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AUSTIN E O
PRIMADO DA ASSERÇÃO
J. L. Austin
foi o autor de uma célebre distinção entre duas formas básicas de
proferimentos: os constatativos, que são enunciativos ou descritivos, e
os performativos, que realizam ações.[1] Mais tarde
ele se convenceu, por argumento vários, que tal distinção não se sustinha sobre
bases reais, o que o levou a abandoná-la, substituindo-a pela mais influente
teoria dos atos de fala.[2] Penso que
esse desenvolvimento de seu pensamento ilustra como, em filosofia, alguém pode
encontrar-se diante de um achado importante, e então, sob a pressão de novas ideias
explorá-lo de maneira insuficiente e inadequada, terminando por afastar-se
dele, convencido de que se tratava de apenas mais um espectro ilusório na
nebulosa selva conceitual.
Pretendo fazer aqui uma breve reconstrução
da distinção austiniana, que exponha mais claramente seu insight original,
revelando seu lugar fundamental em um estudo filosófico das funções
linguísticas. Um resultado filosoficamente relevante desse procedimento
consistirá na sugestão de que a ideia clássica de um primado do modus assertórico – do logos apophantikós aristotélico – possa ser
reinstaurada no próprio âmbito de uma pragmática das ações comunicativas, a
mesma que o teria supostamente relativizado.
I
Consideremos
primeiro, como forma de abordar a questão, as principais objeções que Austin
fez a sua própria teoria.
Uma primeira objeção é a da ausência de
critérios gramaticais satisfatórios para distinguir os proferimentos
performativos. O que mais se aproxima de um critério gramatical repousa na
ideia de que onde o dizer é fazer, o dizer deve ser feito por alguém aqui e
agora. Uma maneira abrangente de enunciá-lo seria a seguinte: Um proferimento é
performativo quando o verbo ocorre na primeira pessoa do singular do presente
do indicativo e na voz ativa, ou, nos casos em que isso não se dá, quando é
possível parafraseá-lo (reduzi-lo, expandi-lo, analisá-lo) nessa forma. Essa
forma, dita explícita, costuma ser formalizável como “(Eu) v (que) p”, onde v
representa o verbo performativo (que define a força, o sentido de aplicação do
proferimento) e p um conteúdo proposicional, como no exemplo “(Eu) aviso-te
(que) o cão é feroz”.
Contudo,
esse critério gramatical para os performativos não é uma condição suficiente, posto
que também os proferimentos constatativos a satisfazem: qualquer frase
implicitamente assertiva é susceptível de ser apresentada sob a forma “Eu
afirmo (declaro, digo...) que...”[3] Seria tal
critério ao menos uma condição necessária? Parece que sim, mas então teríamos
de interpretá-lo de maneira muito generosa. Podemos, em um suposto
contraexemplo, imaginar uma língua primitiva na qual não exista a primeira
pessoa; se Ollan, um falante dessa língua, fizer uma promessa, ele recorrerá à
terceira pessoa do singular dizendo “Ollan promete que...”, subvertendo assim a
exigência de que o verbo performativo venha na primeira pessoa. Pode-se convir
que esse caso expõe uma mera limitação idiomática, eliminável pela adição ao
critério gramatical da cláusula de que, nesses casos, o verbo deve poder ser
apresentado na primeira pessoa quando vertido para línguas como a nossa,
dotadas de mais precisos recursos expressivos. Mas não é preciso ir tão longe.
Há casos em que não parece haver versão possível, mesmo em nossa própria
língua: não existe a possibilidade de vertermos um insulto introduzindo o verbo
insultar como performativo na primeira pessoa, de maneira a formar o
proferimento “Eu te insulto...”. Pode-se também aqui tentar estender o
critério, considerando prescindível que o verbo em questão seja o mesmo que
define o sentido de aplicação do proferimento. Mas que dizer do “Estás fora”,
dito em um jogo de roda, onde não encontramos paráfrase com verbo na primeira
pessoa? Que fazer com expressões como "Hurra!”, “Viva!”, “Ai!”, onde
sequer verbo há?
Nada
disso, a meu ver, tem a menor importância aqui. Pois a resposta à objeção não
consiste em se elaborar um critério gramatical necessário e suficiente para os
performativos, mas antes no reconhecimento de que a exigência de que
fundamentemos a distinção através de critérios estritamente gramaticais é
supérflua! Eles deveriam sê-lo se a distinção fosse ela mesma de natureza
gramatical, o que não é o caso.
Sob a
perspectiva que quero propor, é lícito postularmos – seguindo uma sugestão
inicial de Austin – que os critérios fundamentadores da distinção tenham a ver
com a satisfação de condições de verdade versus a satisfação de
condições de realização das ações.
Nesse caso, o critério identificador (definitório) – entendendo-se com
isso uma condição necessária e suficiente para a identificação – consistirá,
para os proferimentos constatativos, no fato de eles serem verdadeiros ou
falsos. Por outro lado, para os proferimentos performativos o critério identificador consistirá,
usando a terminologia de Austin, no fato de eles serem felizes (bem-sucedidos)
ou infelizes (malogrados) no fazer algo, no produzir um efeito sob determinação
convencional.
Tais
critérios gerais, tais condições identificadoras, podem ser expostas em um
esquema muito simples:
Proferimento: |
Condição identificadora: |
CONSTATATIVO: |
é VERDADEIRO ou FALSO (e não feliz ou infeliz) |
PERFORMATIVO: |
é FELIZ ou INFELIZ (e não verdadeiro ou falso) |
Com isso
temos, prima facie, as condições necessárias e suficientes para a
identificação da forma do proferimento; mesmo na língua imaginária acima
aventada. A razão pela qual tendemos a considerar o proferimento “Ollan promete
que...” como sendo performativo é que não é a sua verdade aquilo que deve ser
preferencialmente reclamado, mas a satisfação das condições de sucesso do
prometer.
Encontrando-se o critério definitório já
inteiramente presente na oposição entre condições de verdade e de felicidade,
construir uma teoria da distinção não deve resumir-se em buscar outros
critérios, mas principalmente em realizar uma adequada análise comparativa das
relações entre a satisfação de condições de verdade e a satisfação de condições
de felicidade no proferimento total. Faltou a Austin fazer isso de modo
consequente, voltado que estava para uma análise de manifestações linguísticas
relativamente contingentes.
Reconhecer esse ponto não significa, é
claro, abandonar as considerações gramaticais, mas admitir que é preciso
subordiná-las a um contexto mais amplo de análise. Com efeito, embora a
oposição constatativo/performativo não venha a se exaurir na simples forma
gramatical do enunciado, a gramática de superfície costuma oferecer elementos
orientadores, o que poderíamos – usando um termo wittgensteiniano – chamar de
sintomas: sintomas gramaticais, que, por seu caráter dependente e convencional,
não precisam refletir inteiramente a distinção. Precipitar-se na busca de um
critério gramatical para uma distinção não essencialmente gramatical pode ser
enganador; culpar a distinção pelo fracasso em encontrá-lo, injusto.
Austin também buscou invalidar
a condição não-gramatical fundamentadora da distinção, mostrando que ela dá
lugar a vaguidades insuportáveis. A maior parte dos proferimentos
constatativos, diz ele, são apenas aproximadamente (roughly), em certa medida (up
to a point), em certos contextos (to
some contexts), para certos fins e propósitos (to certain intents and purposes), verdadeiros. Exemplo disso é a
frase “A França é hexagonal”, que pode ser verdadeira dita por um general e
falsa dita por um cartógrafo.[4]
Há neste
argumento uma irritante confusão entre dois diferentes usos da palavra
‘verdade’; uma confusão que se desfaz quando distinguimos claramente entre
eles. O primeiro é o que constitui o sentido próprio ou normal da palavra, que
aparece em expressões como ‘verdadeiro em certo contexto (para certo fim e
propósito)’; o segundo é um uso dependente ou adventício, que aparece em
expressões como ‘aproximadamente (em certa medida) verdadeiro’. Em ambos os
casos, a frouxidão típica da linguagem corrente nos permite dizer que
predicamos a verdade de frases, quando na realidade a estamos predicando de
coisas diversas.
Quanto ao
primeiro uso da palavra ‘verdade’, não advém qualquer vaguidade de sua
aceitação. É sabido que o valor-verdade de muitas frases (das que contém indexicais
etc.) depende também do contexto em que elas ocorrem. Por isso mesmo, e pelo
fato de haver uma diversidade possível de frases que dizem o mesmo, geralmente
aceitamos, para preservar o princípio da invariância da verdade, que seu
genuíno portador não é propriamente a frase, mas o que a frase diz no contexto
de seu proferimento, o que chamarei de conteúdo enunciativo.
Assim, quando atribuímos um valor-verdade à frase “A França é hexagonal”, não
estamos realmente atribuindo esse valor à frase, mas ao seu conteúdo
enunciativo. Com isso a atribuição de verdade perde a sua pretensa ambiguidade
e variabilidade, pois passa a ser vista como sendo feita de conteúdos
enunciativos diferentes; dizemos que a frase “A França é hexagonal” é
verdadeira dita pelo general e falsa dita pelo cartógrafo, mas o que realmente
queremos dizer com isso é que supomos dois proferimentos em contextos
diferentes, ou seja, dois conteúdos enunciativos intrinsecamente diversos, um é
verdadeiro, o outro falso.
Consideremos
agora o uso da palavra ‘verdade’ no segundo sentido, de ‘aproximadamente
verdadeiro’. Nesse caso, usamo-la de uma maneira adventícia, quase figurativa,
atribuindo-a a um portador que não será outro senão todo um conjunto de
ocorrências de uma mesma frase, independentemente dos diferentes conteúdos
enunciativos que essas ocorrências veiculam. Neste sentido o que chamamos de
verdade passa a admitir gradações: a “sentença” será dita mais verdadeira
quanto maior for o número de conteúdos enunciativos verdadeiros de seu conjunto
de ocorrências, e mais falsa quanto maior o número de conteúdos enunciativos
falsos do mesmo conjunto. Esse uso dependente da palavra ‘verdade’ poder
ocorrer, por exemplo, quando dizemos que a frase “A França é hexagonal” é
apenas “parcialmente verdadeira”, ou que um dito como “O que está em cima é
idêntico ao que está em baixo” possui “um pouco de verdade” etc. Em ambos os
casos, o que queremos dizer é que somente uma parte das ocorrências sentenciais
expressam conteúdos enunciativos verdadeiros.
Não
distinguindo os dois recém-esclarecidos usos da palavra ‘verdade’, Austin
embaralha-os de maneira a precipitar-se em conclusões desarrazoadas. Ele retém
do uso espúrio a ideia de que o portador da verdade seja a ocorrência ou o
conjunto de ocorrências da frase, generalizando essa ideia mesmo para aqueles
casos mais fundamentais, em que o portador da verdade é o que o proferimento
diz, seu conteúdo enunciativo; e como é frequente que o conjunto de ocorrências
seja apenas aproximadamente, parcialmente verdadeiro, ele conclui erroneamente
que o conceito próprio de verdade costuma admitir gradações, que é geralmente
inútil falar da verdade e falsidade de frases etc. Não seria difícil demonstrar
que outros casos por ele exemplificados repousam em confusões semelhantes.
