CONSERVADORES E PROGRESSISTAS
Se você acredita que eu penso que é preciso fazer uma opção entre ser de
direita ou de esquerda, devo decepcioná-lo. No que se segue, quero demonstrar
que pode ser desejável a existência de uma saudável dialética entre direita e
esquerda e que ela é em boa medida intrínseca a um sistema político-econômico
verdadeiramente democrático no qual existe progresso. Após a consideração dos
argumentos, essa ideia se torna uma quase obviedade quando aplicada a estados
democráticos pertencentes ao mundo atual, não tanto como eles são, mas pelo
menos como deveriam ser.
Para começar, quero tirar de
foco aquilo que foge ao escopo de nossa discussão, que são os estados
totalitários ditos de esquerda ou de direita. Quero também excluir esquerdas e
direitas que podem ser ditas regressivas no sentido de que, embora
geradas dentro de uma democracia, compactuam de forma geralmente furtiva com formas
de autoritarismo e rescisão das liberdades civis.[1] Suponho, como base necessária ao meu argumento, uma sociedade
democrática suficientemente bem formada, na qual leis sejam cumpridas e onde
exista um razoável nível de transparência, de ‘fairness’ na atividade
política. Dito isso, minha intenção é procurar esclarecer os verdadeiros papéis
da esquerda e da direita em tal sociedade.
Há uma pluralidade de termos
que apresentam a dicotomia direita-esquerda, ela própria
ideologicamente carregada e de aplicação confusa e ambígua.[2] Uma dicotomia pouco usada entre nós é a norte-americana entre libertarismo (libertarianism, um equivalente para a direita liberal) versus liberalismo igualitário (liberal-igualitarism, um equivalente
para a esquerda democrática). Prefiro substitui-los respectivamente pelos
termos conservadorismo versus progressivismo, que vejo como mais essenciais e menos carregados
ideologicamente. Mesmo privilegiando essa última terminologia, manterei em
parte a primeira, pois quero desafiar concepções arraigadas nas mentes de
muitos e que me parecem claramente enganosas.
Minha tese é simples: direita e
esquerda, ou seja, conservadorismo e progressivismo, em um estado legitimamente
democrático no qual existe desenvolvimento econômico, são opostos dialéticos
interdependentes que podem e eventualmente mesmo devem alternar-se em uma
enriquecedora dinâmica interna.[3] Ou seja, faz parte da dinâmica de um estado legitimamente democrático
em processo de desenvolvimento econômico-social, um esperado revezamento entre
governos mais voltados para a o conservadorismo e outros mais voltados para a
progressivismo, dado que ambos devem se complementar no intento de maximizar o
bem comum.
Naturalmente, essa tese demanda
esclarecimentos. Primeiro é preciso definir com alguma precisão o que entendo
por conservadorismo e progressivismo, de modo a expor a razão mesma dessa
dicotomia. Depois é necessário esclarecer por que e de que maneira considero
ambas as posições legítimas. Mais além, preciso explicar por que uma
alternância entre ambas em um sistema sócio-político no qual há desenvolvimento
material costuma ser desejável. Finalmente, quero testar minhas considerações
aplicando o critério de estado justo de John
Rawls[4], de maneira a mostrar
que ele pode se aplicar alternativamente a ambos os casos na dependência do
contexto.
Vejamos,
primeiro, como podemos redefinir o espectro político que vai da direita
conservadora à esquerda progressista de forma que espero não ser
ideologicamente comprometida. Como é sabido, os termos surgiram no período da
Revolução Francesa, a direita se referindo aos defensores do absolutismo
monárquico, que ficavam à direita do rei, e a esquerda aos que a ele se opunham,
que ficavam à sua esquerda. Mais tarde a oposição passou a ser vista como
constituindo um espectro que vai da extrema-esquerda à esquerda moderada, ao
centrismo, à direita moderada e à extrema-direita. Desse espectro quero
considerar apenas a esquerda e a direita moderadas – entendidas como
conservadorismo versus progressivismo – uma vez que por não serem
autoritárias elas são compatíveis com um estado democrático suficientemente
desenvolvido no qual os participantes sejam capazes de um debate potencialmente
construtivo, diversamente das posições extremadas. Começo com uma breve
caracterização que contrasta as duas posições. Vejamos primeiro o
conservadorismo:
Tese A1. O ponto fundamental é o de que o
conservadorismo (vulgo direita) deve, por definição, representar as classes
sociais ditas mais favorecidas ou influentes ou dominantes. Economicamente,
sob o capitalismo, o conservadorismo tende a defender a maximização do capital
privado. Aqui se costuma defender a livre competição da parte da economia
privada e a minimização do papel do estado. A diminuição das taxações decorrentes
da minimização do papel do estado auxilia no crescimento econômico, posto que
em um sistema regido pela lei comum e livre de distorções monopolistas, no qual
o estado é o menor possível e taxa minimamente, as empresas se tornam muito
mais competitivas. A livre competição, por sua vez, faz com que as empresas
mais eficazes e criativas predominem, enquanto as menos competitivas vão à
falência. Esse é o que desde Adam Smith tem sido considerado o principal
instrumento para o enriquecimento de uma nação. Trata-se de uma espécie de
darwinismo econômico. O melhor exemplo foi o desenvolvimento dos Estados Unidos
na última metade do século XIX, bem notado pelo economista Milton Friedman.[5] O governo taxava os cidadãos de 3% a 5%, restringindo-se ao papel de manter
a lei e a ordem, além da defesa. Praticamente tudo era privado. Como havia, por
exemplo, competição entre as diversas companhias ferroviárias, o preço das
viagens precisava ser minimizado, facilitando a vida do cidadão. O resultado
dessa política econômica foi um crescimento exponencial que já no início do
século XX fazia os Estados Unidos ultrapassarem a Europa em termos de riqueza,
explicando a emigração de mais de quarenta milhões de Europeus pobres para os
Estados Unidos na primeira metade daquele século.
