WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO
Ao escrever este
resumo argumentado de minha tese doutoral,[1] defrontei-me
com a seguinte dificuldade: como condensar o conteúdo de um trabalho
sistemático, no qual os argumentos particulares só adquirem poder de convicção
quando compreendidos em sua relação com o todo, sem simplificar em demasia e
aparentar inconsciência das dificuldades envolvidas? Para que esse
inconveniente fosse amenizado, segui a estratégia de me restringir a algumas
ideias centrais envolvendo a noção de regra semântica, ideias que foram
desenvolvidas nos capítulos I, VI e VII, abstraindo de muitas outras questões
interpretativas a elas relacionadas.
Começo enunciando a tese mesma. O objetivo
inicialmente proposto foi, através de um trabalho de reconstrução racional que
procedesse pelo esclarecimento de supostas relações entre os diferentes
princípios semânticos sugeridos nos escritos de Wittgenstein, esboçar os traços
gerais de uma “teoria do significado” filosoficamente relevante, concebida como
uma elucidação genérica, ou, usando expressões do autor, uma representação sinóptica ou panorâmica (übersichtliche
Darstellung) da gramática desse conceito – o que redundaria em um esquema
conceitual esclarecedor do que precisa ser sabido para a compreensão do que se
quer dizer com expressões quaisquer.
Uma interpretação é uma seleção
do que se julga ser demonstravelmente relevante num texto. Uma reconstrução
racional consiste, basicamente, em uma interpretação que acrescenta novas
premissas, que não constavam no texto original e o tornam mais instrutivo. Um
trabalho inspirado ou influenciado por um certo texto é geralmente aquele que
não só lhe adiciona premissas estranhas, mas também desconsidera tudo aquilo
que for incompatível com tais adições. No caso de um texto tão ambíguo como o
de Wittgenstein, pode ser difícil separar a segunda da terceira possibilidade.
Embora existam aqui e ali incompatibilidades, ainda assim acredito que meu
texto se encontra mais próximo da segunda do que da terceira alternativa. Ele
objetiva recuperar um pouco da profundidade de um filósofo analítico cujo nível
só é aproximado por Frege e cuja obra julgo muito superior à usual indigência
da filosofia contemporânea.
Há, na literatura secundária,
pelo menos duas tentativas antigas de se extrair uma teoria do significado dos
escritos de Wittgenstein: o livro de J. T. E. Richardson[2] e um artigo
de Paul Feyerabend.[3] O resultado
não especialmente elucidativo desses trabalhos deve-se, em meu juízo, à timidez
reconstrutiva, ao modo demasiado interpretativo de aproximação das questões.
O pressuposto orientador de
minha reconstrução pode ser visto como um “principle of charity”, maximizador
do corpus de frases verdadeiras. Esse pressuposto é o de que as
diferentes sugestões feitas por Wittgenstein sobre a natureza do significado,
as quais relacionam-no com o uso, com a sua explicação, com o método de
verificação, com critérios, com regras da gramática, com um cálculo, e até
mesmo com a correspondência de sentenças com fatos possíveis, devem ser
preferencialmente vistas como diferentes meios de aproximação do mesmo problema
ou de aspectos dele – diferentes figuras elucidativas – e não como
incompatíveis tentativas de explicação, por vezes inconsistentemente agrupadas,
ou que teriam sido abandonadas sempre que o filósofo se apercebia de sua
inadequação, como se ele estivesse procedendo por um método cego de tentativa e
erro.
Uma maneira de ilustrar meu
ponto de vista é evocando a parábola dos cegos e do elefante. Cada cego apalpa
uma parte do elefante, descrevendo-o de maneira diferente: um diz que é uma
corda, porque toca a sua cauda; outro abraça a sua perna afirmando tratar-se do
tronco de uma árvore; outros, apalpando outras partes, dizem que se trata de um
grande abanador, de um sifão, de um muro... Wittgenstein, pelo contrário,
estava suficientemente consciente de estar se aproximando de uma mesma
problemática por diferentes meios, sob diferentes ângulos, considerando a
diversidade de seus aspectos, abandonando a perspectiva escolhida quando o
poder de esclarecimento de suas analogias parecia esgotar-se, o que poderia ser
pelo encontro de dificuldades que ele mesmo não sabia como contornar. Essa é
uma razão do caráter alusivo de seus escritos; ele tomava o cuidado de não
precisar nem generalizar suas sugestões ao modo dos cegos da parábola e de
alguns de seus intérpretes, o que ocorre mesmo em suas sempre matizadas alusões
aos “erros” do Tractatus.
I
Uma
dificuldade metodológica que se apresenta sempre que tentamos uma reconstrução
sistematizadora do que Wittgenstein escreve, diz respeito à sua concepção de
filosofia. Trata-se da objeção, que hoje sabemos ser interpretativamente
simplificadora, segundo a qual ele a teria concebido como desempenhando uma
função meramente terapêutica, qual seja: a de uma atividade puramente crítica,
constituída de simples descrições de casos de aplicação da linguagem. Tais
descrições seriam capazes de produzir, pela mera apresentação de
contra-exemplos, uma espécie de reductio ad absurdum de pretensas teses
filosóficas, originadas de confusões conceituais locais, engendradas pela mente
metafísica – o que excluiria qualquer atividade teorética ou explicativa. Tal
concepção não é a minha, nem julgo sua assunção necessária.
Apesar das aparências, veiculadas pelo fato
de a filosofia do último Wittgenstein ser crítica no conteúdo e fragmentária na
apresentação, a dificuldade metodológica aqui assinalada pode ser refutada;
primeiro externamente, por considerações acerca do conteúdo de seus escritos,
depois internamente, em alguma medida, por uma interpretação mais
circunstanciada de suas considerações sobre a natureza da filosofia.
Quanto aos escritos de Wittgenstein, é
correto afirmar que a sua filosofia terapêutica não é capaz de ser produzida na
ausência de pressupostos teoréticos, sejam eles explícitos ou não. Como
observou Carl Hempel, em uma passagem que vale a pena traduzir:
Mesmo que a filosofia se
limitasse, casuisticamente, a ajudar moscas individuais a escaparem de suas
particulares garrafas papa-moscas, semelhante atividade filosófica ou terapia
estaria ainda assim enformada em princípios gerais. Como uma mosca presa numa
garrafa, um homem preso num labirinto pode ser conduzido para fora com seus
olhos envoltos em uma bandagem: ele seguirá seu condutor cegamente e irá
finalmente encontrar-se a si mesmo lá fora, mas ele não irá compreender como
foi preso nem como foi trazido para fora. Mas não há nenhum análogo a esse modo
de libertação física no caso da pessoa filosoficamente confundida em um
labirinto. O único meio de trazê-la para fora é com seus olhos abertos, como
que mostrando o caminho da saída, para usar uma expressão de Wittgenstein; ou
seja, ela deve vir a entender qual a parte da armadilha que foi deixada em
primeiro lugar e como evitar que o mesmo aconteça em outras situações semelhantes.
E isso sempre requer ‘insights’ de um tipo geral, concernentes, por exemplo, a
contextos linguísticos de um determinado tipo, cujas regras gerais são então
projetadas no caso particular em questão.[4]
A eficácia da
terapia provém do fato de o paciente se dar conta de que sua dificuldade é ocasionada
por pressupostos que contradizem princípios cujo nível de generalidade e
abstração deve equivaler ao das próprias ideias filosóficas criticadas, e isso
se dá à revelia das supostas pretensões antiteoréticas de Wittgenstein.
Isso é tornado evidente quando consideramos
o conteúdo sugerido pelas anotações de Wittgenstein como, por exemplo, o
argumento contra a possibilidade de uma linguagem originariamente privada. Uma
observação de A. J. Ayer sobre a afirmação wittgensteiniana de que a filosofia
não deve explicar, mas somente descrever, esclarece bem esse ponto:
Sua repetida preferência por
descrições e não pela explicação e sua abstenção de teorias cuja prática ele
assevera realizar e reivindica para os seus leitores, não são características
de seu procedimento atual em qualquer estágio de seu desenvolvimento, inclusive
nas Investigações Filosóficas. Que suas explicações sejam rúnicas, isso
não as reduz a descrições; suas teorias não deixam de sê-lo por serem
encobertamente assentadas.[5]
Também P. F.
Strawson e John Searle chamaram suas próprias elaborações de “descritivas”,
embora elas sejam obviamente explicativas e teoréticas. Mas o que se pretende
com esse modo de dizer é assinalar a natureza que prefiro chamar de metalinguística de uma investigação
teorética que procede a uma pretensa exposição daquele nosso conhecimento
tornado conceptual de regras tácitas naturalmente desenvolvidas, a maioria
delas desde sempre já presentes no funcionamento da linguagem; pretende-se
apontar o caráter não-revisionário da investigação; aconselhar que ela seja
feita em um “modo formal” de discurso, que descole essas regras de sua
aplicação concreta e praticamente motivada. A ênfase na descrição resume-se
então a pouco mais que um playdoier
por esse modo formal, no qual os referidos princípios de funcionamento da
linguagem são descritivamente
expostos – nada realmente diverso daquilo que W. V. Quine mais tarde chamaria
de ascensão semântica (semantic ascent). Ora, não seria esse,
mesmo na obra de Wittgenstein, também um intuito implícito?
