METAFILOSOFIA NIETZSCHEANA
Nietzsche foi
perspicaz ao perceber que em um sentido importante o pior do cristianismo é
aquilo que ele chamou de ideal ascético, que em sua época era o
ideal de aliar-se masoquistamente à pobreza, à humildade, à castidade e a
outras formas de autonegação, como forma de se obter um prazer doentio e
pervertido. Para ele a função do ideal ascético é a de dar sentido ao
sofrimento, pois sem sentido o sofrimento é insuportável. O ideal ascético
tinha como seu maior mentor a figura do padre ascético, que se opunha à vida,
valorizando a auto-mortificação, a autoflagelação, o auto-sacrifício. Essas
atitudes que parecem suicidas são na verdade maneiras veladas de preservar a
vida. E o seu objetivo último, para Nietzsche, é o de limitar o ser humano e
envenenar as mentes do que ele chamou de homens superiores.
Para ele, a assim chamada consciência
moral resulta de uma internalização e espiritualização da crueldade. Como
ele escreveu em uma importante passagem:
Todos os instintos que não se
descarregam para fora voltam-se para dentro: a isso eu chamo
de internalização do homem, pois é através dela que nele se origina
aquilo que mais tarde será denominado sua “alma”. Todo o mundo interior, que em
sua origem era fino e tenso como uma linha esticada, soltou-se e ampliou-se de
tal maneira que ganhou profundidade, largura e altura, quando a descarga dos
homens para fora foi inibida. Aqueles terríveis bastiões pelos quais o
estado se protegeu dos antigos instintos de liberdade – entre eles sobretudo os
castigos – teve como resultado que aqueles instintos do homem que vagava livre
e selvagem se voltaram contra ele mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer
da perseguição, do ataque, da mudança, da destruição, tudo isso voltou-se
contra o possuidor de tais instintos: essa é a origem da “má-consciência”.[1]
Ou seja, o
homem é por natureza uma espécie de criança má, que principalmente por força da
civilização cristã, teve seus instintos internalizados e espiritualizados na forma da má-consciência.[2]
Com
tais observações Nietzsche antecipava sectariamente a psicanálise. Freud
analisou algo próximo do que Nietzsche chamava de ideal ascético em termos
de introjeção: pela introjeção, as pulsões relacionadas à
sobrevivência do indivíduo e da espécie (mais tarde questionavelmente
substituídas por eros e thanatos) seriam internalizadas e
dirigidas para onde vieram, para o próprio ego (Ich)
tornando-se no ego superego (über-Ich), no caso, consciência
moral, sentimento de culpa possivelmente resultando na necessidade de
autopunição. A introjeção torna-se assim parte dos mecanismos de autocontrole
necessários ao processo civilizatório, que permitem ao homem distanciar-se de
seu estado animal.
A psicanálise freudiana nos permite refletir
sobre a existência de formas sublimadas de internalização da agressividade e
até mesmo notarmos que há instintos altruístas no ser humano, os relacionados à
sobrevivência da espécie e não
apenas do indivíduo, que poderiam contrabalançar o que Nietzsche chamou de
crueldade. (Considere o caso do animal que se sacrifica pelas crias.) Seja como
for, o simples recalcamento da agressividade, na medida em que esta não for
racionalmente sublimada, possui um potencial destrutivo e no final das contas
mesmo autodestrutivo. A emergência do nazismo foi um exemplo histórico disso.
Um outro exemplo histórico foi o ocaso de Esparta. A educação repressora
extremamente disciplinar dos espartanos lhes propiciava a capacidade de
conquistar novos territórios, mas a inflexibilidade resultante dessa mesma
educação lhes impedia de fazer acordos que lhes permitissem dominar esses novos
territórios a longo prazo. Já sob o domínio romano é conhecida a descrição de rituais
masoquistas de flagelamento, por vezes mortais, os quais recordam as
considerações de Nietzsche.
Não obstante, é preciso lembrar que Nietzsche também tinha uma visão em
parte positiva do ideal ascético. Ele reconhecia que a prática científica o exige.
Além disso, a própria filosofia depende dele, pois para existir ela demanda o
homem inativo, contemplativo, não voltado para a ação. Como ele mesmo notou, a
filosofia teria sido absolutamente impossível pela maior parte do tempo sobre a
terra sem o terno de algodão de um falso conceber ascético.
