RESOLVENDO O PROBLEMA HUMIANO DA INDUÇÃO
Gostaria de discutir aqui o aparentemente insolúvel problema da justificação da indução introduzido por David Hume. Para tal quero começar expondo a famosa crítica humiana à possibilidade de fundamentação de nossas inferências indutivas. Em seguida quero considerar algumas das mais conhecidas respostas a Hume, mostrando que nenhuma delas é muito plausível. Finalmente, quero propor em traços muito gerais uma solução do problema que me parece ser a única realmente viável.
O argumento Humiano
Quero começar
reconstruindo brevemente o argumento de Hume.[1] Ele
apresentou o problema por meio de uma crítica à necessidade causal, mas na
reconstrução que se segue eu desassocio o argumento anti-indutivista de Hume
dessa sua crítica, de maneira a tornar mais claro o que nos interessa. Segundo
Hume, nossas inferências indutivas, isto é, aquelas que são ampliativas de
nosso conhecimento, indo do observado para o não observado, requerem princípios metafísicos de regularidade
ou uniformidade da natureza que as garantam.[2] Embora a
indução possa ser não só do passado para o futuro, mas também do futuro para o
passado e de uma região espacial para outra, no presente ou não, por razões de
simplicidade me restringirei aqui ao primeiro caso, cujo princípio de
uniformidade pode ser enunciado como:
PF: o
futuro será semelhante ao passado.
Se esse
princípio for verdadeiro, ele garantirá as inferências indutivas do passado
para o futuro. Considere o seguinte exemplo muito simples de justificação de um
argumento indutivo pela introdução de PF como primeira premissa:
1 O futuro será semelhante ao
passado (PF).
2 O sol sempre nasceu a cada dia.
3 Portanto: o sol nascerá
amanhã.
Essa parece à
primeira vista uma maneira natural de justificar a inferência de que se o sol
sempre nasceu a cada dia ele também nascerá amanhã, uma inferência que também
poderia ser estendida na forma da generalização “O sol sempre nascerá”. Aqui
começa a se delinear o problema da indução. Ele se inicia com a constatação de
que a primeira premissa do argumento, a formulação de PF, não é nenhuma relação
de ideias (Hume) ou verdade da razão (Leibniz), caracterizada pelo caráter
contraditório ou inconsistente de sua negação, ou seja, não é nenhuma
proposição que possa ser chamada de analítica (Kant). É perfeitamente
imaginável, escreve Hume, que o futuro se torne muito diverso do passado, por
exemplo, que árvores floresçam no inverno e que a neve queime como fogo.[3] Mesmo assim
(embora Hume não tenha exposto dessa forma) parece que podemos ganhar a
convicção de que o futuro será semelhante ao passado com base em nossa
experiência dos futuros que já passaram, os quais foram semelhantes aos seus
próprios passados. Eis a inferência que parece justificar PF:
1 Os futuros já passados sempre
foram semelhantes aos seus próprios passados.
2 Portanto: o futuro será
semelhante ao passado.
O problema
todo é que essa é uma inferência indutiva.
Ou seja: para justificar a indução recorremos a PF, o princípio de que o futuro
será semelhante ao passado, e para justificar PF recorremos outra vez à
indução. A intentada justificação da indução demonstra-se assim circular, posto
que ela depende de um princípio que acaba ele próprio por depender da indução
para ser firmado.
A conclusão humiana é a de que não há
justificação racional possível para a indução, não havendo, portanto,
justificação racional, nem para as expectativas criadas pelas leis da ciência
empírica, nem sequer para as nossas próprias expectativas cotidianas de senso
comum, posto que ambas se baseiam claramente na indução. É verdade que
possuímos uma disposição muito forte para crer em nossas inferências indutivas.
Mas para Hume essa disposição não tem nenhuma base racional, devendo-se somente
à nossa constituição psicológica. Somos instintivamente dispostos a adquirir
certos hábitos produtores de expectativas indutivas, que uma vez formados nos
fazem agir de modo semelhante ao das mariposas, que são por natureza dispostas
a voarem sempre em direção à luz. Essa é uma conclusão extremamente cética, e
não é sem razão que só uns poucos filósofos acompanharam Hume nesse ponto. A
maioria pensa que algo deve estar errado em algum lugar.
Para melhor situar o leitor no problema,
quero a seguir considerar brevemente algumas dessas reações.
Breve sumário das respostas mais
influentes
1. Rejeição do problema. A reação mais radical consiste em aceitar
a conclusão cética de Hume. Karl Popper esteve entre os poucos que o fizeram.[4] Para ele a indução não existe. Mesmo assim a ciência continua de pé,
pois para ele a ciência não se baseia na indução. De acordo com Popper, a
ciência se baseia na criação de novas teorias, tão imaginativas quanto ousadas,
que são admitidas como verdadeiras na medida em que resistem aos testes
empíricos potencialmente capazes de falseá-las.[5]
Essa resposta contém uma
dificuldade que foi notada por muitos críticos de Popper, nomeadamente, a de
que ela recorre sub-repticiamente à indução.[6] Afinal, que razão podemos ter, por exemplo, para acreditarmos que uma
teoria que tem resistido a testes refutadores no passado é mais bem
corroborada, ou seja, mais confiável do que outra teoria qualquer –
considerando o ilimitado número de teorias competitivas que podem ser criadas e
que ainda não passaram por testes refutadores – se não com base na indução?
Mesmo que se encontre uma estratégia para contornar essa objeção, há uma outra
ainda pior: como podemos saber que uma teoria que resistiu a testes refutadores
no passado continuará resistindo a exatamente os mesmos testes no futuro?
Parece que sem admitirmos um princípio da indução, não temos maior razão para
confiar mais em nossas teorias bem sucedidas do que em quaisquer outras,
inclusive as que já foram refutadas no passado!
2. Vindicação pragmática. Uma tentativa talvez mais promissora de
lidar com o problema da indução seria a justificação pragmática. Ela segue o
argumento humiano até o ponto onde fica estabelecido que não há meio de
justificar dedutivamente ou indutivamente a indução. Mas sugere uma resposta
pragmática.
Hans Reichenbach foi quem desenvolveu uma
vindicação pragmática particularmente engenhosa.[7] Ele parte da
ideia de que devemos tratar a indução, não como uma inferência visando o
estabelecimento de crenças, mas como uma aposta feita em uma situação na
qual não temos outra opção senão apostar. Sua justificação da indução lembra a
aposta de Pascal na existência de Deus: “a razão não vos pode ajudar, mas vale
apostar; pois vencendo ganhareis tudo, e perdendo nada mais tereis a perder”.
De uma forma algo simplificada, eis o raciocínio de Reichenbach.[8] A natureza é
uniforme ou não é. Suponhamos que ela seja uniforme. Nesse caso, o procedimento
indutivo terá êxito. Já outro procedimento qualquer, por exemplo, o de consulta
à bola de cristal, poderá ter ou não ter êxito. Assim sendo, um ponto para o
procedimento indutivo. Imagine agora que a natureza não seja uniforme. Nesse
caso, procedimento algum poderá ter êxito. Logo, vale mais a pena apostarmos no
procedimento indutivo.
O argumento foi resumido por Brian Skyrms da
seguinte maneira:
1) Ou a natureza é uniforme, ou
não é.
2) Se a natureza é uniforme, o
procedimento indutivo terá êxito.
3) Se a natureza não é uniforme,
nenhum procedimento terá êxito.
4) Logo: se algum procedimento
pode ter êxito, o procedimento indutivo terá êxito.
Skyrms nota
que embora esse argumento seja dedutivamente válido, podemos questionar se a
terceira premissa é verdadeira. Além da indução há outros procedimentos de
previsão que podem ser alternativamente aventados, como o método de se prever o
futuro consultando uma bola de cristal ou lendo folhas de chá.