Mas essa forma radical de
capitalismo não acontece sem um preço, dado que os perdedores da competição
caem na pobreza, seja por incapacidade ou por simples má-sorte, passando a
depender da caridade dos mais afortunados. Há também um ethos social gerado pelo sistema. Por si mesma, a
mentalidade competitiva não parece muito saudável.[6] A capacidade de agir, o vigor, a personalidade forte, são elevadas à
condição de grande mérito moral, produzindo uma ansiedade endêmica.[7] A palavra ‘perdedor’ (loser) é tipicamente
norte-americana. Os muitos casos de assassinatos em massa nos Estados Unidos
testemunham uma reação psicológica extrema dos perdedores à pressão competitiva
do sistema capitalista com pouco estado. O conservadorismo tende a ser
anti-liberal. O pecado capital da direita, visível no que já foi apelidado de
“capitalismo selvagem”, é o da ganância.
Vejamos
agora, como contraste, características econômicas do progressivismo:
Tese A2. Aqui o ponto
fundamental é o de que o progressivismo deve representar
as classes ditas menos favorecidas, ou, para usar outra expressão, classes
subordinadas na ordem social. Economicamente, a esquerda
moderada deve defender a maior medida possível de socialismo democrático. Uma
maneira de se tentar alcançar esse objetivo é através de uma maior intervenção
estatal na economia, pois geralmente o estado é quem é capaz de redistribuir
riquezas que tendem a se acumular nas mãos de alguns poucos. Essa é uma
inevitável tendência no domínio da economia privada: dinheiro gera dinheiro. Um
exemplo trivial para evidenciar esse ponto: um fazendeiro que possui 50
hectares pode investir suas economias comprando o dobro do que tem. Nesse caso
conseguirá adquirir 100 hectares. Já se um pequeno produtor que possui 5
hectares investir suas economias comprando o dobro do que possui, ele
conseguirá no final obter 10 hectares. Na comparação, o primeiro ganhará 50
hectares a mais, enquanto o segundo apenas 5, ou seja, o primeiro dez vezes
mais do que o segundo. O fato de o capital tender a se concentrar nas mãos de
uns poucos pode não ser mal de um ponto de vista meramente econômico (o
dinheiro em excesso é reinvestido ou vai para os bancos onde é emprestado); mas
os poucos possuidores de mais recursos tendem a possuir maior poder, o que usualmente
os permite introduzir distorções a seu favor – distorções capazes de produzir
danos colaterais indesejáveis, como a falta de igualdade de oportunidades. Como
notou um jornalista americano de esquerda: nos Estados Unidos a maioria das
pessoas tem alguma oportunidade uma vez na vida, mas aqueles que pertencem a
famílias ricas e influentes tem um grande número de oportunidades que se
sucedem umas às outras. Isso contribui para limitar a mobilidade social e
debilitar a meritocracia.
Considerando o seu compromisso em elevar a
qualidade de vida das classes ditas subordinadas, a esquerda democrática deve,
por princípio, buscar diminuir desigualdades. É aí que entra o papel
redistributivista do Estado. A melhor maneira de assegurar a redistribuição é agregar
valor humano às pessoas, o que se faz pela educação, a começar pela educação
básica. O próprio Marx acreditava que um engenheiro merece ganhar mais, uma vez
que (segundo seu raciocínio) foi investido trabalho na sua formação, o que o
valoriza. Certamente, só isso não basta. O estado do bem-estar social (o welfaire-state) foi uma conquista da civilização do
norte da Europa, por proteger os menos favorecidos. Que as pessoas possam de
forma gratuita ter educação básica de qualidade, saúde, alimentação e moradia
garantidas em caso de desemprego deveria passar à condição de direito humano.
Mas não podemos nos esquecer que esses direitos só existem sob o pressuposto de
uma estrutura econômica suficientemente robusta. Se a economia regredisse à
Idade Média ou mesmo ao século XVIII esses direitos deixariam de existir. Eles
são dependentes do crescimento econômico, o que até Marx percebeu.