Parece que sim, pois é possível evidenciar
que o sentido por ele dado à palavra ‘teoria’, e com ele o de todo um grupo de
palavras semanticamente interdependentes, como ‘explicação’, ‘descrição’,
‘hipótese’, ‘tese’... afasta-se do sentido técnico usual, o que, como em outros
casos de termos por ele usados em sentido peculiar, pode confundir o
intérprete.
Com a palavra ‘teoria’, hoje sabemos,
Wittgenstein geralmente tinha em mente a espécie científica de teoria.
Intérpretes como S. S. Hilmy e a dupla G. P. Baker & P. M. S. Hacker
mostraram que ele queria criticar a assimilação do trabalho do filósofo à
concepção e ao método da ciência, tendo em mente uma crítica às concepções de
filosofia de Russell, William James, e mais ainda o positivismo dos filósofos
do Círculo de Viena. Como notaram Baker e Hacker:
A objeção de Wittgenstein ao
‘teorizar’ em filosofia é uma objeção à assimilação da filosofia, em método e
em produto, a uma ciência teorética hiperfísica. A filosofia não é hipotético-dedutiva.
Mas, se esmeradas refutações ao idealismo, solipsismo ou behaviorismo, envolvem
um esforço teorético, Wittgenstein se engaja nele.[6]
Essa
interpretação é corroborada pelo uso positivo do conceito de teoria que
Wittgenstein por vezes faz. Em Zettel, § 144, ele escreve: “nós temos
agora uma teoria, uma teoria ‘dinâmica’ da frase, da linguagem, mas ela não nos
parece uma teoria”. Com isso ele quer se opor a algo como a “filosofia
científica” de Russell, que propõe teorias hipotéticas à semelhança da ciência,
bem como suas “explicações” e “teses”. Em escritos inéditos, observa Hilmy,
Wittgenstein chega a empregar uma expressão extravagante para o que ele faz,
chamando-o de “teoria da relatividade da linguagem”. Trata-se, em tais casos,
da teoria entendida como uma descrição de traços fundamentais da gramática de
termos centrais a nosso entendimento do mundo, termos gerais e de aplicação
sobremodo complexa. Essa “teoria” que não vem estruturada como um sistema
arquitetônico no sentido kantiano, mas antes no sentido schopenhaueriano –
referido, aliás, pelo próprio Wittgenstein – de um sistema que se desenvolve
como um organismo, em uma discussão aporética, indefinida.
O conceito mais característico dessa
dimensão construtiva da filosofia terapêutica é o de apresentação panorâmica, que é como tento traduzir a expressão “übersichtliche Darstellung”. A
apresentação panorâmica, escreve Wittgenstein, “designa a forma de nossa
representação, a maneira como vemos as coisas” (PU 122). Para ele a falta dessa
visão geral é importante fonte de erros, razão pela qual torna-se
filosoficamente relevante a tarefa de encontrar (finden) os elos existentes entre os conceitos e mesmo de
inventá-los (erfinden),
estabelecendo-se assim uma ordem possível (PU 122, 132). A representação
panorâmica é, por assim dizer, uma fotografia aérea da gramática lógica de
conceitos filosoficamente relevantes; do mesmo modo que a fotografia, ela
destaca os traços mais fundamentais, perdendo em nitidez quanto aos detalhes
menos relevantes. A elucidação filosófica pode consequentemente assumir uma
forma semelhante ao que Strawson quis entender com a expressão ‘metafísica
descritiva’, cuja função é a de oferecer-nos elucidação das relações vigentes
entre nossas estruturas conceituais mais relevantes, um esclarecimento capaz de
nos prover de maior transparência semântico-conceitual, de uma compreensão mais
clara de nossos enunciados (WWK p. 223, PU 90). Tal representação panorâmica
não pode ser outra coisa senão o resultado de um empreendimento teorético.
Transcrevendo mais uma vez as palavras de Baker e Hacker: “Se a filosofia é uma
questão de representação panorâmica, então deve haver sistema. Pois uma sinopse
não pode se constituir de uma casual coleção de aperçus. Se ela não é abarcante, ela é ao menos sistemática”.[7]
Não é então forçoso concluir, como fez
Anthony Kenny[8], que
Wittgenstein defende simultaneamente duas concepções incompatíveis de
filosofia, uma crítica e terapêutica e outra mais construtiva e ortodoxa, posto
que uma análise mais aproximada tende a desfazer a suposta tensão existente
entre elas. Com sua insistência no aspecto terapêutico, o que Wittgenstein
pretendia não era excluir a possibilidade da teorização autenticamente
filosófica, mas censurar a pressa dos filósofos em fabricar fabulações
especulativas que um mapeamento suficientemente cuidadoso dos fatos
linguísticos teria tornado completamente dispensáveis. (BB p. 19)
Parece assim claro que a crítica à
metafísica pressupõe ela própria, implicitamente, uma outra metafísica, ainda
que “descritiva”, a qual baseia seu maior poder de convicção nos pressupostos
comuns da linguagem. E isso é assim porque terapia e representação panorâmica,
atividade crítica e atividade teorética, são como duas faces inseparáveis da
mesma moeda filosófica, cabendo a fatores extrínsecos às questões mesmas que o
filósofo decida se concentrar mais em um ou em outro lado desta.
Admitida essa duplicidade, pode-se ainda
argumentar que a importância de uma teoria do significado, entendida simplesmente
como uma representação panorâmica da gramática constitutiva desse conceito,
também resida em funções terapêuticas, as quais se realizariam em dois níveis.
Em um nível mais geral, a terapia se aplicaria criticamente a certos modelos de
“teoria do significado”, como o objetualista, o causal, o representacional...
Em um outro nível, mais específico, a função terapêutica de semelhante
representação panorâmica poderia ser assim definida: desde que para a
compreensão do significado de qualquer frase já precisamos ter de antemão uma
compreensão implícita do que o significado seja, a elucidação do conceito geral
de significado explicitaria pressupostos que de outro modo poderiam ser
equivocamente alterados em considerações sobre o significado de outros termos
filosoficamente relevantes – pressupostos que uma vez explicitados funcionariam
como instrumentos heurísticos no correto esclarecimento dos significados
próprios desses termos.
II
Feitas essas
considerações preliminares, passo ao tema do primeiro capítulo, que é um exame
da identificação feita por Wittgenstein entre o significado de uma expressão
linguística e o seu uso ou aplicação. O papel central da identificação, junto à
relativa transparência do conceito de uso tornam esse um ponto de partida adequado.
Na fórmula “o significado de uma palavra é
seu uso na linguagem” (PU 43; PG 23; BB p. 69), a noção de significado é suficientemente clara: trata-se de significados de
expressões linguísticas, não só de palavras, mas também de frases, pois essas
são também “instrumentos para aplicações específicas” (PU § 291). Não se trata,
ademais, simplesmente daquilo que costumamos chamar de significado lexical ou
literal das expressões, concebido como aquele normalmente considerado na
abstração dos contextos – tanto materiais quanto representacionais e linguísticos – em que elas são aplicadas. Em
Wittgenstein, o significado de uma expressão é sempre intencional- e
contextualmente considerado. Ele está intrinsecamente ligado ao que se
“intenciona dizer”, ao que se “quer dizer”, ao que “se pode ter em mente” com a
expressão em um sentido que, veremos, não é meramente psicológico, mas função
de regras ou convenções. Esse elemento cognitivo-intencional, por sua vez, é em
geral e em alguma medida contextualmente dependente, pois é o contexto, em
sentido amplo, que esclarece o conteúdo intencionado, permitindo a determinação
mais completa do que se “quer dizer”. Considere-se, por exemplo, uma frase como
“Antônio visitou Calpúrnia”. Ela tem um significado lexical, mesmo que não
saibamos quem são Antônio e Calpúrnia, nem quando e por que Antônio a visitou.
Tal não é possível quando temos em mente o sentido mais determinado da palavra
‘significado’ que Wittgenstein quer considerar. Para ele, quando não se tem
“algo a dizer” com uma frase, quando ainda não se tem aberto o caminho de sua
vinculação ao contexto, ela deixa de servir ao seu fim, deixando de ser
significativa no sentido relevante do termo. Daí fica mais fácil entender a
razão pela qual ele diz que “é no uso que as palavras vivem”; que o uso é “seu
sopro vital”; que elas só ganham sentido “no fluxo da vida” (Z 135; PU 432). É
por seu necessário prolongamento cognitivo-intencional, pelo fato de este
“querer dizer” ter uma relação necessária com contextos particulares que
determinam o pleno significado da expressão, que o significado tem propriamente
a ver com o uso.