Contudo, Reichenbach tem um bom argumento a
favor da terceira premissa. Ele imagina que na tentativa de se orientar em um
mundo completamente caótico, um procedimento qualquer, digamos, o método de
consulta à bola de cristal, se demonstre bem-sucedido. Ora, se esse método se
revela satisfatório e a partir de premissas verdadeiras é capaz de probabilizar
as conclusões, acabaremos por concluir que se ele mereceu crédito no passado,
ele deve merecer crédito também no futuro, o que é uma inferência tipicamente
indutiva. Assim, o sucesso do método da bola de cristal vindica o método indutivo, mostrando que existe realmente uma
uniformidade importante na natureza. Generalizando: se algum procedimento der
certo, o procedimento indutivo será corroborado; logo, se não temos outra opção
senão apostar, é racional apostarmos no procedimento indutivo.
A objeção fundamental à justificação
pragmática da indução é externa: ela faz concessões demasiadas ao ceticismo.
Segundo a justificação de Reichenbach, não podemos realmente saber coisa
alguma através da indução; o que chamamos de crenças indutivas são na verdade
meras apostas, ainda mais arriscadas que as feitas em uma mesa de jogo, que ao
menos tem a sua probabilidade garantida. Somos, no dizer do próprio
Reichenbach, como cegos perdidos em uma floresta, tateando o que parece ser um
caminho, na esperança de sermos por ele conduzidos para fora dela... É difícil
imaginar uma situação cética mais desesperadora.
3. Justificações
indutivistas. Passemos agora as assim chamadas tentativas indutivistas de
justificar a indução. Uma resposta natural, quando nos perguntam como
justificar que os argumentos indutivos que foram até agora bem-sucedidos
continuarão a ser bem sucedidos no futuro, parece ser: “Porque eles sempre
foram bem sucedidos no passado”. Justificações indutivistas da indução, como a
proposta por Max Black[9] e por F. L.
Will[10], tentaram
mostrar que semelhante resposta não constitui uma petição de princípio. Para
introduzir a ideia, comecemos formulando como princípio da indução a seguinte
versão epistêmica (ao invés de metafísica) subjetiva de PF:
PI: As regularidades observadas no passado
tenderão a se repetir no futuro.
Podemos
justificar PI pelo seguinte argumento:
1
No passado as regularidades já observadas
sempre tenderam a se repetir.
2
Logo PI: as regularidades observadas no passado tenderão a se repetir
no futuro.
(PI’, 1)
Note-se que
para passarmos da premissa para conclusão nós precisamos aplicar o mesmo PI, na
forma da regra de inferência indutiva PI’, à premissa, o que parece tornar a
inferência circular. Contudo, o defensor da solução indutivista poderá aqui
responder que na função de PI’, PI funciona como um princípio de inferência de
segundo nível, o que lhe dá um diferente status justificacional. Ele reconhece
que PI’ ainda carece de justificação; mas esse princípio ainda poderá ser
justificado por meio de um argumento idêntico em um terceiro nível, o de PI’’,
e assim sucessivamente. Como não há um limite superior nessa hierarquia de
níveis, a justificação não é circular; e como para cada nível pode ser
encontrada uma justificação, o defensor da justificação indutivista é levado a
concluir que ela existe para todos os níveis.
Não obstante, tem sido apontadas razões
aparentemente decisivas para a rejeição de uma solução indutivista do problema
humiano.[11] Uma primeira
delas é que outros sistemas, diversos do sistema da lógica indutiva e mesmo
opostos a ele, podem ser justificados de maneira similar. Esse é o caso de uma
suposta lógica contra-indutiva: uma lógica que afirma que as
regularidades não observadas do futuro serão diferentes das
regularidades já observadas no passado, de modo que cada sucesso da lógica
indutiva seria assegurado por um princípio da lógica contra-indutiva em nível
superior. Assim, se o passado tem sido semelhante ao seu futuro, poderemos usar
uma regra para dizer que esse fato evidencia que o futuro será diferente do
passado e assim por diante, aplicando sempre a mesma regra em nível superior.
Uma outra razão para se rejeitar a solução indutivista é que, requerendo um
número infinito de níveis de inferência, ela se torna impossível de ser completada,
de nada valendo na prática. Finalmente, não parece haver nenhuma razão para a
distinção epistêmica entre os diversos níveis: não parece lícito justificarmos
um argumento através de uma mera repetição desse mesmo argumento em um
nível superior. Parece que a pretensa justificação indutiva da indução lança
mão de uma forma artificiosa de raciocínio, que se fosse admitida nos
permitiria justificar praticamente qualquer coisa.
A verdade sobre a justificação indutiva da
indução parece resumir-se no seguinte. Nós por vezes realmente realizamos
justificações indutivas de procedimentos indutivos. É razoável que se diga que
certo método indutivo para a previsão do tempo será bem-sucedido no futuro
porque no passado ele sempre foi bem-sucedido. Mas o apelo ao sucesso passado
de um método indutivo é apenas o apelo a uma certa base indutiva calibradora
do procedimento no sentido de ser apropriada para o seu sucesso. Contudo, essa
calibragem só é possível se for ultimamente baseada em algum princípio da
indução mais fundamental, que como tal não é capaz de ser indutivamente
fundamentado.
4. Justificação
a priori: Outra maneira de se tentar justificar a indução consiste um tanto
paradoxalmente em conceber a inferência indutiva como possuindo a forma de um
raciocínio dedutivo cuja conclusão é probabilística, como fizemos ao expor o
dilema humiano.[12] Para tal
será mister utilizarmos como premissa um princípio indutivista como, digamos, a
seguinte variante mais técnica de PI:
PI*: Se o fenômeno X
tem sido sempre observado em certa associação com o fenômeno Y na proporção n%,
se X for observado no futuro ele tenderá a preservar a mesma associação com Y
em proporção similar.
Contudo,
como já foi notado, parece que em qualquer de suas formulações esse princípio
pode ser negado sem contradição, o que faz com que ele não possa ser
considerado uma verdade analítica ou conceitual. E se ele não é uma verdade
analítica, ele é um princípio sintético. Ora, ele não pode ser um princípio
sintético a posteriori, pois nesse caso nos defrontaremos com os
problemas da justificação indutivista já considerados. É aqui que surge o
espaço para a proposta de uma terceira via, que é a de se admitir princípios
indutivistas entendidos como possuindo natureza sintética a priori, ou seja, como proposições
informativas que não se originam da experiência.
O problema em torno dessa espécie de solução
é bem conhecido. É que se demandarmos que ela se torne inteiramente racional
parece que acabaremos sendo inevitavelmente forçados a aceitar que princípios
da indução devem ser tais que o mundo externo deva se conformar ao que eles
dizem, de modo a torná-los garantidos. Mas essa exigência kantiana de que o
mundo externo deva se comportar tal como nossa razão ou sistema conceitual
ordena, sempre me pareceu de uma arbitrariedade inaceitável e de fundo
ultimamente místico, pois parece demandar que alguém (um Deus pessoal) deva
ordenar que o mundo seja organizado de acordo com a nossa razão.
Há tentativas de se evadir do problema, como
os cinco postulados da indução de Russell, que seriam a melhor explicação
para não cairmos em um solipsismo que negue o conhecimento do mundo externo.
Exemplificando com o postulado da continuidade espaciotemporal nas linhas
causais: Se há uma conexão causal entre dois eventos não-contíguos, deve
haver elos causais intermediários entre eles.[13] Esse
postulado deve servir para negar a ação causal à distância. O problema é que
ele só pode ter sua aplicabilidade garantida se for interpretado como um juízo
sintéticos a priori. Afinal, não parece inconcebível um mundo possível no qual
só existam ações à distância, o que o tornaria falso. Ou seja: parece que
estamos outra vez impondo princípios ao mundo externo.
