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quinta-feira, 30 de julho de 2020

O QUE É LIVRE ARBÍTRIO?

 

 

 Penúltimo draft para o livro "Textos esparsos".

 

6

 

O QUE É O LIVRE ARBÍTRIO?[1]

 

 

Por razões de clareza quero começar expondo o problema do livre arbítrio sob uma perspectiva histórica. Os primeiros atomistas gregos, Leucipo e Demócrito, há pouco mais de 400 anos a.C., acreditavam que o cosmo é formado por um turbilhão de átomos, partículas invisíveis e indivisíveis com infinitas formas que se chocam entre si reagindo de acordo com leis causais. Para Demócrito disso se seguia a inexistência do acaso. É apenas a nossa ignorância das causas que nos faz crer que possam existir eventos não-causados. Tudo o que acontece no universo é causalmente determinado. Bastaria conhecermos mais para encontrarmos as causas daquilo que agora nos parece meramente casual.[2] Essa concepção filosófica se chama determinismo. Com efeito, para qualquer evento nós pressupomos que deva ser causado. Esse pressuposto, contudo, não é intuitivo. Afinal, podemos perfeitamente imaginar um acontecimento que não tenha sido causado por coisa alguma.

   Pierre Laplace, um matemático e astrônomo francês do século XIX, imaginou uma experiência em pensamento pela qual demonstrava as consequências da admissão do determinismo universal. Se uma inteligência suficientemente poderosa conhecesse todas as leis da natureza e todos os estados de coisa constitutivos do universo em um dado instante, ela poderia, combinando as leis com os estados de coisas, não só prever todo o futuro do universo, mas também retro-prever todo o seu passado.

   Só isso já produz desconfiança! Imagine que o Big-Bang tenha realmente acontecido. Há 13,8 bilhões de anos atrás o universo inteiro encontrava-se concentrado em uma singularidade: um ponto com uma temperatura e densidade infinitas... Esse plasma teria explodido formando já no primeiro segundo partículas elementares como prótons e nêutrons, no primeiro minuto átomos e mais tarde as estrelas, as galáxias e todo o universo hoje conhecido. Ora, imagine que a inteligência suficientemente poderosa concebida por Laplace estivesse lá no momento do Big-Bang e que conhecesse a singularidade. Ora, conhecendo o que parece uma coisa absolutamente simples, essa inteligência poderia prever que você estaria agora lendo essa frase. Mas parece existir algo profundamente falho nessa ideia.

   Foi essa tese do determinismo universal que acabou produzindo o que é até hoje chamado de o problema do livre arbítrio. Não entre os primeiros atomistas, mas devido às reflexões de Epicuro, um atomista posterior que viveu há cerca de trezentos anos antes de Cristo. Para os epicuristas todo o universo é constituído de átomos. Mesmo as nossas almas são constituídas de átomos, só que mais finos e sutis, capazes de continuar existindo mesmo após a destruição do corpo. (Por exemplo, quando sonhamos com um parente já falecido é porque os átomos de sua mente vieram nos visitar, penetrando em nossas cabeças.)

   A pergunta que Epicuro se fez foi a seguinte: Se tudo é determinado causalmente, como explicar a capacidade humana de decidir livremente? Se desde nosso nascimento todas as nossas decisões já se encontravam pré-determinadas, de modo que decidimos e agimos como autômatos totalmente determinados por leis causais, como explicar o livre arbítrio? Para solucionar esse problema, Epicuro sugeriu a hipótese dos desvios (clínamen) dos átomos. Os átomos que constituem nossas mentes são capazes de saltar aleatoriamente, sem qualquer causa, sendo isso o que explica a liberdade humana na decisão e ação. Um empirista romano posterior, Lucrécio (99 a.C. – 55 a.C.), expôs enfaticamente essa ideia em seu poema De Rerum Natura:

 

Se todo movimento é sempre interconectado, o novo surgindo do velho em uma ordem determinada – se os átomos nunca se desviam de modo a originar o novo movimento que cortará os laços do destino, a contínua sequência de causa e efeito – qual será a fonte do livre arbítrio possuído pelas coisas sobre a terra? [3]

 

Foi assim que surgiu o problema filosófico do livre arbítrio. Temos aqui duas posições antagônicas. A primeira se chama libertarismo. Essa foi a posição de Lucrécio e Epicuro, segundo a qual somos livres porque somos unicamente capazes de nos subtrair ao determinismo em nossas decisões e ações. Agostinho, Kant e a maioria dos filósofos tradicionais pensavam assim. O oposto disso é o determinismo ou ceticismo, segundo o qual o livre arbítrio não é mais que uma ilusão. Uns poucos filósofos modernos, como o iluminista Baron D’Holbach, alguns filósofos do século XX, como Brand Blanchard e John Hospers, psicólogos como o behaviorista B. F. Skinner e mesmo o psicanalista Sigmund Freud, junto a uma boa parte dos neurocientistas atuais, são deterministas que defendem o caráter ilusório do livre arbítrio.