Essa percepção das repercussões filosóficas resultantes do diagnóstico
nietzschiano do ideal ascético como sintoma de um adoecimento da civilização
ocidental é um ponto importante e a meu ver correto. Podemos encontrar uma
justificação para a inclinação ascética do filósofo: ele precisa viver a vida
do pensamento, o que inevitavelmente demanda distanciamento e repressão das
paixões e conflitos mundanos. Filósofos modernos de Descartes a Kant, por
exemplo, não se casaram. O próprio Nietzsche praticou esse distanciamento e até
muito mais do que outros. Por isso trata-se também de uma perda, pois como
observou o Mefistófeles de Goethe, “toda filosofia é cinzenta; verde é apenas a
árvore de ouro da vida”[3]. É por
isso muito tentador justificar esse distanciamento necessário, mas
frequentemente reativo (“mal resolvido”, no dizer vulgar) através da ideia de
que o mundo sensível é destituído de valor. É parte da integridade e coragem
intelectual de Nietzsche ter praticado esse distanciamento sem ter precisado
para isso se tornar o que ele chamaria de um “negador da vida”.
Pela característica própria de sua atividade
filosófica é fácil àquele que a pratica deixar que o ideal ascético contamine
suas próprias construções intelectuais. Com efeito, uma tese de maior
importância e a meu ver bastante plausível a ser encontrada em Nietzsche é a de
que o ideal ascético não só possibilitou, mas também corrompeu grande parte da
filosofia ocidental. Podemos generalizar essa tese para muito da tradição
ocidental, como o demonstram as observações que se seguem:
1.
O primeiro filósofo a ser corrompido pelo ideal
ascético foi Parmênides, com a sua doutrina de que toda mudança é ilusória. Há
aqui o prenúncio de teorias que serão fugas do mundo real, do visível, do
sensível, do mundo heracliteano da mudança privilegiado por Nietzsche.
2.
Outro filósofo influenciado pelo ideal ascético foi
Sócrates. Ele foi um precursor do padre ascético, com seu prazer sádico em
destruir as crenças das outras pessoas em nome de algum conceito moral ideal.
Sócrates era feio, nota Nietzsche, sem falar do fato de ser casado com uma
mulher quarenta anos mais jovem que lhe dava muito trabalho e nenhum prazer.
Nietzsche notou jocosamente ter sido ela a responsável pelo desenvolvimento
filosófico de Sócrates, pois para não ter de conviver com ela ele preferia
passar os dias conversando nas ruas, o que lhe permitiu desenvolver seu talento
dialético.
3.
Platão, provavelmente homossexual, também foi um grande
cultor do ideal ascético. O mundo visível, o mundo da vida, não era para ele o
mundo real. A pouca realidade encontrada nesse mundo era a de deixar refletir
nele o mundo das ideias eternas, imutáveis, pertencentes somente ao mundo
inteligível. É certo que a doutrina das ideias tinha uma função
predominantemente epistemológica. Ela tinha a função de explicar a predicação
e, através disso, a nossa capacidade de síntese, a capacidade fundamental de
dizer e pensar o mesmo de muitos. Contudo, é também verdade que o ideal
ascético pode ser visto como a motivação clandestina para a hipóstase das
propriedades como sendo ideias abstratas, eternas, imutáveis e constitutivas
daquilo que podemos chamar de o mundo verdadeiramente real (ainda que Platão
tenha sido um filósofo suficientemente sério para encontrar em sua doutrina
graves defeitos, como o atesta a primeira parte do diálogo Parmênides). Aristóteles, que teve mulheres e filho, que era um
biólogo e uma pessoa mais afeita ao senso-comum, prescindiu das ideias ou
formas como universais, ao menos nas interpretações mais sofisticadas. Mas sua
noção de uma substância material imperceptível como suporte das propriedades
deixa-nos ainda hoje perplexos.
4.
O mais ascético dos filósofos pré-cristãos foi
Plotino, que provavelmente sofria de hanseníase e tinha bons motivos para negar
o corpo. Para Plotino a alma é má por encontrar-se interconectada com o corpo.
