RAIZES EVOLUCIONÁRIAS DO A
PRIORI
Como é bem
sabido, a epistemologia investiga as origens, a natureza e os limites do
conhecimento. Nosso problema aqui terá a ver com as origens. Há origens ou
fontes de conhecimento sempre lembradas, que são a experiência, a intuição ou
razão a priori, a memória e o testemunho. Memória e testemunho são fontes
secundárias, pois remetem às duas primeiras. Se me recordo de ter deixado meu
carro no estacionamento, isso é porque tive a experiência perceptual de tê-lo
deixado lá. Se me lembro do modus ponens é porque aprendi a
explicitar essa regra, não diretamente da experiência, mas como um constituinte
de meu suposto conhecimento a priori, a ser definido como um conhecimento
“intuitivo”, não propriamente advindo da experiência. Se uma pessoa confiável
me deu testemunho de ter presenciado um assalto é porque ela teve a experiência
perceptual daquele evento... Experiência, de um lado, e intuição ou razão a
priori, de outro, são as fontes primárias do conhecimento. Quero enfocar aqui o
assim chamado conhecimento a priori.
Para esclarecer, eis alguns poucos exemplos
standard de candidatos a conhecimento a priori:
(1) Convenções claramente
analíticas ou definidoras, como “Solteiros são não-casados” e “O triângulo tem
três lados” Elas são facilmente redutíveis a tautologias lógicas como “Adultos
não-casados [Df. ‘solteiros’] são não-casados” e “A figura plana fechada
de três ângulos e três lados têm três lados”. Eles são apoiados em convenções,
e o filósofo empirista procura reduzir o conhecimento a priori a esse tipo mais
inócuo de conhecimento.
(2) Há casos mais importantes,
como o do conhecimento matemático. Parece que nosso conhecimento aritmético de
que 2 + 3 = 5 é a priori. Nosso conhecimento de que a soma dos ângulos internos
de um triângulo é 1800 na geometria euclidiana advém da um
raciocínio a priori.
(3) Parece claro que nosso
conhecimento lógico de que uma coisa é idêntica a ela mesma (princípio da
identidade) ou de que um pensamento não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo
tempo e sob uma mesma interpretação (princípio da não-contradição) são
conhecimentos a priori, pois eles não parecem advir da experiência. Há
raciocínios cuja verdade parece ser obtida a priori, como o de um modus ponens
((p & p → q) →q) ou nosso entendimento de que se A é maior do que B e B
é maior do que C, então A é maior do que C.
(4) Mais além, há candidatos a
juízos sintéticos a priori como “Uma cor ocupa uma superfície” e “Uma mesma
superfície não pode ser toda vermelha e toda azul ao mesmo tempo”, ou ainda
candidatos de maior interesse filosófico como, digamos, “Todo evento tem uma
causa” e “O futuro deve ser como o passado”. Todos esses exemplos parecem ser
de verdades a priori, as quais parecem necessárias e independem da experiência
para serem conhecidas.
Como também é
de todos sabido, o empirismo enfatiza a experiência como fonte de conhecimento,
enquanto o racionalismo enfatiza a intuição e razão a priori. Nossas próximas
questões são: o que é, mais precisamente, a experiência? E o que é, mais
precisamente, a intuição a priori?
A primeira questão é relativamente fácil de
ser respondida. Quando falamos de experiência, nos referimos primeiro à experiência
perceptual espaciotemporal do mundo ao nosso redor. Mas também podemos nos
referir ao conhecimento reflexivo ou introspectivo que temos de estados mentais
como sensações, emoções e mesmo pensamentos. O que justifica essa extensão do
conceito de experiência é o fato de esses objetos de conhecimento serem
contingentes e espaciotemporais. Ocorrências de pensamentos são contingentes e
se dão no espaço e no tempo. Como lembrou Laurence BonJour, até mesmo o cogito
cartesiano é experiencial (2011: 284).
