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quinta-feira, 30 de julho de 2020

RAÍZES EVOLUCIONÁRIAS DO A PRIORI


Versão avançada de texto a ser publicado

  

 

RAIZES EVOLUCIONÁRIAS DO A PRIORI

 

 

Como é bem sabido, a epistemologia investiga as origens, a natureza e os limites do conhecimento. Nosso problema aqui terá a ver com as origens. Há origens ou fontes de conhecimento sempre lembradas, que são a experiência, a intuição ou razão a priori, a memória e o testemunho. Memória e testemunho são fontes secundárias, pois remetem às duas primeiras. Se me recordo de ter deixado meu carro no estacionamento, isso é porque tive a experiência perceptual de tê-lo deixado lá. Se me lembro do modus ponens é porque aprendi a explicitar essa regra, não diretamente da experiência, mas como um constituinte de meu suposto conhecimento a priori, a ser definido como um conhecimento “intuitivo”, não propriamente advindo da experiência. Se uma pessoa confiável me deu testemunho de ter presenciado um assalto é porque ela teve a experiência perceptual daquele evento... Experiência, de um lado, e intuição ou razão a priori, de outro, são as fontes primárias do conhecimento. Quero enfocar aqui o assim chamado conhecimento a priori.

   Para esclarecer, eis alguns poucos exemplos standard de candidatos a conhecimento a priori:

 

(1)    Convenções claramente analíticas ou definidoras, como “Solteiros são não-casados” e “O triângulo tem três lados” Elas são facilmente redutíveis a tautologias lógicas como “Adultos não-casados [Df. ‘solteiros’] são não-casados” e “A figura plana fechada de três ângulos e três lados têm três lados”. Eles são apoiados em convenções, e o filósofo empirista procura reduzir o conhecimento a priori a esse tipo mais inócuo de conhecimento.

(2)    Há casos mais importantes, como o do conhecimento matemático. Parece que nosso conhecimento aritmético de que 2 + 3 = 5 é a priori. Nosso conhecimento de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 1800 na geometria euclidiana advém da um raciocínio a priori.

(3)    Parece claro que nosso conhecimento lógico de que uma coisa é idêntica a ela mesma (princípio da identidade) ou de que um pensamento não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob uma mesma interpretação (princípio da não-contradição) são conhecimentos a priori, pois eles não parecem advir da experiência. Há raciocínios cuja verdade parece ser obtida a priori, como o de um modus ponens ((p & p → q) →q) ou nosso entendimento de que se A é maior do que B e B é maior do que C, então A é maior do que C.

(4)    Mais além, há candidatos a juízos sintéticos a priori como “Uma cor ocupa uma superfície” e “Uma mesma superfície não pode ser toda vermelha e toda azul ao mesmo tempo”, ou ainda candidatos de maior interesse filosófico como, digamos, “Todo evento tem uma causa” e “O futuro deve ser como o passado”. Todos esses exemplos parecem ser de verdades a priori, as quais parecem necessárias e independem da experiência para serem conhecidas.

 

Como também é de todos sabido, o empirismo enfatiza a experiência como fonte de conhecimento, enquanto o racionalismo enfatiza a intuição e razão a priori. Nossas próximas questões são: o que é, mais precisamente, a experiência? E o que é, mais precisamente, a intuição a priori?

   A primeira questão é relativamente fácil de ser respondida. Quando falamos de experiência, nos referimos primeiro à experiência perceptual espaciotemporal do mundo ao nosso redor. Mas também podemos nos referir ao conhecimento reflexivo ou introspectivo que temos de estados mentais como sensações, emoções e mesmo pensamentos. O que justifica essa extensão do conceito de experiência é o fato de esses objetos de conhecimento serem contingentes e espaciotemporais. Ocorrências de pensamentos são contingentes e se dão no espaço e no tempo. Como lembrou Laurence BonJour, até mesmo o cogito cartesiano é experiencial (2011: 284).