5. Tentativas de dissolução do problema. Ainda uma
alternativa foram as tentativas de dissolução do problema da indução por apelo
ao senso comum. Filósofos como A. J. Ayer, Paul Edwards e, mais influentemente,
P. F. Strawson, rejeitaram o problema da indução apresentando o que é chamado
de solução ou dissolução de senso comum do problema. Para Strawson, o problema
da indução é um pseudoproblema resultante de um uso equívoco de conceitos como
o de racionalidade e justificação.[14] Se
perguntarmos a uma pessoa por que ela se sente justificada em acreditar que o
sol nascerá amanhã, ela poderá responder simplesmente que é porque o sol sempre
nasceu a cada 24 horas, e nenhum de nós deixará de considerar tal justificação
perfeitamente racional. Assim, é parte do que entendemos por racionalidade a aceitação dos
procedimentos da lógica indutiva. Por conseguinte, não faz sentido querer
justificar a própria lógica indutiva, pois não se pode justificar a própria
fonte de nossas decisões racionais; não se pode encontrar razões para aquilo
que exerce um papel fundamentador de nossa racionalidade; não se pode rejeitar
a lógica indutiva sem se ser intuitivamente percebido como irracional. Além
disso, pensa Strawson, qualquer método de inferência se apoia no método
indutivo.
O problema se assemelha à questão: como
justificar racionalmente a lógica dedutiva? Não há resposta geral para essa
pergunta, posto que a lógica dedutiva exerce um papel fundamentador em nossa
racionalidade. Rejeitá-la seria irracional. Mas por que os filósofos geralmente
não exigem uma justificação para a lógica dedutiva, mas exigem-na para a lógica
indutiva? A resposta seria que eles estão na verdade procurando uma justificação
dedutiva para a indução. Quando o filósofo se pergunta pela justificação
da indução, ele está pensando em uma justificação dedutivamente conclusiva; e
quando ele busca uma razão para a indução, ele está pensando em uma razão
logicamente conclusiva. Mas a indução não pode satisfazer tais parâmetros,
simplesmente porque não é dedução: como já se notou, não se pode censurar um
gato por não se comportar direito em uma festa de cães...
Segundo Strawson, a confusão resulta de
assimilarmos a racionalidade ao sucesso. O procedimento indutivo
é racional, mas isso não significa que só por isso ele nos deva oferecer uma
garantia de sucesso; é perfeitamente possível que o mundo de repente se torne
caótico e que nossos procedimentos indutivos deixem de ser bem sucedidos. Mas
como racionalidade não implica em sucesso, o procedimento indutivo não deixa
por isso de ser racional, inclusive porque concluir que em um universo caótico
nossos procedimentos indutivos não devem funcionar é lançar mão de um
raciocínio indutivo de nível superior.
Um problema geralmente apontado nessa
tentativa de dissolver o problema da indução é que ela, supostamente recorrendo
ao senso comum e ao conceito de racionalidade por ele instituído, estabelece de
maneira a priori que é razoável
crer em uma conclusão para a qual há evidência indutiva. Mas se assim o
fizermos, parece que recairemos na justificação apriorista da indução, tendo de
admitir algum princípio da indução que funcione como uma espécie de juízo
sintético a priori a garantir a
indução. Strawson tentou evadir-se dessa espécie de dificuldade ao propor a
dissociação entre racionalidade e sucesso. Mas isso expõe sua solução a uma
objeção ainda mais destrutiva. Eis como podemos formulá-la: se o conceito de
racionalidade do senso comum não exige que a indução, para ser racional, seja
em alguma medida bem sucedida – o que já é bastante questionável – então tanto
pior para o conceito de racionalidade do senso comum. Afinal, desde Hume o que
tem interessado aos filósofos é uma justificação para o sucesso de nossas
inferências indutivas; mas é precisamente isso o que Strawson não nos consegue
oferecer.[15]
6. Tratamento estatístico da
indução humiana. Donald Williams foi um
filósofo que percebeu a necessidade de se objetar contra o ceticismo indutivo,
para ele paralisador da ação correta.[16] Ele partiu de uma análise de populações. Qualquer população, entendida
como classe de itens similares, deve possuir uma compleição de itens com certa
característica. Por exemplo, se a população for a dos pinguins, 100% dos itens
são pinguins, ~50% são do sexo masculino e ~14% deles são, digamos,
pinguins-imperadores. Ora, é um fato estatístico que qualquer amostra randômica
dessa população representa aproximadamente a mesma distribuição de itens do
todo. Em outras palavras, ela será representativa da população. Diz-se que a
compleição da maioria das amostras se assemelha à compleição da população como
um todo.
Essa constatação é base para o
chamado silogismo estatístico, que é um procedimento lógico. Considere o
seguinte caso:
Se todos os S são P e o item presente é S, então
ele deve ser P.
Se for abaixo de 100% teremos algo provável, por exemplo, se 10% dos
pinguins-imperadores tem mais de 18 anos, esse pinguim-imperador aqui presente
tem aproximadamente 10% de chances de ter mais de 18 anos. Nenhum problema com
isso.
Williams foi além disso: ele
decidiu aplicar tal ideia de forma reversa ao problema da indução. Se nos for dada uma amostra, poderemos inferir
indutivamente que a distribuição de itens da amostra provavelmente se aplicará
ao todo da população. Por exemplo, podemos generalizar sugerindo que não só 50%
dos pinguins da amostra são fêmeas, mas que isso vale para todos os pinguins no
presente e mesmo no futuro e no passado, exceto, é claro, se a amostra for
atípica. Em resumo: a população deve ter aproximadamente a compleição da
amostra conhecida. Essa é uma inferência indutiva provável, na qual se passa do
observado para o inobservado.
Como vemos, Williams tentou
assimilar a indução humiana (i.e., a que é aberta à objeção de Hume) à indução estatística. Mas o
problema é que apesar disso a primeira continua pressupondo a regularidade do
universo. Isso fica muito claro quando tentamos aplicar os resultados da
amostra do passado para o futuro. Sabemos que 100% dos pinguins não voam. Mas
podemos generalizar isso para os pinguins do futuro? Para Hume nada garante que
os pinguins não passem amanhã a voar em bandos, a menos que se pressuponha que
o futuro será como o passado, um conhecimento já obtido com base na indução.
Apelar para a probabilidade é, se pensarmos bem, um mau começo quando
percebemos que um certo grau
de probabilidade já vem sempre implícito no raciocínio indutivo.
Dessa breve discussão das
principais tentativas de dar conta do problema da indução, uma coisa é certa:
todas elas estão longe de serem bem sucedidas. Quando muito elas atingem
arestas do problema. Mesmo que sobre fundamentos tão pobres sejam desenvolvidas
tentativas mais sofisticadas, elas estarão fadadas ao insucesso. Em
contraposição, a estratégia que desenvolverei a seguir representa um novo ponto
de partida que tem a vantagem de conduzir-nos ao fundo do problema. Como é a
única alternativa realmente verossímil, podemos assumi-la como a alternativa
correta.
Proposta de uma solução
analítico-conceitual
A estratégia
que acredito resolver de vez, em seus princípios, o problema humiano da indução,
se aproxima da estratégia dedutivista por admitir princípios indutivistas a priori; não se trata, contudo, de algo
com a força de princípios sintéticos a priori. Trata-se de princípios
analítico-conceituais, no sentido de que eles são ditos verdadeiros por força
do que querem dizer, melhor dizendo, por força da combinação dos significados
de seus constituintes semânticos, não admitindo serem negados sem contradição
ou incoerência com as regras da linguagem usual, sejam elas do senso comum ou
da ciência.[17] Ela também
preserva algo da solução de senso comum, visto que transforma muito do
argumento humiano em pseudoproblema. Quero primeiro expor a minha tese geral e
depois mostrar como ela se aplicaria a um princípio indutivista escolhido.
I
A tese geral
possui um leve sabor kantiano, embora sem o indigesto condimento do sintético a priori. Trata-se da ideia de que faz
parte de nossa própria capacidade de conceber um mundo (universo,
natureza) qualquer, e mesmo do conceito da experiência de um mundo qualquer,
que o mundo ao qual os conceitos que lhe sejam constitutivos venham a se
aplicar seja aberto à indução. Quero defender que essa é uma verdade conceitual
(analítica e obtida a priori), do mesmo modo que é uma verdade (analítica e
obtida a priori) pertencente ao nosso conceito de mundo externo que qualquer
mundo externo ao qual esse conceito se aplique possa ser em alguma medida
apresentado à percepção sensível.