   Ambas as posições tem seus problemas. Vejamos primeiro as do libertarismo. A principal objeção que lhe foi feita por Hume e por outros foi a seguinte: Por que a mera ausência de um determinismo causal nos torna mais livres? Digamos que as decisões e ações de alguém se tornem mais e mais randômicas. Parece que se tornam mais casuais, menos determinadas em um sentido inteligível da palavra. Se há mais acaso, há mais arbitrariedade nas decisões e ações. Mas o que isso tem a ver com um aumento da liberdade? O indeterminismo, entendido como “a-causalidade”, é algo próximo da aleatoriedade, do caos. Mas o que nos leva a pensar que isso nos torna mais livres? Digamos que em meio a uma aula eu inesperadamente decida ficar de pé sobre a mesa e cantar o hino nacional. Será que isso me torna mais livre? Digamos que eu passe a dizer coisas disparatadas, a emitir grunhidos, a gesticular a esmo e por fim me desequilibre e caia ao chão em movimentos espasmódicos, como se  estivesse sendo vítima de um ataque de epilepsia. Não parece que por causa da aleatoriedade desses meus atos eu tenha me tornado mais livre. Parece apenas que comecei perdendo a razão e terminei perdendo a consciência. Mas se perco a razão, o conceito de livre-arbítrio se torna inaplicável, pois não há como aplicar a noção de liberdade ou da falta dela a alguém que se comporta de forma aleatória. Assim, a suposta relação defendida pelo libertarista entre liberdade e ausência de determinismo causal não parece resistir a análises mais cuidadosas.

  Afora isso, o libertarista defende que o indeterminismo é importante para salvaguardar a responsabilidade moral. Afinal, se fôssemos mecanicamente determinados, nós não poderíamos ser moralmente responsabilizados pelo que fazemos. Parece que somente se formos capazes de transcender o determinismo causal seremos realmente livres, e só se isso acontecer poderemos ser realmente responsáveis pelo que fazemos. Essa maneira de ver se coaduna bem com certos valores do cristianismo: ao pecarmos somos absolutamente responsáveis, o que justifica um castigo de proporções correspondentes. A danação eterna não é assim o castigo de um Deus cruel, posto que resulta do abuso da liberdade absoluta que nos foi por ele dada, a qual consiste na trancendência do determinismo causal. O nome da concepção de justiça que melhor se adequa ao libertarismo se chama retributivismo. Um claro exemplo do pensamento retributivista foi apresentado por Kant. Ele imaginou uma sociedade que se desfizesse em uma ilha. Antes que as pessoas a abandonassem, pensou ele, todos os assassinos deveriam ser enforcados para que a justiça fosse feita. Contudo, esse exemplo serve mais para demonstrar a incoerência do retributivismo. Não parece haver vantagem na ação proposta, que soa como uma maneira de se abandonar a razão por um cego sentimento de vingança.

   No que concerne à responsabilidade, pode ser feita uma objeção similar à da arbitrariedade no tocante à espécie de liberdade assumida pelo libertarista. Se minhas decisões passarem a ocorrer ao acaso, aleatoriamente, não parece que eu possa sequer continuar a ser moralmente responsabilizado pelo que venha a fazer. Além disso, não é difícil encontrarmos causas para nossas decisões, se as procurarmos. Por que Hitler invadiu a Rússia? Há várias causas. Impasse no fronte Inglês, o desejo de impressionar seus compatriotas, combate aos comunistas, reservas naturais de petróleo no Cáucaso, a teoria do espaço vital...

   O libertarista tem respostas para esta última objeção. Causas podem ser necessárias, mas não são suficientes para a decisão ou ação. Essa foi a resposta do libertarista Roderick Chisholm.[4] As cadeias causais envolvidas constituem condição necessária, mas não suficiente. A causa suficiente tem de ser uma causa incausada, originada do próprio sujeito, que age como um primo motor. Podemos encontrar uma variedade de causas para a ação, que embora sejam necessárias não são suficientes. É preciso a adição da causa incausada advinda do próprio sujeito para que sua ação seja livre. (Um leitor de Kant poderia sugerir que uma tal determinação última pertence ao mundo noumênico do eu transcendental, enquanto as causas necessárias pertencem ao mundo do eu fenomenal.) A prova de que Chisholm estaria certo é que sempre que nós decidimos temos um sentimento de liberdade: o sentimento de que estamos acima e além do que nos está causando a decisão; sabemos que poderíamos ter escolhido de outro modo – se quiséssemos.