O óbvio problema causado pela
introdução de medidas de auxílio social é que elas causam um aumento na
taxação, diminuindo a competitividade da economia privada. A economia privada –
o livre mercado – é, como já notei, o principal motor do desenvolvimento: o
próprio estado se sustenta sobre ela, não obstante o fato de que cada vez mais
existam tarefas que só o estado possa ter interesse em realizar. A tese
fundamental de Adam Smith vale ainda hoje. O que enriquece uma nação é
essencialmente a livre competição entre os agentes econômicos; uma livre
competição sem monopólios ou cartéis ou ajuda do estado e sob o controle de leis
igualmente aceitas e aplicáveis a todos, ainda que esse ideal de “bom
capitalismo” seja apenas limitadamente realizado. Trata-se aqui do que Smith
chamou de a “mão invisível” do mercado através da qual cada agente econômico,
movido pelo interesse pessoal, busca vencer na livre competição do mercado,
acabando por produzir mercadorias melhores e mais baratas, o que acaba por
promover um bem maior para todos.[8]
A transparência, a quase
ausência de corrupção em um estado suficientemente rico, a manutenção da
meritocracia como um valor cultural homogeneamente aceito, ainda permitem que
países nórdicos (Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia) consigam
redistribuição sem paralização da mão invisível. A social-democracia é um
desejável subproduto de um livre mercado em países altamente desenvolvidos cuja
cultura de vida permite diminuir a corrupção ao mínimo. Essa é uma tendência
virtuosa de nossa época, pois é hoje inconcebível um estado que cobre ao
cidadão 3% do que ganham em impostos. O risco envolvido na busca desse estado
do bem-estar social é o do enrijecimento da mão invisível. É o caso de erros
estratégicos por vezes grosseiros conduzidos pelo estado como (no caso típico do Brasil) o crescimento
excessivo de um estado incompetente, ineficiente e corrupto a ponto de esmagar
a economia privada, produzindo estagnação ao matar o “espírito animal” do
empreendedorismo. O Estado, como todos sabem, não tem competidores e tende a
ser por essa razão pouco eficiente. Os Estados Unidos começaram com uma marinha
mercante estatal. Como não tinha competidores, ela veio à falência. Os
fundadores aprenderam a lição rapidamente. A intervenção estatal pode até certo
ponto auxiliar no desenvolvimento, mas os limites são bem definidos e
culturalmente dependentes. Como a Escola Austríaca demonstrou, a economia
planejada que foi tentada por estados totalitários de esquerda, onde o estado é
o único possuidor dos meios de produção, destrói a informação econômica
necessária para que o mercado opere satisfatoriamente, pois não é capaz de
prever as necessidades mutáveis de milhões de agentes econômicos.[9] Ou seja, uma economia socialista autocraticamente planejada pelo estado
não tem como ser bem sucedida, o que também indica que mesmo uma economia
capitalista democrática com maior intervenção do estado deve possuir limites de
eficácia economicamente e culturalmente variáveis.
A falência de sistemas
totalitários de esquerda como a URSS, a China de Mao, a Cuba de Fidel, a Coreia
do Norte, o Vietnam do pós-guerra, o Cambodja do Kmehr Vermelho, a Venezuela...
são uma prova irrefutável do que escrevi acima. Esses sistemas baseados no
assim chamado capitalismo de estado só funcionaram sob as mãos de ferro de
ditadores e, mesmo assim, acabando por dar um considerável espaço ao mercado
negro. O bom progressivismo, contudo, tende a ser mais liberal. O pecado
capital da esquerda, claramente visível em estados comunistas, sempre foi o da
inveja.
Tese B1. O conservadorismo deve estar comprometido com uma defesa
racional das classes dominantes, geralmente sob alguma justificação de fundo
meritocrático. Para os antigos essa justificação vinha da escolha divina.
Para Rawls, os membros dessas classes merecerão mais somente na medida em que
forem capazes de produzir um bem comum maior (Digamos, Henry Ford ao produzir
carros populares na década de 1920, ou Bill Gates por ter fundado a Microsoft).
Tese B2. O progressivismo deve estar
comprometido com um estado capaz de produzir um redistributivismo razoável com
relação às classes menos favorecidas e com a minimização de desigualdades
econômicas, que podem facilmente se tornar injustas. Isso é correto, mas só
é possível pelo desenvolvimento econômico. Não se pode imaginar que isso
aconteça em uma sociedade estática. Como notei, não é imaginável uma social-democracia
na Idade Média ou no mundo antigo, e devemos levar em conta esses limites
quando consideramos as diferenças entre os estados contemporâneos.
Tese A3. O conservadorismo costuma estar
comprometido com a conservação dos valores tradicionais, com a resistência à
velocidade da transformação, ou mesmo com o retorno à ordem antes estabelecida,
caso ela tiver sido desproporcionalmente alterada. Mas qual a razão disso?
Esse é um ponto crucial a ser ainda considerado no curso desse artigo.
Tese B3. O progressivismo deve estar mais
comprometido com a mudança social sob o suposto (inevitável) de um contínuo
progresso econômico. A razão da oposição entre A3 e B3 é simples: uma
sociedade é um todo dinâmico, geralmente em desenvolvimento, necessitando
acomodações nas relações entre classes. Só o aumento da riqueza permite uma
melhoria na condição econômica das classes ditas subordinadas. Nesse caso novos
acordos devem ser realizados. É um papel do progressivismo (logo, da esquerda)
demandar tais mudanças até o limite onde elas possam se tornar excessivas. Um
exemplo disso foi a Revolução Francesa antes da vinda de Napoleão, até sua
degradação absolutista, seguida da reação conservadora vinda após sua derrota.