Definindo um mundo possível como sendo um
mundo como o nosso, mas em maior ou menor medida diverso,[18] o argumento
pode ser mais detidamente formulado como se segue:
Um mundo só pode existir se
ele for ao menos concebível. Mas não se pode conceber um mundo sem
nenhum grau de uniformidade, de regularidade. Ora, como só é possível
experienciar o que se pode conceber, então não se pode experienciar nenhum
mundo completamente destituído de uniformidade ou regularidade. Mas como a
existência de regularidade ou uniformidade é o que basta para que algum procedimento indutivo seja
aplicável, então não é possível haver nenhum mundo concebível nem
experienciável que não seja aberto à indução.
É, pois, uma
verdade conceitual que se um mundo nos for dado então algum procedimento
indutivo deverá ser aplicável a ele. (Já um mundo em princípio
não-experienciável, inconcebível, é incapaz de se qualificar como tal.)
A objeção a essa tese é esperada: o que
autoriza alguém a supor que não possa existir um mundo caótico, um mundo
destituído de qualquer regularidade e, portanto, fechado à indução? Afinal, a
hipótese de um mundo inacessível à indução tem sido tradicionalmente aceita.
Contudo, a generalizada crença nessa possibilidade tem sido em meu juízo um
grande erro, um erro cuja responsabilidade deve ser atribuída ao próprio David
Hume. Esse erro foi logo no início introduzido pelo fato de Hume ter misturado
o problema da indução com o da causalidade. Ele elegeu a regularidade causal
como foco de sua discussão sobre a indução e escolheu seus exemplos em
conformidade com isso, o que foi confusivo. No que se segue quero justificar
essa afirmação.
A regularidade causal é o que gostaria de
chamar de uma regularidade diacrônica,
qual seja, aquela na qual pensamos que um fenômeno dado vem regularmente
seguido por outro fenômeno diverso do primeiro, muitas vezes de uma forma bem
entrincheira (well entrenched) em nosso sistema de crenças[19]. Note-se,
ademais, que nem todas as regularidades diacrônicas são causais: depois da
noite vem sempre um novo dia, mas a noite não causa o dia. Contudo, essa é
também uma regularidade diacrônica. As regularidades diacrônicas constituem
aquilo que poderia ser chamado de o devir
do mundo.
É, porém, um fato que podemos conceber um
mundo sem um devir, sem regularidades diacrônicas, incluindo entre elas a
regularidade causal. Esse seria o caso de um mundo sem mudança, estático,
congelado. Ainda assim parece que ele poderia ser corretamente chamado de
mundo. Afinal, mundos sem regularidades diacrônicas são concebíveis e mesmo em
princípio cognoscíveis, embora a eles não sejam aplicáveis coisas como a
indução de leis causais. (Estou abstraindo disso uma interação causal entre um
mundo congelado e o sujeito epistêmico.) O problema com o foco argumentativo
humiano restrito à inferência indutiva causal, que é diacrônica, é que ele nos
desvia a atenção do fato de que um mundo empírico é igualmente constituído de regularidades sincrônicas, as quais,
tanto quanto as regularidades diacrônicas, só podem ser conhecidas através de
procedimentos indutivos. Mas o que são, afinal, essas regularidades
sincrônicas? Eu as defino como sendo (em um dado sistema de referências) as
supostas relações simultaneamente vigentes entre os fenômenos (tropos)
diversamente localizados no espaço, na medida em que elas perduram no tempo. Em
contraposição ao devir, chamo a isso de permanência. Esse é o caso das
relações que existem entre as faces de um cristal, para tomarmos um exemplo
distintivo. É a indução que deve justificar a persistência das relações
sincrônicas, fazendo-nos crer, por exemplo, que o cristal permanecerá
reconhecível como sendo o mesmo quando observado outras vezes no futuro. O
domínio das regularidades sincrônicas é extremamente amplo, dado que não só
qualquer objeto, mas qualquer propriedade complexa e qualquer estado de coisas
reconhecível possui relações constitutivas entre suas partes, relações essas
que devem perdurar enquanto o objeto, a propriedade ou o estado de coisas existirem.
A forma mais interessante de regularidade sincrônica é a que constitui aquilo
que chamamos de estrutura.
Regularidades sincrônicas são muitas vezes estruturas no sentido de possuírem
uma identidade funcional que perdura no tempo. Uma catedral gótica, com seus
arcos ogivais, seus grandes vitrais, seus adornos e estatuárias, pode servir de
exemplo ilustrativo do que é a sincronicidade estrutural. Mas uma pilha de
livros, embora constituindo uma regularidade sincrônica enquanto permanece a
mesma, não constitui o que tipicamente chamamos de uma estrutura. Um mundo
congelado só é um mundo porque, embora não possua regularidades diacrônicas,
possui regularidades sincrônicas, sendo esperado que ele possua alguma
estrutura. Por conseguinte, a indução é aplicável a essa estrutura, uma vez que
ela é sempre aplicável a regularidades sincrônicas, na previsão de sua
permanência no futuro. São as regularidades sincrônicas que tornam o mundo
congelado cognoscível.
Tentemos agora imaginar um mundo sem
regularidades sincrônicas nem diacrônicas, sem permanência nem devir. À
primeira vista parece que esse mundo minimalista pode ser ao menos ilustrado
quando pensamos nele como sendo constituído de repetições irregulares de um
único ponto luminoso, ou de um único som.[20] Contudo,
mesmo que o ponto luminoso ou o som ocorram irregularmente, eles precisarão
repetir-se alguma vez (enquanto o mundo durar), o que já demonstra ao menos a
regularidade diacrônica da repetição, donde a indução se aplica a tais mundos
minimalistas enquanto eles durarem. Mas o que dizer de um mundo absolutamente
destituído de ambas as espécies de regularidade, sem permanência nem devir – é
ele concebível? A resposta é clara: um mundo sem regularidade alguma não pode
ser realmente concebível, não sendo, portanto, acessível à experiência. Não
podemos pensar nenhum conjunto de elementos empíricos compatíveis sem lhe dar
alguma permanência ou devir. Mas se é assim, se um mundo sem regularidades é
algo inconcebível, considerando que a existência de regularidades é tudo o que
precisamos para que alguma inferência indutiva seja aplicável, então não é
possível que exista um mundo que não seja aberto à indução. Onde há um mundo
precisa haver alguma regularidade, e onde houver alguma regularidade, algum
acesso indutivo será logicamente possível. Conceber um mundo ao qual a indução
não se aplica redundaria, pois, em conceber um mundo sem regularidade de
nenhuma espécie, o que contradiz nosso próprio conceito de mundo.
Resumindo o que quis dizer: ao concentrar-se
na relação causal Hume nos induz a ignorar que o mundo também seja constituído
de regularidades sincrônicas, o que por sua vez nos leva a crer que possamos
conceber a existência de um mundo cujo devir seja destituído de regularidades
diacrônicas, no caso, um mundo inteiramente caótico e portanto inacessível à
inferência indutiva.[21] Quando
levamos em devida consideração ambas as espécies de regularidade às quais a
indução se aplica, percebemos que um mundo inteiramente caótico, sem qualquer
regularidade, é inconcebível e por conseguinte impossível, dado que qualquer
mundo possível é feito de suas regularidades, sendo por isso intrinsecamente
aberto à indução.
Em uma
introdução elementar à filosofia encontro a mesma ideia formulada em termos do
que a linguagem é capaz de dizer, o que sugere que o verdadeiro insight filosófico possa estar sendo
inibido:
Seria impossível dizer verdadeiramente que o universo é um
caos, pois se o universo fosse genuinamente caótico não poderia haver linguagem
para dizê-lo. A linguagem depende de coisas e qualidades que tenham suficiente
persistência no tempo para serem identificadas pelas palavras e essa mesma
persistência é uma forma de uniformidade.[22]
Essa
observação não é isolada. Ela condensa o conteúdo de um breve artigo do filósofo
australiano Keith Campbell.[23] Segundo esse
filósofo, para que possamos experienciar cognitivamente um mundo – uma
realidade objetivamente estruturada – é preciso que estejamos sempre
reaplicando conceitos empíricos, os quais, por sua vez, para serem fixados,
aprendidos e usados, exigem uma reidentificação
de suas designações como sendo idênticas[24]; ora, isso
só é possível se houver um grau de uniformidade no mundo que seja suficiente
para permitir a reidentificação. Com efeito, se o mundo pudesse perder
totalmente as suas regularidades (não só as diacrônicas, mas no caso também as
sincrônicas) então nenhum conceito mais se reaplicaria, a experiência do mundo
cessaria e ele deixaria, para nós, de existir. Tudo isso apenas corrobora
aquilo que já foi antes sugerido.