   A segunda questão é mais difícil. Kant definiu o conhecimento a priori negativamente, como aquele que independe da experiência, ainda que tal conhecimento pressuponha o aprendizado experiencial dos conceitos relevantes que o constituem. Esse conhecimento tinha para ele a característica de ser necessário e estritamente universal (1952: B2). Diversamente de Kant, racionalistas contemporâneos como BonJour admitem a falibilidade do a priori (1998). Por muitos é hoje admitida uma forma enfraquecida de conhecimento a priori em que esse suposto conhecimento possa ser derrotado, não só por não ter sido corretamente acessado, mas também por ter entrado em contradição com outras crenças a priori ou mesmo com crenças a posteriori ou experienciais (Mares, 2011). Enquanto o conhecimento a posteriori é justificado pela experiência, o conhecimento a priori é por vezes dito autojustificador (self-justifying), embora não se saiba exatamente o que se possa querer dizer com isso. Na tentativa de fornecer uma definição positiva do que seja o conhecimento a priori podemos começar falando de uma apreensão, de um insight, de uma intuição ou razão a priori. Todos esses termos, contudo, são demasiado obscuros para nos fornecerem uma definição positiva. Escolho usar a palavra mais tradicional ‘intuição’, dando preferência à palavra ‘razão’ para a crença priori que for derivada da intuição a priori.

   Pela falta mesmo de uma definição positiva, a principal objeção contra o conhecimento a priori tem sido a da obscuridade e do mistério (Devitt 2005: 111-12). Termos como ‘intuição’ e ‘razão’ não parecem ser nada elucidativos. Filósofos racionalistas tradicionais tentaram resolver o problema fazendo esses termos remeterem a origens místico-religiosas. Platão sugeriu que adquirimos o conhecimento das ideias através de reminiscência (anamnesis). Assim, se vejo um objeto triangular, ele contém uma cópia imperfeita da ideia do triângulo; isso me faz rememorar a ideia de triângulo, com a qual minha alma esteve em contato quando pairava no mundo das ideias, antes de ter sido incorporada (Menon, 1997: 353-384). (Note-se que intérpretes tem dúvidas sobre até que ponto Platão apelava a tais explicações seriamente ou como mero recurso elucidativo). Agostinho esposava a doutrina da iluminação divina: apreendemos verdades da matemática, da estética e da moralidade, porque Deus as ilumina para nós, fazendo-nos participar delas (1991, IV, xv, 25). Para Descartes não foi muito diferente. Temos a ideia de Deus como o ser que possui todas as perfeições. Como somos imperfeitos, essa ideia não pode ter sido proveniente de nós mesmos. Logo, Deus existe e a colocou em nós desde o nascimento na forma de ideia inata. Como um ser infinitamente bom, ele permite que tenhamos intuições de verdades a priori. Estas são as que possuam as marcas da clareza e distinção, que são as marcas da verdade. Essas marcas são típicas das proposições matemáticas. (1978, II-IV).

   Foi assim que a tradição tentou fundamentar intuição e conhecimento a priori. Embora muito poucos hoje acreditem nas explicações acima elencadas, é revelador perceber que todas elas de algum modo recorrem ao inatismo.

   É nesse ponto que entra a sugestão de que nosso conhecimento a priori se deixe melhor explicar como um produto evolucionário da seleção natural. Daniel Dennett notou que explicações pré-darwinianas da origem das espécies eram do tipo “Top-Down”, ou seja, de cima para baixo. (Deus criou o homem e todas as outras espécies prontas de uma vez para sempre, o que explica a nós e nosso lugar no universo.) Por outro lado, as explicações pós-darwinianas da origem das espécies se tornaram do tipo “Bottom-Up”, ou seja, de baixo para cima (2018). (Segundo elas, o ser humano resultou de alguns milhões de anos de um cego processo de tentativa erro chamado de seleção natural, que começou ainda mais remotamente com a formação de grupamentos de moléculas orgânicas, como os coacervados do caldo primevo.) Se aplicarmos essa ideia à formação de crenças inatas chegamos a uma sugestão concisamente exposta por Michael Devitt:

 

Suponha que uma crença seja extremamente benéfica para a sobrevivência de quem a possui. Então deve haver um processo de seleção natural que a torne inata. Só isso não torna a crença inata justificada, pois os seus efeitos benéficos não precisam ser os de sua verdade. Por exemplo: podemos imaginar crenças religiosas falsas, mas benéficas para a sobrevivência. Agora, suponha que a crença seja de fato verdadeira e que por ser verdadeira é que ela foi benéfica e foi selecionada. Tal crença inata seria produzida por um mecanismo confiável, sendo inatamente justificada; esse processo de seleção seria um modo confiável de herdarmos o trabalho justificador de nossos ancestrais distantes (2010: 272).