II
Alguns pensaram, influenciados pelo marxismo, que esquerda e direita
devessem ser posições políticas incompatíveis, a primeira delas defendendo a
justiça social e a outra não. Para a esquerda influenciada pelo
marxismo-leninismo, as classes menos favorecidas são socialmente exploradas e
injustiçadas. Esse ponto pode ter valido para certos momentos da história, como
os abusos da Revolução Industrial, tão bem retratados por Marx.[10] Mas não pode ser de modo algum generalizado. Já a direita, influenciada
por conservadores na tradição de Edmund Burke, defende que os mais abastados
formam uma elite preservadora da tradição conquistada pela experiência de
séculos, sendo no final das contas, em geral, aqueles que se demonstraram os
mais preparados e capazes de transmitir essa experiência para seus congêneres,
sendo bom por isso a preservação do que conquistaram, pois por esse meio se
conserva o que foi bem sucedido em uma sociedade.[11] Em termos individuais esse raciocínio é claramente falacioso. Mas não
em termos coletivos. Se considerarmos a maneira como o estado sempre funcionou,
há um bom grau de consistência nessa ideia. Afinal, os que pertencem à classe
dominante tem mais acesso à educação, tem meios de conhecer os mecanismos
concretos do poder e são capazes de passar sua experiência para os que
pertencem ao mesmo grupo social. Em princípio, ao menos – pressupondo
legalidade, ausência de corrupção e mesmo transparência democrática – seriam
mais capazes de gerir o estado de modo a maximizar o bem comum.
Quero defender aqui algo
diverso disso, pois penso que ao menos quando consideramos formas moderadas de
conservadorismo e progressivismo representadas em um sistema de governo
suficientemente democrático em que a corrupção é minimizada e as leis são
reconhecidas e seguidas, conservadorismo e progressivismo são posições
complementares e capazes de uma interação enriquecedora que possa trazer
maiores benefícios a todos. John Searle devia ter algo assim em mente quando
notou em seus cursos que o bipartidarismo americano é uma forma de sabedoria
política.
Quero examinar a questão da
justiça social, mas antes disso pretendo considerar a questão das classes
sociais. A existência de diferentes classes sociais é algo absolutamente
indispensável a sociedades desenvolvidas. Sem elas não existe civilização. Elas
praticamente não existem em tribos indígenas coletivistas, onde de certo modo
tudo pertence a todos, onde existem ao menos duas classes equiparadas: a dos
homens, dedicados à caça e eventualmente a guerra, e a das mulheres, dedicadas
aos afazeres domésticos e ao cuidado dos filhos. Contudo, desde os impérios da
antiguidade a existência de classes sociais se tornou um fato social cuja
necessidade é indiscutível. A existência dessas classes não significa,
inevitavelmente, injustiça social, como erroneamente pensava Marx. A história
não é “a história das lutas de classe”[12], mas a história dos compromissos entre
as classes, e a própria ideia de consciência de classe pouco
mais é do que uma fantasia romântica.[13] Para evidenciar esse
ponto, contraprovas são óbvias. Basta lembrar o caso dos escravos negros que
foram enviados dos Estados Unidos de volta para a África, onde ao invés de
demonstrarem consciência de classe fizeram o que aprenderam com os seus
senhores: escravizaram as pessoas pertencentes a próprio povo. Quanto à luta de
classes, um legionário romano sentia-se honrado em servir ao César, apesar da
realidade odiosa de sua vida; ao invés de injustiçado ele se consideraria no
máximo fadado pela sorte. A vida no mundo antigo era brutal, e ninguém mais do
que eles sabiam disso. Se o critério de justiça social de John Rawls fosse
aplicado às civilizações antigas, não haveria a possibilidade de se escolher
cair em um estado não-escravagista, posto que ele não só inexistia, como não
teria condições de se instituir na competição com outros. Em se falando do
mundo contemporâneo, os moradores atuais do Butão prezaram o seu príncipe a
ponto de terem se sentido indignados diante da sugestão de avaliá-lo pelo voto;
estariam eles sendo explorados? Seriam eles felizes, mas alienados? Mas o que
isso importa, se conseguem ser felizes? Por outro lado, basta hoje considerar
estados social-democráticos muito desenvolvidos para que o compromisso entre
classes se torne claro. Uma pessoa rica na Finlândia tem encargos sociais muito
elevados, estabelecidos pelo estado do bem-estar social e a sua maior riqueza e
maior status social deve ser justificada por maiores deveres
e responsabilidades sociais, pelo que ela é capaz de oferecer de retorno à
sociedade, muito à maneira de Rawls. Um milionário de Helsinski, dono de uma
cadeia de restaurantes, notou em entrevista que, para ele, os deveres sociais
são tão grandes que quase não vale a pena ser rico. Isso nos faz passar à
questão da justiça social.
A conclusão notável disso tudo
é que tanto um estado de esquerda quanto um estado de direita podem ser tanto
socialmente justos quanto injustos. Não é somente a classe dominante que pode
ser injusta com a classe subordinada, mas o contrário também é possível.