A
segunda questão é mais difícil. Kant definiu o conhecimento a priori
negativamente, como aquele que independe da experiência, ainda que tal
conhecimento pressuponha o aprendizado experiencial dos conceitos relevantes
que o constituem. Esse conhecimento tinha para ele a característica de ser
necessário e estritamente universal (1952: B2). Diversamente de Kant,
racionalistas contemporâneos como BonJour admitem a falibilidade do a priori
(1998). Por muitos é hoje admitida uma forma enfraquecida de conhecimento a
priori em que esse suposto conhecimento possa ser derrotado, não só por não ter
sido corretamente acessado, mas também por ter entrado em contradição com
outras crenças a priori ou mesmo com crenças a posteriori ou experienciais
(Mares, 2011). Enquanto o conhecimento a posteriori é justificado pela
experiência, o conhecimento a priori é por vezes dito autojustificador (self-justifying),
embora não se saiba exatamente o que se possa querer dizer com isso. Na
tentativa de fornecer uma definição positiva do que seja o conhecimento a
priori podemos começar falando de uma apreensão, de um insight,
de uma intuição ou razão a priori. Todos esses termos, contudo,
são demasiado obscuros para nos fornecerem uma definição positiva. Escolho usar
a palavra mais tradicional ‘intuição’, dando preferência à palavra ‘razão’ para
a crença priori que for derivada da intuição a priori.
Pela
falta mesmo de uma definição positiva, a principal objeção contra o
conhecimento a priori tem sido a da obscuridade e do mistério (Devitt
2005: 111-12). Termos como ‘intuição’ e ‘razão’ não parecem ser nada
elucidativos. Filósofos racionalistas tradicionais tentaram resolver o problema
fazendo esses termos remeterem a origens místico-religiosas. Platão sugeriu que
adquirimos o conhecimento das ideias através de reminiscência (anamnesis).
Assim, se vejo um objeto triangular, ele contém uma cópia imperfeita da ideia
do triângulo; isso me faz rememorar a ideia de triângulo, com a qual minha alma
esteve em contato quando pairava no mundo das ideias, antes de ter sido
incorporada (Menon, 1997: 353-384). (Note-se que intérpretes tem dúvidas
sobre até que ponto Platão apelava a tais explicações seriamente ou como mero
recurso elucidativo). Agostinho esposava a doutrina da iluminação
divina: apreendemos verdades da matemática, da estética e da moralidade, porque
Deus as ilumina para nós, fazendo-nos participar delas (1991, IV, xv, 25). Para
Descartes não foi muito diferente. Temos a ideia de Deus como o ser que possui
todas as perfeições. Como somos imperfeitos, essa ideia não pode ter sido
proveniente de nós mesmos. Logo, Deus existe e a colocou em nós desde o
nascimento na forma de ideia inata. Como um ser infinitamente bom, ele permite
que tenhamos intuições de verdades a priori. Estas são as que possuam as marcas
da clareza e distinção, que são as marcas da verdade. Essas marcas são típicas
das proposições matemáticas. (1978, II-IV).
Foi assim que a tradição tentou fundamentar
intuição e conhecimento a priori. Embora muito poucos hoje acreditem nas
explicações acima elencadas, é revelador perceber que todas elas de algum modo
recorrem ao inatismo.
É nesse ponto que entra a sugestão de que
nosso conhecimento a priori se deixe melhor explicar como um produto
evolucionário da seleção natural. Daniel Dennett notou que explicações
pré-darwinianas da origem das espécies eram do tipo “Top-Down”, ou seja, de cima
para baixo. (Deus criou o homem e todas as outras espécies prontas de uma vez
para sempre, o que explica a nós e nosso lugar no universo.) Por outro lado, as
explicações pós-darwinianas da origem das espécies se tornaram do tipo
“Bottom-Up”, ou seja, de baixo para cima (2018). (Segundo elas, o ser humano
resultou de alguns milhões de anos de um cego processo de tentativa erro
chamado de seleção natural, que começou ainda mais remotamente com a
formação de grupamentos de moléculas orgânicas, como os coacervados do caldo
primevo.) Se aplicarmos essa ideia à formação de crenças inatas chegamos a uma
sugestão concisamente exposta por Michael Devitt:
Suponha que uma crença seja
extremamente benéfica para a sobrevivência de quem a possui. Então deve haver
um processo de seleção natural que a torne inata. Só isso não torna a crença
inata justificada, pois os seus efeitos benéficos não precisam ser os de sua
verdade. Por exemplo: podemos imaginar crenças religiosas falsas, mas benéficas
para a sobrevivência. Agora, suponha que a crença seja de fato verdadeira e que
por ser verdadeira é que ela foi benéfica e foi selecionada. Tal crença inata
seria produzida por um mecanismo confiável, sendo inatamente justificada; esse
processo de seleção seria um modo confiável de herdarmos o trabalho
justificador de nossos ancestrais distantes (2010: 272).