Uma investigação da natureza desse
significado cognitivo, dessa utilização contextualmente determinada dos
enunciados, justifica-se muito particularmente em filosofia, dado que as
perplexidades semântico-conceituais que permeiam qualquer reflexão filosófica
não dizem respeito simplesmente aos significados lexicais ou literais. Elas
dizem respeito às confusões e aos equívocos que as semelhanças entre múltiplas
e variadas acentuações cognitivas de significação permitem que sejam produzidas
nos contextos linguístico-representacionais de argumentações metafísicas.
Passemos agora a uma análise da noção de uso
na equivalência entre significado e uso. Como essa equivalência parece
intuitivamente fazer sentido, e tendo o primeiro termo da relação – a palavra
‘significado’ – o sentido exposto anteriormente, a estratégia argumentativa
seguida consistiu em analisar os diversos sentidos da palavra ‘uso’ em busca
daquele sentido privilegiado, em que ela satisfizesse a identificação sugerida.
‘Uso’ não significa, evidentemente, o que
poderíamos denominar uso episódico de uma expressão: o uso entendido
como a ocorrência, a realização espaciotemporalmente localizada de um
proferimento. Se assim fosse, uma mesma expressão teria um significado
diferente a cada vez que fosse proferida, o que é absurdo. Não se trata,
também, do uso arbitrário, não-convencional, como o de Humpty-Dumpty, cuja
presunção era a de achar que suas palavras significavam simplesmente o que ele
quisesse que significassem. Afinal, se as palavras significassem tudo o que
quiséssemos, elas não seriam capazes de significar mais coisa alguma. Se não se
trata do uso arbitrário, trata-se então do uso correto. Mas o que é o uso correto? Ora, o uso em conformidade com regras
capazes de determinar sua correção. Mas há um sentido em que essa sugestão deve
ser recusada; é quando o uso em conformidade com regras é entendido como um
mero uso episódico correto. Nesse caso, mesmo que ele seja o uso correto, segundo
regras, ele continuará sendo uma outra ocorrência espaciotemporal a cada nova
aplicação da mesma expressão, devendo, pois, alterar-se, tornar-se outro o seu
sentido a cada aplicação, o que obviamente não se dá.
Não obstante, a palavra ‘uso’ não funciona
somente na designação de uma simples ocorrência espaciotemporal de algo. Na
linguagem ordinária, ‘uso’ (Gebrauch)
é uma palavra que muitas vezes funciona como abreviação de ‘modo de uso’ (Gebrauchsweise). É possível dizer: “Eu
fiz uso da [usei a] palavra A de acordo com seu uso”. Nessa frase a
palavra ‘uso’ ocorre duas vezes. Em sua primeira ocorrência ela designa somente
um uso singular da palavra A, a realização espaciotemporal, não sendo
aqui possível substituir ‘uso’ por ‘modo de uso’. Mas na segunda ocorrência
sim. É possível que se diga: “Eu fiz uso da palavra de acordo com o seu modo de uso”. Importante é notar que
algo paralelo ocorre quando procuramos substituir a palavra ‘uso’ pela palavra
‘significado’ na frase acima. Na primeira ocorrência a substituição não faz
sentido. Não faz sentido dizer: “Eu fiz significado da [signifiquei a] palavra A de acordo com seu uso”. Na segunda
ocorrência da palavra ‘uso’, entretanto, a substituição é perfeitamente legítima.
Pode-se dizer: “Eu fiz uso da palavra A em concordância com seu significado [modo de uso]”. Com efeito,
ao menos no caso de palavras em geral, só faz sentido identificar significado e
uso quando este último é entendido como uma forma abreviada de se falar do
modo, da maneira pela qual a expressão é aplicada. É Wittgenstein quem por
vezes toma o cuidado de dizê-lo. Em várias passagens de seus escritos ele
identifica significado com o modo ou a forma como a palavra é usada. “Um
significado de uma palavra”, diz ele em Sobre a Certeza, “é um modo de
sua aplicação (eine Art seiner Verwendung)” (ÜG 61).
Mas o que é o modo de uso? o modo de
aplicação? Há na linguagem uma paráfrase adequada para o que essas expressões
querem dizer? Consideremos o seguinte exemplo. Alguém recebe em casa um
aparelho eletrônico. Na embalagem encontra-se um folheto explicativo
intitulado: “MODO DE USO”. Esse título vem, como de costume, seguido de uma
série de instruções sobre a maneira como o aparelho deve ser utilizado. Aqui o sentido
da expressão se toma transparente: ‘modo de uso’ é o nome que se dá a uma
prescrição, a uma regra ou conjunto de regras, comumente interligadas, de cuja
explicitação as instruções dão conta. Esse também é o caso quando se fala dos
modos de aplicação de uma ferramenta, que se diferenciam pela diversidade das
regras de manuseio. O que se tem em mente são sempre prescrições: regras
especificadoras dos usos episódicos.
A aplicação do mesmo raciocínio à
identificação wittgensteiniana nos leva a perguntar se todo o sentido que ela
possa ter não se reduz a uma identificação entre o significado, o modo de uso,
e certas regras, que seriam regras de uso.
Há para tal sugestão prós e contras a serem discutidos. A favor dela está o
fato de que o significado da palavra não se reduz a um simples acontecimento
espaciotemporal, à diferença do uso episódico. O mesmo podemos dizer das
regras. Somente a aplicação da regra é um acontecimento
espaciotemporal singular, mas não a regra mesma, designada pela expressão de regra
(Ausdruck der Regel), a qual se deixa
conceber ao modo de uma função que se instancia em suas aplicações episódicas.
Também fala a favor da identificação o fato de que percebemos que pertence à
natureza das regras serem, digamos assim, doadoras de significado. A
regra-signo (Zeichenregel) “=>” orienta-nos forçosamente para a
direita, o que lhe dá algum sentido. A doação de significado é uma propriedade
constitutiva das regras: onde há regra há sentido, mesmo que seja um sentido
que sob o aspecto comparativo é cognitivamente irrelevante, como no caso das
regras gramaticais de uma língua.
Vejamos agora as objeções. Embora
Wittgenstein chegue a dizer, ao menos em uma passagem das Lectures de
1930-32, que o significado de uma palavra (expressão, frase) consiste nas
regras gramaticais que a ela se aplicam,[9] ele
costumava evitar uma identificação direta. Assim, em Sobre a Certeza ele
escreveu que o significado, sendo o modo de aplicação, corresponde a
regras (Cf. ÜG 62). E segundo o relato de Moore em suas anotações das Lectures
de 1930-33, ao lhe perguntarem se o significado de uma expressão não seria uma
lista de regras, Wittgenstein teria respondido com a insinuação de que uma tal
concepção poderia estar associada a uma reificação, através da qual o significado
estaria sendo tratado como se fosse algo visível. Essa observação deixa-se
interpretar como uma crítica a uma suposta perda da plasticidade inerente ao
significado cognitivo-intencional, que teria de ser admitida no caso de ele ser
identificado a uma regra ou lista de regras.
Nas mesmas anotações feitas por Moore na
passagem que antecede a anteriormente considerada e cuja importância foi aliás
apontada por E. K. Specht, Wittgenstein aproxima significado e regra de uma
maneira mais informativa: “o significado de qualquer palavra singular em uma
linguagem é ‘definido’ (defined),
‘constituído’ (constituted), ‘determinado’ (determined) ou
‘fixado’ (fixed) pelas regras da gramática, com as quais ela é usada
naquela linguagem”.[10] A questão
cuja resposta pode ser esclarecedora toma-se, por conseguinte: o que se pode
entender por determinação (definição, constituição, fixação) do significado ou
modo de uso pelas regras da gramática? Essa questão pressupõe a resposta a uma
outra: o que são as regras da gramática?
Sendo assim, abandonarei provisoriamente a
questão da determinação do significado por regras para considerar a noção
wittgensteiniana de regra gramatical. Com a expressão ‘regra da gramática’ ele
quer se referir, como observou E. K. Specht, ao que é expresso por frases
declarativas a priori: frases que se diferenciam das frases empíricas
costumeiras devido à sua necessidade e direta evidência.[11] No dizer do
próprio Wittgenstein: “reconhecer uma frase como absolutamente certa significa
usá-la como regra gramatical. Com isso se a priva de incerteza”. (BGM p. 88) O
que está em questão não são, porém, tanto as regras altamente genéricas, como
as da lógica formal, mas regras mais ou menos específicas, como as expressas
pelas frases seguintes, recolhidas dos textos de Wittgenstein:
(i)
O vermelho é uma cor.
(ii)
Duas cores não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo.
(iii) Branco é mais claro do que
preto.
(iv) 5 é um número.
(v)
A soma dos ângulos de um triângulo é de 180°.
(vi) 2 . 2 = 4.
(vii) A ordem ordena seu
cumprimento.
(viii) A água ferve a 100° C.
(ix) Eu não posso sentir as dores
dos outros.
(x)
Eu sei que sou um homem.
(xi) Eu tenho duas mãos.