Considerando estados de direita, quero exemplificar meu ponto lembrando o
estado francês pouco antes da Revolução Francesa. Os custos do governo
monárquico absolutista eram imensos, junto às suas dívidas, enquanto o povo
passava fome. Aqui temos um exemplo da direita injusta e exploradora. Se
quiserem um exemplo atual, basta falar do Chile. As demonstrações de 2019
agruparam mais de um milhão de pessoas contra as injustiças sociais do sistema
econômico liberal-conservador, resultando em cerca de 20 mortes. O estado
pequeno, que permitiu o notável desenvolvimento econômico do Chile desde
Pinochet, teve um lado negativo, caracterizado por uma grande concentração de
renda e um empobrecimento relativo da maioria da população. O programa de
capitalização no qual 10% do salário do trabalhador é dado para ser administrado
por um oligopólio de empresas privadas terminou por produzir uma massa de
aposentados entre pobres e miseráveis, sem direito a nenhuma forma de
atendimento médico gratuito e outras benesses que no Brasil bem ou mal ainda
existem. Nos Estados Unidos o trabalhador contribui com 7% do seu salário para
a capitalização privada e mais 7% para o governo, essa última servindo de
garantia para que as coisas não terminem mal, o que já faz a diferença em um
país rico. O resultado disso tudo, mesmo com o desenvolvimento econômico,
acabou sendo uma indisfarçável injustiça social por parte da direita.
Exploração capitalista também existe.
Passemos agora ao caso oposto,
o das injustiças sociais da esquerda. Consideremos o comunismo soviético da
época de Stalin. Nesse tempo uma pessoa que tivesse pertencido à nobreza corria
risco de vida. O simples modo de falar poderia denunciá-la, fazendo com que
fosse acusada de traição ao regime por qualquer razão banal ou inventada, sendo
então julgada e executada. E como é sabido, Stalin tinha listas de pessoas que eram arbitrariamente escolhidas para
serem acusadas e executadas com o objetivo de manter a população
aterrorizada. Fidel Castro e Che Guevara mandaram fuzilar milhares de
pessoas após a revolução cubana, muitas vezes gente completamente inocente em
julgamentos de fachada, só para dar à população a impressão de que a justiça
contra os opressores burgueses estava sendo feita, e, certamente, para
atemorizar quem ainda tivesse dúvidas. Esses são dois dentre os muitos exemplos
menos sutis de injustiças da esquerda no poder. Um exemplo bárbaro foi o dos
exageros que se seguiram à Revolução Francesa, como a indiscriminada condenação
à morte de parte do clero (na região bretã foram assassinados cerca de 120.000
católicos por motivos religiosos).
Mas o ponto crucial a ser
notado é que a distância entre classes dominantes e classes subordinadas, em termos
de liberdade ou de satisfação de necessidades realmente essenciais à vida
humana (que, ao contrário das necessidades artificialmente criadas, são
limitadas) tem diminuído com o progresso econômico. Considere, por
exemplo, a sociedade da Grécia antiga. Dois terços da população da polis era
escravo e a distância entre a vida de um escravo e a vida de um cidadão grego
devia ser considerável. Essa distância era imensa em Esparta, onde a população
autóctone (cerca de 90%) havia sido escravizada, o que fez com que a classe
dominante precisasse ser educada de modo a se tornar extremamente rigorosa e
violenta. Só assim ela foi capaz de reprimir qualquer possibilidade de revolta
(matar aleatoriamente um escravo era parte do ritual de iniciação de um jovem
espartano). Essa distância continuou com os romanos, mas diminuiu muito com o
cristianismo e o consequente desaparecimento da escravidão na Europa durante a
Idade Média. Ainda assim, a distância entre os servos da gleba e o príncipe e
membros das cortes era muito grande. Essa distância certamente diminuiu após o
Renascimento e diminuiu ainda mais depois que as revoluções industriais se
sedimentaram. A distância entre pobres e ricos em países social-democratas como
a Finlândia, em termos de satisfação de necessidades básicas, abstraindo a
ilusão de um surplus hedonista e a vaidade do status, é
muito menor do que entre os escravos e nobres na Roma antiga. E a razão disso é
que o desenvolvimento econômico e a tecnologia permitem uma produção de bens
que é mais do que suficiente para a satisfação dessas necessidades humanas
fundamentais. Sob tais circunstâncias, a disposição para uma mais equitativa
divisão de bens essenciais deve se tornar muito mais aceitável. Aqui entra
outra vez em causa o progressivismo, cujo papel consiste em diminuir a
distância real entre as classes, na medida em que o desenvolvimento
econômico-tecnológico torna isso possível. Essa distância pode ser diminuída no
sentido e na medida em que as necessidades que o ser humano precisa satisfazer
para o seu bem-estar básico são limitadas e que o desenvolvimento da tecnologia
permite provê-las para um número cada vez maior de pessoas. Contudo, é um erro
grosseiro se diante desses acontecimentos formos induzidos a pensar que em
qualquer momento histórico a distância econômica entre as classes devesse ter
sido desnecessária. A natureza humana não mudou; as circunstâncias da vida
humana é que mudaram. Da mesma forma que os escravos Americanos ao retornarem
para a África escravizaram os habitantes locais, se os escravos romanos
pudessem dominar o Estado eles não teriam de ter feito outra coisa senão
escravizar os seus antigos donos.