Ainda uma razão para que se tenda a admitir
a possibilidade de um mundo cujo grau de irregularidade impossibilite a indução
é a negligência do fato de que a indução tem uma natureza autoajustável, ou seja: a
aplicação do procedimento indutivo deve ser sempre calibrável em conformidade
com a natureza daquilo a que ele se aplica. A exigência de base indutiva, de
uma repetida e variada experimentação indutiva, pode ser tornada sempre maior,
quanto mais improvável for a uniformidade esperada; por conseguinte, mesmo um
mundo com uniformidade mínima sempre acabaria possibilitando o sucesso
indutivo, uma vez que exigiria uma busca indutiva maximizada.[25] Ou seja:
basta haver alguma uniformidade para que alguma exigência de base indutiva nos
permita idealmente encontrá-la. Somente para ilustrar, imagine que em um mundo
possível próximo, um time de zoólogos esteja à procura de camelos selvagens no
deserto de Gobi. Esse deserto é imenso, incluindo o norte da China e a inteira
Mongólia. Ademais, esses tímidos camelos, se é que nesse mundo ainda existem,
são muito dificilmente encontráveis. Os zoólogos terão de investigar
visualmente, com binóculos, uma vasta extensão de deserto, subindo e descendo
dunas até encontrarem com alguma sorte esse quase mítico camelo. Aqui a pressão
da calibração indutiva deve ser aumentada.
As considerações gerais feitas até agora
sugerem o seguinte entremeado de inferências conceituais:
efetiva
experiência cognitivo-conceitual do mundo ↔ aplicabilidade de conceitos empíricos
↔ aplicabilidade de procedimentos indutivos ↔ existência de um mundo
intrinsecamente possuidor de regularidades.
II
Para mostrar
como a tese recém-apresentada poderia ser aplicada à reformulação dos princípios
da uniformidade ou indução, gostaria de reconsiderar PF em algum detalhe. Seria
possível transformá-lo em uma verdade analítico-conceitual? Como já notei,
entendo uma proposição analítico-conceitual como sendo aquela cuja verdade
depende apenas da combinação de seus constituintes semânticos.[26] Essa verdade
caracteriza-se por não ser ampliadora de nosso conhecimento (opostamente às
proposições sintéticas), possuindo como critério de identificação a
característica de sua negação contraditória, incoerente ou impossível de ser
concebida.
A primeira questão que se coloca é se PF,
afirmando que o futuro será semelhante ao passado, é capaz de satisfazer essa
caracterização usual de analiticidade. Hume pensava que não. Como já vimos, ele
considera que podemos conceber que a neve passe a queimar como fogo e que as
árvores passem a florescer no inverno... Mas esses exemplos de Hume são tão
sugestivos quanto ilusórios. Pois como uma multidão de outras regularidades,
principalmente as sincrônicas, continuará permanecendo, esses exemplos estão
longe de tornar o futuro tão dessemelhante do passado a ponto de invalidar
procedimentos indutivos. Não obstante, ainda assim é claramente concebível que
se algum cataclismo cósmico imprevisível modificar profundamente o futuro, de
modo a torná-lo diferente do passado, isso nos demonstra que PF é
concebivelmente negável e portanto não-analítico. Contudo, podemos refazer PF.
Considere a seguinte reformulação:
PF*: O futuro
deverá ter alguma semelhança com o seu passado.
Diversamente
de PF, PF* pode ser claramente entendido como expressando uma verdade
analítico-conceitual. Afinal, PF* parece satisfazer a caracterização de
analiticidade acima apresentada. Eis como isso pode ser evidenciado: Entendendo
a noção de futuro em termos de sucessivos conjuntos de regularidades
constitutivos do mundo a ser dado em tempos posteriores ao presente, e
esclarecendo o conceito de passado em termos de sucessivos conjuntos de
regularidades em tempos anteriores ao presente, podemos dizer o seguinte:
pertence ao conceito de futuro que ele seja o futuro do seu próprio passado.
Ele não pode ser o futuro de outro passado qualquer. Mas se um futuro não
tivesse nada a ver com o seu passado, não poderíamos sequer reconhecê-lo como
sendo o futuro de seu próprio passado, pois ele poderia ser
então o futuro de um outro passado qualquer. Ou seja: o futuro F do mundo atual m só pode ser o futuro de m,
ou seja, Fm, que só pode ser o futuro
do passado de m, ou seja, Pm; ele não pode ser o futuro dos outros
inúmeros mundos possíveis m1, m2, m3... que
tiveram como passados as sucessões Pm1,
Pm2, Pm3... É preciso, pois, que haja algo que identifique Fm como sendo o futuro de Pm. Ora, esse algo só pode ser alguma
margem de semelhança. Ou seja: a noção de futuro deve se encontrar de alguma
forma conceitualmente ligada à noção de seu passado como lhe sendo em alguma
medida, de algum modo, semelhante a ele, ao menos na medida e no modo que
permitam a associação temporal de Fm com Pm. Eis porque PF* satisfaz nossa
caracterização de analiticidade: negá-lo significa tornar as palavras ‘futuro’
e ‘passado’ sem sentido ao tornar impossível relacioná-las da maneira como é
convencionado fazê-lo: se nego PF* então parece claro que o futuro não precisa
mais se distinguir do seu passado como sendo o futuro de seu passado. Mais
além, PF* não parece ampliar nosso conhecimento. PF* satisfaz o critério de
identificação de proposições analíticas, pois não somos capazes de negá-lo
coerentemente; não somos capazes de pensar que o futuro não possua qualquer
semelhança com o seu passado sem inconsistência.
Com efeito, parece que toda vez que, na
tentativa de rejeitar PF*, concebemos uma dessemelhança tão grande entre futuro
e passado que invalide todos os procedimentos indutivos, falhamos em conceber
qualquer estrutura objetiva e mesmo qualquer mundo possível. Esse ponto pode
ser facilmente ilustrado através de exemplos. Imagine, em uma tentativa de
conceber um futuro completamente diverso de seu passado, uma “completa
transformação do mundo” como a narrada no texto bíblico do Apocalipse. É difícil imaginar alterações mais drásticas do que as
que foram aí descritas. Afinal, trata-se da narração do próprio fim do mundo
por nós conhecido! Mas é um erro pensar que a destruição de nosso mundo
descrita no Apocalipse implicaria em uma negação de PF*, posto que a ideia de
uma “completa transformação” não é aqui entendida em um sentido literal. Se
examinarmos o texto mais de perto veremos que a grande maioria das coisas com
as quais estamos familiarizados – ou seja, as regularidades sincrônicas básicas
e mesmo a maioria das regularidades diacrônicas – continua inalterada após a
transformação, embora elas tenham sido bizarramente combinadas, como na passagem
bíblica descrevendo os gafanhotos enviados pelo quinto anjo:
O aspecto desses gafanhotos
era o de cavalos aparelhados para a guerra. Nas suas cabeças havia uma espécie
de coroa com reflexos dourados. Seus rostos eram como os de homem. Seus cabelos
como os de mulher e seus dentes como os dentes de leão. Seus tórax pareciam
envoltos em ferro e o ruído de suas asas era como o ruído de carros de muitos
cavalos correndo para a guerra. Tinham caudas semelhantes à do escorpião, com
ferrões e o poder de afligir os homens por cinco meses.[27]
Ora, nada há
nesse relato que ponha PF* em questão. Aliás, um exame acurado do exemplo
demonstra que ele sequer põe em questão um entendimento pouco rigoroso de PF!