Há
também casos de proferimentos constatativos que, apesar de toda a explicitação
contextual, são mesmo demasiado vagos para possuírem valor-verdade definido.
Mas esses, além de serem geralmente considerados falhos, nulos, sem efeito, sem
significação prática, eles são, contrariamente à sugestão de Austin, mais
incomuns do que a imaginação filosófica pode nos levar a crer. Além disso, sua
presença não torna a distinção vazia, tanto como a inexistência de uma linha
precisa entre o azul e o verde não nos revela a necessidade de abandonar a
distinção entre essas duas cores: que dois polos conceituais se delimitem por
um continuum não os torna injustificados. Algo semelhante pode ser dito
com respeito à natureza da oposição constatativo/performativo. Podemos fazer
listas de verbos que comecem com os mais tipicamente constatativos, terminando
com os mais tipicamente performativos. Eis uma delas:
1 |
2 |
3 |
4 |
5 |
6 |
Constato |
Explico |
Duvido |
Reconheço |
aviso |
ordeno |
Afirmo |
Contradigo |
Classifico |
Asseguro |
nomeio |
demito |
Descrevo |
Provo |
Consider |
Aconselho |
prometo |
multo |
Uma lista como essa sugere que a oposição
constatativo/performativo é gradual, além de extremamente abrangente,
aplicando-se aos mais diversos domínios da linguagem. Nesse caso, como nos
anteriores, existem formas de vaguidade, mas elas não são insuportáveis, visto
que encontram seu fundamento na vaguidade e gradualidade da própria daquilo que
está em questão.
Um outro argumento austiniano é
o de que, com as diferentes formas de constatativo, como afirmações,
declarações, descrições, comunicações, relatos... também estamos realizando (performing) ações. Com efeito, embora os
constatativos sejam atos “de” (of) se dizer algo, e os performativos
sejam atos realizados "ao” (in) se dizer algo, os atos “de” se
dizer algo dos constatativos costumam acompanhar-se de atos realizados “ao” se
dizer algo, ou seja, de ações interativas. De semelhantes considerações emerge
a ideia de que os constatativos não passam de um mero subgrupo dos
performativos.
Assim
expressa, a objeção nos induz a desconsiderar que nunca esteve em causa o fato
trivial de que constatar é realizar uma ação interativa, um espécime do
“fazer”. Falar é, obviamente, agir, e não seria necessária nenhuma teoria das
forças ilocucionárias para ensinar-nos isso. A objeção é antes outra: a de que
a forma do dizer do proferimento constatativo é um fazer pertencente ao mesmo
gênero daquele dos performativos. Ou, em ainda outras palavras: a de que as
condições para os constatativos confundem-se com as condições dos performativos.
E aqui nossa resposta terá de ser negativa.
A
rejeição dessa objeção decorrerá se nos aproximarmos da questão orientando-nos
a partir da perspectiva encontrada em Ernst Tugendhat. Com base em Anthony Kenny
e Erik Stenius, esse autor distingue entre dois modi semânticos
fundamentais, aos quais se reduziriam todas as frases: o teorético
(assertórico) e o prático. Como observa Tugendhat, a frase assertórica
baseia-se em condições de verdade (Wahrheitsbedingungen), tendo sido
concisamente definida por Wittgenstein como sendo a frase que “mostra qual é o
caso, se ela é verdadeira. E diz que assim é o caso”.[5] (T 4.022) Já
a frase prática (imperativa, volitiva, intencional) baseia-se em condições de
preenchimento (Erfüllungsbedingungen);
ela “mostra qual é o caso, se ela é preenchida, e diz que assim deve ou haveria
de ser o caso”[6]; ela visa a
produção, a efetivação de um estado de coisas que ainda não existe. Na frase
assertórica as palavras devem adequar-se ao mundo; no caso da frase prática é o
mundo que deve adequar-se às palavras.
Tugendhat
acusou autores como Austin e Searle de terem descurado da perspectiva
semântica, o que os levou, com a teoria das forças ilocucionárias, a perderem
de vista a distinção e a multiplicar um tanto aleatoriamente os modi. Não obstante, é evidente que esses
dois modi semânticos fundamentais de frase – o assertórico e o prático –
detém uma correspondência com aquilo que Austin, sob a perspectiva de uma
pragmática das ações linguísticas, chamou respectivamente de proferimentos
constatativo e performativo.
Contudo,
se Austin esquece a perspectiva semântica, Tugendhat não aprofunda a
perspectiva pragmática, que pode ser concebida de modo a envolver a primeira.
Mais esclarecedora seria então uma análise abrangente, que considerasse tanto
os aspectos semânticos quanto os aspectos pragmáticos dos dois modi. É o
que me proponho fazer a seguir. Para tal, minha estratégia consistirá em
começar esclarecendo as condições semânticas implícitas em distinções como a de
Tugendhat, passando então ao estabelecimento das condições pragmáticas; farei
isso partindo do modus assertórico em direção à ação constatativa e
depois partindo do modus prático em direção à ação performativa. Ao
final compararei o conjunto das condições estabelecidas para os proferimentos
constatativos com o conjunto das condições estabelecidas para os proferimentos
performativos assim obtidos, o que evidenciará a existência de diferenças
essenciais envolvidas.
Comecemos
com o modus assertórico. Segundo uma conhecida caracterização de Frege,
a asserção se faz por referência à satisfação de três condições.[7] A primeira
delas é:
(α -i) “Acesso ao pensamento”: o
que poderíamos chamar de apreensão ou concepção de um conteúdo enunciativo.
Trata-se de
um acesso ao que Frege chama de pensamento (proposição), e que (para evitar um
desnecessário comprometimento com a sua interpretação ontologicamente realista
do mesmo) prefiro chamar de conteúdo enunciativo. Esse acesso pode ser tanto
aquisitivo quanto criativo. Ele é aquisitivo no caso de conteúdos como os do
saber científico, que podem ser independentemente deparados por outros sujeitos
em situações semelhantes, donde dizemos, com Frege, que a sua apreensão (fassen)
é “passiva”, que eles podem ser “encontrados”, “descobertos”; já o acesso é
criativo quando os conteúdos não podem ser independentemente deparados por
outros, mesmo que eles se encontrem em situações semelhantes, como ocorre nos
casos das produções fictícias da imaginação, da arte; nesse caso, preferimos
dizer que eles são “inventados”, “criados”.[8] Finalmente,
o acesso a um conteúdo enunciativo pode ser feito sem que entre em consideração
o valor-verdade do dito conteúdo. É perfeitamente possível que eu pense em meu
exemplar do romance Wuthering Heights como encontrando-se na estante,
sem considerar se ele realmente lá está.
A segunda condição consiste em:
(α-ii) Reconhecimento da verdade
do conteúdo enunciativo ou pensamento apreendido ou concebido: o ato
judicativo.
Trata-se da
adição de uma pretensão de verdade ao conteúdo enunciativo pensado.
Sei que meu pensamento de que o exemplar de Wuthering
Heights se encontra na estante é verdadeiro porque recém coloquei-o lá; ou
então, sei que o pensamento é falso, i.e., que é verdadeiro que o livro
não se encontra na estante, pois acabei de emprestá-lo.
Se adiciono um valor-verdade ao meu
pensamento de que o livro se encontra na estante, o que realizo é um juízo
acerca de algo. Trata-se de um ato psicológico-intencional, pelo qual reconheço
a satisfação ou não das condições de verdade do conteúdo enunciativo, no caso
acima, a comprovada aplicabilidade de uma regra ou procedimento verificacional.
Uma característica notável das condições semânticas (a-i) e (a-ii) é que a sua
satisfação não é contemporânea ao proferimento: o juízo é realizado independentemente
do proferimento, como consequência de verificações anteriores a ele próprio. Em
contraste, veremos que as condições pragmáticas são geralmente contemporâneas
ao proferimento.
Quando se pretende comunicar um juízo,
deve-se satisfazer também condições pragmáticas, que são as de interação, de
estabelecimento de uma relação interpessoal. Esse é já o caso da terceira e
última condição assinalada por Frege, cuja satisfação nos faz passar do juízo à
asserção:
(α-iii)
Manifestação do juízo; o ato de afirmar (de asserir).
Ação
linguística que externaliza o conteúdo enunciativo acrescido de sua pretensão
de verdade: a asserção p. d.
Essa condição é cumprida no exemplo
considerado por ocasião da afirmação: “Meu exemplar de Wuthering Heights
encontra-se na estante”; havendo manifestação de um conteúdo enunciativo com
pretensão de verdade, é essa pretensão aqui não mais um ato intencional de
natureza psicológica, mas sua inscrição linguística na ação comunicativa.
Pode-se, obviamente, asserir sem se ter
ajuizado e sem se ter realmente a intenção de expressar o juízo; nem por isso
deixará de haver pretensão de verdade ou força assertórica inscrita no
proferimento. Mas o que Frege chamava de força assertórica, a pretensão de
verdade decorrente de certas manifestações linguísticas, só se torna
interessante por resultar também da satisfação das duas primeiras condições.
Embora possamos conceber que algumas asserções, embora satisfazendo (α-iii), não
satisfaçam as condições (α-i) e/ou (α-ii), não é possível conceber que simplesmente
nenhuma das asserções feitas em nossa linguagem às satisfizesse, pois se esse
fosse o caso a própria noção de asserção perderia sua razão de ser: como seria
possível falar de asserções, de afirmações, se os usuários da linguagem em
momento algum fossem capazes de pensá-las, de reconhecê-las como verdadeiras?
O reconhecimento da existência de condições
para os constatativos que não precisam ser concretamente satisfeitas, mas que
nem por isso deixam de ser relevantes, nos sugere a vantagem de uma abordagem
abrangente, que recorra ao que chamarei de proferimentos exemplares: ações
comunicativas típicas, que exemplificam idealmente um modus ou função da
linguagem, servindo de modelo para a sua identificação, na medida em que
satisfazem todas as condições que lhe possam ser relevantes. Muitas ações
comunicativas podem satisfazer apenas uma parte dessas condições; mas nem por
isso elas deixam de ser classificáveis como realizadoras da mesma função
linguística dos proferimentos exemplares, pois elas podem ser interpretadas
como casos incompletos ou degenerados dos últimos. A condição para a inclusão
de um desses casos no modus ou função reduz-se, pois, ao fato de ele
compartilhar, com os proferimentos exemplares, da satisfação de condições
mínimas necessárias para a função linguística em questão. E isso é assim porque
o preenchimento de tais condições nos permite depreender a potencialidade que
um tal proferimento incompleto tem de vir a satisfazer todas as condições
relevantes para uma certa função, mais do que outras. Assim, um proferimento
pode satisfazer somente (α-iii), mas ele será considerado constatativo na medida
em que com isso tiver a maior potencialidade de satisfazer também (α-i) e (α-ii).