(xii) Todo bastão tem um
comprimento.
(xiii) Isso é uma cadeira.
(xiv) Paciência se joga só.
Típico dessas
frases é que elas expressam convenções naturalmente radicadas em nossa forma de
vida, que se tornam hábito e que no funcionamento dos sistemas linguísticos
(jogos de linguagem) que as pressupõem não se fazem passíveis de dúvida, uma
vez que elas costumam fundamentar o que neles ocorre (o que não significa que
elas precisem para tal se tornarem verdades absolutas, verdades fora
desses sistemas). Como Wittgenstein escreve:
Toda frase de experiência pode
funcionar como regra, se ela é, como a parte de uma máquina, tornada imóvel, de
modo que toda representação gira em torno dela e ela se torna parte de um
sistema de coordenadas e independente dos fatos. (BGM p. 437)
Com isso, na
práxis desses sistemas elas se fazem tautológicas, não-informativas e,
portanto, no dizer de Wittgenstein, “destituídas de sentido”.[12]
Essas frases gramaticais diferem de
expressões de regras como as da lógica formal no sentido de que diferentemente
dessas, elas dizem respeito a domínios ou regiões mais ou menos específicas da
linguagem, podendo ser, para fins filosóficos, tematizadas em uma espécie de
“lógica informal”. As frases (i), (ii) e (iii), por exemplo, expressam regras
pertencentes ao que Wittgenstein chama de linguagem das cores; as frases (iv),
(v) e (vi) expressam regras pertencentes à linguagem da matemática; a regra
expressa em (vii) fundamenta jogos de comando; as outras, por sua vez, são
constitutivas dos sistemas de linguagem da física (viii), das sensações (ix),
da identificação pessoal, como (x) e (xi), da mensuração e identificação de
objetos materiais, como (xii) e (xiii) etc. A frase (xiii), “Isso é uma
cadeira”, é uma frase gramatical quando concebida como ocorrendo no contexto de
uma definição ostensiva de um certo tipo de objeto; ela torna-se no caso a
expressão que exemplifica uma regra da gramática, da qual o próprio objeto
próximo e bem visível participa como elemento constituidor. Nesse caso ela pode
ser também substituída por uma definição mais completa, que prescinda do
contexto, como a definição verbal: “Uma cadeira é um objeto com tais-e-tais
propriedades”.
As regras da gramática constituem sistemas
de regras que formam regiões mais ou menos especificas da linguagem, as quais
são geralmente denominadas, quando mais específicas, jogos de linguagem ou
práticas linguísticas (cap. III). Podemos chamar de Jogos de linguagem (entre
outras coisas) quaisquer fragmentos identificáveis da linguagem que se deixem
identificar como sistemas localizados de regras ou convenções geralmente
implícitas, as quais são tidas como simples ou básicas no âmbito do próprio
jogo. Eles são basicamente constituídos de quatro elementos: signos,
participantes, contexto e regras ou convenções, as quais associam signos,
participantes e contexto em conexões significativas. Podemos atomizar de muitas
maneiras o todo da linguagem em jogos de linguagem cada vez mais simples, e
depois construí-la outra vez pela combinação e ampliação dos últimos. Ainda que
imperfeita, é aqui oportuna a comparação feita por Wittgenstein entre a
linguagem e uma nebulosa:
O quadro que temos da
linguagem do infante é aquele de uma nebulosa massa de linguagem, sua língua
materna, circundada por discretos e mais ou menos distintos jogos de linguagem,
as linguagens técnicas. (BB p. 81)
Vemos também que
a maior especificidade das regras da
gramática é razão de sua relevância semântica: o significado precisa ser algo
característico de um signo ou combinação de signos. Regras muito gerais, como
as da lógica formal, não costumam possuir o grau de especificidade requerido
para individuar o significado, especialmente quando o que queremos levar em
conta é a multiplicidade de suas extensões intencionais contextualmente
determinadas. Esse ponto pode ser ilustrado se compararmos o processo de
compreensão do significado de uma expressão com o trabalho de um carteiro na
procura de um certo endereço. Itens como o país e a cidade, mesmo que
imprescindíveis, são excessivamente genéricos; eles são de muito pouca valia,
quando já não vêm pressupostos. Também nossas frases de conteúdo empírico
seguem regras consideradas pela lógica formal, que por sua generalidade são
insuficientes para individuar seus significados. O que permite ao carteiro
chegar efetivamente onde deve são os itens mais específicos do endereço, como os
nomes da rua e o número da residência onde mora o destinatário, já que muitas
cartas para recipientes diversos podem ser enviadas para um mesmo país ou
cidade. Algo similar se dá com o que poderíamos chamar de individuação
semântica de uma expressão; para que ela seja possível é necessário
recorrer a regras ou combinações de regras cuja aplicação se circunscreve à
expressão da qual queremos determinar o significado ou a sinônimos dela.
Como Wittgenstein escreveu: “o lugar da
palavra na gramática é seu significado”. (PG 23) Com efeito, se algo o
localiza, são as regras mais específicas
da gramática. São elas as responsáveis pelas finas modulações semânticas que
importam à filosofia como terapia. Esse lugar da palavra na gramática é ocupado
pelos significados que lhe são próprios, razão pela qual um significado pode
ser identificado com:
Um uso da palavra de acordo
com as regras do jogo de linguagem na qual ela está sendo inserida, um jogo
enraizado em nossa forma de vida.
O contexto
intencional mais amplo nos permite identificar o jogo de linguagem no qual a
palavra está sendo usada, e jogos de linguagem são dependentes de nossa forma
de vida (Lebensform), um conceito semelhante ao conceito de mundo da
vida (Lebenswelt) de Edmund Husserl.[13] Esse lugar
pode variar. Uma mesma palavra pode ser usada em diferentes jogos de linguagem.
E é fácil para o filósofo confundi-los em sua busca de sínteses especulativas.
A função anti-metafísica da terapia filosófica consiste em desfazer essas
confusões, mostrando como as palavras são realmente usadas. Com isso trazemos
as palavras de suas férias filosóficas de volta para o seu labor cotidiano.
Voltemos agora à questão que estávamos há
pouco considerando, ou seja, à questão da determinação do significado pelas
regras da gramática, ou ainda, à questão de uma possível identificação entre
significado e algo “do tipo de uma regra” (etwas
Regelartiges).
Na raiz da crítica wittgensteiniana a um
enrijecimento do significado por listas de regras, parece estar um raciocínio
como o seguinte: o número ilimitado de proferimentos com significações diversas
que podem ser gerados em nossa linguagem, e mesmo a pluralidade daquilo que
podemos “ter em mente” ao empregarmos uma expressão, exige que a noção de
regra, se identificada com o significado, seja mais abrangente que a de algo
como uma simples convenção ou hábito. Mesmo que se trate de uma lista fixa de
convenções, ela é, não obstante, uma convenção, e que dominássemos listas
ilimitadas de convenções seria, por razões não somente medicinais,
inconcebível.
Consideremos então, novamente, a ideia de
que o significado seja determinado pelas regras da gramática, as quais
resultam, decerto, de hábitos convencionados. O que significa em tal caso dizer
que elas determinam (constituem, fixam, definem) o significado em proferimentos
concretos?
Naturalmente, não se trata aqui da
determinação do uso episódico da expressão, de sua ocorrência, pois isso não é,
como já vimos, o significado. Em uma tentativa de esclarecer o que significa
aqui ‘determinar’, podemos recorrer também à analogia do aparelho eletrônico
acompanhado de uma série de instruções intituladas “Modo de uso”. Podemos,
obviamente, dizer que as prescrições ou regras da série determinam, fixam,
constituem o modo de uso. Elas não costumam fazê-lo, porém, na independência
umas das outras: mais frequente é que elas devam ser inter-relacionadas, por
exemplo, que elas formem uma sequência interligada, na qual o seguimento de uma
regra dependa do seguimento de outra (ex.: uma regra identifica um objeto e na
sequência outra regra lhe atribui uma propriedade). Característico disso é que
as regras se concatenam, se combinam; que um uso ou modo de uso pode consistir,
não em uma regra só, mas em uma combinação de regras convencionadas, e que essa
combinação, embora possa já vir preestabelecida, possa ser também, em princípio,
ilimitadamente variável.
Com isso parece que encontramos a chave para
a resposta à questão do sentido da palavra ‘determinação’, quando Wittgenstein
nos diz que as regras da gramática determinam o significado: o significado de
uma expressão, seu modo de uso, é uma combinação de regras individuadoras
do significado, regras constitutivas da gramática específica de um jogo de
linguagem ou de uma apropriada região da linguagem. Semelhante combinação não é
vista como uma ocorrência singular, não se reduzindo a um acontecimento
espaciotemporal, como o próprio significado. E como semelhantes combinações
podem ser indeterminadamente variadas, a plasticidade e ilimitação do que
queremos entender por significado segue preservada. Esclarece-se assim em que
sentido o significado pode ser considerado algo “do tipo de uma regra” (etwas
Regelartiges).