É impossível aplicar o
argumento relativizador do espectro político aos casos de totalitarismos de
extrema-esquerda ou direita, pois eles deixam de representar realmente a
população, uma vez que a oligarquia dominante com poder absoluto se corrompe e
passa a ter sobre a população controle físico e mental. Considere a anomalia
trágica que foi o Kmehr Vermelho. Esse grupo de guerrilheiros liderou o Camboja
de 1975 a 1979. A ideia absurda pela qual se guiavam os seus líderes, gente que
teve alguma formação em Paris, era a de que o Estado ideal seria o de
camponeses autossuficientes. Todos os cidadãos foram forçados a se tornarem agricultores
do dia para noite. O resultado é que ao menos um quarto da população do país,
quase dois milhões de pessoas, foi morta em um período de pouco mais de três
anos, de fome, de doenças, ou executados sob qualquer suspeita. Qualquer pessoa
que fosse educada, não tivesse calos nas mãos ou conhecesse outro idioma era
executada. A capital Pohn Penh, de um milhão e meio de habitantes, foi
esvaziada em poucas semanas e seus habitantes – mesmo os velhos e doentes –
precisaram marchar a pé para os campos para trabalharem em grandes fazendas
coletivas. E quem não sobrevivesse é porque não seria digno do comunismo
idealizado por Pol Pot e alguns outros. Algo não tão diverso ocorre hoje no
regime de extrema-esquerda da Coréia do Norte. Lá o povo camponês vive em
extrema miséria. Comer grama não tem sido coisa tão rara como meio de saciar a
fome. Estima-se em 150 mil o número de prisioneiros em campos de concentração,
vulgo campos de extermínio. Kim Jong-un, entretanto, vive na opulência junto
aos que se corromperam de modo a poderem pertencer ao governo. Essa anomalia
bárbara se tornou o inverso de um governo progressivo teoricamente
intencionado. Na famosa frase de lorde Acton: “o poder tende a corromper e o
poder absoluto corrompe absolutamente”: o esquerdismo teórico ingênuo,
idealizador da natureza humana, que recorre ao poder absoluto como solução para
as diferenças sociais, negando fatos econômicos sólidos, tem sempre cedido
lugar ao despotismo, voltando-se contra próprio povo que em princípio
objetivava proteger. (Encontramos um bom exemplo disso se compararmos Cuba com
Porto Rico. Cuba, que apesar da corrupção havia se tornado um país quase rico
antes de Fidel Castro, pagou e ainda paga um preço altíssimo ao ter sua
população como que escravizada na fazenda da família Castro e de seus feitores
– os membros do partido. A ilha de Porto Rico foi adquirida da Espanha no final
do século XIX pelos Estados Unidos. Hoje ela tem a maior renda per capita da
América Latina e um IDH muito superior ao de Cuba. Muitos habitantes de Porto
Rico querem que a ilha se torne um novo estado dos Estados Unidos.)
Considere agora o caso do nazifascismo. Eram
ditaduras com objetivos socializantes, mas que diferiam das ditaduras de
esquerda por preservarem a propriedade privada e um grau controlado de livre
comércio capitalista. Por serem ditaduras repressivas elas também diferiam do
conservadorismo no sentido em que estamos considerando, que tem como elemento
caracterizador indispensável a manutenção de um estado democrático. Isso nos
faz lembrar do caso da China contemporânea. Embora herdeira do comunismo, ela
só pode ser explicada como algo próximo de um fascismo
hierárquico-plutocrático, ou seja, um regime totalitário que admite um grau
suficiente de livre mercado como parte integrante; o mesmo eu diria da Rússia
contemporânea – no final das contas trata-se de algo que lembra um fascismo
autocrático, no qual o czar foi substituído por Putin; um país que seria hoje
rico se não tivesse sido vítima da revolução bolchevique. Nenhuma dessas
aberrações totalitárias se enquadra em minha tentativa de compreensão das razões
do espectro sócio-político. Elas merecem um estudo à parte.
III
Quero aplicar agora o teste de John Rawls para a justiça social. Para
Rawls, existe um meio para se saber qual é o Estado justo, ainda
que a sua aplicação concreta não possa ser mais do que rudimentar. Trata-se de
se perguntar em que sistema político você preferiria viver se você caísse nele
sob o véu da ignorância. O véu da ignorância é aquele no qual uma pessoa,
embora sabendo como funcionam os sistemas político-econômicos, devendo escolher
um deles, não sabe como nele cairá, se rico ou pobre, homem ou mulher, saudável
ou doente, heterossexual ou não, hábil ou inábil etc. Sob tais condições a
pessoa tenderá a escolher o estado justo, pois é
nele que ela terá mais chances de ser tratada da forma que ela consideraria
correta. Mesmo um jogador disposto a correr riscos tenderá a escolher
o estado mais justo, uma vez que se trata aqui de uma escolha única e
definitiva.
Rawls estava pensando no
sistema de bem-estar social ao formular sua teoria. Mas é interessante perceber
que a melhor escolha pode se dar a favor de um sistema de esquerda, tanto
quanto a favor de um sistema de direita. Por exemplo: um sistema
conservador-liberal como o da Singapura, que é governado por um único partido
desde a sua libertação da Inglaterra (o Partido da Ação Popular) e que possui
algumas características supostamente autoritárias, mas privilegia a
meritocracia, inibe a corrupção e possui uma administração altamente
responsável da economia é hoje um dos lugares mais ricos do planeta.[14] Sem dúvida, é o lugar ao qual preferiríamos pertencer se a escolha
fosse entre ele e a vizinha Birmânia, pois Singapura está mais próxima de um
sistema social justo. Um sistema com viés de esquerda progressista e
democrática, como o da Finlândia, também é algo que sob o véu da ignorância
seria de nossa escolha. Não escolheríamos anomalias econômico-sociais como a
Rússia e o Brasil, muito menos Cuba ou Coréia do Norte. Assim, tanto um governo
considerado conservador quanto um governo considerado progressista pode ser
aproximar de um sistema socialmente justo.