Tendo isso em mente, podemos perguntar:
identifica-se a ação própria do modus assertórico, considerado como
asserção de um juízo do falante, isto é, supondo a satisfação das condições
fregeanas (α-i)-( α-iii), com a
ação que satisfaz um proferimento constatativo exemplar? A resposta deve ser
negativa. Se o proferimento constatativo – como, de resto, o performativo –
deve ser investigado como “o proferimento total na situação de fala total”
(Austin), ele deve ser entendido como uma ação comunicacional completa, o que é
mais do que uma frase assertórica proferida. Faz-se necessário examinarmos a
satisfação de condições pragmático-interativas subsequentes. Uma delas é a de
adequação daquilo que ultrapassa o falante, i. e., do ouvinte e do
contexto. A essa condição de comunicabilidade chamo de condição de
acessibilidade da asserção:
(α-iv) A asserção deve ser feita
em contexto adequado, sendo acessível a um ouvinte em condições adequadas para
a sua recepção.
Deve haver
uma audiência (ouvinte, ouvintes, o próprio falante) que esteja em condições de
compreender a asserção, que ainda a desconheça etc. E deve haver um contexto
adequado, o que pode ser entendido em um sentido amplo, que inclua o pano de
fundo necessário à transmissão da informação. Com efeito, pouco sentido fará eu
afirmar que o livro se encontra na estante, se não houver ninguém para
ouvir-me, se o ouvinte não souber português, se já tiver conhecimento do juízo,
se houver uma parede de vidro entre nós, se não houver estante, livro etc.
Pode-se considerar que tal condição de
comunicabilidade da asserção também não é estritamente necessária; é
perfeitamente possível asserir (dizer, afirmar, declarar) na ausência de uma
audiência, como o indicam expressões como “monologar”, “pregar em um deserto”,
“falar para as paredes”... Não obstante, mesmo que essa condição não seja
essencial, é importante considerá-la, visto que à semelhança do que vimos na
condição anterior, não se poderia dar sentido à noção de asserção no caso em
que todas nossas asserções fossem proferidas em situação de solilóquio. Essa
consideração mostra que asserções proferidas em solilóquio só podem sê-lo em
sentidos secundários, dependentes, incompletos, enfraquecidos, parasitários do
termo. Isso mostra outra vez a importância de uma análise das condições de
proferimentos exemplares, que servem de paradigma para uma dada função ao
satisfazerem todas as suas condições relevantes. Mesmo assim, com exceção da
condição (a-iii), as outras condições já
examinadas também não são estritamente imprescindíveis aos constatativos: posso
realizar um proferimento sem que haja alguém para ouvi-lo e sem tê-lo realmente
pensado ou ajuizado, e mesmo assim, ele poderá ser identificado como um
constatativo, como uma afirmação (num sentido enfraquecido). Não obstante, é completamente
inconcebível que todas as nossas asserções fossem assim, pois em tal caso não
teríamos mais realmente asserções.
Mesmo o que foi considerado até aqui é
insuficiente para dar conta de todas as condições mais importantes a serem
satisfeitas por uma ação comunicativa constatativa exemplar; tal proferimento
também requer que o falante “tenha consciência do que está fazendo”, que ele
tenha ao menos uma certa intenção informativa, pertencente ao gênero das
intenções comunicacionais. Assim, acrescentamos às condições anteriores ainda a
seguinte condição psicológica básica:
(α-v) Intenção do falante de
compartilhar informativamente seu juízo com o ouvinte, de participá-lo do
juízo.
Se digo a
alguém que o meu exemplar de Wuthering Heights se encontra na estante é
porque tenho basicamente a intenção de fazer com que o ouvinte também venha a
saber disso.
Essa intenção é a de informar, que é o mesmo
que compartilhar o juízo, no
sentido de fazer com que o ouvinte “leia” diretamente no proferimento,
acrescido de sua pretensão de verdade, o mesmo conteúdo enunciativo que o
falante nele “inscreveu” após ter realizado o juízo.
Apesar de sua importância, pode-se ponderar
que a condição (a-v) é de nível psicológico e
portanto contingente, inessencial, à semelhança da quarta condição. Com efeito,
não é necessário que o falante tenha a intenção de compartilhar o juízo para
que se dê um proferimento constatativo. Isso pode ser ilustrado por um episódio
de um conhecido conto de fadas. À noite, crendo-se isolado na floresta, o anão
chamado Rumpelstiltskin canta e dança em torno de uma fogueira soletrando alto
o seu nome, certo de que ninguém o está ouvindo; ao fazê-lo, porém, ele
comunica involuntariamente o nome a um mensageiro da rainha que o espreita, o
que permite que no dia seguinte essa última “adivinhe” o seu verdadeiro nome.
Não há aqui qualquer intenção informativa, pois a última coisa que
Rumpelstiltskin queria era que a rainha viesse a descobrir seu nome. Mas nem
por isso o proferimento deixa de ser uma ação comunicativa constatativa.
Também aqui, mesmo que nem todo falante
possua intenção comunicacional ao proferir um constatativo, não parece
concebível que proferimento constatativo algum satisfizesse a condição (α-v):
poderíamos, se jamais comunicássemos juízos com a intenção de fazê-lo, chamar
tais ações de proferimentos constatativos? Parece que não, pois embora nem todo
proferimento dito constatativo venha acompanhado de uma intenção informativa ao
nível psicológico, ele é dito constatativo por ser reconhecido como uma forma
incompleta, derivada ou degenerada daqueles casos em que essa intenção existe.
Sendo assim, o que em todos eles podemos reconhecer é a possibilidade da
ocorrência de uma intenção informativa em nível psicológico. Essa intenção
potencial pode ser corretamente chamada de uma pretensão, entendida como uma
finalidade linguisticamente ou mesmo contextualmente manifesta, capaz de ser
lida na força do proferimento total, no complexo gramático-conceitual que ele
em seu contexto evoca, finalidade essa que é a de produzir em alguém a tomada
de consciência de que algo é caso, o que inclui a pretensão de verdade, a força
assertórica.
Podemos, por conseguinte, substituir (α-v) pela
seguinte reformulação não-psicológica e necessária da mesma condição, que
chamarei de:
(α-iii’) Deve mostrar-se inscrita na ação comunicativa a pretensão de se
compartilhar informativamente um conteúdo enunciativo com pretensão de verdade.
Se digo que o
livro se encontra na estante, vem inscrita no proferimento total uma intenção
informativa potencial, mesmo que falte o ato psicológico ou a sua expressão
integral. Chamo a essa pretensão de interativo-informativa ou simplesmente de
informativa. Não há exagero nisso. Afinal, a pretensão de verdade mencionada na
condição (a-iii) nada mais é do que a potencialidade
do proferimento de veicular uma intenção de atribuição de verdade a um certo
conteúdo enunciativo; é, pois, só por essa relação com uma atividade cognitiva
virtual que faz sentido falarmos de ‘pretensões de verdade’ ou de ‘pretensão’
em geral. Além disso, se aceitamos a noção de uma pretensão de verdade em nível
linguístico-conceitual, por que não ampliá-la, admitindo uma pretensão de
informar a verdade? Finalmente, em seu sentido mais completo, a pretensão de
verdade não parece ser realmente separável de uma pretensão de informar a
verdade, como o indica a sua própria natureza linguístico-conceitual.
Podemos dizer que a condição (α-iii’)
engloba a condição (α-iii). Estritamente pensada, (α-iii) é a condição de uma externalização do conteúdo
enunciativo com a sua pretensão de verdade, com a sua força assertórica;
(a-iii’) adiciona a isso apenas a pretensão de compartilhar informativamente
esses itens. Considere-se o exemplo seguinte: “Quero informar-te que o livro se
encontra na estante”; não há aqui somente a explicitação do juízo, mas a pretensão
expressa no pronome e nas pessoas verbais, de informar outra pessoa. Mas essa
pretensão deve existir, mesmo quando verbalmente inexplícita, como no
proferimento “O livro está na estante”. Ela ainda existe, por convenção, mesmo
não havendo juízos, intenções ou ouvintes.
O que foi até aqui considerado certamente
não exaure a análise das condições e subcondições que poderia ser considerada.
Poderíamos detalhar, por exemplo, condições contextuais de inteligibilidade, de
cooperação, condições de reconhecimento de intenções pelo ouvinte e sua
contraparte no falante, mas nada disso é necessário à plausibilidade do
presente argumento.
Examinando as condições até aqui discutidas,
podemos ver agora mais claramente o que permanece indispensável à forma
constatativa da ação comunicativa. Basta considerarmos a singularidade da
condição (α-iii),
elaborada como (α-iii’): a pretensão de interação informativa, de compartilhamento ou
participação comunicativa de algo como sendo o caso, que pode ser diretamente
lida na manifestação assertórica do juízo. Essa é a condição mínima necessária,
comum a todos os constatativos, a ela se subordinando outras condições de
interação, como (a-iv) e (a-v), que servem para conduzir o juízo à sua comunicação. Daí advém a
possibilidade de definirmos, unificando sob uma perspectiva teleológica (em
sentido não-psicológico), a forma de ação própria de todo e qualquer
proferimento que envolva idealmente a satisfação das condições (α). Trata-se,
para evitarmos falar de uma “intenção não-psicológica”, da condição de que
venha inscrita na forma do proferimento uma pretensão de interação informativa.
Tal pretensão pode ser explicada como uma forma de ação na qual se inscreve a
finalidade de participação informativa de um certo conteúdo enunciativo
asserido, ou seja, de compartilhamento de uma possível representação, cognição
ou tomada de consciência de algo como sendo o caso, que é a consciência da
satisfação de condições de verdade, da verificação.
Com efeito, se alguém profere um
constatativo, se alguém diz que o gato está sobre o tapete, que está chovendo,
que sente fome, a finalidade primeira da ação é tornar também o ouvinte ciente
disso.
Com isso chegamos ao esquema seguinte, que
resume o que há de imprescindível ao proferimento dito constatativo:
Proferimento: |
Pretensão,
força, forma de ação: |
CONSTATATIVO |
INTERATIVO-INFORMATIVA Finalidade,
inscrita no proferimento, de compartilhamento informativo de um conteúdo enunciativo
asserido com um suposto ouvinte. |
Vejamos agora
em que resulta a aplicação do mesmo procedimento na busca de condições a serem
satisfeitas por proferimentos performativos exemplares.
Se a frase prática é a que “mostra qual é o
caso, se ela é preenchida, e diz que assim deve ou haveria de ser o caso”, a
comunicação de conteúdos enunciativos deixa de ser fundamental. O que merece
ser considerado passa a ser as condições para a concretização de um estado de
coisas, o que aponta para algumas condições de felicidade básicas que chamarei
de realizativas, cuja satisfação dá
ao proferimento o que poderia ser chamado de uma força (significação)
realizativa, diversamente das condições ou forças anteriores, cuja finalidade
era mais propriamente informativa.
O que chama particularmente atenção é o fato
de que aqui também pode ser estabelecido um mesmo número de condições, que são
paralelas e semelhantes às condições para os proferimentos constatativos,
embora não idênticas a elas. Penso que teriam sido a semelhança e o paralelismo
entre as condições dos dois grupos um dos fatores que permitiram que Austin os
confundisse.
A primeira condição é semântica e análoga à
do acesso ao conteúdo enunciativo em Frege:
(β-i) Apreensão ou concepção (frequentemente esquemática ou potencial) de
um certo conteúdo enunciativo.