   Há respostas da parte do filósofo determinista. Brand Blanchard[5] escreveu que quando agimos livremente olhamos para frente e não para trás. Não pensamos nas causas de nossas ações. O problema com a solução de Blanchard é que mesmo que nos seja possível conhecer essas causas retrospectivamente, isso não eliminará nosso sentimento de liberdade. John Hospers[6] defendeu que há causas inconscientes. Por exemplo, no caso da sugestão pós-hipnótica, o hipnotizador diz ao paciente logo antes de ele ser acordado que meia hora depois ele deverá abrir a cortina. O fato é que o paciente realmente realiza esse ato meia hora depois. Contudo, quando questionado ele irá oferecer uma razão qualquer, por exemplo, a de que a sala precisa ser melhor iluminada. O problema com a solução de Hospers é que embora existam com certeza causas determinantes inconscientes com um papel claro no exame de algumas de nossas ações, isso não pode ser generalizado para todos os casos. Quando escovo os dentes ao acordar, quando piso no freio ao sinal vermelho, não há causas inconscientes à vista. Mesmo assim, meu sentimento de liberdade, o sentimento de que eu poderia ter agido de outro modo, permanece.

   Minha sugestão no sentido de solucionar esse problema consiste em apelar para as teorias reflexivas da consciência como as de D. M. Armstrong[7] e David Rosenthal[8]. Segundo essas teorias, nossos estados mentais são ditos conscientes quando são objetos do que poderíamos chamar de uma cognição de ordem superior. Digamos que você tenha uma sensação, uma emoção, um pensamento de primeira ordem. Por exemplo, uma dor de dente quase imperceptível, que você só sente quando nela foca a sua atenção. É o caso de “Só dói quando eu penso”. A explicação seria que você toma consciência da dor na medida em que você tem uma cognição de ordem superior sobre esse estado mental de primeira ordem que é a dor. Mas, como enfatizou Rosenthal, essas cognições de segunda ordem não são conscientes. Elas precisam de uma cognição de terceira ordem para poderem se tornar conscientes, e assim por diante. A cognição que está no topo nunca é consciente. Ora, é plausível a hipótese de Armstrong, segundo a qual quando os sistemas mentais se tornam por efeito da evolução muito complexos, eles passam a necessitar de sistemas de ordem superior capazes de controlar o que neles acontece, disso emergindo aquilo que mais propriamente chamamos de consciência. Se admitirmos isso então estamos também admitindo que há estados mentais, cognições de ordem superior, que possuem papel causal no ato decisório, mas que são incapazes de se tornarem conscientes. Ou seja, pela própria natureza da consciência nós não somos capazes de nos tornar conscientes de todos os elementos causais envolvidos na decisão. Essa seria a verdadeira razão de nosso sentimento de liberdade, que nada mais seria que um sentimento ilusório de que estamos sempre acima e além de nossas decisões totalmente determinadas por causas. Claro, o que acabei de dizer vale apenas sob a assunção de que as teorias reflexivas da consciência estejam certas e de que as cognições de ordem superior tenham realmente um papel controlador dos atos mentais de primeira ordem como pensou Armstrong. Resta saber se uma explicação similar não se aplica a concepções não-reflexivas da natureza da consciência, ou talvez à concepção certa, que pode bem resultar da combinação de várias delas – um problema que ainda está longe de ser resolvido.

   Admitindo tantas dificuldades, a solução parece ser mesmo a de aceitarmos o determinismo cético: o livre-arbítrio não existe. Ele é uma simples ilusão. Mas essa aceitação também é problemática. Afinal, falamos o tempo todo de decisões tomadas livremente, de ações livres, as quais por isso mesmo não são constrangidas nem limitadas em sua liberdade. Dizemos ser fundamental que as pessoas tenham liberdade no pensar, decidir e agir. Devemos prescindir desse discurso? Não devemos mais falar da liberdade do sujeito, nem mais imputar-lhe responsabilidade por suas ações, uma vez que elas já haviam sido todas pré-determinadas? Não seria isso uma imensa perda em nível pessoal e mesmo social?