Pois embora esses gafanhotos bíblicos se nos afigurem delirantemente estranhos,
eles são constituídos por combinações de partes com as quais já estamos muito
bem familiarizados – como cabelos, mulheres, homens, dentes, escorpiões,
ferrões – as quais incluem internamente e externamente uma vasta soma de
regularidades, de associações estruturais (como as que formam gafanhotos, as
que formam coroas, as que formam rostos de pessoas...) e sequenciais (como a
relação causal das coroas com seus reflexos dourados, da ferroada do escorpião
com os efeitos do seu veneno nos seres humanos por cinco meses, do bater das
asas com os ruídos que elas produzem...), que permanecem preservadas e
indutivamente acessíveis, a despeito das alterações. Com efeito, não fosse
assim o Apocalipse não chegaria a ser
compreensível, pensável, concebível, nem passível de descrição linguística, e o
que não é nada disso é também impossível de ser experienciado. O relato ilustra
a ideia já mencionada de que o mundo futuro precisa, ao menos na medida em que
ele se encontre suficientemente próximo do presente, continuar suficientemente
semelhante ao seu passado para que se deixe conceber como o futuro desse mesmo
passado, ou seja, ele deve continuar suficientemente semelhante ao seu passado
para caucionar a aplicação de procedimentos indutivos no reconhecimento de sua
continuidade como mundo.
Mas o que dizer de um futuro imensamente
posterior ao presente? Ele não poderia ser totalmente diferente do passado?
Parece que sim. Se interpretássemos PF* como podendo se referir, não ao futuro
como um todo a partir do presente, mas a um futuro muito remotamente distante,
destacando-o de todos aqueles que lhe antecederam, então parece claro que PF*
poderia ser falseado, pois não é inconcebível que uma sequência contínua de
pequenas alterações nas regularidades possa, no curso de um tempo muito longo,
dar lugar a regularidades completamente
diversas. Mas não é nesse sentido que pretendi entender PF*, pois quando o
apresentei já estava implícito que ele era continuação de seu próprio passado,
incluindo nisso, pelo menos, o futuro que vem imediatamente após o presente.
Essa última consideração nos faz recordar
uma outra verdade conceitual, já constatável na relação considerada por PF*. É
que quanto mais nos aproximamos do ponto de junção entre o futuro e o
passado, ou seja, do presente, maior deve ser a semelhança entre ambos,
tornando-se futuro e passado idênticos em seu limite, que é o presente.[28] Esse ponto
pode ser aproximado quando nos recordamos da análise aristotélica do conceito
de mudança como pressupondo a permanência
de um algo que continua idêntico e que sob forma contínua ganha ou perde.[29] A sugestão é
a de que toda mudança pressupõe alguma base de permanência, ou seja, alguma
regularidade sincrônica, o que não só permite a inferência indutiva, mas a
requer para ser conhecida.
Mas isso não é tudo. Há uma constatação
relevante que ainda precisa ser feita, agora sobre a medida da permanência do que é pressuposto. É que enquanto se dá a
mudança, a medida da permanência precisa como um todo ser inversamente proporcional
ao período em que a mudança se dá. Isso significa que se nos é dada uma
sequência de mudanças que fazem parte de uma mudança mais completa, se
comparadas com o todo as mudanças que fazem parte da sequência pressupõem mais
permanência do que a mudança mais completa.
O princípio que acabo de expor pode
parecer de início algo obscuro, mas ele pode ser bem ilustrado através de um
exemplo: considere as mudanças resultantes do aquecimento de um pedaço de cera
a partir de T0. Primeiro temos a mudança do estado sólido para o estado líquido
em T1. Com maior aquecimento temos a mudança da cera líquida para a cinza de
carbono em T2. Se essa cinza for aquecida a muitos milhões de graus Celsius
teremos, enfim, a dissolução dos átomos de carbono e a formação de um plasma de
partículas subatômicas em T3. Eis um esquema mostrando como as mudanças
tipicamente pressupõem maior permanência quanto mais parciais e mais breves
elas forem:
Entidades físicas: Curso do tempo:
T0 T1: T2: T3:
Cera
(sólida):
XXXXXX
Cera
(líquida):
XXXXXXXXXX
Átomos de
carbono (cinza):
XXXXXXXXXXXXXXXX
Partículas
subatômicas (plasma):
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Note-se como
as regularidades sincrônicas se perdem no curso do tempo. Do momento T0 ao
momento T1 pressupõe-se como permanente a cera e os seus constituintes
atômicos, que são átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio, além dos
constituintes subatômicos. Já do momento T1 ao momento T2 mantém-se como
pressuposto permanente apenas os átomos de carbono e seus constituintes
subatômicos. Finalmente, do momento T1 ao momento T3 tudo o que permanece são
certos constituintes subatômicos. A mudança é gradual aqui em sua perda de
regularidades.
O modelo de mudança sugerido acima não se
restringe a casos como o da estrutura química de um composto. Ele se aplica a
alterações físicas, biológicas, psicológicas, sociais, econômicas, enfim, a
qualquer outro domínio empírico que possamos conceber. Considere, por exemplo,
a revolução industrial. Ela começou ainda no século XVIII, com a introdução de
máquinas de tecelagem e divisão do trabalho e um pequeno êxodo rural. A
estrutura social e econômica da Inglaterra permaneceu no início praticamente a
mesma. No decorrer do século XIX, porém, as mudanças se aprofundaram. Surgiram
indústrias siderúrgicas, locomotivas a vapor, uma malha ferroviária, um grande
êxodo rural... A sociedade inglesa deixou de ser a mesma, embora muitas uniformidades
permanecessem. Há aqui sucessivas perdas e ganhos de regularidades. Mas as
alterações só podem ser identificadas sobre bases de permanência.
O que estou sugerindo é que esse modelo de
mudança a tudo se aplica pela simples razão de que ele constitui parte da
estrutura metafísica da realidade, tal como ela é conceptualmente concebível. É
constitutivo da própria estrutura do mundo da experiência real ou concebível
que as mudanças que se dão em um período mais curto tipicamente pressupõem mais
permanência do que as mudanças mais completas em que elas tomam parte: natura
non facit saltus. Mesmo a mudança abrupta de órbita de um eléctron somente
se dá sob uma estrutura de permanência, que no caso é a do átomo.
O modelo de mudança metafísico recém
sugerido tem consequências para nosso entendimento epistemológico da indução. É
que o futuro mais próximo de nós deve, por necessidade ser, se tomado como um
todo suficientemente próximo, mais semelhante ao seu passado do que os futuros
mais distantes (os quais, como já notamos, podem se tornar até mesmo
irreconhecivelmente diversos do presente). Isso já deveria ter ficado claro
quando examinamos o exemplo da cera que é aquecida: se T0 é o presente, T1
guarda mais similaridades com T0 do que T2 e T2 tem mais similaridades com T0 e
T1 do que o mais distante T3.
No que concerne à indução, esse princípio
garante, dado certo sistema de referência, que as previsões indutivas se tornem
tanto mais prováveis quanto mais próximo for o futuro ao qual elas concernem.[30] Com base
nisso podemos substituir o excessivamente pobre princípio PF* por:
PF**:
Um futuro suficientemente
próximo deverá guardar alguma semelhança com o seu passado suficientemente
próximo de tal modo que quanto mais próximo ele estiver do ponto de junção com
o seu próprio passado (o presente), mais ele precisará se assemelhar
tendencialmente a esse seu passado, tornando-se idêntico a ele no ponto de
junção.
Para o
correto entendimento de PF** é preciso lembrar apenas que inclusos na aplicação
desse princípio devam estar sempre os futuros que se prolonguem a partir do
presente e que lhe estejam suficientemente próximos, uma vez que
é necessário que alguma coisa deles contenha situações pertencentes ao passado
ou a continuação das mudanças advindas do passado. Afora isso, é importante
enfatizar o aspecto tendencial do processo: é preciso acrescentar que
nada impede a anomalia de que parte desse futuro suficientemente próximo seja
mais diversa do presente do que uma parte dele que esteja mais distante,
conquanto em seu ponto de junção com o passado o futuro se torne idêntico ao
presente. (Considere, buscando um exemplo simples, as crises cíclicas que
ocorrem na economia, apesar de esta ter tido a longo prazo um padrão sempre
crescente. Por exemplo: o PIB norte-americano de 1930 voltou a ser o de 1920,
embora no todo, de 1900 até 2000, ele tenha sido crescente...)