Trata-se da
apreensão pelo falante do conteúdo enunciativo do que é para ser o caso, do
conteúdo de um efeito visado. Por exemplo: se desejo pedir a alguém que ponha o
exemplar de Wuthering Heights na estante, é porque concebo ou ao menos
posso conceber o fato de o livro ser colocando na estante ou o estado de coisas
de ele lá se encontrar; se me desculpo por ter pisado no pé de alguém, é porque
posso conceber o efeito psicológico visado.
Note-se que tal acesso ao conteúdo
enunciativo do que há de ser o caso não precisa ser contemporâneo ao
proferimento. Além disso, não exercendo aqui o mesmo papel fundamental, é frequente
que tal conteúdo não seja pensado em suas particularidades, podendo sê-lo
esquematicamente, de maneira vaga ou incompleta, ou ao menos como algo, um “não
sei bem o que” cuja possibilidade é, não obstante, concebível. Por exemplo: se
uma pessoa, chegando à cidade de Natal, pergunta onde fica o hotel Vila do Mar,
certamente ainda não sabe como encontrá-lo, mas já deve ter alguma informação
acerca da região onde ele se localiza, sobre o que espera encontrar sob esse
nome, ou, ao menos, o que é um hotel, como localizar um tal objeto etc. Se a
pessoa não souber nada disso, então por certo ela não sabe o que diz nem o que
quer.
A próxima condição que os proferimentos
performativos devem preencher é análoga à da atribuição de valor-verdade ao
conteúdo proposicional nos constatativos. Trata-se de:
(β-ii) Pretensão de que o
conteúdo enunciativo em questão seja factualmente realizado: a pretensão
prática.
Chamo aqui de
pretensão prática ou realizativa a intenção psicológica de que um certo
conteúdo enunciativo seja factualmente efetivado, de que o estado de coisas a
ele correspondente se realize, se concretize. Um exemplo é a minha intenção de
que certo livro seja de fato colocado na estante. A pretensão realizativa dos
participantes (de que o mundo se adeque ao pensamento) para os performativos é
análoga à pretensão de verdade (de que o pensamento se adeque ao mundo) para os
constatativos, podendo ambas dar-se mentalmente como intenções, ou então inscreverem-se
tipicamente como pretensões, como intenções potenciais, nos próprios
proferimentos.
Com isso podemos passar a uma condição
correspondente à da asserção p. d., à condição do proferimento performativo ou
prático:
(β-iii) Ação linguística de externalização da pretensão prática quanto a
um certo conteúdo enunciativo: proferimento prático.
Exemplo disso
é o proferimento: “Peço que o livro seja colocado na estante”. Note-se que a
pretensão prática vem inscrita no próprio proferimento ou ao menos em seu
contexto, não necessitando vir acompanhada da intenção psicológica
correspondente, decorrendo seu sentido tão-somente da potencialidade que o
proferimento real demonstra de veiculá-la, de evocá-la.
A consideração do ato de fala total também exige
a adição de outras condições pragmáticas ou interativas, como a condição de
acessibilidade do proferimento prático:
(β-iv) A manifestação da pretensão realizativa deve ser feita em contexto
adequado, sendo acessível a um ouvinte em condições adequadas de recepção,
capaz de reagir de maneira que o conteúdo enunciativo a que se liga a pretensão
seja factualmente realizado.
Deve haver
uma audiência (ouvinte, ouvintes, e em certos casos mediatamente o próprio
falante) em um contexto tal que ela esteja em condições de fazer com que se dê
a realização do estado de coisas previsto no conteúdo enunciativo de que haja a
concretização de seu correspondente factual, seja ele o que for. Se peço que o
livro seja colocado na estante, uma condição interativa disso é a de que haja
alguém em circunstâncias tais que possa reagir ao pedido. Essa condição,
diversamente de (b-iii), não é estritamente
necessária, como também não o são (b-i) e (b-ii), aplicando-se a palavra ‘performativo’ em um sentido dependente,
nos casos em que tais condições não são satisfeitas.
Há, por fim, uma condição intencional
análoga à condição (α-v) dos performativos, que é:
(β-v) Intenção do falante de produzir, através do ouvinte (no ou por ele),
a realização factual do conteúdo enunciativo que ele pretende que seja
factualmente realizado.
Por exemplo:
ao pedir a alguém que certo livro seja colocado na estante, costumo ter a
intenção de que o livro seja realmente colocado na estante por essa pessoa. Pode
ser que eu tenha uma outra intenção, digamos, a de chamar a atenção da pessoa
para o livro, mas nesse caso o conteúdo enunciativo que desejo efetivar (ex:
“Tão extraordinário quanto Shakespeare!”) também será outro, inferível a partir
do contexto. Isso não importa, como também não importa analisar aqui intenções
subsidiárias como a do reconhecimento da pessoa de que eu tenho tal intenção
etc.
A intenção ou pretensão prática, considerada
em (β-ii) e
expressa em (β-iii), era a
de que o conteúdo proposicional se concretizasse factualmente, de que se
produzisse um correspondente dele no ouvinte, no mundo externo, ou mesmo no
próprio falante. Agora trata-se da mesma intenção, mas com uma adição
relevante: a de que isso se dê através da interpretação do proferimento pelo
ouvinte.
Também aqui a intenção não precisa ser de
ordem psicológica, o que se estende à pretensão prática por ela abrangida, pois
isso só é esperado em proferimentos modelares. Podemos por isso reformular a
condição (b-v) de modo a formar uma condição
comunicacional não-psicológica, uma intenção apenas potencial, i.e.,
algo que vem inscrito na forma do proferimento total, no complexo
gramático-conceitual que ele contextualmente evoca, ou ainda, como uma
pretensão, legível no proferimento, de concretizar factualmente, através do
ouvinte a pretensão realizativa quanto a um certo conteúdo enunciativo.
Evitando conotações psicológicas, chamo a isso de pretensão
interativo-realizativa.
Assim entendida, a condição torna-se:
(β-iii’) Deve mostrar-se inscrita na ação comunicativa a pretensão de
realização factual através do (no ou pelo) ouvinte, de um certo conteúdo
enunciativo com pretensão realizativa.
Se digo a
alguém: “Peço-te para colocar o livro na estante”, explicito linguisticamente
com o verbo performativo na primeira pessoa, com o pronome pessoal, o elemento
interativo específico da pretensão de interação realizativa. Mas esse pode ser
o caso mesmo em performativos implícitos, por exemplo, no proferirento “O livro
poderia ser posto na estante”, onde o contexto se encarrega de evidenciar qual
é a pretensão de interação realizativa.
A ação expressa em (b-iii’) pode, certamente, ser considerada como incorporando a pretensão
realizativa quanto ao conteúdo enunciativo, própria da condição (b-iii), sendo frequente que elas não venham linguisticamente
distinguidas. (b-iii’) é também uma condição
necessária, presente em tudo aquilo a que chamamos de performativo.
Considerando o que chamamos de pretensão interativo-realizativa em termos de
uma forma de ação, podemos também explicá-la como uma ação que tem a finalidade
convencionalmente fundada de concretizar factualmente, através de um ouvinte, a
pretensão realizativa ou prática quanto a um certo conteúdo enunciativo.
Posso resumir o que é imprescindível ao
proferimento dito performativo com o seguinte esquema:
Proferimento: |
Pretensão,
força, forma de ação: |
PERFORMATIVO |
INTERATIVO-REALIZATIVA Finalidade,
inscrita no proferimento, de realização
factual de um certo conteúdo enunciativo
através de um suposto ouvinte. |
Estamos agora
em condições de responder a Austin. Se o argumento dele é correto, então os
proferimentos constatativo e performativo não são essencialmente diversos. Ora,
como o que há de essencial nos proferimentos é, para os constatativos, a
pretensão interativo-informativa, e, para os performativos, a pretensão
interativo-realizativa, se Austin está certo então essas pretensões ou ações
não se distinguem essencialmente. Mas sob a luz das análises acima efetuadas a
diferença é clara. Podemos resumi-la sob a afirmação de que a ação de
finalidade informativa, que é a primeira pretensão, diz respeito à transmissão
informativa de um juízo, devendo resultar em um juízo que é basicamente um meio
para a consecução de fins (podemos comparar tal ação à passagem de um bastão em
uma corrida olímpica, à passagem de um tijolo do ajudante ao pedreiro). Em
contrapartida, a ação de finalidade realizativa deve resultar em um efeito, na
realização de um estado de coisas que é antes de tudo um fim, mesmo que sirva
para outros fins (detendo certa analogia com o ato de segurar uma pessoa que
está escorregando, com o murro de um boxeador...).
Contudo, se o que queremos saber é se a
diferença é essencial, tais considerações podem não bastar. E mister irmos mais
além, verificando se a distinção se mantém ao nível mais específico dos
possíveis efeitos visados nas múltiplas formas de ação performativas; só então
saberemos se ela é efetivamente generalizável.
Vejamos. No caso da pretensão informativa, a
finalidade da ação é produzir no ouvinte um efeito, a cognição de um conteúdo
enunciativo com pretensão de verdade, a qual é por ele diretamente “lida” no
proferimento. No caso da pretensão realizativa, a finalidade da ação também é a
de produzir, através do ouvinte (no ou por ele), um efeito, uma realização
factual. Só que em tal caso o efeito possui uma natureza mais variada. Podemos
compendiar essa variedade dos efeitos performativos considerando basicamente o
envolvimento da efetivação (ou impedimento de efetivação) de três espécies de
ação:
(a) Ações físico-mecânicas. Tais
ações podem ser movimentos corporais e ações sobre objetos. Exemplos de
movimentos corporais são gestos; exemplo de ação sobre objetos é a de se
colocar o livro na estante.
Nesses casos a ação nada tem a ver com o
resultado da ação de finalidade informativa, pois a cognição de um conteúdo
enunciativo com pretensão de verdade não é, obviamente, uma ação
físico-mecânica.
(b) Reações afetivo-volitivas.
Exemplo de uma reação afetiva intencionada pelo falante é o tipo de efeito
emocional produzido no ouvinte por uma ofensa; exemplo de uma reação volitiva é
a intencionada em um ato de encorajamento, que visa animar alguém, motivar sua
vontade. Também aqui a ação realizativa nada tem a ver com a ação de finalidade
informativa enquanto tal.
(c) Efeitos cognitivos. Não é o
caso mais típico, mas também é possível que haja uma intenção realizativa que
vise, através do ouvinte, um efeito cognitivo na pessoa deste. Se, por exemplo,
um professor de história pede aos seus alunos para imaginarem quais poderiam
ter sido os resultados sócio-econômicos da mortandade provocada pela peste
negra no século XIV, o efeito por ele visado poderá ser a tomada de
consciência, por parte dos ouvintes, de um certo estado de coisas, a dizer, a
realização de juízos pelos ouvintes, a apreensão autônoma, da parte deles, de
certos conteúdos enunciativos com pretensão de verdade.
Podemos ter, por fim, efeitos mistos, advindos de
combinações entre (a), (b) e (c), como ocorre em atos de fala determinantes de
efeitos sócio-institucionais complexos (exs: casamento, batismo, excomunhão).
Comparemos
agora esses efeitos com os da ação de finalidade informativa. Nos casos (a) e
(b) as diferenças são profundas e evidentes. Mas no caso (c) há realmente uma
proximidade entre as duas formas de ação discutidas, pois aqui os performativos
também visam um efeito cognitivo. Questão: é essa proximidade tão importante a
ponto obstaculizar a diferenciação entre uma e outra forma de ação?