Uma outra analogia corrobora a sugestão. Um
lance feito no decorrer de uma partida de xadrez não é um ato destituído de
sentido. Há nele uma espécie qualquer de significado. Em que consiste o sentido
do lance? Certamente, não na regra simples, na regra básica pela qual ele é
movido, pois nesse caso todos os lances com a mesma peça, em quaisquer
circunstâncias, teriam o mesmo significado (o que sob uma perspectiva mais
restrita é verdade). Mas o significado de um lance feito em uma partida de
xadrez para aquele que o realiza, o seu significado “intencional”, constitui-se
antes na estratégia que é por ele pensada, ou seja, no cálculo estratégico que
ele faz: esse cálculo nada mais é do que uma avaliação de variadas combinações
de possíveis regras unitárias que poderiam ser aplicadas nos movimentos
seguintes – no caso de um jogador profissional, não só complexas combinações
eventuais de regras básicas, mas também estratégias (combinações conhecidas de
regras básicas) das quais ele já tem domínio prévio. Se fosse perguntado pelo
sentido de um lance realizado, o jogador responderia com uma descrição da
combinação ou estratégia que ele tem em mente. Ora, também um lance (um
proferimento) em um jogo de linguagem poderia ter seu significado identificado
com algo como uma combinação de regras. – Com isso parece esclarecer-se mais um
princípio semântico de Wittgenstein, o de que “o significado da expressão é
aquilo que a explicação do significado explica” (PU 560). A explicação do
significado nada mais é do que uma explicitação, ainda que vaga e incompleta,
das regras ou combinações de regras para a aplicação da expressão em contextos
de jogos de linguagem.
Tais considerações devem se afigurar de
algum modo familiares aos leitores da fase intermediária de Wittgenstein.
Afinal, uma combinação de regras nada mais é do que um cálculo. Quando fazemos
uma complexa operação aritmética, o cálculo não é mais do que uma combinação de
regras mais elementares, as quais sabemos de cór. A isso objetar-se-á talvez
que a ideia de que a linguagem funciona como um cálculo, ou, nas palavras de
Wittgenstein, de que “o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo”,
foi por ele abandonada e substituída pelo conceito mais flexível de jogo de linguagem,
o que foi uma pedra de toque das interpretações, desde o livro de Pitcher até o
comentário de Backer e Haker de 1980.
Essa interpretação, hoje sabemos, é
incorreta. Sempre fora motivo de embaraço o fato de que Wittgenstein
continuasse a fazer um uso positivo do conceito de cálculo, mesmo nos escritos
posteriores à introdução da noção de jogo de linguagem, como se evidencia (em
contradição com a conhecida crítica do § 81) nos §§ 26 e 559 das Investigações
Filosóficas e em certas passagens dos escritos sobre os fundamentos da
psicologia. A razão disso ficou esclarecida na cuidadosa investigação do Nachlass
publicada por S. S. Hilmy em 1987. Nela é mostrado como Wittgenstein usou
nesses escritos as palavras ‘cálculo’ e ‘jogo de linguagem’
intersubstitutivamente. Como observou Hilmy:
No começo dos anos 30 ele
tinha já claramente em um sentido abandonado o que pode ser chamado ‘o modelo
do cálculo do Tractatus’. No entanto, ele continuou a usar o termo
‘cálculo’ em um sentido positivo para caracterizar a linguagem, e fez isso
também na década de 40, longo tempo depois do chamado ‘período transicional’ do
começo dos anos 30.[14]
O fato é que,
quando Wittgenstein critica a noção de linguagem como cálculo nas
Investigações, e mesmo bem antes, como na página 25 do Blue Book, ele
não está atacando a ideia implícita de uma combinação de regras, mas uma série
de associações indesejáveis que a palavra ‘cálculo’ traz à tona, principalmente
as ligadas à noção de cálculo lógico, constituído por regras exatas, rígidas,
explicitamente definidas. Mas tal não costuma ser o caso das regras implícitas,
inexatas e facilmente alteráveis de nossos jogos de linguagem cotidianos. Como
escreveu Hilmy: “Quando Wittgenstein critica a concepção da linguagem como
cálculo, é com referência a um cálculo de uma espécie ideal, exata, e, mais
especificamente, a espécie de papel que este cálculo ideal desempenhou no Tractatus”.[15]
Quando examinamos os exemplos de cálculo com
a linguagem apresentados no período intermediário de sua filosofia vemos que
Wittgenstein usa a palavra em um sentido não-rigoroso, como quando se fala do
cálculo estratégico feito em um jogo de xadrez, em um jogo de cartas, do
cálculo que um jogador de futebol faz ao passar a bola. Também em tais acepções
a palavra ‘cálculo’ preserva o sentido de uma combinação de regras. Assim, não
há a menor evidência de que Wittgenstein tivesse rejeitado a ideia de que os
lances dos jogos de linguagem envolvessem cálculos no sentido fraco de
combinação de regras que são locais, que podem facilmente admitir alteração e
invenção, que podem ser imprecisas, que não demandam de seus usuários que eles
estejam em condições de explicitá-las verbalmente. Pelo contrário: só essa
suposição justifica que, no § 558 das Investigações Filosóficas,
Wittgenstein reafirme que a função de um símbolo deva se mostrar no decorrer do
cálculo.
Com isso torna-se justificada uma
reconsideração das passagens em que Wittgenstein dá exemplos de cálculo, em
busca de uma melhor compreensão de como regras gramaticais podem determinar o
significado, o modo de uso, caso essa determinação consista na combinação de
tais regras. Afinal, ele parece em certos momentos dizer exatamente isso, como
ao afirmar que “O sistema de regras, o qual determina um cálculo, determina
desse modo também o ‘significado’ do signo”. (PB 152)
Antes de considerar alguns exemplos de
cálculo neste sentido fraco sugerido pelo próprio Wittgenstein, gostaria de
introduzir um esclarecimento geral, não acerca do tão polemicamente
problematizado conceito de seguir uma regra (cap. V), mas acerca do conceito
mesmo de regra, entendido como aquilo que as diferentes expressões de regra
expressam em comum. Sem dúvida, se é possível estabelecer uma expressão de
regra para uma regra particular, a qual é ela própria geral, embora de âmbito
mais restrito, não há razão para se rejeitar que possa haver uma expressão do
que seja a regra em geral, conquanto essa expressão seja uma manifestação
linguística de nossa intuição comum, deixando a linguagem “como ela está”.
Contrariamente ao que se possa pensar, a
reconstrução da noção de regra sob essa chave não se opõe às críticas wittgensteinianas
ao essencialismo. Primeiro,
porque a existência de expressões conceituais cujos casos de aplicação detêm
meras semelhanças de família entre si
(cap. VIII) não implica que todos os
nossos conceitos gerais devam se fragmentar em casos de aplicação aparentados,
nem que subconceitos de conceitos polissêmicos não possam ser eles próprios
conceitos gerais unitários com expressões conceituais próprias. O próprio
Wittgenstein considera essa última possibilidade ao contrastar o conceito de
número, cujos casos de aplicação são múltiplos e aparentados, com o conceito
precisamente definível (“streng
umschriebenen”) de número cardinal (PG 70). Segundo, porque certas críticas
ao realismo ontológico como, por exemplo, ao tratamento que nele é dado a
entidades abstratas como se elas fossem impalpáveis sombras (empíricas) de
coisas empíricas (BB p. 17, BGM p. 63), não precisam ser interpretadas como
anti-essencialistas. Elas não impedem que uma concepção de essência possa ser
resgatada como dizendo respeito à simples convenção, ao universal visto como
algo próximo daquilo que Locke chamou de “essência nominal” (Cf. BGM p.
64-5) (como no caso de um conjunto modelar de condições de similaridade
replicáveis de que guardamos memória), ou ainda, com relação a uma “essência
real”, como algo que só as regras da gramática manifestam, dado que “A essência
vem expressa na gramática” (“Das Wesen ist in der Grammatik ausgesprochen”
(PU 371)), logo, como algo cuja inteligibilidade requer pleno resgate através
de nossas convenções (PU 92, 97, BGM pp. 64-5) – algo que não parece demandar
infalibilidade.[16]
Consideremos então o que deve ser
normalmente a expressão da regra em geral. Ela se baseia na ideia de que uma
regra pode geralmente ser analisada como uma relação entre uma condição (ou
grupo de condições) C e a ação A, que é a ação de segui-la, de tal modo que,
dada a condição C, segue-se a ação (ou grupo de ações) A, não importando, para
as considerações que pretendemos fazer, proceder a uma determinação precisa das
espécies de relações que possam estar envolvidas – como C pode ser chamado de
uma prescrição, podemos cognominar tal relação simplesmente de “relação
prescritiva”. Desse modo, qualquer regra pode ser concebida como um caso da
fórmula ou expressão geral de regra:
C => A
Nessa
fórmula, C deve ser visto como o type
de uma condição qualquer, e A como o type
e uma ação, entendendo por ação-type, não uma entidade abstrata, mas uma
classe aberta das ações-token aspectualmente similares entre si. Embora
uma expressão de regra da gramática não tome necessariamente essa forma, ela
pode em geral ser simplificadamente assim parafraseada. Por exemplo: A frase
gramatical “A ordem ordena seu seguimento”, pode ser parafraseada como “Quando
for dada uma ordem, deve-se agir segundo o que ela ordena”; a frase gramatical
“A água ferve (sob condições normais de pressão etc.) a 100° C” pode ser
parafraseada como “Quando a temperatura da água chegar a 100° C podemos
concluir que ela ferverá” (leis são as regras da ciência natural).