Devitt
conclui disso que o a priori não existe. Contudo, do meu ponto de vista esse
argumento apenas confirma a existência do a priori. Ele pode ser entendido como
a sugestão de que, como resultado da evolução natural herdamos certas propensões
cognitivas (no que incluo capacidades, habilidades e disposições inatas...),
as quais, sob a direção de experiências anteriores e de circunstâncias
apropriadas, produzem nossas intuições de crenças ou supostos conhecimentos a
priori. Essa é, finalmente, uma explicação não obscura para nossas intuições a
priori: nossas crenças a priori se (auto)justificam intuitivamente ou
racionalmente a partir de intuições. Elas são disposicionalmente intuídas como
verdadeiras, sendo a existência desse processo o último elo daquele longo
processo de tentativa e erro da evolução natural que levou à existência da
mente humana.
Note-se que se minha sugestão for estendida
a toda e qualquer crença a priori, então todo o nosso conhecimento acabará por
ter uma origem última empírica, pois ou ele é (a) a posteriori, decorrente da
experiência do indivíduo, ou ele é (b) a priori, na dependência da intuição do
indivíduo, mesmo que se possa também ser chamado de a posteriori por decorrer
da experiência da espécie. Minha posição é, pois, naturalista: todas as nossas
crenças possuem origem na experiência, logo nossos objetos de conhecimento e,
como veremos, mesmo nossos mecanismos de conhecimento, resultam da natureza. A
conclusão de Devitt, que creio ter vindo da percepção desse ponto, adicionada à
bastante contestável ideia de que o a priori por definição de algum modo
transcende o mundo empírico, foi a de que o a priori não existe, o que o
torna o defensor, não só, como eu, do naturalismo, mas de um empirismo radical
(2010). Essa conclusão, contudo, eu rejeito, pois entendo que minha leitura das
consequências de (b) é mais forte do que a sugestão exposta, posto que não só
nos fornece uma maneira convincente de justificar a natureza da intuição a
priori, mas desfaz a obscuridade e o mistério da própria justificação a priori.
Em minha opinião, a explicação transcendente
do a priori só foi assumida pelos filósofos racionalistas tradicionais porque a
cultura cientificamente despossuida de sua época lhes havia dado uma concepção
de mundo (uma Weltaufassung) que assumia como certa a existência de um Deus
(ou de deuses) pessoais e de uma alma, admitindo-os como transcendentais. Por
isso prefiro entender essa formação de capacidades, habilidades e disposições
cognitivas inatas através da evolução, não como a negação da crença a priori,
mas como a bem fundada sugestão de um desenvolvimento de nossa concepção da
crença a priori como uma crença falível, reduzindo assim o conhecimento
a priori a um conhecimento suposto. Trata-se, porém, do mesmo a priori
divisado pelos filósofos racionalistas, posto que em essência ele se reduz à
formação de crença por uma intuição não-experiencial da parte do agente
epistêmico. Mas essa é uma maneira de entender o a priori que evita a
obscuridade e mistério que o cercavam antes do surgimento da teoria da
evolução.