Para ele a vida nesse mundo é degeneração, fracasso. Como o mal está no mundo e
a alma foi feita para escapar do mal, pensava ele, devemos evadir-nos desse
mundo.
Se mesmo no
mundo antigo o ideal ascético já impregnava a filosofia, faz-se previsível um
aprofundamento dessa tendência com a vitória do cristianismo. A lista torna-se
então muito longa, indo de Agostinho a Hegel, passando por Descartes, Spinoza,
Leibniz e Kant.
Considere, por exemplo, um filósofo teórico
quase contemporâneo como Edmund Husserl, que foi uma pessoa de fé religiosa. É
evidente que sua crença deve ter tido influência em sua aceitação de um
platonismo de significados e de sua teoria da intuição categorial das essências
(uma intuição intelectual), bem como de sua sugestão de um Eu transcendental
fundador.
Podemos especular o que Nietzsche teria
considerado da filosofia de um pensador com temática parecida com a sua, como
Heidegger. Este último definia o homem como um ser-para-a-morte, no sentido de
que a consciência de sua finitude é determinadora de suas atitudes diante da
existência. Em seus últimos anos ele pareceu ter se refugiado em um esteticismo
quase místico, que via a linguagem poética como a casa do ser e o mundo
tecnológico o lugar do esquecimento do ser, da renúncia à busca pelo fundamento
último, ao verdadeiro filosofar. Em sua entrevista para a revista Spiegel ele concluiu que só um Deus
poderia nos salvar. Sem dúvida, esse poderia ser visto ao menos em parte como
mais um exemplo de negação da vida, sendo a substituição da pesquisa filosófica
cada vez mais por uma retórica filosófica parte do culto de mais uma forma de
ideal ascético em filosofia. Heidegger é, sob esse ponto de vista específico,
um filósofo pré-nietzscheano que acabou por refugiar-se em uma retórica
irracionalista, com a qual buscava aproximar-se de um substitutivo de Deus que
ele chamava de Ser.
Finalmente, podemos encontrar traços do
ideal ascético no início da filosofia analítica contemporânea, em um filósofo
como Frege, com o seu mundo de sentidos eternos e atemporais. Mais ainda,
podemos encontrar traços fortes do ideal ascético em muitos filósofos analíticos
contemporâneos do mais alto nível, como Michael Dummett (católico) e Saul
Kripke (judeu praticante, filho de um rabino), que dentro de suas obsessões
formalistas sofrem de um certo grau de horror mundi. Não são muitos os filósofos
analíticos que resistiram a importar algum traço distorsivo do ideal ascético
em suas filosofias, embora alguns, como Bertrand Russell e John Searle, me
pareçam praticamente não afetados por ele. É que nossa crescente cultura
científica torna essa forma de distorção capaz de envolver a crença em um
além-mundo cada vez mais difícil de ser realizada, assim como nosso mundo
tecnológico, que diminui a necessidade da repressão pulsional, torna o ideal
ascético cristão cada vez mais raro.
A influência perversa do ideal ascético
sobre a filosofia pode ser bem demonstrada na ontologia. A moderna teoria
ontológica dos tropos intenta inverter a equação platônico-aristotélica. O ser
enquanto ser, o que em primeiro lugar existe, não são ideias ou formas, mas
tropos, que nada mais são do que propriedades espaciotemporalmente
localizáveis, começando com qualidades sensíveis como formas, solidez, cores,
sons, externas ou internas, incluindo mesmo as quatro forças físicas
fundamentais (gravidade, a força eletromagnética, força forte e força fraca[4]), as quais,
mesmo que dispersas no espaço, não deixam de ser localizáveis. A melhor maneira
de se aplicar essa ideia consiste em se admitir que universais dizem respeito a
conjuntos de tropos que podem ser construídos com base em quaisquer tropos
precisamente similares a um certo tropo escolhido como modelo.[5] E objetos
materiais nada mais são do que combinações de tropos espaciotemporalmente
localizadas. Assim, pela teoria dos tropos tenta-se construir o geral, o
abstrato, o “não-sensível”, a partir do sensível: ao invés de construir o mundo
de cima para baixo, como Platão pretendeu, a teoria dos tropos objetiva
construir o mundo de baixo para cima, como uma forma de empirismo radical. Essa
é, obviamente, uma teoria ontológica muito mais compatível com o pensamento de
Nietzsche.