Finalmente, as circunstâncias
de uma sociedade são mutáveis. Um governo de esquerda ou de direita moderado
pode levar longe demais suas intenções, tornando-se facilmente injusto. Ele
pode facilmente aplicar políticas que se tornem inapropriadas. Esse parece ser
o caso da Suécia contemporânea. A admissão indiscriminada de imigrantes acabou
por formar mais de trinta “no go zones”, algo
que lembra as favelas brasileiras, onde as pessoas, embora recebendo auxílio
governamental, reforçam-se em seus valores tradicionais e não se dispõem a se
integrar culturalmente ao país onde se encontram, passando facilmente à
criminalidade. Com isso um estado social-democrático exemplar corre o risco de
se perder. O exemplo do lado oposto é o de uma direita como a mexicana de
alguns anos atrás, que privilegiava uma minoria de governantes que certamente
não haviam conquistado o poder por méritos próprios. Pelas informações que
tive, o governo mexicano em 2016 secretamente dirigia o narcotráfico,
privatizando empresas entre amigos. Não pode haver muito lugar para um livre
mercado não distorcido e para a meritocracia em um governo dessa natureza.
Vejamos, finalmente, as
vantagens da alternância de poder entre conservadorismo e progressivismo em uma
economia em desenvolvimento. Aqui outra vez os Estados Unidos entram em cena
como exemplo: em princípio, ao menos, o partido democrata exemplifica o
progressivismo da esquerda moderada (libertarian-igualitarism)
enquanto, em princípio, o partido republicano exemplifica o conservadorismo da
direita moderada (libertarianism). O governo
republicano de George Bush cometeu um grave erro tático e um crime contra a
humanidade, que foi a invasão do Iraque em 2003 junto a suas consequências. Já
na época, especialistas como Peter Scholl-Latour advertiam que o preço daquela
intervenção militar seria uma guerra civil, dado que o Iraque é uma colcha de
retalhos cultural, herança do colonialismo, somente unificado pelas mãos de
ferro de Saddam Hussein. O resultado da ação americana foi um conflito com um
preço humano extremamente alto: fala-se de mais de cem mil vítimas civis.
O contraponto disso acabou
sendo o governo liberal-esquerdizante de Barack Obama. Ele conseguiu conter a
crise econômica, mas foi além do razoável para o país na implementação de
políticas multiculturais e de auxílio social. Dessa maneira foram cometidos
erros memoráveis, como uma aceitação indiscriminada de imigrantes árabes, o
aumento na taxação de indústrias produzindo fuga de capital, a
malsucedida Obamacare. Pior foi a debilidade da
política externa, que acabou por reforçar sistemas ditatoriais. Um exemplo de
apoio ingênuo a ditaduras foi o acordo para a utilização pacífica da energia
nuclear, que liberou o estado totalitário que é o Irã para, após dez anos,
produzir uma bomba nuclear, o que inevitavelmente provocaria uma corrida
armamentista no Oriente Médio, uma vez que a Arábia Saudita, como a maioria dos
países da região, é sunita e não xiita (84% dos muçulmanos são sunitas, mas o
Irã é xiita). Obama era partidário do controle de opinião no rádio e queria o
desmantelamento das defesas americanas antimíssil, o que tornaria o país
indefeso diante dos poderes nucleares estrangeiros. Finalmente, como é
frequente nas esquerdas, Obama gastou mais do que podia: a dívida
norte-americana saltou de 8 trilhões de dólares para mais de 20 trilhões, pondo
em risco a estabilidade econômica do país, além de manter uma política
econômica externa que foi em grande parte sustentadora do desenvolvimento chinês
às custas do enfraquecimento da indústria nacional. A continuação dessa
política significaria fragilização e fracasso econômico. Ou seja: a esquerda
foi longe demais, perdeu-se e cometeu tantos erros quanto a direita antes dela.
O contraponto conservador veio
com a eleição do governo de Donald Trump, que diminuiu a taxação das empresas,
facilitando o seu retorno ao país e por tais meios diminuindo o desemprego, embora criando outros problemas difíceis de serem resolvidos, como os gerados pelo protecionismo econômico. Na política externa, embora ele tenha tido sucesso em não iniciar nenhuma guerra em todo o seu mandato, parece não ter tido grande sucesso em tornar seu país competitivo (vários foram os que predisseram que a Ásia - o que inclui China - tornará o centro econômico do mundo no século XXI e não parece que os Estados Unidos conseguirão fazer frente a esse desafio).
Uma oscilação semelhante
aconteceu no Brasil dos últimos 60 anos, embora de forma muito mais dramática.