Uma outra consideração epistemológica de
interesse sobre a natureza desse ganho de capacidades e disposições para a
apreensão de crenças a priori é que se trata do que eu literalmente gostaria de
chamar de indução evolucionária. Essa expressão pode parecer
extravagante à primeira vista, mas não parece tão estranha quando examinamos
mais de perto o processo evolucionário e o comparamos com nossos procedimentos
indutivos. Quero evidenciar isso através de um exemplo. Imagine um agente
epistêmico destituído de qualquer intuição geométrica inata, que
descubra por indução individual numérica que a reta é a distância mais curta
entre dois pontos. Seu raciocínio será como se segue:
Generalização enumerativa (I):
[A] Ao ser apresentado a uma
linha cobrindo a distância mais curta entre esses dois pontos [B] vejo que é um
segmento de reta.
(repetição da constatação
acima um número suficiente de vezes...)
Em todos os casos nos quais
[A] é dada uma linha cobrindo a distância mais curta entre dois pontos, ela
será [B] um segmento de reta.
Ora, é bem
sabido que a geometria euclidiana contém proposições a priori que teriam sua
origem em capacidades inatas. Afinal, enunciados como “A distância mais curta
entre dois pontos é um segmento de reta”, “Sobre um ponto situado fora de uma
reta só pode ser traçada uma paralela” e “A soma dos ângulos de qualquer
triângulo é 1800” são fortes candidatos a objetos de crenças a
priori, os dois primeiros pela intuição, o último pela razão.[1]
Vejamos agora, comparativamente, qual seria
a estrutura do processo de seleção natural que teria conduzido à constituição
de capacidades inatas para a compreensão da geometria euclidiana no mesmo caso
da distância mais curta entre dois pontos:
Generalização enumerativa
(II):
Um membro da espécie sobrevive
até a reprodução por possuir a disposição inata de [A] ao ser apresentado a uma
linha cobrindo a distância mais curta entre dois pontos [B] vê-la como um
segmento de reta.
(sobrevivência até a
reprodução de um número suficiente de outros membros da espécie com essa
mesma disposição inata...)
Todos os membros selecionados
da espécie possuem a disposição inata de [A] ao serem apresentados a uma linha
cobrindo a distância mais curta entre dois pontos [B] a verem como um segmento
de reta.
Estou
convencido de que a semelhança entre as generalizações enumerativas (I) e (II)
é muito mais do que mera analogia. Induções são inferências lógicas ampliativas
que usualmente se instanciam cognitivamente em agentes epistêmicos humanos. Mas
esse fato é meramente contingente e considerá-lo necessário seria recair em uma
interpretação psicologista de um fato lógico. Se a o processo de indução não se
instanciar psicologicamente, por exemplo, se ela se instanciar em computadores
programados para realizá-la, ou em androides, isso não fará a menor diferença.
Do mesmo modo, a instanciação da generalização indutiva no próprio processo
filogenético de seleção natural produtor de propensões inatas para se ter
cognições compartilháveis entre os membros de uma espécie é algo irrelevante
para a sua admissão enquanto tal.
Finalmente, a ideia da existência de uma
indução evolucionária tem sua credibilidade aumentada quando pensamos no
caráter supostamente espaciotemporal intrínseco na definição de espécie
sugerida por David Hull (1976). Se pudesse ser trazido um animal de outra
galáxia que fosse idêntico aos nossos tigres, tivesse o mesmo layout genético e
fosse capaz de se intercruzar com eles, nós ainda assim resistiríamos a
classificá-lo como um tigre. Afinal, tigres são animais que se desenvolveram na
Ásia. Por isso filósofos como Hull decidiram tratar uma espécie como um
indivíduo que se desenvolve no tempo, da mesma forma como podemos tratar
uma colônia de formigas como um indivíduo. Essa possibilidade de entendimento
nos oferece um motivo adicional para crer que espécies selecionam seus membros
através do que poderíamos chamar de uma indução da espécie.
II
Quero agora
considerar alguns plausíveis exemplos da ação da seleção natural na produção de
capacidades ou disposições para a formação de crenças a priori.