 

 

I

 

É a altura desse impasse que surgiu a nova e em meu juizo revolucionária solução para o problema do livre arbítrio: o compatibilismo. Essa alternativa tem sido hoje a mais aceita entre os filósofos. Ela surgiu com os empiristas ingleses a partir de Hobbes. Para eles, toda a discussão anterior sobre o livre arbítrio não passou de um grande mal-entendido: de uma falsa dicotomia entre o libertarismo e o determinismo cético. A liberdade do arbítrio ou da vontade simplesmente não tem nada a ver com o determinismo causal. O mundo pode ter limites em sua determinação causal, mas isso não influi na liberdade do agente. Livre arbítrio e indeterminismo são em princípio compatíveis, daí o termo “compatibilismo”. O que o compatibilista faz é redefinir o livre arbítrio em termos que não tem mais nada a ver com o determinismo, posto que para o compatibilista ser livre é algo muito diferente. Para Hobbes a pessoa é livre quando se autodetermina, nada a impedindo de fazer o que quer.[9] Podemos traduzir isso dizendo que um agente é livre se não for restringido em suas ações, decisões e mesmo razões. Como evidência podemos lançar mão daquilo que os dicionários dizem, ainda que eles não sejam muito confiáveis a respeito. Segundo o dicionário Houaiss, por exemplo, a liberdade é a condição daquele que não se acha submetido a qualquer força constrangedora, física ou moral.

   Há bons exemplos ilustrativos da maneira como o compatibilista entende a liberdade: dizemos que um jovem se livrou da opressão familiar porque agora ele não se vê mais arbitrariamente coibido ou constrangido, podendo fazer o que acha melhor; dizemos que um escravo alforriado tornou-se livre por não se ver mais forçado ou coagido em suas ações; e dizemos por analogia que após terem destruído a barragem as águas correm livremente rio abaixo, sem restrição ou bloqueio de qualquer espécie.

   O compatibilista tem a sua própria resposta para o problema da responsabilidade moral. Ela só pode ser atribuída à pessoa que é consciente da decisão. Essa consciência é aquilo que possibilita a flexibilidade do pensamento, da vontade e da ação. Isso significa que seu comportamento pode ser em princípio orientado por melhores razões, modificado, modelado por ela mesma com base em princípios moralmente aceitáveis. Por isso, embora o compatibilista aceite que o agente da ação incorreta a realize de modo inevitável, a ação incorreta precisa ser punida, não propriamente para saciar um desejo de vingança (o que tem mais a ver com o retributivismo, passando agora ao papel de um simples elemento motivador), mas para impedir que a pessoa repita ações semelhantes no futuro, o que seria idealmente entendido em termos de reabilitação, ou então para desencorajar outras pessoas a fazerem o mesmo, ou seja, pela dissuasão. De outro lado, a ação correta, meritória, deve ser recompensada para reforçar comportamentos socialmente benéficos, assim como para que outras pessoas se sintam inspiradas a agir de modo semelhante.

   Há contraexemplos que sugerem limitações nas definições compatibilistas tradicionais. Imagine um jovem que é tímido demais para cortejar a mulher que deseja. A timidez reduz a sua liberdade. Mas é possível objetar que ele age voluntariamente e que não há nenhum constrangimento externo sobre a sua mente. Outro exemplo é o de uma pessoa que não come carne porque pertence a uma seita que proíbe a ingestão de carne vermelha. Muitos dirão que ela é menos livre nesse aspecto. Mas a pessoa não está sendo restringida em suas decisões. Afinal, ela não come carne porque assim decidiu, e ela própria nos dirá que faz isso por livre e espontânea vontade. E quem poderia ser, afinal, melhor testemunho da liberdade pessoal do que o próprio agente? Ainda outro exemplo é o do neurótico obsessivo, que lava as suas mãos dezenas de vezes por dia. Ele não nos parece livre. Mas ele insiste em dizer que faz isso livremente, pois não está sendo forçado fazer isso. É apenas muito asseado.

   Quero ainda rapidamente considerar a versão hierárquica de Harry Frankfurt[10]. Para esse autor, seres humanos possuem desejos de primeira e de segunda ordem. Um psiquiatra pode ter um desejo de segunda ordem de saber como é ter o desejo de um viciado em drogas. Mas ele não quer que esse seu desejo se torne o seu querer. Ele apenas o imagina como sendo isso. Ter desejos de segunda ordem é algo caracteristicamente humano. Frankfurt define o Wanton como uma pessoa dominada apenas por seus desejos de primeira ordem. Quando eles conflitam, a pessoa também conflita, podendo seguir incoerentemente um desejo e depois o seu oposto. Para Frankfurt uma pessoa livre é aquela que consegue fazer com que o desejo que lhe move à ação – o seu querer – corresponda ao seu desejo de segunda ordem. Ela tem o querer que ela quer querer. Digamos, uma pessoa que exercita sua livre vontade estudando seriamente para ser aprovada em um concurso deve ter uma vontade de ordem superior que a conduz à ação. Já o exemplo de uma pessoa não-livre é o do alcoólatra, cujo desejo de segunda ordem é o de não beber, mas que é impelido pelo seu desejo de primeira ordem a beber, invadindo o refeitório do hospital psiquiátrico onde foi internado para beber o álcool de cozinha. Ele não é livre porque o desejo com o qual se identifica (o de não fazer isso) não é aquele que o move à ação. Uma pessoa não é livre quando não consegue fazer com que o querer que lhe move à ação corresponda ao desejo de segunda ordem com o qual se identifica. Ela não tem o querer que ela quer ter. Não obstante, como veremos, a solução de Frankfurt (como outras soluções hierárquicas) tem a suas próprias limitações.