 

Devitt conclui disso que o a priori não existe. Contudo, do meu ponto de vista esse argumento apenas confirma a existência do a priori. Ele pode ser entendido como a sugestão de que, como resultado da evolução natural herdamos certas propensões cognitivas (no que incluo capacidades, habilidades e disposições inatas...), as quais, sob a direção de experiências anteriores e de circunstâncias apropriadas, produzem nossas intuições de crenças ou supostos conhecimentos a priori. Essa é, finalmente, uma explicação não obscura para nossas intuições a priori: nossas crenças a priori se (auto)justificam intuitivamente ou racionalmente a partir de intuições. Elas são disposicionalmente intuídas como verdadeiras, sendo a existência desse processo o último elo daquele longo processo de tentativa e erro da evolução natural que levou à existência da mente humana.

   Note-se que se minha sugestão for estendida a toda e qualquer crença a priori, então todo o nosso conhecimento acabará por ter uma origem última empírica, pois ou ele é (a) a posteriori, decorrente da experiência do indivíduo, ou ele é (b) a priori, na dependência da intuição do indivíduo, mesmo que se possa também ser chamado de a posteriori por decorrer da experiência da espécie. Minha posição é, pois, naturalista: todas as nossas crenças possuem origem na experiência, logo nossos objetos de conhecimento e, como veremos, mesmo nossos mecanismos de conhecimento, resultam da natureza. A conclusão de Devitt, que creio ter vindo da percepção desse ponto, adicionada à bastante contestável ideia de que o a priori por definição de algum modo transcende o mundo empírico, foi a de que o a priori não existe, o que o torna o defensor, não só, como eu, do naturalismo, mas de um empirismo radical (2010). Essa conclusão, contudo, eu rejeito, pois entendo que minha leitura das consequências de (b) é mais forte do que a sugestão exposta, posto que não só nos fornece uma maneira convincente de justificar a natureza da intuição a priori, mas desfaz a obscuridade e o mistério da própria justificação a priori.

   Em minha opinião, a explicação transcendente do a priori só foi assumida pelos filósofos racionalistas tradicionais porque a cultura cientificamente despossuida de sua época lhes havia dado uma concepção de mundo (uma Weltaufassung) que assumia como certa a existência de um Deus (ou de deuses) pessoais e de uma alma, admitindo-os como transcendentais. Por isso prefiro entender essa formação de capacidades, habilidades e disposições cognitivas inatas através da evolução, não como a negação da crença a priori, mas como a bem fundada sugestão de um desenvolvimento de nossa concepção da crença a priori como uma crença falível, reduzindo assim o conhecimento a priori a um conhecimento suposto. Trata-se, porém, do mesmo a priori divisado pelos filósofos racionalistas, posto que em essência ele se reduz à formação de crença por uma intuição não-experiencial da parte do agente epistêmico. Mas essa é uma maneira de entender o a priori que evita a obscuridade e mistério que o cercavam antes do surgimento da teoria da evolução.

   Uma outra consideração epistemológica de interesse sobre a natureza desse ganho de capacidades e disposições para a apreensão de crenças a priori é que se trata do que eu literalmente gostaria de chamar de indução evolucionária. Essa expressão pode parecer extravagante à primeira vista, mas não parece tão estranha quando examinamos mais de perto o processo evolucionário e o comparamos com nossos procedimentos indutivos. Quero evidenciar isso através de um exemplo. Imagine um agente epistêmico destituído de qualquer intuição geométrica inata, que descubra por indução individual numérica que a reta é a distância mais curta entre dois pontos. Seu raciocínio será como se segue:

 

Generalização enumerativa (I):

[A] Ao ser apresentado a uma linha cobrindo a distância mais curta entre esses dois pontos [B] vejo que é um segmento de reta.

(repetição da constatação acima um número suficiente de vezes...)

Em todos os casos nos quais [A] é dada uma linha cobrindo a distância mais curta entre dois pontos, ela será [B] um segmento de reta.