Também aqui a resposta deve ser negativa.
Quando afirmo algo, a finalidade da asserção é informar, compartilhar o mesmo
juízo com o ouvinte, que o interpreta, que o “lê” (enquanro eu o “inscrevo”) no
proferimento. Mas não é isso o que acontece no proferimento performativo no
qual o efeito visado é cognitivo, pois nessa ação o modo de produção do juízo é
diferente. Quando, digamos, peço ao ouvinte para realizar uma ação que resulte
na cognição de que algo é o caso, quando peço a uma criança para somar 16 + 16,
não estou compartilhando informativamente (reprodutivamente, mimeticamente) meu
juízo de que 16 + 16 = 32 com ela. O que estou tentando fazer é que o meu
proferimento atue nela como um estímulo desencadeador de um processo mental
autônomo, que resulte na produção de um conteúdo enunciativo pretendido, que no
caso é constituído pela própria cognição do juízo de que 16 + 16 = 32. Note-se
que em tais casos sequer é preciso que o falante tenha tido prévio acesso ao
conteúdo enunciativo que ele quer produzir, mas apenas que ele possa conceber
sua possibilidade: não é preciso que eu já saiba que a raiz quadrada de 14.641
é 121 para que possa pedir a alguém para calculá-la. Em contrapartida, se
realizo o proferimento informativo, o constatativo “A raiz quadrada de 14.641 é
121”, devo em geral conhecer plenamente o conteúdo enunciativo, sua pretensão
de verdade, e devo ter a pretensão de participar isso informativamente, coisas
que de um modo ou de outro já se encontram inscritas no proferimento,
precisando ser apenas mimeticamente reproduzidas na leitura que o ouvinte dele
faz.
Com isso
podemos finalmente concluir que as semelhanças que existem entre a ação de
finalidade informativa e a ação de finalidade realizativa, entre as duas formas
gerais de pretensão interativa, são superficiais. Elas são ações inteiramente
distintas e normalmente inconfundíveis.
Comparemos
agora, para finalizar, nossos resultados com as condições de felicidade
propostas por Austin no capítulo II de seu livro. Tal comparação revela por que
ele achava difícil ver um fundamento para a distinção. O que ele expõe como
condições de felicidade, caracterizadoras dos performativos, não é, como
deveria ser, algo similar ao acima sugerido grupo (b) de condições realizativas para os proferimentos performativos. Suas
condições de felicidade resumem-se em: (A.l) seguimento de procedimentos
convencionais; (A.2) adequação de pessoas e circunstâncias; (B.l e B.2) correção
e completude; (C.l) ocorrência de pensamentos, sentimentos, intenções; (C.2)
coerência no comportamento subsequente. Acontece que também as ações de
finalidade informativa dependem do seguimento correto de regras, da adequação
de pessoas e contextos, da ocorrência de pensamentos etc. As condições de
Austin formam um conjunto que é geralmente comum a ambas as formas de ação
linguística, estando já presentes em ambos os grupos (α) e (β) de condições, sendo
consequentemente incapazes de diferenciar tais formas substancialmente. Com
esses meios não se admira, pois, que Austin não veja como encontrar uma diferença
essencial entre constatativos de performativos. Finalmente, resta notar que não
é correta a sugestão austiniana de que os constatativos diferem dos
performativos por serem atos “de” se dizer algo, enquanto os últimos deveriam
ser atos realizados “ao” se dizer algo; essa seria antes a diferença que existe
entre as condições assertivas e semântico-explicitadoras, como (α-iii) e (β-iii),
constituindo atos “de” se dizer, e condições pragmático-interativas como (α-iii’) e (β-iii’), que
constituem atos realizados “ao” ou “em” se dizer algo.[9]
Talvez
por estar profundamente impressionado com a extraordinária riqueza de formas de
interação convencionalmente mediadas por ele descobertas entre os
performativos, Austin foi levado a investigar condições de interação no lugar
onde deveria estar investigando condições realizativas. Logo no início ele
perdeu de vista o que importava distinguir, plantando assim as sementes da
confusão.[10]
A análise por mim realizada
continua exposta a mais uma objeção geral de Austin: a de que os proferimentos
constatativos também dependem da satisfação de condições de felicidade,
enquanto os performativos também dependem da satisfação de condições de
verdade. Em outras palavras: as condições das duas formas gerais de ação
anteriormente consideradas se sobrepõem, não sendo realmente separáveis.
É
verdade que o estabelecimento de novas condições de satisfação para as duas
funções gerais contém uma resposta a essa objeção, enquanto baseada nas
recém-criticadas condições austinianas de felicidade. Mas nem sempre é ou
parece ser assim. Por exemplo: a existência de atos de fala indiretos que são
primariamente constatativos e secundariamente performativos, ou vice-versa, é
uma virtual fonte de dificuldades. Para introduzir uma análise de tais casos e
mostrar como as dificuldades que aqui se apresentam podem ser contornadas,
gostaria de começar examinando dois proferimentos cujo paralelismo teria, para
Austin, o poder de mostrar que afirmar e prometer são atos de natureza similar:
(a) “Minha câmera fotográfica está
com defeito”, dito quando o falante não tem câmera alguma.
(b) “Prometo dar-lhe minha câmera
fotográfica”, dito nas mesmas circunstâncias.
Segundo uma
bem conhecida maneira de analisar, o enunciado (a), um pretenso constatativo,
só é verdadeiro ou falso sob a condição de que o enunciado que ele pressupõe,
“Eu possuo uma câmera fotográfica”, seja verdadeiro. Austin concorda com isso.
Como o falante não possui câmera fotográfica, (a) é para ser considerado, não
como um proferimento falso, mas sim vazio, nulo, sem valor. E como o fato de o
falante ter uma câmera não é condição de verdade do proferimento (a), mas do
enunciado pressuposto “Eu tenho uma câmera fotográfica”, a satisfação de tal
condição de verdade é vista por Austin como uma condição para que o
proferimento (a) não seja malogrado, ou seja, como uma condição de felicidade
deste proferimento. Com isso temos uma condição de felicidade a ser satisfeita
por um proferimento supostamente constatativo. Consideremos agora o exemplo
(b). Ele é um proferimento performativo vazio, insincero. Que o falante tenha
uma câmera fotográfica é condição de verdade do enunciado pressuposto “Eu
possuo uma câmera fotográfica”, o qual precisa ser verdadeiro para que o
proferimento (b) seja feliz. Assim, do mesmo modo que o constatativo (a) deve satisfazer
também condições de felicidade, o proferimento performativo (b) pressupõe a
satisfação de condições de verdade, o que parece inviabilizar a escolha de tais
condições como critérios diferenciais.
Para ambos os casos há um meio simples de
salvar a distinção. Basta considerar a existência de dois níveis de condições,
só sendo possível a satisfação das condições do primeiro nível quando as
condições do segundo nível já foram satisfeitas. Elas são: (1) o nível das
condições cuja satisfação é imediatamente requerida com base na forma do
proferimento; (2) o nível das condições cuja satisfação é requerida pelas sentenças
pressupostas, o que se dá pela existência do que é por elas afirmado. Ora, o
que importa para a distinção constatativo-performativo é, em exemplos como os
acima, que se pretenda satisfazer as condições para o nível (1), pois são essas
que, nas formas não vazias dos proferimentos, poderão tornar (a) um
constatativo indefectivelmente verdadeiro ou falso e (b) um performativo
bem-sucedido ou não.
Em adição a esse meio simples de salvar a
distinção, há um outro meio simples, que é o de considerar que condições dos
grupos (α) ou (β) estão sendo
respectivamente satisfeitas pelos exemplos (a) e (b). Isso mostra que (a)
possui pretensão interativo-informativa, satisfazendo a condição indispensável
(α-iii’); o que
(a) não satisfaz é uma parte da dispensável condição de acessibilidade (α-iv),
relativa a um detalhe da adequação contextual, no caso, a condição de que o
falante possua uma câmera fotográfica. Igualmente, (b) satisfaz a condição
indispensável para os performativos, que é a de possuir a pretensão
interativo-realizativa (β-iii’); contudo, como o falante não possui câmera
fotográfica, o proferimento também não satisfaz parte da dispensável condição
de acessibilidade (β-iv), relativa ao mesmo detalhe da adequação contextual. Não se trata,
pois, de uma dificuldade real e incontornável.
Os exemplos considerados também trazem à
baila o seguinte problema: o proferimento (a) é falho, vazio, não chegando a
ser verdadeiro ou falso – como então podemos chamá-lo de constatativo? Uma
solução seria a de que nos recusássemos a considerar (a) um proferimento. Mas a
solução mais natural e tolerante (que não é a de Austin), consiste em se ampliar
os critérios de identificação, de maneira que os proferimentos constatativos
deixem de ser somente aqueles efetivamente verdadeiros ou falsos, e passem a
ser quaisquer proferimentos em cuja forma possa ser lida uma pretensão de
verdade. Essa solução já foi por nós implicitamente adotada desde a introdução
das condições (α-iii) e (α-iii’). O recurso à pretensão (intenção potencial) permite ampliar a
classe dos constatativos de modo que ela venha a abranger, por exemplo,
enunciados indecidíveis, mas dos quais se depreende uma pretensão
interativo-informativa, como seria o caso de proferimentos como “Há seres vivos
em outras galáxias”. Uma ampliação similar também deve ser feita com o critério
para os performativos. Tudo o que é necessário é que eles tenham uma pretensão
interativo-realizativa, não que a tenham ou não realizado. Isso permite a
inclusão de casos como o de uma promessa feita para o futuro, da qual ainda se
espera o cumprimento etc.
Retomando à objeção austiniana: Para os dois
exemplos dados, bastou para respondê-la nossa análise dos dois grupos (a) e (b) de condições. Mas há casos nos
quais isso parece não bastar. Considere-se a advertência: “Cuidado: o touro vai
atacar!” O enunciado complementar “O touro vai atacar!” tem pretensão de
verdade, ainda que isso tenda a não ser considerado. O que nos faz dizer que um
tal proferimento é uma advertência, um performativo?
II
Penso que o
caminho para uma solução geral para semelhantes dificuldades foi curiosamente
apontado pelo próprio Austin, ainda que logo a seguir abandonado sob a
alegação, insuficientemente justificada, de que ela hipostasia casos marginais
extremos. O que Austin sugere é que: (a) com os proferimentos constatativos nós
abstraímos aspectos ilocucionários do ato de fala e nos concentramos no
locucionário e na correspondência com os fatos (daí a pretensão de verdade);
(b) com os proferimentos performativos damos o máximo de atenção à força
ilocucionária e abstraímos da dimensão de correspondência com os fatos.[11] Se for
assim, o que faz a distinção constatativo/performativo deixa de ser unicamente
a presença de um ou de outro aspecto indicativo da forma de ação para tornar-se
o aspecto que o proferimento enfatiza.