 

 

II

  

O que desejo fazer agora é apresentar rapidamente minha própria solução, que tem a forma de um compatibilismo causal escalonado e que entendo como sendo uma versão mais refinada do compatibilismo tradicional.[11] Essa versão, como será visto, parece mais auspiciosa porque é capaz de resolver os problemas que as soluções hierárquicas não resolvem junto àqueles que só elas parecem resolver. Para expô-la, precisarei usar a teoria causal da ação e algumas categorias adicionais.

   Quanto às categorias adicionais, quero começar introduzindo duas formas de restrição e duas origens de restrição. As formas de restrição são limitação e constrangimento. E as origens da restrição podem ser externas e internas. A distinção entre limitação e constrangimento foi apontada por Richard Taylor, por acaso um filósofo libertarista.[12] Em seu exemplo, se estendo o meu dedo indicador sobre a mesa, ele tem a liberdade de se mover para a direita ou para a esquerda. Seu movimento será limitado ou bloqueado se ele for restringido por um livro pesado que o impede de virar para a esquerda. Mas ele será constrangido ou forçado ou induzido se alguém puxar o dedo indicador para um lado. Essas duas formas de restrição não se limitam a movimentos físicos, mas se aplicam também à volição e ao arbítrio, como veremos.

   Quanto à classificação da restrição pela origem, trata-se da origem proximal mais relevante. Origens podem ser próximas ou distantes: uma pessoa pode beber álcool porque, sendo alcoólatra, sente uma necessidade incontrolável de beber (origem proximal relevante). Mas podemos também dizer que essa pessoa bebe para esquecer um grande fracasso afetivo (origem não-proximal relevante). Um exemplo de origem proximal mais relevante interna é a sede que me faz realizar o ato de beber água. Se fujo ao encontrar um touro bravio no campo, a origem proximal mais relevante externa de minha ação é a presença do animal, embora isso me cause medo, que é a causa interna de minha fuga, a qual deve ser vista como secundária e não tão relevante.

  Outro ponto importante é que a ausência de restrições sempre se dá dentro de um leque de alternativas razoáveis, que depende do contexto. Assim, neste domingo eu posso ir ao cinema, ler, dar um passeio, jantar fora. Essas são alternativas que estão contidas no leque de alternativas que contam para a minha liberdade. Limitações e constrangimentos são restrições que diminuem a liberdade por fecharem o leque de alternativas de uma maneira ou de outra. Se estou com febre e não posso sair de casa, isso diminui a minha liberdade. Mas há alternativas cuja ausência não restringe a minha liberdade por se encontrarem fora do leque de alternativas razoáveis para a minha situação. Assim, eu posso tentar atravessar o rio Potengi a nado nesse domingo, talvez até consiga, mas seria um ato de extrema imprudência. Além disso, há coisas que estão além até mesmo de minhas possibilidades não-razoáveis. Eu não posso ir à China nesse domingo, pois meus escassos recursos não me permitem viajar para tão longe. Não posso escalar o Everest. Não posso entrar em órbita. Tais alternativas não contam, pois não posso dizer que não sou livre nesse domingo porque não posso entrar em órbita, escalar o Everest, ir à China ou mesmo atravessar o Potengi à nado. Mas um milionário em Nova Iorque poderá ter como parte de seu leque de alternativas razoáveis exatamente aquilo que está fora do meu escopo de possibilidades. Ele poderá então reclamar que perdeu parte de sua liberdade se por alguma razão não puder ir até à China neste fim de semana. O que chamamos de progresso nada mais é, aliás, do que uma ampliação do leque de alternativa disponível às pessoas. A negação das limitações impostas pelo leque de alternativas é a aposta na existência de uma liberdade em termos absolutos.