Acredito que PF** possa ser considerado em
maiores detalhes e mais formalmente. Mas parece-me que esse princípio já
satisfaz claramente a caracterização de analiticidade aqui sustentada, pois ele
demonstra pertencer ao próprio conceito de futuro que vem em um tempo
suficientemente próximo do presente que no todo ele tenda a se assemelhar
exponencialmente mais ao seu passado, quanto mais próximo ele estiver de seu
ponto de junção com o seu passado, convergindo para a identidade no próprio
ponto de junção que é o presente. Podemos mesmo tentar o recurso fregeano de
mostrar que PF** pode ser transformado
em uma tautologia, onde x pode ser ocupado por um evento
qualquer ou por uma variedade de eventos quaisquer, ‘Fa’ = ...o que
pertence ao futuro suficientemente próximo do presente, ‘Pa’ = ...o
que pertence ao passado suficientemente próximo do presente, ‘≈a≈’ = tendem, na
medida de sua proximidade com o presente, a serem idênticos entre si. Eis como
essa relação pode ser apresentada:
PF**: (x)
(Fax ≈a≈ Tax )
Parece que
algo assim poderia ser entendido como uma tautologia dentro de uma lógica
temporal, na medida em que parece ser parte daquilo que entendemos e podemos
definir como o fluir dos eventos no tempo; algo que lembra uma régua
logarítmica que, indicando o presente, vai do passado para o futuro dentro de
um dado sistema de referência.
Uma consequência da admissão de F** é a de
que se torna natural pensar que quanto mais distante do ponto de junção com o
seu passado um período futuro estiver, menos prováveis serão as previsões
indutivas a ele concernentes. Isso explica por que as nossas generalizações
indutivas sobre o futuro não chegam a ser sobre um futuro indefinidamente
remoto, como pode parecer a um primeiro exame. Quando dizemos, por exemplo, que
a indução nos permite inferir que o Sol sempre nascerá, o ‘sempre’ é uma
palavra que deveria ser colocada entre aspas. Faz sentido afirmar, tendo como
base indutiva o fato de o Sol sempre ter nascido, que ele nascerá amanhã e
mesmo daqui a mil anos. Mas não faz sentido algum (e na verdade a astronomia
afirma ser preditivamente falso) usar a mesma base indutiva para dizer que o
Sol nascerá daqui a 17 bilhões de anos.
Há, é claro, o caso de leis científicas como
as da teoria geral da relatividade ou da mecânica quântica, que se aplicam
hipoteticamente a todo o universo. Essas leis geralmente resultam de
inferências da melhor explicação (inference from the best explanation).
Uma inferência da melhor explicação é indutiva porque ampliativa, assentando-se
subrepticiamente sobre um imenso volume de induções enumerativas prévias. Mesmo
assim, é questionável se PF** não seria válido até mesmo para elas. As equações
de campo da teoria da relatividade geral se aplicam bem a regiões conhecidas do
universo. Aplicar-se-iam elas de fato a tudo no universo? Suponhamos,
por exemplo, que existam múltiplos universos. Nesse caso não nos sentiremos
mais tão seguros acerca da extensão de sua aplicação.
Finalmente, PF** pode garantir aplicações restringidas de PF, tornando PF
analítico quando entendido de maneira a se restringir ao domínio dessas
aplicações: se o futuro em questão estiver suficientemente próximo de seu ponto
de junção com o passado, então esse futuro necessariamente tenderá a ser
semelhante ao seu passado. O problema, naturalmente, é que nos falta
estabelecer critérios para sabermos o quão próximo precisa estar um futuro do
seu passado para que PF a ele se aplique. Podemos especular se a resposta não
dependerá da assunção de um domínio de regularidades ao qual pertence a mudança
que está sendo considerada – um domínio de regularidades sendo entendido como
aquele ao qual se aplica todo um sistema de crenças bem entrincheiradas umas
nas outras. Assim, a conclusão indutiva de que sol nascerá amanhã pertence ao
domínio de regularidades implicadas nas mudanças investigadas pela astronomia,
o que inclui um futuro muito distante para que as mudanças mais amplas
aconteçam, como, por exemplo, a morte do sol. É possível, embora muito
improvável, que o sol não nasça amanhã, como o próprio procedimento indutivo
prevê. Mas isso só seria concebível ao preço de uma imensa perda de outras
regularidades e, subsequentemente, de nossa presente inteligibilidade de uma
parte considerável daquilo que nos cerca.
Ainda assim, o que nos faz considerar
altamente provável a permanência futura de regularidades particulares, como a
de que o sol nasce a cada dia? A resposta parece partir da inevitável assunção
do fato bruto de que o mundo existe como um sistema de regularidades, posto que
podemos concebê-lo e dele ter experiência. Junto a isso parece que também
assumimos que esse sistema de regularidades que é o nosso mundo permanecerá
existindo. Mas não caímos aqui outra vez no abismo humiano? Afinal, o que
garante que nosso mundo não deixará repentinamente de existir daqui a cinco
segundos, junto com tudo o que existe dentro dele, incluindo nós mesmos?
A resposta é que embora possamos encontrar
razões que tornem improvável que uma parte de nosso mundo desapareça em um
momento próximo, enquanto outras permanecem existindo, não faz sentido algum
supor que o mundo inteiro possa desaparecer de um relance. A razão disso é verificacionista.
Segundo um razoável princípio da verificação, um enunciado que não é capaz de
ser verificado nem refutado de maneira alguma não é capaz de ter sentido
cognitivo. Enunciados como (i) “Meu irmão morreu depois de amanhã” e (ii)
“Durante essa noite o mundo inteiro dobrou de tamanho junto a tudo o que a ele
pertence”, podem ter sentidos gramaticais – aqueles fornecidos pelas regras
gramaticais – mas não tem o muito mais importante e próprio significado
cognitivo de serem capazes de dizer algo sobre o mundo, um sentido a ser dado
por regras verificacionais. (Obviamente, alguém poderia aqui objetar que o
verificacionismo é uma doutrina refutada pelo desenvolvimento posterior de
grande parte da filosofia analítica da linguagem e mesmo pelos seus principais
defensores, os positivistas lógicos... Contudo, esse seria um grave erro! O
verificacionismo semântico foi proposto pela primeira vez por Wittgenstein para
os positivistas lógicos em 1929 e, como tentei mostrar no primeiro capítulo,
tratava-se de uma proposta de senso comum, bem mais flexível e plausível do que
as dos últimos, não ficando aberta às mesmas objeções.[31])
Ora, do mesmo modo que com os enunciados (i)
e (ii), podemos sugerir que o enunciado (iii) “O mundo inteiro irá desaparecer
daqui a 5 segundos” não é verificável. (Note-se que um enunciado como
(iv) “Possivelmente o mundo inteiro irá desaparecer daqui a 5 segundos”
é verificável, pois ele será verificado após 5 segundos, posto que o que é
certo é também possível. Mas o enunciado (iv) é diferente da afirmação (iii),
que não possui qualquer fundamento justificador.) Podemos facilmente
enganar-nos a esse respeito ao nos imaginarmos fora do mundo, percebendo o seu
desaparecimento. Mas como nós mesmos pertencemos ao mundo, é simplesmente
impossível verificar um tal acontecimento, pois o sujeito epistêmico capaz de
verificá-lo também desapareceria, e, não existindo mais, seria logicamente
incapaz de fazer tal verificação. Concluímos, pois, que o enunciado acima
apenas parece possuir sentido cognitivo, mas não o possui realmente. Mas
que dizer de sua negação? Que dizer do enunciado (v) “O mundo inteiro não
irá desaparecer daqui a 5 segundos” ou (vi) “O mundo inteiro permanecerá
existindo daqui a 5 segundos”? Ora, a negação de um enunciado sem sentido deve
ser também sem sentido: a negação de “Meu irmão morreu depois de amanhã”, que é
“Meu irmão não morreu depois de amanhã”, é igualmente sem sentido. Por
conseguinte, os enunciados (v) e (vi) devem ser também destituídos de sentido
cognitivo. Contudo, pode-se sugerir que (v) e (vi) fujam a essa regra, uma vez
que após os 5 segundos terem decorrido esses enunciados terão sido verificados.