A importância dessa sugestão foi notada por
Jürgen Habermas, que buscou recuperá-la em uma “reconstrução” da teoria dos
constatativos, com a qual pretendeu incorporá-la à arquitetônica de sua
pragmática universal. Ele sugeriu que o proferimento constatativo é aquele que
tematiza o seu conteúdo proposicional, dando-lhe uma pretensão de verdade, o
que é característico do uso linguístico cognitivo e dos atos de fala que em sua
classificação foram chamados de constatativos. Já os proferimentos
performativos tematizam o aspecto da relação interpessoal, a pretensão de
correção dos proferimentos, o que ocorre no uso linguístico interativo, que é
típico dos atos de fala que ele chamou de regulativos.[12] Sem querer
discutir a sugestão de Austin, que faz um uso pouco elucidativo das noções de
aspectos locucionário e ilocucionário eu quero, antes de propor uma nova versão
baseada nas considerações anteriores, justificar-lhe a necessidade com um breve
comentário crítico acerca da reconstrução habermasiana.
Diversamente do que Habermas sugere, o que
os proferimentos constatativos devem tematizar é, pela nossa análise, não só um
conteúdo proposicional, mas também a sua pretensão de verdade e ainda a
pretensão de informá-la, o que inclui então a tematização de uma relação
interpessoal! Por outro lado, pela mesma análise, é o caráter realizativo da
ação performativa, e não o seu caráter interativo, igualmente presente nas
condições para os constatativos, aquilo que a caracteriza.
A favor de tais considerações fala a
ausência de uma razão séria para se supor que o proferimento constatativo não
possa, também ele, tematizar a universalmente visada relação interpessoal. Em
defesa de sua posição, Habermas alega que o caráter acessório da relação
interpessoal nos constatativos se manifesta no fato de que a forma explícita da
asserção (“Eu afirmo que...”) é gramaticalmente correta, mas, se contraposta à
forma abreviada, de todo inútil (‘ganz ungebrauchlich’)].[13] À parte o
exagero, pois não é tão infrequente encontrarmos constatativos que começam com
verbos como ‘comunicar’, ‘afirmar’, ‘descrever’ etc. na primeira pessoa,
podemos encontrar também casos de performativos, como ordens, que poucas vezes
adquirem sua forma normal, e ainda outros, como ofensas, dissuasões, alarmes,
para os quais ela não existe.
Ainda assim, o fenômeno demanda algum
esclarecimento: admito que, à diferença de verbos como ‘ordenar’, ‘batizar’,
‘prometer’, verbos como ‘afirmar’, ‘constatar’, ‘julgar’... são relativamente
redundantes, no sentido de que posso ouvir uma frase e saber que o proferimento
deve ser constatativo sem que ela possua um verbo constatativo, e mesmo na
falta de um contexto específico que me evidencie seu caráter constatativo;
contudo, é menos provável que eu possa ouvir um proferimento e saber de que
performativo se trata, se ele não for proferido em um contexto apropriado, a me
mostrar a especificidade de sua pretensão realizativa, de sua força
ilocucionária.
Uma explicação razoável seria seguinte. As
relações interpessoais visadas nas ações comunicacionais constatativas são mais
naturais, mais uniformes e muito menos diversificadas, enquanto as relações
interpessoais visadas pelos performativos são em um número muito maior e
convencionalmente bem mais diferenciadas. Disso decorre que para os
performativos a necessidade de explicitação da especificidade da relação
interpessoal, de modo a fazer possível a determinação do efeito convencional
visado, é muito maior, enquanto que do lado dos constatativos, sendo essa
necessidade menor, e sendo eles tão frequentes, convencionou-se tornar a
explicitação da relação interpessoal normalmente prescindível. Mas sendo
assim, a infrequente tematização linguística da relação interpessoal nos
constatativos é resultante de uma convenção perfeitamente contingente, não
tendo a ver com a natureza própria dos constatativos, não significando que
neles o elemento interativo não precise ser igualmente considerado.
O que Habermas quer com a sua sugestão é, certamente,
assimilar uma dicotomia de nível mais elementar à sua classificação mais
complexa dos atos de fala, forçando-a a ajustar-se artificiosamente a um
esquema tricotômico, que lhe adiciona a classe dos atos de fala por ele
chamados de expressivos, tematizadora da veracidade como pretensão de validade
universal.
Com base nas análises anteriores, eis o que
creio que se pode extrair, ao menos provisoriamente, das considerações feitas
até aqui.
Com efeito, podemos encontrar associações ou
amálgamas de elementos constatativos e performativos nas ações e interações
comunicativas. Isso ocorre particularmente em performativos que contêm uma
dimensão constatativa, como em certos atos de fala indiretos (ex: “Você sempre
se atrasa!”). Apesar disso a distinção se preserva. Isso acontece porque
podemos geralmente distinguir um desses elementos como sendo comunicacionalmente tematizado, enfatizado, distinguido, posto em relevo na
ação comunicativa. Daí ser melhor dizermos que o proferimento é
constatativo, quando ele tematiza comunicacionalmente a pretensão
interativo-informativa, com correspondente abstração de possíveis elementos
performativos associados (razão pela qual o percebemos como uma ação com
pretensão de verdade, com força assertiva). Por outro lado, chamamos o
proferimento de performativo quando ele tematiza comunicacionalmente a
pretensão interativo-realizativa, o que se dá pela correspondente abstração de
possíveis elementos constatativos associados. Essa frequente duplicidade e
considerações comparativas de intensidade ajudam a explicar a vaguidade e
gradualidade da distinção, além de dar por suposta a existência de casos
indecidíveis.
À luz dessas considerações, os atos de fala
referidos por Habermas como expressivos devem ser classificados, ou como
constatativos, se tiverem pretensão de informar o ouvinte (ex: “Sinto sua
falta”) ou como performativos, se tematizarem a sua influência sobre o ouvinte
(ex: “Desejo que fiques”), ou ambas as coisas. A pretensão de veracidade que
Habermas atribui aos atos expressivos certamente existe, mas ela não parece
surgir ao nível mais elementar das pretensões de verdade e de correção.
Temos, pois, uma solução geral para a
objeção de que ações constatativas e performativas possam se integrar umas às
outras de modo a se tornarem indistinguíveis. Essa solução ainda dá lugar a uma
questão de esclarecimento, referente ao que chamamos de tematização
comunicacional, que é aquilo que faz com que se leia nos proferimentos ditos
constatativos uma pretensão de informar a verdade, e nos proferimentos ditos
performativos uma pretensão de interagir realizativamente. Como identificar a
tematização comunicacional? Para tal, podemos recorrer a indicadores contidos
na forma linguística dos proferimentos; assim, “Eu afirmo que...” costuma ser
constatativo, com pretensão de verdade, “Eu peço que...” costuma ser
performativo, sem a referida pretensão. Mas tais indicadores também devem poder
ser dados pelo contexto do proferimento, não precisando vir linguisticamente
explicitados, como no caso de certos atos de fala indiretos. Considere-se, como
exemplo, o ato de fala indireto, “(Devo informar que) o farol sinalizador de
mau tempo foi aceso”, expresso em tais circunstâncias que deva ser entendido
como uma advertência para embarcações menores não deixarem o porto. Embora
contendo, do ponto de vista linguístico, indicadores de asserção, o
proferimento é envolvido por indicadores contextuais que nos permitem inferir
uma certa dimensão performativa como sendo comunicacionalmente tematizada.
Nesse caso, os interlocutores não se preocupam, em primeira linha, com o valor
de verdade do proferimento (embora ele o tenha), pois indicadores contextuais
fazem com que certa ação de finalidade interativa seja privilegiada. Não há,
pois, indicadores absolutos da tematização comunicacional, sendo isso em última
instância decidido na praxis de cada jogo de linguagem. O importante, em todos
os casos, é a espécie de ação preferencialmente intencionada pelos
interlocutores no proferimento, o que nos constatativos é claramente revelado
pela presença da pretensão de verdade.
Em substituição ao esquema do início deste
artigo, o esquema que se segue expõe as condições, os critérios gerais de
identificação que fazem a distinção entre as ações comunicativas de tipo
informativo – os constatativos – e as ações comunicativas de tipo realizativo –
os performativos – construíndo-os de maneira corrigida e generalizada, evitando
assim os mal-entendidos suscitados pelo esquema inicial:
Proferimento: |
Condição de identificação: |
CONSTATATIVO, INFORMATIVO, ASSERTÓRICO, COGNITIVO... |
Tematização
comunicacional de uma pretensão ou ação
interativo-informativa. (pretensão de verdade). |
PERFORMATIVO, REALIZATIVO, PRÁTICO, INSTRUMENTAL... |
Tematização
comunicacional de uma pretensão ou ação
interativo-realizativa. (pretensão realizativa
ou prática) |
A distinção é bastante clara para a grande
maioria dos casos. Mas ela pode não parecer mais tão transparente em outros
casos, demandando análises particularizadas. Vejamos alguns deles[14]:
(i)
Embora os atos de fala diretivos sejam
geralmente não-problemáticos, o caso das perguntas merece algum destaque. Não
possuindo pretensão de verdade, elas devem ser classificadas entre os
performativos. Com efeito, perguntas são ações realizativas que devem produzir
de maneira não-informativa no ouvinte a tomada não-compartilhada de consciência
(geralmente por atualização de dados mnêmicos) de algo como sendo o caso, de
maneira a se obter sua manifestação em uma resposta. Essa resposta, por sua vez,
pode ser vista como sendo um ato constatativo dependente, que visa compartilhar
informativamente tal consciência com aquele que fez a pergunta. Embora a
cognição da resposta pelo falante-ouvinte costume ser o efeito último visado
com a pergunta, como o falante não está compartilhando informativamente,
através do ouvinte, um juízo, o proferimento não pode ser considerado constatativo.
(Considere-se o caso em que se faz a pergunta para se confirmar a verdade de um
enunciado, ex: “O romance Wuthering Heights foi escrito por Emily Brönte,
não?”).
(ii) Como se dá
com atos de fala comissivos, como o de prometer? Eles também são,
certamente, performativos. Ao prometer, o falante quer produzir no ouvinte a
tomada de consciência da promessa, visando essencialmente o deu comprometimento
com a realização da ação. Contudo, o ato não comunica informações sobre estados
de coisas; ele próprio é um estado de coisas do qual o ouvinte toma
consciência, participando na produção do comprometimento com a realização de
uma certa ação futura, a qual poderá obviamente conter atos cognitivos...
(iii)
Os atos de fala ditos expressivos dividem-se.
Alguns são constatativos: uma pessoa pode estar descrevendo um acontecimento
interno com o objetivo de informar, digamos, ao consultar um médico, e isso
pode ser falso, não só porque a descrição pode ser mentirosa, mas porque também
aqui – analogamente ao caso de proferimentos observacionais – há possibilidades
de engano (ex: confundo meus sentimentos ao tentar descrever as impressões
deixadas por um filme de Peter Greenaway).[15] Contudo, uma
pessoa também pode expor um acontecimento interno com o objetivo de produzir
uma outra espécie de reação, quando grita para pedir ajuda, quando agradece a
alguém etc., proferindo assim um performativo. É possível, enfim, que certos
atos expressivos tematizem simultaneamente tanto a pretensão informativa quanto
a realizativa. Isso não vale como objeção, pois não há qualquer razão para que
nossa compreensão da distinção deva excluir a existência de casos
intermediários ambíguos.