Vou começar retornando ao caso da geometria
euclidiana. Ela foi considerada por Kant como constituída de juízos sintéticos
priori necessariamente aplicáveis ao nosso universo espaciotemporal. Pouco
tempo depois, contudo, foram inventadas geometrias não-euclidianas nas quais
uma linha curva pode ser a distância menor entre dois pontos, onde sobre um
ponto externo a uma reta dada pode ser impossível traçar uma única paralela, ou
então que sobre ele pode ser traçado um número infinito de paralelas, ou nas
quais a soma dos ângulos internos de um triângulo não é 1800. Essas
descobertas relativizaram a pretensão de que só haveria uma única geometria.
Mais do que isso, com a teoria da relatividade generalizada proposta em 1915 se
demonstrou que o espaço-tempo físico não é na verdade euclidiano por ser
positivamente encurvado pela gravitação, seguindo uma geometria riemanianna.
Essa descoberta tornou falsa a crença na geometria euclidiana como sendo
baseada em juízos sintéticos a priori necessários sobre o universo. Não
obstante, é evidente que a evolução natural nos preparou para entender da forma
mais clara e intuitiva sempre foi a geometria euclidiana. Afinal, ela é a
maneira mais simples que a evolução encontrou para garantir nossa sobrevivência
na terra, posto que aqui se trata em um sistema de referência no qual a curvatura
do espaço é irrelevante.
Uma maneira geralmente apresentada de se
entender o status epistêmico da questão é distinguir entre geometria aplicada e
geometria pura, a última tomada como um sistema abstrato de regras na
independência de sua aplicação. Concebida como um sistema de regras aplicado, a
geometria euclidiana perde seu caráter de necessidade, pois não se aplica a
todos os mundos possíveis, sendo considerada falsa por não se aplicar ao nosso
próprio mundo físico. Aqui ela vem a se demonstrar como sendo contingente e a
posteriori, mesmo que em seu início possa ter sido concebida como constituída
de enunciados sintéticos a priori. No entanto, quando concebida como geometria
pura, a geometria euclidiana é a priori e analiticamente verdadeira. Um tal
sistema pode ser concebido em qualquer mundo possível, sendo, portanto,
necessário.
Qual a conclusão que podemos tirar disso?
Admitindo que nosso entendimento da geometria euclidiana possui um componente
inato, podemos supor que esse componente nos induza naturalmente à produção de
supostos juízos sintéticos a priori quando a interpretamos do ponto de vista de
sua aplicação ao mundo físico ao nosso redor: juízos que Kant consideraria
necessários e mesmo assim capazes de ser negados sem contradição. A mais
precisa experiência empírica da ciência reinterpretou esses juízos como sendo
sintéticos a posteriori e, ademais, falsos. Por outro lado, esse mesmo
componente inato pode ter dado lugar à idealização constitutiva da geometria
euclidiana abstrata, que pode ser considerada a priori e analítica, posto que a
negação de seus enunciados resulta em contradição dentro do sistema.
É importante observar que pode existir aqui
o que tem sido chamado de sobredeterminação epistêmica (epistemic
overdetermination): em muitos casos seríamos justificados a priori e ao
mesmo tempo de modo experiencial (por indução ou refutação), o que reforçaria
tanto o aprendizado do que se nos apresenta como verdadeiro quanto a sua
rejeição (Casullo 2010, 47).
Um segundo exemplo seria o da aritmética.
Parece que a nossa habilidade de contar é resultado de predisposições inatas
das quais resultam crenças priori. Somos todos capazes de em apenas um relance
identificar sem contar um conjunto de objetos como possuindo quatro ou cinco
moedas. Mas há alguns savants capazes de identificar de imediato um
conjunto de mais de 300 moedas de um relance, sem precisar contar. Somos
capazes de fazer as quatro operações com números pequenos, mas há savants
capazes de fazê-las com grandes números. Essas variações indicam que tanto
nossa capacidade de contar quanto a nossa capacidade de realizar as quatro
operações possui componentes inatos.
Também podemos distinguir entre aritmética
aplicada e pura. Quando crianças aprendemos aritmética contando objetos
físicos. Duas peras e três maçãs somam cinco frutas. Mais tarde aprendemos a
abstrair a aritmética de suas aplicações concretas considerando, no caso, a
soma “2 + 3 = 5”. Não precisaria ser aqui aplicado um mecanismo de idealização
inato?