   O filósofo Jean Paul Sartre foi alguém que, ao negar as contingências da variável natureza humana, afirmou que somos inteiramente livres e, portanto, inteiramente responsáveis pelas nossas ações.[13] Mas há aqui um resquício do pensamento cristão emergindo de seu professado ateísmo. Afinal, demandar liberdade absoluta para cada ser humano é ignorar as medidas e diferenças individuais e contextuais envolvidas. A noção de leque de alternativas também ajuda a explicar a ilusão de que uma diminuição do determinismo entendida como aumento da aleatoriedade implica em aumento da liberdade. O que pode haver são situações particularmente caóticas, nas quais as opções que constituem o leque de alternativas disponível se ampliam e com isso a liberdade. Por exemplo, imagine o caso de um guerreiro bárbaro que invade uma cidade e se sinta livre para saquear a cidade e cometer toda espécie de arbitrariedade. Quando as regras sociais se desfazem há um aumento da liberdade que a subtrai da moralidade e da lei porque essas foram degradadas. Isso nos mostra que o caos social geralmente aumenta a liberdade de alguns, mas ao custo da diminuição da liberdade de outros, o que termina por não produzir um real acréscimo na liberdade como um todo.

   O passo seguinte consiste em aplicar as distinções feitas até agora à teoria causal da ação. Isso nos permitirá distinguir entre diversos níveis de liberdade do agente, que sem isso podem ser facilmente confundidos ou desconsiderados.

  A teoria causal da ação nos diz que a ação mais complexa é a ação raciocinada, que geralmente inclui as demais. A ação raciocinada começa com a formação de uma razão, que é geralmente entendida como a adição de um desejo a uma crença. Por exemplo: eu vou ao médico e ele me recomenda exercícios físicos, que pretendo fazer. Se me perguntarem qual a razão pela qual quero fazê-los, eu responderei que desejo me manter saudável e que acredito que a realização dos exercícios contribuirá para a satisfação desse desejo. Uma vez formada a razão, ela causa uma intenção ou vontade prévia, que é a de a partir de amanhã começar a fazer jogging. Chegado o dia de amanhã, logo após acordar eu saio de casa e começo a correr. Aqui a vontade prévia causou o que John Searle chamou de intenção-na-ação (o trying), uma vontade que produz os movimentos corporais que inexistiriam sem ela. Esses movimentos devem causar o resultado intencionado, que é o de me manter saudável.

  Minha sugestão é a de que em cada elo da cadeia causal produtora da ação pode haver restrição da liberdade, e que essa restrição pode ser externa ou interna, por limitação ou coerção e no interior de um leque de alternativas razoável em um contexto. Mais além, essas restrições frequentemente se originam de impróprias cadeias causais alternativas, que podem ser capazes de restringir a liberdade do agente em diversos níveis, uma restrição que, como veremos, nos casos mais importantes só pode ser satisfatoriamente julgada sob o ponto de vista de um sujeito avaliador externo.

   Comecemos com restrições da liberdade física (liberty). Digamos que uma pessoa esteja amarrada em um poste. Trata-se de uma limitação externa. Se depois da partida um juiz de futebol for forçado pela torcida enfurecida a engolir o apito ou se alguém for amarrado a um poste, tratar-se-ão de constrangimentos físicos externos. Uma limitação física interna ocorre quando uma pessoa toma uma droga que a imobiliza contra a sua vontade. E um constrangimento físico interno se dará quando a pessoa for vítima de movimentos involuntários, digamos, um tique nervoso, a dança de São Guido, a síndrome da mão alienada. Essas restrições da liberdade física são um tanto óbvias e por isso mesmo de menor interesse para nós.

   O segundo nível, volitivo – relacionado às intenções, ao querer – é o que tem mais a ver com o livre arbítrio da vontade, aquilo que em inglês é chamado de “free will”. Digamos que um soldado não consiga, em uma guerra, acertar o inimigo. Esse é um fenômeno comum: uma inibição interna o impede de fazer aquilo que ele deve e mesmo quer fazer. Ele é internamente limitado em sua vontade. Outro caso é o do alcoólatra que invade a cozinha do hospital no qual foi internado para beber o álcool de limpeza: trata-se agora de um constrangimento interno que rompe com a sua intenção de não beber. (Temos aqui um exemplo do tipo considerado por Frankfurt.) A restrição da vontade, por limitação ou indução, pode ser externa: por exemplo, uma pessoa hipnotizada está sendo externamente limitada em seu querer ao ser induzida a não fazer o que poderia estar fazendo e externamente induzida a fazer o que o hipnotizador quer que ela faça. Enquanto a pessoa está sendo hipnotizada ela perde (voluntariamente) parte de sua liberdade por deixar de agir segundo a sua preferência dentro do leque de alternativas que lhe está sendo contextualmente dado. Mais frequente é que uma pessoa seja externamente limitada ou induzida por medo ou por amor a alguém que tenha poder sobre ela.