O que é certo? Prefiro pensar que (v) e (vi) realmente não fazem sentido
enquanto tais, pois esses enunciados afirmam o não-afirmável, ou seja, que o
mundo continuará existindo, diversamente de um enunciado como (vii) “É possível
que o mundo permaneça existindo daqui a 5 segundos”, que pode ser verificada
pelo fato do não desaparecimento do mundo após os 5 segundos, dado que
existência implique em possibilidade, a possibilidade não implica em existência.
Que tenhamos a disposição de continuar agindo como se o mundo fosse
permanecer existindo parece ser questão puramente disposicional. À parte essa
disposição natural, não somos capazes de encontrar razão alguma para
acreditarmos que tudo existirá ou que deixará de existir em um momento próximo.
Eis porque esse fato disposicional é incapaz de nos conduzir ao ceticismo: ele
permanece cognitivamente irresgatável.
Tais considerações em nada nos impedem de
admitir como provável a existência de certos domínios coesos de regularidades,
e das regularidades particulares inferidas nesses domínios como sendo de
permanência provável, seguindo PF**. A consequência desse modo de conceber as
coisas é que se rejeitarmos a permanência futura de uma regularidade – como a
de que o sol deve nascer a cada dia – precisaremos rejeitar a permanência
futura de todo o domínio de regularidades no qual ela se inclui. Mas como a
própria probabilidade da regularidade em questão é medida com base na admissão
da permanência desse domínio de regularidades (um ponto evidenciável pelo
teorema de Bayes), deixa de ser racional que nós a coloquemos em questão.
A solução que acabo de esboçar é esquemática
e inconclusiva, limitando-se a uma única forma de indução. Não obstante, ela
possui a vantagem de não abordar a questão humiana de forma equívoca, como me
parece ser o caso de todas as outras. Ela aborda a questão humiana
frente-à-frente, na condição em que ela se apresenta, sem reduzi-la a outra
coisa, o que já pode ser de alguma ajuda para um problema que visto sob
qualquer outro ângulo tem se afigurado desorientador e intangível.
[1] A formulação original de Hume encontra-se em seu A Treatise of Human Nature. P. H. Nidditch
(ed.), Oxford: Clarendon Press 1978
(1739-40), parte III, tendo sido reapresentada em seu An Inquiry Concerning Human Understanding (1748), sec. IV.
[2] Hume: A Treatise of Human Nature, p. 89.
[3] An
Inquiry Concerning Human Understanding, sec. IV, 30.
[4] Karl
Popper: The Logic of Scientific Discovery. London: Routledge 2002.
[5] Karl Popper: Objective Knowledge. London: Oxford
University Press 1972, pp. 1-31.
[6] Cf. Anthony O’Hear: Karl Popper.
London & New York: Routledge 1982, cap. III. Ver especialmente W. H.
Newton-Smith, The Rationality of Science. London: Routledge 1981, cap.
III.
[7] Hans Reichenbach: Experience and Prediction: An Analysis of the Foundation and Structure
of Empirical Knowledge. Chicago: University Press of Chicago
1938, pp. 339-363.
[8] Sigo aqui a
exposição de Brian Skyrms em Choice and
Chance: An Introduction to the Inductive Logic. Belmont: Dickenson
Publishing Company 1966, cap. 2, sec. 5.
[9] Max Black:
“Inductive Support of Inductive Rules”, in Problems
of Analysis. Ithaca: Cornell University Press 1954.
[10] F. L. Will: “Will the Future
be like the Past?”, Mind 56, 1947,
pp. 332-347.
[11] Cf. Brian Skyrms: Choice and
Chance, cap. 2. Ver também W. C. Salmon: The Foundation of Scientific
Inference. Pittsburg: University of Pittsburg Press 1966, pp. 12-17.
[12] Cf. Laurence BonJour: In Defense
of Pure Reason: A Rationalist Account of A Priori Junstification. Cambridge:
Cambridge University Press, 1998, p. 201 ss. Ver também Bertrand Russell: Human
Knowledge, its Scope and Limits. New
York: Simon and Schuster 1948, cap. 6. É verdade que Russell não pretendia com
seus postulados da inferência científica firmar princípios sintéticos a priori,
mas parece que não há como tratá-la de outro modo se quisermos eliminar a
arbitrariedade em sua escolha.
[13]
Bertrand Russell: Human Knowledge: Its Scope and Limits, Taylor and
Francis 1967, p. 458.
[14] P. F. Strawson: Introduction to Logical Theory. New
York: John Willey & Sons 1952, pp.
248-263. Ver também Paul Edwards: “Russell’s Doubts about Induction”. Mind 58, 1949, pp. 141-163.
[15] Ver Brian Skyrms: Choice
and Chance: An Introduction to the Inductive Logic, cap. 2, sec. 5.
[16] Donald Williams: The
Ground of Induction. Harvard: Harvard
University Press 2014.
[17] A analiticidade é um fenômeno linguístico porque significados pertencem
primariamente à linguagem; mas os significados (e suas relações analíticas
autoverificadoras) são ontologicamente determinados pelo modo como o mundo é.
Essa é a razão pela podemos resolver um paradoxo: dizendo que enunciados
analíticos tanto pertencem à linguagem como são sobre o mundo.
[18] Prefiro essa definição simples e intuitiva a outras mais técnicas e
questionáveis como, digamos, um mundo que pode ser representado por uma classe
maximal de enunciados consistentes entre si.
[19] Um bom entrincheiramento me parece ser o verdadeiro responsável por
aquilo que chamamos de necessidade causal.
[20] Certamente, esses mundos não são fisicamente realizáveis sem a
suposição de uma estrutura subjacente, o que demandaria regularidades
sincrônicas. Contudo, podemos
concebê-los de forma quase ilustrativa.
[21] A ideia de um mundo caótico ao qual a indução não se aplica é
frequentemente repetida na literatura sobre o assunto, de P. F. Strawson a
Wesley Salmon.
[22] Janne Teichman & C.C.
Evans: Philosophers: A Beginners Guide. Oxford: Blackwell
Publishers 1991, p. 181.
[23] Keith Campbell: “One Form of
Scepticism about Induction”. Analysis 23, 1963, pp. 80-83.
[24] A necessidade da correção interpessoal na formação última das regras
semânticas foi algo convincentemente estatuido por Wittgenstein em sua
discussão sobre a impossibilidade de uma linguagem privada (Philosophische
Untersuchungen, sec. 244-271).
[25] Estamos falando de uma possibilidade ideal e não prática. Do ponto de vista
prático, para que procedimentos indutivos se apliquem é já necessário um mundo
com uma permanência e um devir extraordinariamente complexos, no qual caibam
sujeitos epistêmicos conscientes em condições de observar e agir.
[26] A crítica quineana à analiticidade tem sido tão influente quanto
profundamente questionável. Minhas objeções
encontram-se em Philosophical Semantics:
Reintegrating Theoretical Philosophy,
Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing 2018, pp. 250-253.
[27] João: Apocalipse, sec. 9.
[28] Notem que estarei sempre
implicitamente pressupondo a mudança em um determinado sistema de referência,
posto que se misturarmos sistemas de referência diversos precisaremos nos
confrontar com as dificuldades decorrentes da teoria da relatividade.
[29]
Aristóteles: Física, 200b 33-35.
[30] Podemos imaginar um mundo cíclico no qual em um
futuro muito distante o futuro imediatamente próximo ao do presente será
repetido em todos os seus detalhes. Mas a hipótese de um mundo cíclico é
compatível com PF**.
[31] Uma defesa detalhada do verificacionismo semântico por oposição ao
positivismo lógico encontra-se no capítulo V de meu livro Philosophical
Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy. Newcastle upon Tyne:
Cambridge Scholars Publishing 2018.
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