 

Ora, é bem sabido que a geometria euclidiana contém proposições a priori que teriam sua origem em capacidades inatas. Afinal, enunciados como “A distância mais curta entre dois pontos é um segmento de reta”, “Sobre um ponto situado fora de uma reta só pode ser traçada uma paralela” e “A soma dos ângulos de qualquer triângulo é 1800” são fortes candidatos a objetos de crenças a priori, os dois primeiros pela intuição, o último pela razão.[1]

   Vejamos agora, comparativamente, qual seria a estrutura do processo de seleção natural que teria conduzido à constituição de capacidades inatas para a compreensão da geometria euclidiana no mesmo caso da distância mais curta entre dois pontos:

 

Generalização enumerativa (II):

Um membro da espécie sobrevive até a reprodução por possuir a disposição inata de [A] ao ser apresentado a uma linha cobrindo a distância mais curta entre dois pontos [B] vê-la como um segmento de reta.

(sobrevivência até a reprodução de um número suficiente de outros membros da espécie com essa mesma disposição inata...)

Todos os membros selecionados da espécie possuem a disposição inata de [A] ao serem apresentados a uma linha cobrindo a distância mais curta entre dois pontos [B] a verem como um segmento de reta.

 

Estou convencido de que a semelhança entre as generalizações enumerativas (I) e (II) é muito mais do que mera analogia. Induções são inferências lógicas ampliativas que usualmente se instanciam cognitivamente em agentes epistêmicos humanos. Mas esse fato é meramente contingente e considerá-lo necessário seria recair em uma interpretação psicologista de um fato lógico. Se a o processo de indução não se instanciar psicologicamente, por exemplo, se ela se instanciar em computadores programados para realizá-la, ou em androides, isso não fará a menor diferença. Do mesmo modo, a instanciação da generalização indutiva no próprio processo filogenético de seleção natural produtor de propensões inatas para se ter cognições compartilháveis entre os membros de uma espécie é algo irrelevante para a sua admissão enquanto tal.

   Finalmente, a ideia da existência de uma indução evolucionária tem sua credibilidade aumentada quando pensamos no caráter supostamente espaciotemporal intrínseco na definição de espécie sugerida por David Hull (1976). Se pudesse ser trazido um animal de outra galáxia que fosse idêntico aos nossos tigres, tivesse o mesmo layout genético e fosse capaz de se intercruzar com eles, nós ainda assim resistiríamos a classificá-lo como um tigre. Afinal, tigres são animais que se desenvolveram na Ásia. Por isso filósofos como Hull decidiram tratar uma espécie como um indivíduo que se desenvolve no tempo, da mesma forma como podemos tratar uma colônia de formigas como um indivíduo. Essa possibilidade de entendimento nos oferece um motivo adicional para crer que espécies selecionam seus membros através do que poderíamos chamar de uma indução da espécie.

 

 

II

 

Quero agora considerar alguns plausíveis exemplos da ação da seleção natural na produção de capacidades ou disposições para a formação de crenças a priori.

   Vou começar retornando ao caso da geometria euclidiana. Ela foi considerada por Kant como constituída de juízos sintéticos priori necessariamente aplicáveis ao nosso universo espaciotemporal. Pouco tempo depois, contudo, foram inventadas geometrias não-euclidianas nas quais uma linha curva pode ser a distância menor entre dois pontos, onde sobre um ponto externo a uma reta dada pode ser impossível traçar uma única paralela, ou então que sobre ele pode ser traçado um número infinito de paralelas, ou nas quais a soma dos ângulos internos de um triângulo não é 1800. Essas descobertas relativizaram a pretensão de que só haveria uma única geometria. Mais do que isso, com a teoria da relatividade generalizada proposta em 1915 se demonstrou que o espaço-tempo físico não é na verdade euclidiano por ser positivamente encurvado pela gravitação, seguindo uma geometria riemanianna. Essa descoberta tornou falsa a crença na geometria euclidiana como sendo baseada em juízos sintéticos a priori necessários sobre o universo. Não obstante, é evidente que a evolução natural nos preparou para entender da forma mais clara e intuitiva sempre foi a geometria euclidiana. Afinal, ela é a maneira mais simples que a evolução encontrou para garantir nossa sobrevivência na terra, posto que aqui se trata em um sistema de referência no qual a curvatura do espaço é irrelevante.