   A última forma de restrição da liberdade é a que se dá ao nível das razões. Trata-se aqui do que mais propriamente pode ser chamado de restrição da liberdade do arbítrio. Ela é particularmente importante porque é muitas vezes elusiva. Exemplo de uma limitação racional interna do arbítrio é o de um esquizofrênico que não aceita a comida do hospital porque acredita que ela esteja envenenada. Um exemplo de indução racional interna é o do assassino psicopata racista que acredita que deve matar o maior número de pessoas de cor negra que puder. Note-se que nesses dois casos a pessoa não se vê a si mesma como sendo restringida em seu livre arbítrio. Contudo, quase qualquer outro sujeito avaliador irá dizer que essas pessoas são respectivamente limitadas e induzidas em seus juízos.

   O caso mais importante – por suas variadas consequências sociais – é o de restrições da liberdade ao nível de razões externas. Aqui as razões restritivas da liberdade são produzidas por outras pessoas que não o agente, mesmo que isso ocorra indiretamente, através da influência do meio social e cultural. Um exemplo de limitação externa da razão é o de uma pessoa que não pode comer carne vermelha porque a sua seita religiosa não permite. Um exemplo de indução externa é o caso do pastor Jim Jones, que convenceu os seguidores de sua seita fanática a cometerem suicídio coletivo de modo a se reencontrarem no paraíso. Trata-se, nesses casos, daquilo que Robert Kane chamou de “controle não coercitivo encoberto” (covert non-constraining control). Trata-se de coerções racionais externas, de manipulações da razão, que são importantes porque podem ocorrer por influência isolada de outra pessoa ou de um grupo, mas muitas vezes pela influência dos mais variados módulos sócio-culturais, como os da família, do estado, da religião, dos valores culturais que envolvem o meio social no qual se encontra o agente... É da maior importância o fato de que nesses casos a própria pessoa se julga livre e a sua falta de liberdade só é constatada por outras pessoas (geralmente não pertencentes ao seu módulo sócio-cultural) ou mesmo pela própria pessoa algum tempo mais tarde. Uma pessoa pode gastar dinheiro em excesso devido ao meio social no qual ela vive e, anos mais tarde, constatar que ela não havia sido realmente livre no uso irresponsável que havia feito de suas próprias economias. Note-se que partindo das restrições de ordem racional podem se seguir restrições nos níveis subsequentes, caso em que temos uma cadeia causal inibitória ou indutora, que leva o sujeito a realizar outra ação ou a não realizar a ação que em circunstâncias normais ele teria mais razoavelmente realizado.

  Uma objeção à análise recém-sugerida da restrição ao nível da formação de razões seria a de que estamos incorrendo em relativismo. Os seguidores de Jim Jones não eram livres do ponto de vista nosso, mas eram livres do ponto de vista deles mesmos e do próprio Jim Jones. Udo parece depender, pois, de quem avalia!

   A resposta consiste em apelar para uma situação discursiva crítica não muito diversa da situação ideal de fala (ideale Sprachsituation) sugerida por Jürgen Habermas[14]. Em uma situação na qual agentes e avaliadores são igualmente racionais, tendo similar competência cognitiva, acesso irrestrito à informação e possibilidade irrestrita de diálogo de modo a serem pressionados apenas pelo melhor argumento, podemos conceber, por exemplo, que o seguidor de Jim Jones se torne capaz de reconsiderar a sua intenção de seguir irrefletidamente o líder da seita – coisas que na vida real são comuns de acontecer.

   Com base no que já foi considerado podemos agora estabelecer definições. Chamando de S a pessoa que avalia o grau de liberdade do agente P (em certos casos sendo S a mesma pessoa que P geralmente em tempo posterior) podemos dizer que:

 

1.     P é livre para S see para S dentro de leques de alternativas aceitas por S como contextualmente razoáveis, P não é submetido a restrições nem externas nem internas, nem por limitação nem por constrangimento, sejam elas de ordem física, motivacional ou racional.

2.     Uma ação, decisão ou razão A de P é livre para S see A é realizada por P dentro de um leque de alternativas aceito por S como sendo contextualmente razoável, sem restrições externas nem internas, nem limitadoras nem constrangedoras, quer seja ao nível físico, motivacional ou racional.

 

O que apresentei aqui é pouco mais do que um esboço. Mas ele mereceria ser mais detalhadamente e acuradamente desenvolvido, uma vez que que as variadas definições hierárquicas tópicas parecem ser em princípio absorvíveis dentro da versão mais sofisticada do compatibilismo tradicional até aqui sugerida.