(iv) Performativos
institucionais costumam ser parte da concretização de um fato social de
natureza disposicional, como o “Sim” em uma cerimônia de casamento, que efetiva
compromisso com uma variedade de normas de ação envolvendo aspectos afetivos,
volitivos etc.
Certos
proferimentos vereditivos – as declarações
representativas de Searle – também
nos podem equivocar. Esse é o caso da decisão de um juiz de que o réu é
“culpado”. O juiz afirma, com base nas provas disponíveis, um estado de coisas
que crê ser verdadeiro, mas simultaneamente produz (independentemente do
conteúdo da asserção ser ou não verdadeiro) um outro estado de coisas, que
consiste no fato institucional de que o acusado passa a ser legalmente e
tratado como culpado. Aqui costuma se dar, mais uma vez, a tematização
simultânea das dimensões constatativa e performativa.
Considerando as coisas em um nível mais
abrangente, parece ainda que uma associação entre as duas formas gerais de ação
comunicacional é em última instância necessária no âmbito do processo
interativo como um todo, o que também pode confundir. Essa conclusão decorre de
uma reflexão acerca da natureza dos próprios usuários da linguagem. Parece que
assim como o ser humano, na qualidade de agente racional, combina
necessariamente as disposições básicas de ação e contemplação, assim também
acontece com a linguagem: os processos de interação comunicativa só se
completam, só adquirem um “sentido racional”, se refletirem a combinação dessas
duas disposições naturais, o que se faz pela associação simultânea ou pela
alternância sequencial de suas funções informativa e realizativa.
Essa necessidade se evidencia, quanto aos
constatativos, se considerarmos seu lugar no todo diacrônico do processo
interativo que se desdobra entre os interlocutores, posto que comumente os
elementos performativos associados vêm explicitados em um outro proferimento a
ele ligado, como em “O gato está de novo afiando as unhas no tapete; você quer
retirá-lo de lá?” Isso também se dá no curso da relação interpessoal, ou
determinado pelo contexto. Suponhamos que alguém simplesmente diga: “O gato
está sobre o tapete”. Não é concebível que a pessoa diga isso com o objetivo
único de fazer com que o ouvinte saiba que algo é o caso e nada mais; pode até
ser que ela não tenha consciência da associação de seu ato com um objetivo
prático, mas ele precisa existir. Em caso de dúvida, caberá a pergunta: “Por
que você disse isso?” E a resposta não poderá ser literalmente “Porque eu quis”
ou “Porque eu gostaria de levá-lo a saber que o gato está sobre o tapete, sem
supor que isso possa ter o menor efeito sobre você”. Geralmente, a resposta à
questão “Por que você disse isso?”, se não for elíptica, consistirá em um
esclarecimento de elementos performativos adicionais implícitos. E se tal não
se der, caberá a invectiva: “Mas não faz sentido (não há justificação racional
para se) dizer isso!”.
Algo semelhante, de um ponto de vista
sincrônico, não processual, pode ser dito sempre acerca dos performativos. Tais
proferimentos não são, nem da parte do falante, nem no que diz respeito às
reações do ouvinte, ocorrências automáticas, como na linguagem das abelhas, mas
atos complementados por atos mentais intencionais, conscientes, havendo nisso
mais do que a simples consciência do que deve ou havería de ser o caso: se uma
pessoa disser “Por favor, abra a janela”, ela fará depender seu proferimento de
certos atos cognitivos, como os de identificação do ouvinte, do contexto, de
componentes descritivos (explícitos ou não) do proferimento, da comparação
entre situações presentes e futuras, da racionalidade geral do ato etc., coisas
que ela implicitamente considera, o mesmo se dando com o próprio ouvinte. Pode
ser que a linguagem tenha começado com performativos nos quais os atos de
consciência fossem rudimentares, como no grito de alerta dos pássaros. Mas não
deve ter-se passado muito tempo antes que tudo se tornasse muito mais complexo.
III
Visando
complementar as considerações precedentes, quero adicionar algumas outras
acerca da teoria dos atos de fala, mais precisamente, acerca das noções de ato locucionário
e ilocucionário.
Para Austin um proferimento é normalmente
composto de atos locucionário e ilocucionário. O ato locucionário é o “de” se
dizer algo com significado, enquanto que o ato ilocucionário é aquele que
realizamos “ao” dizermos algo, incluindo segundo ele não só as ações
performativas, mas também as constatativas de afirmar, relatar, descrever etc.
Austin decompôs o ato locucionário em: (i)
um ato fonético, de emissão de
fonemas, (ii) um ato fático, de emissão de uma sequência gramaticalmente
estruturada de palavras, e, o que mais importa, (iii) um ato rético, em que
essas palavras dizem alguma coisa sobre algo, isto é, apresentam sentido e
referência na acepção fregeana dos termos, o que pode envolver o próprio
contexto do proferimento. Essa noção de ato rético – que, por pressupor os
outros atos, não difere essencialmente do próprio ato locucionário em sua
completude – foi alvo de questionamento por parte de comentadores influentes.
Uma dificuldade notável é a seguinte. Atos
de fala, ou adotam uma forma como “(Eu) v (que) p”, que é a mesma do pretenso
critério gramatical que encontramos nos performativos e constatativos
explícitos, ou podem ser reduzidos a ela ou a algo semelhante. Isso evidencia
que os atos de fala podem ser analisados como possuindo uma estrutura dupla,
constituída, de um lado, pelo componente de conteúdo enunciativo, explicitado
em “...(que) p”, e, de outro, por um componente ilocucionário, explicitado em
“(Eu) v...”, o qual especifica o sentido de aplicação, o sentido prático estabelecendo
o tipo de interação no proferimento, aquilo que Austin chamava de sua
força ilocucionária. Ora, sendo esse último componente também de natureza
fonética e fática, ele deveria poder ser também rético, i.e., dotado de
sentido e referência. Mas, se assim fosse, esse componente especificador do
sentido de aplicação deveria possuir (não só em performativos como “Eu
ordeno...”, mas mesmo em constatativos, como “Eu afirmo...”), além da força
ilocucionária, sentido e referência, expressando o pensamento de que o falante
ordena, afirma etc., e supostamente referindo-se à ocorrência da ordem, da
afirmação etc. Mas – de que ocorrência se trata? Certamente que não de uma
inessencial ocorrência subjetiva, de um ato mental do falante. A referência
também não deve ser o próprio componente ilocucionário, que assere que promete,
que cumprimenta, que afirma (!) etc., auto-referencialmente, pois pensar assim
seria confundi-la com o juízo dos interlocutores, com base nesse componente, de
que foi feita uma promessa, uma afirmação etc. A melhor alternativa, se desejamos
manter tal conceituação, parece ser a de considerar o componente ilocucionário
como tendo uma função metacomunicativa, sendo a sua referência o componente de
conteúdo enunciativo a ele associado junto a seu sentido, adicionado ao sentido
de aplicação, a força ilocucionária que ele expressa com respeito a esse mesmo
conteúdo, a qual mostra-se no pensamento de que o falante ordena, afirma etc.
Ainda uma objeção central, tal como John
Searle a apresentou, é a de que, por ter caracterizado o ato rético por recurso
a relatos em oratio obliqua como “Ele disse que p”, Austin
contamina o ato locucionário com forças ilocucionárias, particularmente com a
força assertiva, caindo em contradição com considerações feitas por ele mesmo
em outras passagens.[16] Mas uma
diferente leitura do texto mostra que Austin pode não estar querendo dizer o
que aparenta. Ele escreve, com efeito, que o ato rético é o que relatamos em
asserções do tipo “Ele disse que p”, e isso pode ser muito naturalmente
entendido no sentido de que relatamos o ato ilocucionário (geralmente
assertivo) de alguém, como pretende Searle. Mas o ato rético que relatamos em
“Ele disse que p” também pode ser entendido como uma maneira de se dissociar
o conteúdo semântico de p da referência usual de p, segundo o método fregeano.
Nesse caso, ao asserir “Ele disse que p” de fato relatamos um ato
locucionário através da frase p, um ato que é o de “expressão de sentido e
referência”; mas p é uma “frase-que”, uma frase subordinada em discurso
indireto, a qual, segundo uma análise fregeana, refere-se primariamente ao seu
sentido (ao pensamento que veicula, seu conteúdo proposicional), e só
secundariamente à sua referência, perdendo nisso o seu caráter assertórico.[17] Parece-me
assim provável que Austin, leitor de Frege, tenha realmente tendido a conceber
o ato rético como o de expressão de um conteúdo proposicional, e não como o de
sua asserção, mas que possa ter falhado em exprimir isso de maneira inequívoca.
Searle sugeriu uma melhoria que desfaz a
confusão ou inadvertência de Austin com respeito à diferença entre ato
locucionário e asserção. Essa melhoria evita ambiguidades, e consiste na
substituição da noção de ato rético ou locucionário pelo que Searle chama de ato
proposicional: o ato de expressar uma proposição,[18] Disso
resulta seu esquema, que exponho lado a lado com o de Austin:
DIVISÕES DO ATO DE FALA:
Para Austin os atos
são: |
Para Searle os atos
são: |
LOCUCIONÁRIO: Fonético,
fático, rético (no lugar do constatativo) |
de proferimento (de palavras, de
frases) PROPOSICIONAL |
ILOCUCIONÁRIO (no lugar do performativo) |
ILOCUCIONÁRIO |
PERLOCUCIONÁRIO |
PERLOCUCIONÁRIO |
Num ato de
fala explícito da forma “Eu v (que) p” ao invés do ato rético, o que temos é a
ocorrência do componente proposicional p, que não expressa asserção alguma, mas
um simples ato proposicional.
Com isso Searle pretendeu libertar a teoria
dos atos de fala dos últimos resquícios da velha distinção entre constatativo e
performativo, que pareciam persistir atavicamente na indefinição da
caracterização austiniana do ato locucionário. Com o isolamento do componente
proposicional, mesmo os verbos especificadores de proferimentos constatativos,
como declaro, afirmo, comunico, descrevo etc., passam a expressar unicamente o
componente ilocucionário do ato de fala, não podendo ser confundidos com o ato
proposicional.
Searle admite com isso o primado de um
elemento proposicional, no sentido de considerá-lo geralmente presente nos atos
de fala, mas sem admitir um primado semelhante para a asserção. Não obstante,
uma reflexão acerca de sua solução me dá a ocasião de firmarmos em mais um
aspecto a readmissão do lugar fundamental do modus assertórico, já
evidenciada em minhas considerações a favor da dicotomia
constatativo/performativo e cuja relativização por Austin já foi falsamente
apontada como o resultado revolucionário da teoria dos atos de fala.
A tais resultados chegamos quando buscamos
esclarecer a natureza do suposto “ato proposicional”. Tal ato é, certamente, um
ato parcial, assim como o ato de girar a chave é parte do ato de dar partida ao
motor. A diferença é que, enquanto o ato de girar a chave pode ocorrer separado
do ato de dar partida, não parece que um ato proposicional chegue a fazer
sentido em inteira separação de possíveis atos assertóricos ou judicativos
completos ao qual possa pertencer, o que lança dúvidas mesmo sobre a
conveniência de o chamarmos de ato. Como notou Peter Geach, “possivelmente um
pensamento é assertórico em seu caráter, a menos que ele perca esse
caráter ao ocorrer como elemento em um pensamento mais complicado”.[19] Isso parece
ser geralmente válido, não só com relação aos proferimentos constatativos, mas,
como será demonstrado, em certo sentido mesmo com respeito a aspectos
implícitos dos performativos.