   Uma maneira geralmente apresentada de se entender o status epistêmico da questão é distinguir entre geometria aplicada e geometria pura, a última tomada como um sistema abstrato de regras na independência de sua aplicação. Concebida como um sistema de regras aplicado, a geometria euclidiana perde seu caráter de necessidade, pois não se aplica a todos os mundos possíveis, sendo considerada falsa por não se aplicar ao nosso próprio mundo físico. Aqui ela vem a se demonstrar como sendo contingente e a posteriori, mesmo que em seu início possa ter sido concebida como constituída de enunciados sintéticos a priori. No entanto, quando concebida como geometria pura, a geometria euclidiana é a priori e analiticamente verdadeira. Um tal sistema pode ser concebido em qualquer mundo possível, sendo, portanto, necessário.

  Qual a conclusão que podemos tirar disso? Admitindo que nosso entendimento da geometria euclidiana possui um componente inato, podemos supor que esse componente nos induza naturalmente à produção de supostos juízos sintéticos a priori quando a interpretamos do ponto de vista de sua aplicação ao mundo físico ao nosso redor: juízos que Kant consideraria necessários e mesmo assim capazes de ser negados sem contradição. A mais precisa experiência empírica da ciência reinterpretou esses juízos como sendo sintéticos a posteriori e, ademais, falsos. Por outro lado, esse mesmo componente inato pode ter dado lugar à idealização constitutiva da geometria euclidiana abstrata, que pode ser considerada a priori e analítica, posto que a negação de seus enunciados resulta em contradição dentro do sistema.

   É importante observar que pode existir aqui o que tem sido chamado de sobredeterminação epistêmica (epistemic overdetermination): em muitos casos seríamos justificados a priori e ao mesmo tempo de modo experiencial (por indução ou refutação), o que reforçaria tanto o aprendizado do que se nos apresenta como verdadeiro quanto a sua rejeição (Casullo 2010, 47).

   Um segundo exemplo seria o da aritmética. Parece que a nossa habilidade de contar é resultado de predisposições inatas das quais resultam crenças priori. Somos todos capazes de em apenas um relance identificar sem contar um conjunto de objetos como possuindo quatro ou cinco moedas. Mas há alguns savants capazes de identificar de imediato um conjunto de mais de 300 moedas de um relance, sem precisar contar. Somos capazes de fazer as quatro operações com números pequenos, mas há savants capazes de fazê-las com grandes números. Essas variações indicam que tanto nossa capacidade de contar quanto a nossa capacidade de realizar as quatro operações possui componentes inatos.

   Também podemos distinguir entre aritmética aplicada e pura. Quando crianças aprendemos aritmética contando objetos físicos. Duas peras e três maçãs somam cinco frutas. Mais tarde aprendemos a abstrair a aritmética de suas aplicações concretas considerando, no caso, a soma “2 + 3 = 5”. Não precisaria ser aqui aplicado um mecanismo de idealização inato?

   Uma propriedade de nosso conhecimento da aritmética pura é que ele pode ser considerado verdadeiro em todos os mundos possíveis. Ele seria, pois, necessário e a priori, pois como tal depende apenas de intuição e raciocínio, mas não da experiência. Nosso conhecimento da aritmética aplicada é, porém, baseado na experiência que temos do mundo. Parece que podemos imaginar um mundo logicamente possível no qual ao somarmos duas peras e três maçãs obtenhamos de repente seis frutas, um mundo no qual quando somássemos entidades experienciais discretas uma nova entidade surgiria do nada... Esse seria um mundo no qual a regra de adição de nossa aritmética aplicada seria falsa. Essa hipótese não parece à primeira vista plausível, devido à nossa tendência de supormos a existência de uma razão empírica para tal acontecimento. Mas essa tendência pode advir simplesmente do fato de percebermos que tal hipótese implica em uma descomunal revisão de nosso sistema conceitual aplicável ao mundo empírico. Contudo, isso não a torna algo logicamente impossível. Concluímos que nossa aritmética aplicada não é algo necessário, pois não é aplicável em todos os mundos possíveis. Ela é contingente e a posteriori. O que Kant tomou como necessário a priori evidencia-se assim como contingente a posteriori, uma vez que ele tinha em mente a aritmética dependente do processo temporal de contar, que é aplicada. Já a aritmética abstrata pode ser considerada a priori e analítica, posto que sua negação seria contraditória. Sendo algo abstrato e independente de como o mundo é, a negação da aritmética abstrata seria linearmente falsa em todos os mundos possíveis, uma vez que dependente somente de si própria e não deles. Ela pode ser assim considerada não só a priori, mas também necessária.