   Considere, por exemplo, a definição hierárquica de Frankfurt. Seus exemplos passam a dizer respeito à ausência de restrições concernentes à vontade do sujeito dentro do leque de alternativas razoáveis contextualmente oferecido. Mas a versão acima sugerida explica casos que a teoria de Frankfurt não é capaz de explicar, como, por exemplo, o do homem-bomba. Para Frankfurt o homem-bomba deveria ser livre, pois ele se identifica tanto com a sua vontade de ordem inferior de realizar o seu atentado como também com as razões e motivações ideológicas de ordem superior que reforçam a sua determinação em realizar a ação. Ele quer aquilo que quer querer. Mas essa resposta é simplificadora. O homem-bomba é livre para si mesmo, sob o suposto de suas convicções ideológicas. Mas em geral não dizemos que um fanático é uma pessoa livre. Se considerarmos a ação do homem-bomba do ponto de vista de um sujeito avaliador com maiores e mais bem fundadas informações, ele irá (provavelmente) relativizar as convicções ideológicas do primeiro através de outras e melhores razões, de modo a julgá-lo vítima de um encoberto constrangimento não-coercitivo da razão, cuja origem é externa – um constrangimento que restringe sua liberdade por indução ideológica. Essa última costuma ser uma análise com resultados mais razoáveis para qualquer um que tenha um quadro mais completo das circunstâncias envolvidas.

   Por fim, é necessário notar que do ponto de vista do compatibilismo causal escalonado acima esboçado, a tão alardeada “autonomia da vontade” (Kant) precisa ser desmistificada. Não se trata de um conceito positivo. A autonomia da vontade tem sob a perspectiva aqui esboçada um significado meramente negativo. Quer dizer apenas que o agente não é restringido ao nível da razão e da subsequente vontade no interior de um leque de alternativas contextualmente razoável.

 



[1] A questão do livre arbítrio seria considerada por muitos metafísica e, portanto, parte da filosofia teórica. A diferença básica entre filosofia teórica e prática é, tal com a entendo, que a primeira diz respeito à realidade (ao ser) e seu acesso (o que a faz incluir a metafísica, a epistemologia, a filosofia da ciência e da lógica, a filosofia da mente etc.), enquanto a filosofia prática tem a ver com a resposta a esse acesso através da ação humana e seus produtos (daí ela incluir a filosofia da ação, a ética, as filosofias da história e da cultura, a filosofia política, e mesmo a metafilosofia, uma vez que seu objeto de estudo é a filosofia, que também é produto da ação humana). Como se verá nesse artigo, minha maneira de entender o problema do livre arbítrio tem muito mais a ver com a filosofia prática, particularmente com a teoria da ação, do que com a filosofia teórica.

[2] “Objetivamente não há tal coisa como o acaso, mas tudo é sujeito a uma estrita lei da necessidade mecânica, como disse Leucipo” W. K. C. Guthrie, History of Greek Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1965) vol. II, p. 418.

[3] Lucretio: On the Nature of the Universe (Harmondsworth: New York, 1951), II, linhas 250-255.

[4] Roderick Chisholm: “Human Freedom and the Self”, in Gary Watson (ed.), Free Will (Oxford: Oxford University Press, 1982).

[5] Brand Blanchard: “The Case of Determinism”, in Sydney Hook (ed.), Determinism and Freedom (New York: Collier-McMillan, 1965)

[6] John Hospers: “Men and Free Will”, Philosophy and Phenomenological Research, 10, 1950, 310-27.

[7] D. M. Armstrong: “What is Consciousness?”, in Ned Block, O. Flanagan, G. Güzeldere (eds.), The Nature of Consciousness (Cambridge: MIT-Press, 1999).

[8] D. M. Rosenthal: Consciousness and Mind (Oxford: Clarendon Press, 2005).

 

[9] Hobbes: Leviatan XXI, sec. 1.

[10] Harry Frankfurt: “Free Will and the Concept of a Person”, Journal of Philosophy, 68 (1971), 5-28.

[11] Claudio Costa: “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. VII (Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2014).

[12] Richard Taylor: Metaphysics (Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1983), p. 4.

 

[13] L’etre et le néant: Essay d’ontologie Phénoménologique (Paris: Gallimard 1943), parte IV, cap. 1.

[14] Jürgen Habermas: “Wahrheitstheorien”, in H. Fahrenbach (ed.): Wirklichkeit und Reflexion (Frankfurt: Suhrkamp, 1973). 

 

 


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