O mais curioso é que essa teoria, propondo
uma completa inversão dos valores ontológicos, só foi resolutamente proposta na
segunda metade do século XX por um insight tão genial quanto simples de Donald
Williams,[6] mais tarde
tendo sido desenvolvida e, infelizmente, atenuada por outros. Por que essa
teoria não foi proposta antes, digamos, durante a Idade Média, no lugar do
nominalismo? Afinal, mesmo naquela época já existiam instrumentos conceituais
suficientes para a sua formulação. Embora a resposta possa ser mais complexa,
ela me parece envolver em grande medida a crítica nietzscheana ao ideal
ascético. A ontologia dos tropos se opõe à contaminação da ontologia pelo ideal
ascético que se deu no realismo, pelo menos a partir de Platão. Ela também se
opõe à negação ascética do problema do realismo que se constitui nos
nominalismos que rejeitam a ideia de que expressões conceituais tenham
referentes próprios. Ela dá um valor fundamental aos objetos da percepção, ao
mundo visível, e se propõe a fazer derivar dele o mundo inteligível. Ela
poderia ter sido proposta mesmo pelos filósofos antigos. Por que isso nunca
aconteceu?
Cabe aqui a objeção: não teriam as doutrinas
realistas (platônica e aristotélica), assim como a sua antítese nominalista,
apenas reprimido por mais de dois milênios o que seria a solução mais plausível
do problema dos universais e do problema da substância, a qual sempre esteve ao
nosso alcance e que hoje é chamada de a teoria dos tropos? Parece que essa
última teoria só encontrou lugar na ontologia contemporânea pelo fato de nossa
filosofia se deixar menos influir pelas distorções do ideal ascético, sendo a
resistência que ela ainda encontra, ao que parece, uma mera resultante do peso
de dois mil anos de tradição.
Por outro lado, embora influenciando a filosofia, a aceitação e mesmo defesa do
ideal ascético pode atingir muito pouco as ideias de filósofos interessados em
questões menos associadas à vida humana, naquilo que mais lhe dá valor, do
mesmo modo que o cristianismo doentio de Pascal não atingia as suas
contribuições para a matemática enquanto tais.
Para sermos mais justos, consideremos a doutrina das ideias de Platão uma
última vez. Importa pouco que o ideal ascético tenha participado de sua gênese,
uma vez que o objetivo central da doutrina era
linguístico-epistemológico-ontológico, buscando explicar nossa capacidade de
predicar, ou seja, como nos é possível dizer o mesmo de muitos. Foi um mérito
da doutrina platônica ter sido a primeira tentativa de responder mais
detalhadamente à questão da unidade do múltiplo, mesmo que pela postulação de
um mundo inteligível separado do mundo sensível. Desvalorizar a doutrina
platônica com base apenas no ascetismo reativo do qual ela emerge, sem uma cuidadosa
avaliação dos argumentos, seria cometer uma falácia genética.
[1] Friedrich Nietzsche: Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift, II, 16. Creio que Nietzsche, influenciado pelo que aprendeu da história das
civilizações antigas, exagerava a agressividade própria do ser humano, que é
grandemente determinada pela cultura. Mas isso pouco importa aqui.
[2] Creio que
Nietzsche, influenciado pelo que aprendeu da história das civilizações antigas,
exagerava a agressividade própria do ser humano, que é grandemente determinada
pela cultura. Mas isso pouco importa ao que pretendo mostrar aqui.
[3] “Grau, teurer Freund, ist alle Theorie und Grün des
Leben goldener Baum”. Faust I, Studienzimmer.
[4] Keith
Campbell chamou-as de “quasi-tropes”, uma vez que não são qualidades
percebidas. Seja como for, segundo a definição aqui sugerida elas são tropos de
qualquer modo. Cf. seu livro Abstract Particulars. Oxford:
Blackwell, 1990, p. 91.
[5] Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy. Newcastle Upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing,
2018, apêndice do capítulo IV.
[6] Donald Williams: “On the Elements of Being” I, Review of Metaphysics,
7(1), pp. 3–18; On the Elements of Being II, Review of Metaphysics,
7(2), pp. 171–92. 1953.
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