   Passo agora à lógica, escolhendo examinar o princípio da não-contradição. Que um pensamento não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob uma mesma interpretação é algo que não podemos conceber como sendo falso, pois para tudo o que concebemos precisamos aplicar esse princípio. Esse é um princípio a priori e analítico (no sentido de que não pode ser negado sem contradição) – um princípio que parece fundamental demais para ser plausivelmente falseável.[2] Mas parece claro que a aplicação desse princípio, como a de outros princípios fundamentais da lógica, é parte das capacidades evolucionárias à disposição de qualquer ser vivo capaz de ter cognições. Uma zebra não pode identificar um leão e ao mesmo tempo não o identificar, pois se o fizesse a sua sobrevivência estaria gravemente ameaçada. A capacidade de aplicar princípios lógicos em nossas cognições parece ser um resultado extremamente benéfico e indispensável do processo evolucionário. A razão de um princípio lógico tão fundamental como o da lei da não-contradição não ser plausivelmente refutável é que ele é ubíquo. Isso nos faz recordar a tese de Wittgenstein de que a possibilidade de representação se deve ao que existe de ultimamente comum entre a representação e o mundo, que para ele é a forma lógica (2001: 2.2); o princípio da não-contradição parece inevitavelmente comum tanto ao pensamento quanto à realidade de qualquer mundo que possa ser feito cognoscível.[3] O pensamento não pode contradizer o princípio da não-contradição porque tanto ele quanto aquilo que ele representa precisam estar em conformidade com tal princípio, a comunidade entre ambos sendo justificável como resultado da seleção natural. (Nossa capacidade de aplicar o princípio precisa, aliás, ser distinguida do tipo de ato introspectivo de reconhecer conscientemente o princípio no pensamento, ato esse que, diversamente do princípio, não precisa ser a priori. Esse ato de reconhecimento foi instanciado, por exemplo, por Aristóteles em sua Metafísica.)

   Como um último exemplo quero considerar um princípio propriamente metafísico, um candidato a juízo sintético a priori ou a algum sub-rogado desse princípio. Escolho aqui o princípio esposado por filósofos como Kant, segundo o qual toda a mudança se dá de acordo com a lei da causa e do efeito (1787 A139/B231), ou, mais simplesmente: todo evento precisa ter uma causa. Esse princípio deveria ser aceito como justificação para a causalidade. Pondo entre parênteses o que Kant possa ter dito em defesa desse princípio, ele é prima facie falso. Hume estava certo em observar que podemos claramente imaginar eventos sem causas. Podemos imaginar que comecem a surgir certos objetos do nada e que nunca se consiga descobrir as causas; o que nos garante que essas causas existam? Mas digamos – o que parece bem plausível – que tenhamos uma disposição de origem inata para, encontrando um evento, buscar a sua causa. Tratar-se-ia de uma disposição para agir segundo o princípio, possivelmente sob efeito de sobredeterminação indutiva. Nesse caso o princípio pode ser considerado um a priori não necessário, posto que logicamente derrotável pela experiência. Contudo, isso não significa que ele não possa ser aperfeiçoado de tal modo que sua refutação se torne inconcebível. Consideremos, por exemplo, o princípio segundo o qual ao menos um evento precisa ser causado. Como a própria experiência é causal, esse princípio não pode ser refutado pela experiência. Mas ele exclui a possibilidade de leis causais. Ele é, obviamente, um princípio fraco demais para nossos propósitos. Considere, alternativamente, a seguinte reformulação (meramente tentativa) do princípio:

 

A relação causal deve ser suficientemente comum para legitimar nossa expectativa de que uma vez dado um evento poderemos encontrar suas causas.