Também importa notar que os termos C e A não
devem ser considerados em separado. A é sempre o modo de ação que se segue da
condição C, pois nem toda ação que exemplifica A é a de seguir a regra em
questão. Assim, um acontecimento empírico que exemplifique Al, mas
que não siga as condições determinadas por Cl, não será considerado
seguimento da regra Cl => Al, o que vale, mutatis mutandis para Cl,
caso a sua presença não seja considerada prescrição para Al. Uma
maneira de se tornar essa interdependência explícita é escrever:
C(A) => A(C)
Essa
observação torna evidente que falar do type A(C) da ação de seguir uma
regra já é falar da própria regra, mesmo que de uma perspectiva determinada,
que faz perceptível só um dos termos. Isso nos permite concluir que não
podemos, quando identificamos o significado com o modo de uso, ao invés de identificar
tal modo de uso com a regra de uso, objetar pela suposição de que o modo de uso
seja simplesmente o type de usos episódicos corretos, das ações-token
de seguir a regra, e não a regra mesma, pois trata-se aqui da mesma coisa: o type
de uma ação de seguir uma regra deve continuar a ser concebido como toda a
regra, ainda que sob a perspectiva explicitadora da ação-type de segui-la.
A fórmula geral acima considerada pode ser
um instrumento útil em uma elaboração do que Wittgenstein poderia ter dito
sobre tipos de regras. Com relação ao modo de ação de seguir a regra, ela nos
permite distinguir dois tipos gerais de regra conversíveis entre si:
Tipo I: é o daquelas ações nas quais a ação-type
A é o esquema de uma ocorrência empírica, que embora sendo originariamente de
ordem psicológica é geralmente também algo que resulta em uma ação no mundo
externo. Exemplo do tipo I é a ação reflexa de pisar no freio diante de um
sinal vermelho. Aqui usualmente dizemos que a regra é seguida.
Tipo II: é o daquelas ações nas quais a
ação-type A esquematiza um processo cognitivo (um ato mental), qual
seja, o da tomada de consciência, da cognição, da constatação da existência de
determinada entidade ou estado de coisas, o que resulta de certas condições C
dadas, aqui chamadas de critérios. Exemplo disso é o caso de um motorista que,
vendo o sinal mudar para o verde, toma consciência de que pode prosseguir.
Nesses casos não costumamos dizer que a regra é seguida, mas aplicada.
Sobre essa distinção devemos primeiro notar
que as regras de um tipo são conversíveis em regras equivalentes do outro tipo:
regras do tipo I, realizadoras da ação (digamos “Se o sinal está vermelho, pise
no freio”) podem ser facilmente convertidas em regras do tipo II (por exemplo:
“Se o sinal está vermelho, toma-se consciência de que se deve pisar no freio”)
que são representadoras da ação e vice-versa. Segundo: é muito claro que as
ações humanas normalmente envolvem os dois tipos. Se nossas regras fossem
apenas do tipo I, nossos comportamentos teriam a forma de reflexos, de
automatismos, de habituações não acompanhadas de atividade consciente. Se todas
as regras fossem apenas do tipo II, nós seríamos seres puramente
contemplativos. Como a maioria de nossas ações é também consciente, segue-se
que se trata de ações que combinam os dois tipos de regra acima mencionados.
A aplicação dessa distinção ao que
Wittgenstein diz é esclarecedora. Ele considera exemplos dos dois tipos de
regra. Exemplos do primeiro tipo são ações que constituem mero resultado de
adestramento, como pode acontecer quando a linguagem é aprendida. Trata-se de
regras puramente performativas. Seguir essas regras não é propriamente um ato
cognitivo, mas um ato cego, involuntário. No segundo caso, que é o que mais nos
importa, os exemplos relevantes têm a ver com o que Wittgenstein chamou de
modos, métodos de verificação: regras verificacionais que para ele, até mesmo
nas Investigações Filosóficas, permanecem essencialmente ligadas ao que
“queremos dizer” com os nossos enunciados (Cf. PU 353). A relação entre
a regra de verificação e o significado como uso (aplicação) explicar-se-ia pelo
fato de ela poder ser identificada com o modo de aplicação, entendido como a
maneira pela qual genericamente se justifica o emprego do proferimento
assertivo. Tais regras são essencialmente cognitivas, pois o resultado último
da aplicação da regra ou método de verificação é a cognição da existência de um
estado de coisas.
A isso liga-se uma outra noção importante: a
de critério. Basicamente, critérios nada mais são do que condições (não
importando o tipo) que, uma vez dadas, permitem a aplicação de uma regra de
identificação de objeto, de atribuição de propriedade ou de verificação de configurações
factuais no mundo, permitindo a cognição dessas configurações como efetivamente
dadas, a formação de juízos; critérios podem ser, pois, critérios de verdade de
juízos ou asserções. Critérios possuem uma ambiguidade semântica. Eles podem
ser entendidos como condições independentemente dadas que satisfazem regras, ou
então como condições internas às regras estabelecendo o que pode ser demandado
para sua satisfação. No último caso eles são também chamados de regras, de regras
criteriais, pois, como já vimos, um critério C só se concebe como C(A), que
é um modo, uma perspectiva pela qual a regra total é concebida.
Entre outros, um exemplo presente na página
28 das Wittgenstein’s Lectures,
1932-1935, onde Wittgenstein relaciona explicitamente critério e regra de
verificação, corrobora essa interpretação:
Os diferentes modos de se
verificar “Choveu ontem” nos ajudam a determinar o significado. Ora, uma
distinção poderia ser feita entre ‘ser o significado de’ e ‘determinar o
significado de’. Que eu me lembre que choveu ontem me ajuda a determinar o
significado de “Choveu ontem”, mas não é verdade que “Choveu ontem” significa
“Eu me lembro que...”. Nós podemos distinguir entre critérios primários e
secundários de que está chovendo. Se alguém pergunta “O que é chuva?”, você
pode apontar para a chuva caindo, ou derramar alguma água de uma caneca. Esses
constituem critérios primários. Pavimentos molhados constituem um critério
secundário e determinam o significado de ‘chuva’ de um modo menos importante.[17]
Note-se que o
apontar para a chuva caindo tem aqui uma função semelhante ao apontar para uma
cadeira e dizer: “Isso é uma cadeira”. Essa pode, como já vimos, ser uma frase
gramatical expressa em uma definição ostensiva, o que é também exprimível sob a
forma verbal: “A presença de tais e tais critérios (Cl) nos mostra
que estamos diante de uma cadeira (Al)”. Também esclarecedora é, no
caso acima, a distinção entre critérios primários (definitórios) e secundários
ou sintomas, os quais se
constituiriam de modo adventício, probabilizando, mas não trazendo a certeza da
existência do estado de coisas em questão (BB pp. 24-25). Internamente
interpretados, os diferentes critérios redundam em modos de se “ter em mente” o
sentido cognitivo da frase. Isso não nos precisa conduzir, segundo
Wittgenstein, a uma dissolução da unidade de sentido da frase. O modo de
verificação – e com ele o significado da frase – pode ser concebido como sendo
único, já que critérios secundários são sintomas de algo mais central, que é o
critério primário, dado na observação que é tida como sendo direta (Cf.
WWK pp. 158-9).
A conhecida identificação feita por
Wittgenstein, em sua fase intermediária, entre o significado de uma frase e o
seu modo de verificação é, pois, complementar a mais um princípio semântico
seu, segundo o qual os critérios “dão a nossas palavras seus sentidos comuns”.
(BB p. 57) De fato, se os critérios são condições antecedentes de regras
cognitivas, e se essas regras criteriais são regras de verificação, então
torna-se natural que eles sejam determinadores do significado.