Com relação aos proferimentos constatativos,
normalmente, quando temos um conteúdo enunciativo (ato proposicional), ou ele
vem diretamente asserido, ou é mencionado no interior de alguma asserção. Isso
torna-se claro se examinarmos os próprios exemplos de Searle. O primeiro deles
é a asserção “Sam fuma”, onde o ato assertórico e o ato proposicional
coincidem. O segundo exemplo é: “‘Sam fuma’ é um enunciado”, onde o conteúdo
enunciativo ‘que Sam fuma’ é mencionado no interior de uma asserção
metalinguística. Ainda outro exemplo é “Se Sam fuma, ele terá a sua vida
abreviada”, onde a asserção é sobre disposições do organismo de Sam, podendo
ser substituída por “(Afirmo que) Sam possui disposições tais que, se...”.
Algo próximo a isso pode ser dito acerca do
papel de conteúdos enunciativos (ou de atos proposicionais) no interior de
proferimentos classificados como performativos. Considere-se os exemplos “Sam
fuma?” e “Sam: peço que não fumes!” Aqui os conteúdos enunciativos não
asseridos. Eles não se encontram, obviamente, no interior de uma asserção, pois
performativos não possuem valor-verdade. Mas isso não quer dizer que o conteúdo
enunciativo não esteja, ainda assim, sendo utilizado no âmbito da realização de
juízos correspondentes a asserções não explicitadas: como já vimos, um
performativo só é efetivamente compreendido se o ouvinte puder identificar a
situação, o falante, a si mesmo, os conteúdos enunciativos envolvidos etc. O
ouvinte deve identificar certo conteúdo enunciativo em questão como aquilo que
o falante pretende que ele, como ouvinte, realize. Isso significa que o ouvinte,
no ato de compreender o proferimento, deve realizar mentalmente aquilo que se
explicita linguisticamente como uma conversão geralmente válida do proferimento
performativo para a terceira pessoa, onde este se transforma num constatativo,
atribuindo-lhe então pretensão de verdade. Para esclarecer: se o falante A
pergunta ao ouvinte B:
Sam fuma?
e B realmente
compreende o proferimento, então B deve apreender simultaneamente a verdade do
que exprime a frase assertiva:
A pergunta a
B: “Sam fuma?”,
na qual vem
mencionado o conteúdo enunciativo da pergunta. No segundo exemplo, no
proferimento “Sam: peço que não fumes!”, Sam deve apreender como verdadeira a
asserção “A pede a Sam que este não fume”. Algo assim vale também para os
falantes: também o falante A deve, sabendo o que faz, saber que “A pergunta a
B: ‘Sam fuma’?”, por exemplo, é um enunciado verdadeiro, para poder,
concomitantemente ao proferimento, intencionar a realização da ação informativa
subsidiária de tornar isso também consciente ao ouvinte.
Assim, mesmo entre os performativos, o
conteúdo enunciativo (ato proposicional) só tem lugar se implicar em um ato
assertivo que o contém: o proferimento no qual ocorre o conteúdo enunciativo é
compreendido como implicando uma asserção que o contém, nele se vendo a
manifestação não explicitada do juízo correspondente, a sua asserção implícita.
Aliás, é precisamente a possibilidade de semelhantes tomadas de consciência da
parte do ouvinte ser o que explica por que não soa incorreto dizer que também
com os performativos nós comunicamos algo. Pois comunicar é também informar. Em
performativos onde isso não se dá, como o “Abre-te Sésamo” dito por Ali-Babá,
recusamo-nos a admitir que algo foi realmente comunicado.
Uma possível objeção seria a de que semelhantes
asserções, por não virem linguisticamente explicitadas no proferimento, sendo
apenas implicadas por ele, não seriam propriamente atos. Mas a isso pode
ser respondido que um conceito tão estrito de ato não pode ser adotado em uma
teoria dos atos totais de fala. Se o adotarmos, não poderemos admitir nem atos
de fala implícitos nem indiretos. E a objeção deverá estender-se também aos
próprios atos proposicionais, quando esses não vêm linguisticamente
explicitados, incluindo-se entre aquilo que a compreensão do proferimento por
parte dos interlocutores implica. Se admitimos que os proferimentos geralmente
contêm atos proposicionais, então devemos admitir que eles contêm, de modo
semelhante, as referidas manifestações assertóricas implícitas.
Essa conclusão serve para reforçar o que já
foi sugerido. Uma dimensão constatativa de ações de finalidade informativa deve
ter lugar em todas as ações comunicativas completas, sendo a satisfação de suas
condições de verdade tematizada nos proferimentos constatativos e
desconsiderada, ainda que presente, no entendimento dos proferimentos
performativos.
Quanto à noção de ato ilocucionário,
trata-se do que Austin chamou de ações realizadas “ao” se dizer algo,
caracterizando-se pela força ilocucionária nelas contida, visando um efeito
ilocucionário convencionalmente determinado, e pressupondo, para sua
ocorrência, um ato locucionário “de” dizer. A noção de ato ilocucionário não
pode ser restringida à efetivação do que denominamos força realizativa,
relativa ao cumprimento das condições para a concretização não-informativamente
auferida de um estado de coisas, pois a força ilocucionária diz respeito a
convenções para o estabelecimento de relações interpessoais, abrangendo desse
modo tanto forças realizativas quanto assertóricas. Como “força interativa”, a
força ilocucionária deve abranger então elementos convencionais de interação
comuns às duas classes (a) e (b) de condições.
Teorias podem, é claro, dividir a linguagem
sob os mais diversos pontos de vista; mas do ponto de vista aqui considerado, a
noção de força ilocucionária é insuficientemente perspícua para dar conta da
natureza própria das forças realizativas, posto que reduz a tese de que dizer é
fazer ao truísmo elementar de que dizer é estabelecer relações interativas.
[1]
J. L. Austin: How to do Things with Words, Cambridge: Cambridge
University Press, 1975 (1962), cap. I e segs. Um resumo da teoria é apresentado na
conferência radiofônica reproduzida em “Performative utterances”, in: J. L.
Austin, Philosophical Papers, Oxford: Oxford University Press, 1979.
[2]
Cf. J. L. Austin: How to Do Things with Words, particularmente o
capítulo XI.
[3] J. L. Austin: How to do Things with
Words, p. 65. Austin
apresenta também exemplos curiosos, como “I bet him (every morning) six pense
that it will rain” e “On page 49 I protest against the verdict” (p. 64), que
são proferimentos constatativos com verbos tipicamente performativos na
primeira pessoa.
[4] Cf. J. L. Austin,
p. 143.
[5] Ludwig
Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, sec. 4.022
[6] Ernst Tugendhat: Vorlesungen
zur Einfiihrung in die sprachanalytische Philosophie, Suhrkamp: Frankfurt, 1975,
p. 512.
[7] Gottlob Frege: “Der
Gedanke”, in G. Frege, Logische Untersuchungen, Göttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht, 1976, p. 35.
[8] Com isso dilui-se uma pseudo-questão, que é a de se saber se os
pensamentos são descobertos (Frege) ou criados (Popper): uns são descobertos,
outros criados, nos sentidos aludidos, os únicos que essas palavras podem
adquirir em um tal contexto.
[9] Ainda uma
possível fonte de confusões é que proferimentos constatativos diversos podem
assumir diferentes formas “de” e “ao” dizerem algo, satisfazendo diversamente
suas condições. Exemplos: se faço uma descrição (de uma paisagem, de uma sala),
trata-se geralmente de uma conjunção de declarações pretensamente verdadeiras;
se conto uma lenda, costumo manter pretensão de verdade relativa a um domínio
ficcional; se comunico algo, há geralmente envolvida uma expectativa com
respeito à espécie de fato que poderei expor etc.
[10] Compare
com J. L. Austin: “Performative-Constative”. Habermas sugere que Austin tentou
assimilar as condições de verdade às condições de correção de normas
interativas: “Parece-me que Austin confunde a pretensão de validade de verdade proposicional,
que deixa-se entender primariamente no sentido de uma correspondência de
enunciados com fatos, com a pretensão de validade de correção normativa, que de
modo algum se deixa esclarecer em uma teoria correspondencial”. Ver
“Was heisst Universalpragmatik?”, in: K. O. Apel (ed.), Sprachpragmatik und Philosophic, Frankfurt: Suhrkamp 1976, p. 236.
[11] J. L. Austin: How to
do Things with Words, pp. 145-6.
[12] Cf. Jürgen
Habermas: “Was heisst Universalpragmatik?”, p. 238 ss.
[13] Habermas:
“Was heisst Universalpragmatik?”, p. 23
[14] Cf. a classificação austiniana dos atos de fala no último capítulo de seu
livro.
[15] Um erro clássico consiste em se pensar que enunciados
acerca da experiência subjetiva são incorrigíveis. A experiência interna
sensorial e emocional é susceptível de erros, embora geralmente menos que
enunciados de observação direta. O seguinte exemplo de erro sensorial foi apresentado
por Feyerabend: “Então sonhei certa noite que estava tendo uma sensação muito
agradável em minha perna direita. A sensação tornou-se mais forte e comecei a
acordar. Ela se tornou ainda mais forte, e enquanto eu acordava percebi que
havia sido todo o tempo uma intensa dor. A própria sensação tornou-me claro que
durante todo o tempo eu havia sentido uma dor profunda, a qual eu erroneamente
havia tomado por um sentimento agradável”. (Paul Feyerabend: Zeitverschwendung,
Suhrkamp: Frankfurt 1995, p. 159). Pode-se contra-argumentar que o que importa
é a impressão da sensação agradável, ainda que falsa; mas esse contra-argumento
vale tanto quanto o de dizer que o que importa na percepção de um objeto
externo não é o objeto percebido, mas a impressão do objeto percebido, ainda
que falsa.
[16] J. R. Searle: “Austin
on locutionary and illocutionary acts”, in: Philosophical
Review, 1968, pp. 411-12.
[17] Cf. J. L. Austin:
How to Do Things with Words, p. 96. Austin toma de empréstimo
idéias e vocabulário fregeanos não só na definição de ato rético como ato de
emissão de construções vocabulares com certo sentido e referência, mas logo em
seguida a essa definição, quando ele faz uso de recursos fregeanos para
diferenciar o ato rético do fonético: “He said: ‘The cat is on the mat’”
[estando em discurso direto] reports a phatic act, whereas “He said that
the cat was on the mat” [que está em discurso indireto] reports a rhetic act.
(...)” (p. 95). Ora, isso parece paralelo à observação fregeana de que no
discurso direto usamos aspas para referir-nos às palavras de outrem, enquanto
no discurso indireto usamos a “frase-que” subordinada para referir-nos ao
pensamento (conteúdo enunciativo), sem com isso asseri-lo. (G. Frege: “Über Sinn
und Bedeutung”, pp. 28, 36-37, paginação original.)
[19] P.
Geach: “Assertions”, in: P. T. Geach, Logic Matters, Oxford: Oxford
University Press. 1972, p. 262.
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