Uma propriedade de nosso conhecimento da
aritmética pura é que ele pode ser considerado verdadeiro em todos os mundos
possíveis. Ele seria, pois, necessário e a priori, pois como tal depende apenas
de intuição e raciocínio, mas não da experiência. Nosso conhecimento da
aritmética aplicada é, porém, baseado na experiência que temos do mundo. Parece
que podemos imaginar um mundo logicamente possível no qual ao somarmos duas
peras e três maçãs obtenhamos de repente seis frutas, um mundo no qual quando
somássemos entidades experienciais discretas uma nova entidade surgiria do
nada... Esse seria um mundo no qual a regra de adição de nossa aritmética
aplicada seria falsa. Essa hipótese não parece à primeira vista plausível,
devido à nossa tendência de supormos a existência de uma razão empírica para
tal acontecimento. Mas essa tendência pode advir simplesmente do fato de
percebermos que tal hipótese implica em uma descomunal revisão de nosso sistema
conceitual aplicável ao mundo empírico. Contudo, isso não a torna algo
logicamente impossível. Concluímos que nossa aritmética aplicada não é algo
necessário, pois não é aplicável em todos os mundos possíveis. Ela é
contingente e a posteriori. O que Kant tomou como necessário a priori
evidencia-se assim como contingente a posteriori, uma vez que ele tinha
em mente a aritmética dependente do processo temporal de contar, que é
aplicada. Já a aritmética abstrata pode ser considerada a priori e analítica,
posto que sua negação seria contraditória. Sendo algo abstrato e independente
de como o mundo é, a negação da aritmética abstrata seria linearmente falsa em
todos os mundos possíveis, uma vez que dependente somente de si própria e não
deles. Ela pode ser assim considerada não só a priori, mas também necessária.
Passo agora à lógica, escolhendo examinar o
princípio da não-contradição. Que um pensamento não pode ser verdadeiro e falso
ao mesmo tempo e sob uma mesma interpretação é algo que não podemos conceber
como sendo falso, pois para tudo o que concebemos precisamos aplicar esse
princípio. Esse é um princípio a priori e analítico (no sentido de que não pode
ser negado sem contradição) – um princípio que parece fundamental demais para
ser plausivelmente falseável.[2] Mas parece
claro que a aplicação desse princípio, como a de outros princípios fundamentais
da lógica, é parte das capacidades evolucionárias à disposição de qualquer ser
vivo capaz de ter cognições. Uma zebra não pode identificar um leão e ao mesmo
tempo não o identificar, pois se o fizesse a sua sobrevivência estaria
gravemente ameaçada. A capacidade de aplicar princípios lógicos em nossas
cognições parece ser um resultado extremamente benéfico e indispensável do
processo evolucionário. A razão de um princípio lógico tão fundamental como o
da lei da não-contradição não ser plausivelmente refutável é que ele é ubíquo.
Isso nos faz recordar a tese de Wittgenstein de que a possibilidade de
representação se deve ao que existe de ultimamente comum entre a representação
e o mundo, que para ele é a forma lógica (2001: 2.2); o princípio da
não-contradição parece inevitavelmente comum tanto ao pensamento quanto à
realidade de qualquer mundo que possa ser feito cognoscível.[3] O pensamento
não pode contradizer o princípio da não-contradição porque tanto ele quanto
aquilo que ele representa precisam estar em conformidade com tal princípio, a
comunidade entre ambos sendo justificável como resultado da seleção natural.
(Nossa capacidade de aplicar o princípio precisa, aliás, ser distinguida do
tipo de ato introspectivo de reconhecer conscientemente o princípio no
pensamento, ato esse que, diversamente do princípio, não precisa ser a priori.
Esse ato de reconhecimento foi instanciado, por exemplo, por Aristóteles em sua
Metafísica.)