Primeiro tivemos um governo militar bastante autoritário e conservador, opondo-se
a um outro extremo, que defendia pela luta armada a implantação de um
totalitarismo de esquerda. Depois veio a democracia com viés de esquerda para
compensar, mas com uma ideia de estado grande promotor do crescimento e com um
ideário de fundo marxista demasiado idealizado em relação à realidade
econômico-cultural do país. O estado, que já vinha aumentando com a ditadura de
direita, aumentou desproporcionalmente durante os governos posteriores, todos
idealmente progressistas, mas na realidade incompetentes e corruptos. Tudo o
que disso resultou foi o incremento de um mau capitalismo, caracterizado pela
concessão indébita de monopólios e pela má alocação de recursos, o que acabou
por engolir a economia privada que o sustentava através de impostos, produzindo
ao final a profunda crise econômica começada em 2015. Como remédio voltamos
ironicamente a um governo conservador, que busca a diminuição do estado, sendo
em parte formado por militares, agora postos no poder de forma democrática.
O conjunto
das considerações acima justifica a meu ver a tese inicial. Tanto o
progressivismo característico da esquerda – devendo por princípio fazer ouvir
os interesses das classes ditas subordinadas – como o conservadorismo – devendo
por princípio privilegiar os interesses das classes dominantes – tem o seu
lugar e razão de ser quando a questão é o bem geral, posto que estando no poder
cada um possui um limite para além do qual deixa de produzir o bem geral,
precisando ser substituído pelo outro ou transformar-se a si mesmo. Uma
alternância dialética de poder entre uma coisa e outra – entre direita e
esquerda vegetarianas – é algo que pode ser saudável e plenamente compatível
com uma sociedade legitimamente democrática na qual há progresso econômico.
[1] Esse
seria o caso, nos EUA, da esquerda democrata que compactua com o radicalismo
islâmico, assim como da direita conservadora ultra-libertarista. Na América do
Sul esse seria também o caso das ideologias populistas de esquerda e direita
como, respectivamente, o lulopetismo e o peronismo, que resultam de deformações
manipuladoras do processo democrático e que possuem um elemento potencialmente
totalitário e autodestrutivo em termos econômicos.
[2] Ignorararei aqui
as crescentemente complexas cartas alternativas do espectro político, como as
de Hans Eysenk, David Nolan, Jerry Pournelle e outros, que parecem servir mais
para confundir do que para esclarecer.
[3] Não quero sequer afirmar que
essa dialética seja indispensável. Ela pode se encontrar internalizada em um
partido majoritário. Em Singapura o PAP tem vencido quase sempre as eleições há
cerca de 50 anos, mas pelo que sei ouvindo a oposição e sendo suficientemente
flexível para se deixar influenciar no que possa ser o melhor para todos.
[4] John Rawls, A Theory of Justice. Harvard: Belknap
Press, 2. Ed., 1999.
[5] Milton Friedman
(com Rose Friedman): Free to Choose: A Personal Statement. Mariner Books 1990.
[6] Um
bom exemplo disso parece ser um país pobre como o Butão, que, quase fechado
para o mundo, tem conseguido priorizar uma bem formada estrutura social e a
manutenção de sua cultura milenar acima das benesses do capitalismo. Butaneses
dizem sentir-se bastante satisfeitos com suas vidas!
[7] Também por isso o protótipo do escritor norte-americano foi o “me
man” Ernest Heminguay, cujo antípoda poderia ser encontrado no sensível F.
S. Fitzgerald.
[8] Adam Smith: An
Inquiry into de Nature and Causes of the Wealth of Nations. MetaLibri, 2007 (1776), Livro IV,
cap. 2.
[9] Ludwig
von Mises: “Economic Calculation is a Socialist Commonwealth”. Auburn: Mises
Institute 1990 (1920).
[10] Karl Marx: Das
Kapital: Kritik der politischen Ökonomie, 1867, vol. 1, III, 8. Hamburg: Verlag von Otto Meissner. Ludwig von
Mises notou que a vida dos camponeses pré-revolução industrial (que mais tarde
se tornarm operários) era tão ruim quanto. Mas o fato é inegável, e essa
injustiça social só decresceu na Inglaterra com o fortalecimento de sindicatos
defendendo a classe operária no final do século XIX.
[11] Cf. Roger Scruton: Conservatism: Invitation to a
Great Tradition. All Points Books, 2018.
[12] Karl Marx &
Friedrich Engels: The Communist Manifesto. Createspace, 2015.
[13] Em meu juízo
Marx foi essencialmente um filósofo social, e a filosofia ou não é muito mais
do que mera especulação com o objetivo de nos fazer pensar com base em
princípios mais ou menos plausíveis, ou então não é filosofia. A maior parte do
que ele escreveu se demonstrou errônea e inaplicável à realidade, mas para a
filosofia isso não tem muita importância. O mesmo vale também para Platão,
Rousseau e Hobbes, e menos para Locke e Rawls. O maior erro de Marx estava em
sua demasiado ambiciosa auto-interpretação como sendo capaz de fazer filosofia
para mudar o mundo. No geral a filosofia pode quando muito mudar-se a si mesma.
[14] Singapura teve a
sorte de ter sido governada mesmo antes de sua independência em 1963 por um
brilhante líder, Lee Kuan Yew, que havia se graduado na London School of
Economics, tendo feito pós-graduação em direito pela Universidade de Cambridge.
Por banir o comunismo ele foi considerado autoritário. Mas Karl Popper tinha razão
em pensar que a democracia é um bem que não pode admitir um partido que tenha
como objetivo a sua destruição, pois nesse caso ela será autocontraditória.
Tanto o fascismo quanto o comunismo deveriam ser banidos de um sistema
democrático, posto que ameaçam a autopreservação de uma conquista da
civilização.
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