Com tais considerações em mente, analisarei
primeiramente exemplos de cálculo, de combinações de regras, trazidos pelo
próprio Wittgenstein. Uma série crescentemente complexa de tais exemplos
encontra-se no Brown Book, o que pode ser lido quase como uma tentativa
filosófica de mostrar como nossa linguagem natural poderia ser construída a
partir de jogos de linguagem mais simples. Um exemplo é o caso do jogo de
comando do § 33 em que, como resposta a articulações simbólicas como “aacaddd”,
o ouvinte faz uma sucessão de movimentos diversamente direcionados em
correspondência com cada letra diferente, e de comprimentos diferentes como
consequência da possibilidade de repetição de uma mesma letra. O exemplo de
Wittgenstein que me proponho a analisar é, contudo, o da multiplicação “F”
presente nas Lectures de 1930-32:
F
123
753
369 x
615 y
861
z
92.619
Vale
reproduzir o comentário de Wittgenstein:
F é uma regra da gramática ou
um cálculo feito no papel; mas partes individuais do trabalho podem ser feitas
de acordo com um dos cálculos mencionados. Assim, o passo x é para mim uma
definição; o passo y é uma hipótese, mas o primeiro estágio deste, 5 x 3 = 15,
é de novo uma definição. O resultado é uma hipótese. Uma outra pessoa poderá
fazer o cálculo e chegar ao resultado diferentemente. Os passos individuais são
regras da gramática e o processo como um todo é uma regra da gramática.[18]
Wittgenstein
considera aqui não só as regras típicas da gramática, que ele chama de
definições. Elas são regras de hábito em cuja aplicação o erro, se houvesse,
seria imediatamente corrigível, a exemplo das regras da tabuada. Ele chama de
regra da gramática também a completa combinação dessas regras, o cálculo, que,
sendo passível de erro, é por ele chamado de hipótese.
Digna de nota é também a possibilidade de se
reduzir não só os passos do cálculo, como o cálculo como um todo, à fórmula
geral da regra, pois as condições intermediárias podem, no caso, por serem
secundárias, ser abstraídas. Uma combinação de regras, embora não seja um
hábito ou uma convenção, pode nesse sentido ser considerada, como o próprio
Wittgenstein o faz, como uma regra; afinal, também ela é “do tipo de uma
regra”. Também é importante notarmos que a fronteira entre regras de hábito,
que se condicionam como tais, e suas combinações, é gradual e variável: uma
combinação de regras pode, por exercício, passar a ser concebida como uma regra
unitária – compare-se, por exemplo, a habilidade aritmética de uma criança a de
um adulto, ou a de um adulto com a de um savant.
Podemos agora procurar em Wittgenstein casos
de combinações de regras, de cálculos que se aproximem do que realmente se
passa na linguagem cotidiana, tanto de combinações performativas quanto de
combinações que constituam regras cognitivas. Um caso de cálculo com regras
performativas é apresentado por ele mesmo em um diálogo com Friedrich Waismann.
O exemplo trata do que poderia ser uma combinação de regras realizada para a
compreensão da ordem: “Traga-me a gasolina”. Convém traduzir:
O modo como nós usamos os
signos constitui o cálculo [...] há entre o modo de aplicação de nossas
palavras na linguagem e um cálculo, não algo como uma mera analogia; eu posso
de fato conceber o conceito de cálculo de tal maneira que a aplicação da
palavra cai sob ele. Eu quero logo explicar como entendo isso. Tenho aqui uma
garrafinha de gasolina. Para que serve? Para lavar. Ora, nela está colado um
rótulo com a inscrição ‘gasolina’ [...] Ora, essa inscrição é um
ponto-de-apreensão (Angriffspunkt)
para um cálculo, quero dizer, para a aplicação. Eu posso lhe dizer: “Traga a
gasolina!” E através dessa inscrição é dada uma regra, segundo a qual o senhor
pode proceder. Se o senhor traz a gasolina, então está lá de novo um passo
naquele cálculo que é determinado por regras. (WWK p. 168)
Em primeiro
lugar, não custa notar que no início desta passagem o modo de uso ou aplicação
é identificado com o cálculo. Em seguida há o que Wittgenstein chama de ponto-de-apreensão
do cálculo. Chegar a perceber a inscrição é o resultado de seguir uma regra de
comando, mas a inscrição mesma é um novo ponto-de-apreensão, que serve de
condição para uma nova ação (raciocinada) de seguir outra regra (a de trazer a
garrafinha de gasolina), o que produz no todo, tal como no exemplo aritmético,
uma combinação de regras. As regras em questão poderiam exemplificar a
expressão de regra gramatical listada anteriormente: “Uma ordem ordena a sua
execução”, não se distinguindo categorialmente dela. Elas devem ser, todavia,
ainda mais específicas, i. e., regras que são tidas como “simples”, de
hábito, em um jogo de linguagem muito localizado, que assume, por exemplo, a
regra expressa por: “Uma garrafa costuma conter o que o seu rótulo descreve”.
Procuremos agora exemplos de regras
cognitivas como regras verificacionais. No parágrafo 25 das Lectures de
1930-32 há inicialmente uma observação na qual Wittgenstein faz um uso
equivalente das palavras ‘significado’, ‘verificação’, ‘lugar do símbolo em um
cálculo’ e mesmo ‘modo de uso’, que cito com o fito único de dar confirmação
textual à minha tese da existência de uma certa unidade intrínseca no pensar
wittgensteiniano, por oposição à tendência banalizadora de interpretá-lo segmentando-o
em compartimentos estanques:
Se você quer saber o significado
de uma sentença, pergunte pelo modo de verificação. Eu sublinho o ponto
de que o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo, o modo
como ele é usado! (grifos meus)
No exemplo que
se segue a essa observação Wittgenstein relaciona a diversidade das verificações
particulares de uma sentença declarativa com a unidade de seu significado:
Atender para o modo como o
significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado
e verificação. Ler que Cambridge venceu a corrida de botes, o que verifica
“Cambridge venceu”, não é uma disjunção: “Eu vi a corrida ou eu li o resultado
ou [...]” É mais complicado. De fato, se nós retirarmos qualquer dos modos de
verificação do enunciado, nós alteramos seu significado. E, se nós retirarmos
todos os modos de verificação, nós destruiremos o significado.[19]
A regra que
preside uma verificação particular efetivamente realizada constitui uma nuance
intencional da asserção – ao que alguém mais exatamente havia tido em mente com
essa última. Como é possível que esse elemento cognitivo-intencional enfatizado
sofra variações em diferentes asserções, é razoável considerar que as regras
contingentes que o constituem se derivem de um modo de verificação mais
fundamental, que tenha por base critérios primários e observação considerada
direta. Digamos, pois, que alguém leia o resultado em um jornal. É razoável
pensar que um significado cognitivo, diríamos, o conteúdo proposicional da
asserção, é salientado, mesmo havendo um conteúdo fundamental, que seria o
conteúdo da observação direta do acontecimento, embasando essa possibilidade em
jogos de linguagem tematizadores do que se passa no mundo externo. (Ver WWK pp.
158-9).
O mesmo exemplo também sugere que as regras
criteriais determinadoras do cálculo sejam regras da gramática, exprimíveis em
frases gramaticais. Embora o procedimento investigativo de Wittgenstein não lhe
possibilite um esclarecimento sistematizador, é razoável pensar que, na gramática
constitutiva do sistema de regras que é esse jogo de linguagem específico, haja
regras simples como: “A equipe cujo barco chega primeiro vence a corrida”, a
qual, traduzida na forma de uma regra criterial, torna-se algo como: “Ver o
barco de uma equipe chegar em primeiro lugar é (em circunstâncias normais)
critério primário para a cognição do fato de ela ter vencido a corrida”.[20] Essa regra
pode ser então combinada com a regra para a identificação da equipe de
Cambridge, formando uma regra composta, a qual verifica o enunciado “Cambridge
ganhou”. Semelhante era o caso de nosso exemplo anterior, a multiplicação “F”.
A multiplicação “5 x 3 = 15” (do mesmo modo que “2 x 2 = 4”) é uma regra
gramatical na qual “5 x 3 =>” é critério para a cognição do resultado “15”;
“F” ou “753 x 123 =>” pode ser analisada de modo a derivar uma composição de
critérios, dentre os quais costuma tomar parte “5 x 3 = 15”, para que se chegue
ao resultado 92.619. O procedimento, o cálculo, verifica a frase “753 x 123 =
92.619”.
Também procurei demonstrar essa
possibilidade em jogos de linguagem cognitivos simples, como o report-game concebido em um artigo de
Erik Stenius.[21] Nesse jogo,
um ajudante de jardineiro deve informar sobre a situação de um local de um
canteiro, aplicando uma regra de
identificação a uma planta que se encontra nesse local, regra essa que deve
ser conjugada a uma regra de predicação, somente aplicável quando a
planta está florida. Combinações de critérios de identificação e de predicação
constituiriam aqui a condição antecedente, uma composição criterial
justificadora da aplicação de uma combinação de regras, qual seja, da regra verificacional para o fato de a
planta estar florida. Somente após a aplicação da regra de identificação a
regra de predicação pode ser aplicada.