Como um último exemplo quero considerar um
princípio propriamente metafísico, um candidato a juízo sintético a priori ou a
algum sub-rogado desse princípio. Escolho aqui o princípio esposado por
filósofos como Kant, segundo o qual toda a mudança se dá de acordo com a lei
da causa e do efeito (1787 A139/B231), ou, mais simplesmente: todo
evento precisa ter uma causa. Esse princípio deveria ser aceito como
justificação para a causalidade. Pondo entre parênteses o que Kant possa ter
dito em defesa desse princípio, ele é prima facie falso. Hume estava
certo em observar que podemos claramente imaginar eventos sem causas. Podemos
imaginar que comecem a surgir certos objetos do nada e que nunca se consiga
descobrir as causas; o que nos garante que essas causas existam? Mas digamos –
o que parece bem plausível – que tenhamos uma disposição de origem inata para,
encontrando um evento, buscar a sua causa. Tratar-se-ia de uma disposição para
agir segundo o princípio, possivelmente sob efeito de sobredeterminação
indutiva. Nesse caso o princípio pode ser considerado um a priori não
necessário, posto que logicamente derrotável pela experiência. Contudo,
isso não significa que ele não possa ser aperfeiçoado de tal modo que sua
refutação se torne inconcebível. Consideremos, por exemplo, o princípio segundo
o qual ao menos um evento precisa ser causado. Como a própria
experiência é causal, esse princípio não pode ser refutado pela experiência.
Mas ele exclui a possibilidade de leis causais. Ele é, obviamente, um princípio
fraco demais para nossos propósitos. Considere, alternativamente, a seguinte
reformulação (meramente tentativa) do princípio:
A relação causal deve ser
suficientemente comum para legitimar nossa expectativa de que uma vez dado um evento
poderemos encontrar suas causas.
Parece mais
difícil rejeitarmos essa versão enfraquecida, admitindo que a causalidade é
necessária até mesmo para legitimar nossa apreensão experiencial da realidade.
A conclusão parece ser a de que ao menos formas enfraquecidas do princípio da
causalidade devem ser indispensáveis para que possamos conceber um mundo
possível no qual seja possível a existência do que normalmente chamamos de leis
naturais. E como a própria apreensão experiencial da realidade se dá segundo
leis naturais, parece que não seria possível conceber um mundo cognoscível no
qual nenhuma forma desse princípio fosse seguida, pois nesse caso não teríamos
como legitimar nossas expectativas experienciais.
Sob tais considerações, a vantagem de termos
princípios a priori determinados pela evolução, mesmo que falíveis, torna-se
clara. Eles servem como pontos de partida para que possamos eventualmente
desenvolver princípios mais adequados.
III
Um último
ponto antes de terminar. O que o evolucionismo aplicado ao entendimento do a
priori nos tem a ensinar é uma forma de naturalismo: não só nosso
conhecimento experiencial tem origem empírica, mas também nossas crenças a
priori, ainda que de forma indireta, através da evolução natural. A origem
última do a priori é a posteriori. A consciência disso nos faz perguntar: por
que não abandonar o conceito de fonte a priori de conhecimento junto com o do
próprio racionalismo? Por que não fazer como Devitt, que baseado na constatação
desse fato rejeitou o recurso ao a priori?
Essa me parece a maneira errada de ver o problema;
ela joga fora o bebê junto com a água suja da bacia. Recusando-se a admitir um
a priori relativizado, ela rejeita o racionalismo pelos seus erros e não pelos
seus acertos. O que Platão percebeu de importante não foi a descoberta de um
outro mundo, o mitológico mundo inteligível das ideias, mas a descoberta de que
há uma fonte de crenças (que hoje sabemos ser em última análise derivada) que
não resulta diretamente da experiência, uma fonte cuja justificação só hoje nos
tornamos capazes de compreender, graças à teoria da evolução. Não é o Platão
místico, mas o Platão presciente que importa considerar. Do mesmo modo, não é o
idealismo da monadologia leibniziana que nos interessa aqui (por mais
interessante que seja), mas a sua concepção do inatismo como constituído de
disposições para a formação de certas ideias sob estímulos apropriados. Afora
isso, considere um defensor do racionalismo monista como Spinoza, que
identificava Deus com a natureza possuidora de infinitos modos de apresentação
ou atributos, só dois deles acessíveis a nós: os atributos do pensamento e da
extensão. Não há nesse racionalismo naturalista uma incongruência de princípio
com a ideia de que nossas crenças a priori sejam resultado da evolução natural
e que tenham todas uma origem empírica. A metafísica spinozista poderia ser até
mesmo revisitada à luz dessa ideia.