 

Parece mais difícil rejeitarmos essa versão enfraquecida, admitindo que a causalidade é necessária até mesmo para legitimar nossa apreensão experiencial da realidade. A conclusão parece ser a de que ao menos formas enfraquecidas do princípio da causalidade devem ser indispensáveis para que possamos conceber um mundo possível no qual seja possível a existência do que normalmente chamamos de leis naturais. E como a própria apreensão experiencial da realidade se dá segundo leis naturais, parece que não seria possível conceber um mundo cognoscível no qual nenhuma forma desse princípio fosse seguida, pois nesse caso não teríamos como legitimar nossas expectativas experienciais.

   Sob tais considerações, a vantagem de termos princípios a priori determinados pela evolução, mesmo que falíveis, torna-se clara. Eles servem como pontos de partida para que possamos eventualmente desenvolver princípios mais adequados.

 

 

 

III

 

Um último ponto antes de terminar. O que o evolucionismo aplicado ao entendimento do a priori nos tem a ensinar é uma forma de naturalismo: não só nosso conhecimento experiencial tem origem empírica, mas também nossas crenças a priori, ainda que de forma indireta, através da evolução natural. A origem última do a priori é a posteriori. A consciência disso nos faz perguntar: por que não abandonar o conceito de fonte a priori de conhecimento junto com o do próprio racionalismo? Por que não fazer como Devitt, que baseado na constatação desse fato rejeitou o recurso ao a priori?

   Essa me parece a maneira errada de ver o problema; ela joga fora o bebê junto com a água suja da bacia. Recusando-se a admitir um a priori relativizado, ela rejeita o racionalismo pelos seus erros e não pelos seus acertos. O que Platão percebeu de importante não foi a descoberta de um outro mundo, o mitológico mundo inteligível das ideias, mas a descoberta de que há uma fonte de crenças (que hoje sabemos ser em última análise derivada) que não resulta diretamente da experiência, uma fonte cuja justificação só hoje nos tornamos capazes de compreender, graças à teoria da evolução. Não é o Platão místico, mas o Platão presciente que importa considerar. Do mesmo modo, não é o idealismo da monadologia leibniziana que nos interessa aqui (por mais interessante que seja), mas a sua concepção do inatismo como constituído de disposições para a formação de certas ideias sob estímulos apropriados. Afora isso, considere um defensor do racionalismo monista como Spinoza, que identificava Deus com a natureza possuidora de infinitos modos de apresentação ou atributos, só dois deles acessíveis a nós: os atributos do pensamento e da extensão. Não há nesse racionalismo naturalista uma incongruência de princípio com a ideia de que nossas crenças a priori sejam resultado da evolução natural e que tenham todas uma origem empírica. A metafísica spinozista poderia ser até mesmo revisitada à luz dessa ideia.

   O empirismo, por sua vez, se distinguiu pela tentativa de rejeição da fonte a priori do conhecimento. A sugestão de Locke de que não existem ideias inatas e de que a mente é uma tabula rasa quando nascemos – aquilo que Karl Popper ridicularizou como sendo a teoria do balde mental – é representativa dessa limitação. Ela deixa inexplicado como o conhecimento poderá ser construído de forma similar e potencialmente compartilhável entre os diferentes sujeitos epistêmicos. Precisamos de crenças a priori, mesmo que elas sejam falíveis e filogeneticamente derivadas, para orientar e estruturar nossos ganhos cognitivos. Não estou com isso defendendo o racionalismo contra o empirismo. Essas distinções doutrinárias acabaram de ser desfeitas.[4] Estou apenas tentando sugerir que, devidamente dimensionado, o grande insight do racionalismo mantém-se, mesmo que demonstrado compatível com um empirismo de fundo e um naturalismo metafísico.

 

 

Referências:

Aristotle. 1984. Metaphysics. In The Complete Works of Aristotle, ed. J. Barnes, vol. II. Princeton: Princeton University Press.

Augustine. 1991 (397-400 d.C.). Confessions, tr. H. Chadwick. Oxford: Oxford University Press.

Bonjour, Laurence. 2011. “A priori Knowledge”, in S. Berneker and D. Pritchard, The Routledge Companion to Epistemology. New York: Routledge.

Bonjour, Laurence. 2005. “Is there A Priori Knowledge?” In Contemporary Debates in o Epistemology. Oxford: Blackwell.

Bonjour, Laurence. 1998. In Defense of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press.

Casullo, A. 2010. “A Priori Knowledge”, in J. Dancy, E. Sosa and M. Steup, A Companion to Epistemology. Oxford: Blackwell, 43-52.

