
reducionista no sentido de que rompe com a totalidade do conhecimento, o que
inclui não só a ruptura com outros domínios da filosofia, como também as
rupturas dentro de um subdomínio da filosofia (como dentro da epistemologia, da
metafísica e da ética), sem falar na ruptura com o senso comum mooreano, que
não se opõe à ciência (ex: “existe um mundo externo”), com a cultura e mesmo
com outros domínios próprios da ciência amadurecida. Disso resulta uma espécie
de escolasticismo setorializado: discussões filosoficamente estéreis
entre membros de cliques[14] (uma clique é definida pelo dicionário como um pequeno
grupo de pessoas com interesses comuns, que passam muito tempo juntas e que não
permitem facilmente que outras venham a juntar-se a elas), ou seja, grupos que
se ignoram uns aos outros e nos quais a adequada fiação neuronal e o
conhecimento amplo e variado, necessário para o desenvolvimento de filosofia em
maior nível de abrangência, é completamente desencorajado. O resultado é um
rebaixamento de nível coetâneo à diminuição da abrangência. (Não estou com isso
negando que nesse meio haja progresso – pode haver, em vários sentidos. Apenas
que esse progresso não deve ser o mais propriamente filosófico, visto que nada
nele nos permite uma abordagem plausível de qualquer um dos problemas mais
centrais da filosofia.)
Esse ambiente de
filosofia comunitária não é o mais apropriado para o autista enquanto tal.
Mesmo uma suposta formação de “neurotribos”[15] de autistas-filósofos apenas encobre o esforço para
domesticar o ingrediente autista em favor de um mundo apressadamente
desencantado, posto que indebitamente determinado pela ciência & tecnologia.
A eliminação do ingrediente autista atuando conscientemente na independência do
sistema pode bem ser a principal razão de não encontrarmos hoje quase mais nada
de original e simultaneamente relevante nessa área. Na discussão coletiva, o
que vale é aquilo que pode se ajustar ao que for acessível a todos, em um espaço
no qual o ‘todos’ só pode se referir a uma massa intelectual aparelhada pela
medianidade e fiel aos preconceitos dispostos por uma questionável sabedoria
herdada, a qual não precisa ser mais que competentemente esmiuçada em um
visível sinal de decadência. O resultado pode ser a formação de uma massa
acadêmica culturalmente despreparada para compreender o que há de mais próprio
ao jogo intelectual da filosofia, o que só pode ser dimensionado por quem tiver
compreendido antes, em seus contextos, algo como os grandes sistemas e
concepções da tradição, cimentado por um acesso de princípio à cultura
científica e humanista como um todo – o que hoje não parece mais assim tão
impossível, dada a Biblioteca de Babel cada vez mais à disposição na Internet
(um intelectual competente do ano de 2050 nos verá como homens de Neandertal).
Isso me faz pensar
nas habilidades intelectuais que o filósofo deveria ter ou desenvolver para ser
capaz de compreender as coisas sub specie totius. Parece que deveriam
ser múltiplas, pois tal trabalho exigirá habilidades e conhecimentos variados.
Considere-se, por exemplo, a distinção feita por Temple Grandin entre três
diferentes tipos de pensadores dentro do espectro autista:
(a) pensadores visuais
(pensamento imagístico, com dificuldade para as matemáticas),
(b) pensadores que usam modelos
(aptos ao pensamento formal e à música, mas incapazes de pensar por imagens),
(c) pensadores verbais (boa
memória simbólica, mas podem faltar modelos).[16]
Não importa o quão precisa ou adequada seja essa distinção,
já que a uso somente como ilustração. Importante é notar, como o fez a autora,
que as habilidades de um pensador não excluem forçosamente as de outros, e que
eles também podem ser pensadores mais ou menos mistos. Minha sugestão é a de
que a mente filosófica precisa conter ou adaptar-se a um misto mais ou menos
equilibrado de diferentes habilidades para que seu pensamento alcance um nível
de abrangência capaz de apreender o todo relevante ao questionamento. Essa
sugestão parece confirmar-se quando consideramos um filósofo clássico como
Aristóteles, que desenvolveu a silogística (domínio formal), mas que era
biólogo (domínio empírico). Ela se assume quando consideramos o aspecto
complementar das duas filosofias de Wittgenstein, a primeira orientada pela
lógica matemática (domínio formal), a segunda pela linguagem natural (domínio
empírico), ou quando consideramos a amplitude dos interesses de um filósofo
como Bertrand Russell. Ela também parece confirmar-se quando consideramos o
valor que damos a coisas aparentemente dispensáveis, como o estilo.[17]
Como já fiz notar,
em oposição aos ideais acima expostos, para que o maquinário acadêmico produtor
da filosofia cientificista seja posto a funcionar é preciso que pressupostos
comuns indiscutíveis sejam rapidamente estabelecidos sem questionamento, de
modo a possibilitar a discussão, contrariando a ideia de que a filosofia deva
ser em princípio um questionamento renovador de pressupostos. A fragmentação da
filosofia em campos específicos de questionamento e grupos estanques de
pesquisadores, que compartilham sem discutir pressupostos questionáveis, torna
a verdade inalcançável por impossibilitar o encontro de ideias que se tornam plausíveis
por sua maior coerência com todos mais complexos (como os que formam o senso
comum mooreano e mesmo domínios mais distantes da ciência), obstando a
possibilidade da assim chamada consiliência[18] – a possibilidade de produzir estruturas teóricas coerentes
entre si, partindo do pressuposto de que a natureza consiste em um todo
internamente coerente[19] – o que termina por perverter o pensamento de tal modo que
a pedra de toque que permitiria avaliar externamente o que esses
filósofos-especialistas estão fazendo se perca.