O empirismo, por sua vez, se distinguiu pela
tentativa de rejeição da fonte a priori do conhecimento. A sugestão de Locke de
que não existem ideias inatas e de que a mente é uma tabula rasa
quando nascemos – aquilo que Karl Popper ridicularizou como sendo a teoria do
balde mental – é representativa dessa limitação. Ela deixa inexplicado como o
conhecimento poderá ser construído de forma similar e potencialmente compartilhável
entre os diferentes sujeitos epistêmicos. Precisamos de crenças a priori, mesmo
que elas sejam falíveis e filogeneticamente derivadas, para orientar e
estruturar nossos ganhos cognitivos. Não estou com isso defendendo o
racionalismo contra o empirismo. Essas distinções doutrinárias acabaram de ser
desfeitas.[4] Estou apenas
tentando sugerir que, devidamente dimensionado, o grande insight do
racionalismo mantém-se, mesmo que demonstrado compatível com um empirismo de
fundo e um naturalismo metafísico.
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Wittgenstein,
Ludwig. 2001. Tractatus Logico-Philosophicus. London: Routledge.
[1] Bertrand Russell
escreveu em sua Autobiografia que quando criança ele deduziu grande parte dos
teoremas de Euclides por si mesmo, sem tê-los lido no livro dos Elementos.
Como isso seria possível sem a existência de capacidades inatas?
[2] Há, obviamente, objeções a essa
conclusão. Uma delas viria do dialeteísmo (Priest 1998), que não me
parece muito mais do que uma curiosa e sofisticada mistificação intelectual,
que pode se tornar deletéria ao reforçar ao invés de desfazer confusões.
Concordo com a ideia de que podemos passar sem o princípio da explosão. Mas não
penso que isso nos comprometa com a aceitação da verdade de p & ~p. Essa
espécie de lógica paraconsistente parece menos plausível sempre que tentamos
passar da mera manipulação de símbolos a sua aplicação a casos supostamente
reais. Minha dificuldade com o paradoxo do movimento, por exemplo, é o de que
não faz sentido dizer que há movimento e não há movimento em um momento do tempo, dado que um momento no
tempo é algo infinitesimal e que o conceito de movimento é feito para ser
aplicado a um intervalo temporal. Não é preciso recorrer ao dialeteísmo para
responder a tal paradoxo. Com o exemplo do database, que não é
verdadeiro nem falso (mas para o autor é verdadeiro e falso), o problema é que
com ele nós assumimos que o conjunto de proposições tem uma extensão que é
muito maior do que {p, ~p}, eliminando a solução dialeteísta. Outro caso
suposto é o da indeterminação na mecânica quântica; mas isso fica em aberto, já
que a refutação do princípio depende da interpretação que dermos a essa
indeterminação.
[3] Aristóteles tinha uma formulação ontológica, uma formulação psicológica
e uma formulação lógico-linguística para o princípio, o que reflete essa
ubiquidade. Segundo a primeira “o mesmo atributo não pode pertencer e não
pertencer ao mesmo objeto (ao mesmo tempo e) do mesmo modo”. De acordo com a
segunda “É impossível para uma pessoa ao mesmo tempo acreditar que uma coisa é
e que ela não é”. De acordo com a terceira, “De dois enunciados, um dos quais
afirma algo e o outro o nega, um deve ser verdadeiro e o outro falso”. Ver Metafísica
1005 b ff.
[4] Ao invés de escolher entre a teoria empirista do balde mental de Locke
e a teoria racionalista do holofote do conhecimento de Popper, prefiro a teoria
do pescador de caranguejos, que à noite usa uma lanterna para identificar
caranguejos junto a um balde no qual os deposita.
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