O que se deixa concluir das considerações
precedentemente esboçadas é a plausibilidade da ideia de que a identificação
entre o significado e o uso possa ser concebida como uma identificação entre o
significado e algo do tipo de uma regra: regras, combinações de regras mais ou
menos específicas da gramática de jogos de linguagem, as quais também podem
possuir o caráter cognitivo próprio das regras criteriais ou verificacionais. O
significado cognitivo de uma sentença declarativa, seu conteúdo proposicional,
pode ser em princípio entendido como o modo fundamental de sua aplicação, o
qual é redutível a uma regra ou complexo de regras verificacionais cuja
existência e aplicação efetiva é uma condição justificadora de seu proferimento
atual em asserções, ou seja, de seu uso episódico.[22] O apelo ao
uso perde com isso o indesejável tom de misticismo semântico que os aforismos
wittgensteinianos por vezes parecem insinuar. O que mais justifica tal apelo,
porém, é a sua função heurística, de situar a questão logo de início na práxis efetiva da linguagem, que preside
a conexão necessária entre o significado e o contexto, entre o significado
literal e as suas múltiplas e variadas ramificações cognitivo-intencionais, que
são aquilo que realmente mais interessa à filosofia terapêutica.
A sugerida unificação de princípios
semânticos comprova a posteriori
sua própria possibilidade. À objeção: “Por que Wittgenstein nunca tentou uma
tal exposição argumentada e sintética da gramática do conceito de significado?”,
talvez devamos responder: por motivos vários, como incertezas, contradições,
lacunas argumentativas... Mas talvez também por motivos não muito diversos
daqueles pelos quais Platão sempre se recusou à tentativa de fazer o mesmo com
a sua doutrina das ideias, cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de
seu pensamento.
Espero que esse resumo tenha tornado
plausível a ideia de que os escritos de Wittgenstein ocultam, ou pelo menos
estranhamente sugerem, estruturas racionais muito mais complexas, que são as
fontes reais de seu permanente interesse e influência, mas que subsistem nos
textos como intuições fragmentariamente explicitadas, sem que seu autor tenha
tido meios ou mesmo buscado articulá-las sistematicamente. Uma adequada
explicitação, organização e desenvolvimento de semelhantes estruturas deverá
pôr a descoberto um outro corpo de ideias, nem sempre coerente com as
suposições do autor, mas mais poderoso, em virtude de sua capacidade de
impor-se à razão, do que aquilo que intérpretes de certa época e de certas
correntes de pensamento nos haviam feito imaginar.
Lista de abreviações:
TLP: Tractatus
Logico-Philosophicus, WWK: Wittgenstein
und der Wienner Kreis (Wittgenstein e
o Círculo de Viena) BB: The Blue and
the Brown Books (Os Livros Azul e
Marrom) PU: Philosophische
Untersuchungen (Investigações
Filosóficas) Z: Zettel, ÜG: Über Gewissheit (Sobre a Certeza). As
obras de Wittgenstein abreviadamente referidas são as do Werkausgabe de 1984 da editora Suhrkamp, com exceção dos The Blue and Brown Books, quando se usou
a, edição inglesa de Rush Rhees (1975).
[1] C. F. Costa: Wittgensteins Beitrag zu einer
sprachphilosophischen Semantik, Konstanz: Hartung-Gore Verlag 1990.
[2] Em The Grammar of Justification: An
Interpretation of Wittgenstein’s Philosophy of Language. London 1976. Richardson
defendeu que “toda uma teoria do significado pode ser retirada da ideia de que
o significado é o uso” (p. 45) e, em concordância com o que irei expor,
concluiu que a teoria criterial exemplifica a teoria do significado, pois
critérios são convenções semânticas constitutivas de jogos de linguagem e
justificadoras da aplicação da palavra nestes (p. 126).
[3] Paul Feyerabend. “Philosophical
Investigations”, in: George Pitcher (ed.): Wittgenstein: The Philosophical
Investigations. London 1968, pp.104-150.
[4] Carl Hempel, “Rudolf Carnap, Logical
Empiricist”, in Synthese, Vol. 25, 1972-3, p. 264.
[5] A. J. Ayer: Ludwig
Wittgenstein, p. 137. Chicago 1986. Ver também S. S. Hilmy: The Later
Wittgenstein: The Emergence of a new Philosophical Method. Oxford 1987, pp.
208-9.
[6] Baker & Hacker: Wittgenstein,
Understanding and Meaning. Oxford 1980, p. 489.
[7]
Ibid., p. 489.
[8] “Wittgenstein on
the Nature of Philosophy”, in Anthony Kenny, The Legacy of Wittgenstein. Oxford 1984. Para esse autor coexistem na obra do
segundo Wittgenstein duas concepções de filosofia, uma terapêutica, enquanto a
outra “parece bem mais com algumas das tradicionais, mais imperialistas, visões
da filosofia” (p. 43), buscando “abrangência de entendimento, uma visão clara
do mundo” (p. 39).
[9] Desmond Lee (ed.): Wittgenstein’s
Lectures, 1930-1932. Oxford 1980, p. 85.
[10] G. E. Moore,
“Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in: Philosophical Papers, London
1963, p. 257. Cf. também E. K. Specht: Die Sprachphilosophischen und ontologischen Grundlagen im Spätwerk Ludwig
Wittgensteins, Kantstudien
Erganzungsheft 84, Köln 1963, cap. V.
[11] E. K. Specht:
“Wittgenstein und das Problem des ‘a priori’”, in: Revue Internationale de Philosophie, 88/89, 1969, pp. 167 ss.
[12] Se essa
última afirmação for tomada literalmente, o que não me parece necessário, a
acusação de ser sem sentido aplicar-se-ia também a minha própria tentativa de
propiciar uma representação panorâmica, “teorética”, dos princípios gramaticais
constitutivos do conceito geral de significado.
[13] Cf.
meu livro Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy.
Newcastle upon Tyne, 2018, cap. III, sec. 8.
[14] S. S. Hilmy, The
Later Wittgenstein: The Emergence of a New Method. Oxford, 1987,
p. 98.
[15] S. S.
Hilmy, Ibid. p. 106.
[16] A atitude de Wittgenstein
que, pendendo para o nominalismo, só aborda muito tangencialmente a questão dos
universais, evidencia-se na evasiva colocação de Friedrich Waismann: “Não é
como se quiséssemos negar a existência do zero e reconhecer apenas a do signo.
(Pense no que pode significar a frase ‘O zero não existe’!). Nós passamos
apenas a um outro domínio da gramática, onde somos sujeitos a menos perigos.
Nós não fugimos do abstrato para o concreto; nós queremos somente considerar as
coisas, uma única vez, sem preconceitos”. Logik,
Sprache, Philosophie. Stuttgart 1977, p. 131.
[17] Wittgenstein’s Lectures 1932-1935. A identificação do significado cognitivo da frase com o seu
método de verificação foi bastante criticada mais tarde, não só por membros do
Círculo de Viena como Carl Hempel, mas também por filósofos como W. V. Quine.
Trata-se, porém, de objeções ao próprio tratamento inicialmente dado pelos
membros do Círculo à ideia de Wittgenstein. Uma investigação mais cuidadosa
mostra que a ideia original de Wittgenstein era muito mais flexível e mais
fácil de ser tornada resistente às objeções. Cf. Claudio Costa, Philosophical
Semantics, 2018, cap. V.
[18] Alice Ambrose (ed.). Wittgenstein’s
Lectures, 1932-1935. Oxford 1979, pp. 96-97.
[19] Alice
Ambrose, § 25.
[20] Estou deixando de lado o papel do juiz, uma vez que em circunstâncias
normais há concordância com o que os espectadores veem.
[21]
Erik Stenius. “Mood
and language-game”, in: Synthèse 17 (1967), p. 263 ss. Ver também
Ernst Tugendhat e Ursula Wolf: Logisch-semantische Propädeutik.
Frankfurt 1983, pp. 235-6. Exceções a essa forma genérica de verificacionismo
podem ser reinterpretadas e evidenciadas como sendo aparentes. Exemplo: Se
podemos considerar João como tendo sido corajoso, embora ele tenha morrido sem
ter podido demonstrar a sua coragem (não havendo qualquer outra razão para que
creiamos nisso), parece então que temos um enunciado significativo, mesmo que
inverificável – o que conduz à sugestão de que não é necessária uma regra de verificação
para que tenhamos um enunciado significativo, bastando que sejamos capazes de
reconhecê-la, caso ela nos for dada (Dummett). Tal sugestão parece-me
desnecessária, pois o conteúdo proposicional acima considerado não é significativamente
enunciável ou asserível, tendo apenas um mero significado lexical. Temos apenas
a impressão de que asseri-lo é possível, dado que podemos isolar tal conteúdo e
inseri-lo, por exemplo, em asserções modais como “É possível que João fosse
corajoso”, que se assemelham à pseudo-asserção “João era corajoso”, que não faz
sentido. Uma tal asserção modal é perfeitamente significativa, dado que para
ela temos procedimentos verificacionais (basta, para tal, ter verificado que
João era um ser humano, pois se era humano, pode ter sido corajoso).
[22] Uma maneira de ver semelhante
encontro em A. J. Ayer, para quem especificar o uso, entendido como o
significado de uma sentença declarativa, é descrever os estados de coisas que a
verificam. Cf. The
Concept of Person. London 1963, pp. 22-23.
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