Falta aqui um
genuíno labor filosófico. Falta o pensar de través, o desbaratamento dos
pressupostos cristalizados que uma decadente mainstream pluri-escolástica não ousa questionar, porque são
pilares das alentadas construções passadas que sustentam tudo aquilo que lhe é
aceitável dizer. Falta, pois, aquilo que marca a perspectiva independente,
demonstrável como a propriedade justificadora do ingrediente autista no pensar
consciente. É assim que, sem que ninguém perceba, o filósofo atual corre o
risco de ser excluído da academia mesmo antes de nela ter entrado.
[1] Hans Asperger: “Die ‘autistischen Psychopaten’ in Kindersalten”,
in Archiv für Psychiatrie und
Nervenkrankheiten, 1944, 117, 76-136. Segundo Steve Silberman, Asperger e seus colegas haviam
descoberto o espectro autista já na década de 30. Para uma introdução, ver Tony
Atwood: Asperger’s Syndrome: A Guide for Parents and Professionals.
Jessica Kingsley Publisher, 1998. Há hoje uma vasta literatura sobre o assunto.
[2] Lorna Wing: “Asperger Syndrome: A Clinical Account”, in Psychological
Medicine 11, 1981, 115-130. (Uma síndrome é um conjunto mais ou menos definido de sinais e
sintomas; um caso típico é a insuficiência cardíaca direita ou esquerda. É
importante notar que os sinais e sintomas costumam vir causalmente ligados uns
aos outros, o que explica porque eles costumam aparecer em feixes mais ou menos
diversificados.)
[3] Ver Steve Silberman: Neurotribes: The Legacy of Autism
and the Future of Neurodiversity. Penguin, 2016.
[4] Ver também Temple Grandin: The Autistic Brain: Helping Different Kinds of Minds Succeed. Mariner Books,
2014, cap. 1.
[5] São importantes as pesquisas experimentais de Simon Baron-Cohen. Ver Mind
Blindness: An Essay on Autism and Theory of Mind. MIT Press, 1995. Ele demonstra o quão
pouco a criança portadora de AS pode ser capaz de se colocar no lugar do outro
de modo a entender estados mentais heteropsíquicos.
[6] “Desde as minhas primeiras horas da infância não fui como os outros
eram – não via como os outros viam – não era capaz de fazer nascer minhas
paixões de uma fonte comum – da mesma fonte eu não trazia minhas tristezas –
não podia elevar meu coração para o prazer no mesmo tom – e tudo o que amei,
amei sozinho”.
[7] Gilles
Tréhin: Urville. Jessika Kingsley Publishers, 2006.
[8] A palavra ‘gênio’ é enganosa, dando a impressão de uma misteriosa
capacidade superior. Trata-se, porém, apenas de um lento e gradual acúmulo,
geralmente inconsciente, de insights, os quais em certo momento se articulam,
rompem as barreiras e afluem à consciência na forma do que é chamado de
“inspiração”.
[9] Die
“autistischen psychopaten” in Kindesaltern, pp. 132-5.
[10] Cristopher Gillberg: A Guide to Asperger Syndrome. Cambridge University Press, 2002, cap. 15.
Gillberg considera muito difícil o diagnóstico diferencial entre uma pessoa com
síndrome de Asperger e uma pessoa muito inteligente. A pergunta é se não
haveria uma relação causal intrínseca entre uma coisa e outra.
[11] Homossexualidade junto com autismo também parece ter sido uma
característica de Isaac Newton, Michelangelo e outros. A epilepsia também é uma
característica frequente em escritores (Dostoievsky, Flaubert, Machado de
Assis...). Ela é mais frequente em autistas, o que sugere algum vínculo entre
as duas condições.
[12] Ver Susan Haack: Reintegrating Philosophy. Ed.
Göhner & Jung, Springer Verlag, 2016.
[13] Note-se que não estou sugerindo algo dépassé como a crianção de
sistemas! Considerando o atual estado da arte, penso na abrangência objetivada
um pouco como em um vasto compêndio, contendo grande número de ideias
interligadas e suficientemente plausíveis. O que é filosofia hoje um dia poderá
se tornar ciência no sentido de alcançar consenso entre os conhecedores. Mas
tentativas cientificistas de abreviar o caminho de pouco servem.
[14] O termo é de Susan Haack.
[15] Ver Silberman, 2015.
[16] Cf. Temple Grandin: The Way I See It: A Personal Look
at Autism & Aspergers. Future Horizons, 2015.
[17] Uma teoria da natureza da filosofia que busca dar conta de seus
diferentes aspectos foi esboçada em meu livro The Philosophical Enquiry:
Toward a Global Account. UPA, 2002.
[18] Cf. Susan Haack. Scientism and its
Discontents. Rounded Globe, 2017.
[19] Um bom exemplo dentre muitos outros em ciência é o das relações entre
genética molecular, genética mendeliana e evolucionismo darwiniano: são teorias
complementares que se reforçam entre si porque a natureza é por suposto
consiliente.
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