Charruters, P., S. Laurence, S. Stich (eds.). 2005. The Inate Mind. Oxford: Oxford University Press.

Dennett, Daniel. 2018. From Bacteria to Bach and Back. W. W. Norton & Company.

Descartes, René. 1978 (1647). Meditationes de Prima Philosophia (Méditations Métaphysiques). Paris: J. Vrin.

Devitt, Michael. 2010. “No Place for the A Priori”. In Putting Metaphysics First: Essays on Metaphysics and Epistemology, chap. 13. Oxford: Oxford University Press.

Hull, David. 1976. “Are Species really Individuals?” Systematic Biology, 25, 174-191.

Kant, Immanuel. 1998 (1787). Kritik der Reinen Vernunft. Hamburg: Felix-Meiner Verlag.

Locke, John. 1975 (1689). An Essay Concerning Human Understanding. Ed. Oxford: Oxford University Press.

Leibniz, Gottfried, Samuel Clarke. 1956 (1717). The Leibniz-Clarke Correspondence, Manchester: Manchester University Press.

Mares, Edwin. 2011. A Priori. Montreal & Kingston: McGill-Queen’s University Press.

Plato. 1997. Plato: Complete Works, ed. John M. Cooper. Indianapolis, IN: Hackett Publishing.

Pollock, J. L., J. Cruz. 1999. Contemporary Theories of Knowledge. Rowman & Littlefield.

Popper, Karl. 1974. Objective Knowledge. London: Oxford University Press.

Priest, Graham. 1998. “What is so Bad About Contradictions?” Journal of Philosophy 95, 410-426.

Wittgenstein, Ludwig. 2001. Tractatus Logico-Philosophicus. London: Routledge.

 

 

 

 

 

 

 



[1] Bertrand Russell escreveu em sua Autobiografia que quando criança ele deduziu grande parte dos teoremas de Euclides por si mesmo, sem tê-los lido no livro dos Elementos. Como isso seria possível sem a existência de capacidades inatas?

[2]  Há, obviamente, objeções a essa conclusão. Uma delas viria do dialeteísmo (Priest 1998), que não me parece muito mais do que uma curiosa e sofisticada mistificação intelectual, que pode se tornar deletéria ao reforçar ao invés de desfazer confusões. Concordo com a ideia de que podemos passar sem o princípio da explosão. Mas não penso que isso nos comprometa com a aceitação da verdade de p & ~p. Essa espécie de lógica paraconsistente parece menos plausível sempre que tentamos passar da mera manipulação de símbolos a sua aplicação a casos supostamente reais. Minha dificuldade com o paradoxo do movimento, por exemplo, é o de que não faz sentido dizer que há movimento e não há movimento em um  momento do tempo, dado que um momento no tempo é algo infinitesimal e que o conceito de movimento é feito para ser aplicado a um intervalo temporal. Não é preciso recorrer ao dialeteísmo para responder a tal paradoxo. Com o exemplo do database, que não é verdadeiro nem falso (mas para o autor é verdadeiro e falso), o problema é que com ele nós assumimos que o conjunto de proposições tem uma extensão que é muito maior do que {p, ~p}, eliminando a solução dialeteísta. Outro caso suposto é o da indeterminação na mecânica quântica; mas isso fica em aberto, já que a refutação do princípio depende da interpretação que dermos a essa indeterminação.

[3] Aristóteles tinha uma formulação ontológica, uma formulação psicológica e uma formulação lógico-linguística para o princípio, o que reflete essa ubiquidade. Segundo a primeira “o mesmo atributo não pode pertencer e não pertencer ao mesmo objeto (ao mesmo tempo e) do mesmo modo”. De acordo com a segunda “É impossível para uma pessoa ao mesmo tempo acreditar que uma coisa é e que ela não é”. De acordo com a terceira, “De dois enunciados, um dos quais afirma algo e o outro o nega, um deve ser verdadeiro e o outro falso”. Ver Metafísica 1005 b ff.

[4] Ao invés de escolher entre a teoria empirista do balde mental de Locke e a teoria racionalista do holofote do conhecimento de Popper, prefiro a teoria do pescador de caranguejos, que à noite usa uma lanterna para identificar caranguejos junto a um balde no qual os deposita.



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