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If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Claudio Ferreira Costa: PHILOSOPHICAL TEXTS - TEXTOS DE FILOSOFIA

  


             THIS "BLOG" WAS IDEALIZED AS A WAY TO MAKE MY WORK IN PHILOSOPHY MORE ACCESSIBLE. IT CONTAINS MORE THAN 100 WRITINGS, THOUGH USUALLY IN DRAFT FORMS, IN ENGLISH AND/OR PORTUGUESE. THE PAPERS WITH INTEREST FOR THE RESEARCHER WERE MARKED WITH #.

ESSE "BLOG" FOI IDEALIZADO COMO UMA MANEIRA DE TORNAR MEU TRABALHO FACILMENTE ACESSÍVEL. ELE CONTÉM MAIS DE 100 ESCRITOS, MUITOS DELES EM PORTUGUÊS. ALGUNS SÃO DIDÁTICOS, OUTROS NÃO. OS TRABALHOS DE INTERESSE PARA PESQUISADORES FORAM MARCADOS COM #



FROM MY CURRICULUM

I was born in Vila Seropedica, near to Rio de Janeiro, Brazil, 1954. After an intellectually boring medicine undergraduate study, I gained my MS in philosophy at the IFCS (Rio de Janeiro) and a Ph.D. in philosophy at the University of Konstanz (Germany). Since 1992, I work as a researcher and professor at the UFRN (Natal), secluded in the beautiful Northeastern of Brazil, though always in contact with the international philosophical discussion through many grants taken at the universities of Konstanz, Munich, Berkeley, Oxford, Göteborg, and Ecóle Normale Supérieure (INS). Even if dealing with contemporary analytic philosophy, I am at odds with the lack of comprehensiveness of the present mainstream philosophy. I have social dyslexia (a light degree of autism), which explains not only my lack of sociability but also my obsessive interests and intellectual independence. The books I am not ashamed to have written are "The Philosophical Inquiry" (Lanham: UPA, 2002), which develops a thesis on the nature of philosophy, Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions" (Cambridge Scholars Publishing, 2014), and "Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy" (Cambridge Scholars Publishing, 2018). The book from 2014 is a selection of essays (some of them, in my view, really relevant), while the long book from 2018 can be read as a comprehensive analysis of a cluster of concepts regarding philosophical methodology, the concept of meaning, verificationism, and truth, as investigated by philosophers from Frege to Wittgenstein. The book last published book, "How do Proper Names Really Work?" (De Gruyter 2023), has as its main goal to overthrow the old stalemate between the new and the old orthodoxy in the philosophy of language. Personally, I believe this book should be a game-changer in the field. If it will be noticed, I do not know.


SOME BOOKS (ALGUNS LIVROS):






 
















DOS PRÉ-SOCRÁTICOS A DESCARTES (DRAFT)

  ISSO É UM DRAFT DE UM LIVRO DE INTRODUÇÃO HISTÓRICA À FILOSOFIA QUE ESTÁ SENDO ESCRITO. NATURALMENTE, CONTÉM ERROS E IMPRECISÕES.

 

I

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA

 

A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 500 anos antes de Cristo. Há quem diga que a filosofia é muito mais antiga. Para alguns ela nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras. Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo, originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal objetivo era orientar a vida humana.

   A filosofia, tanto ocidental quanto a oriental, teve origens místicas. Como resultado disso temos uma desagradável confusão entre filosofia e sabedoria de vida, que mesmo hoje é comum entre leigos. Confunde-se filosofia com alguma disciplina mística, quase religiosa, enquanto a filosofia acadêmica, como resultado de uma especulação coletiva de comunidades de conhecedores sedimentada sobre uma tradição milenar, pouco tem a ver com sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação aparentemente esotérica e inacessível ao público leigo.

   É interessante lembrar nesse contexto a opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos, se originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada é que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião. Com efeito, essa filosofia se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria, de um aconselhamento sobre o bem-viver, de uma forma elevada de autoajuda, enquanto a filosofia nascida com os filósofos pré-socráticos se ocupava de argumentos críticos desenvolvidos por pessoas que conheciam a ciência da época e que buscavam substituir o legado do pensamento mitológico por um questionamento especulativo que prefigurava o pensamento científico. A opinião de Hegel pode ser exagerada, mas há nela algo de verdadeiro.

   Para entender o nascimento da filosofia ocidental precisamos considerar o trabalho dos filósofos pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por terem preocupações filosóficas cosmológicas, muito diversas das preocupações morais de Sócrates. Eles foram os primeiros a terem surgido na Grécia, em um período que vai do século VI ao século V antes de Cristo. O principal objetivo desses filósofos era encontrar um princípio originador e sustentador de tudo o que existe, a assim chamada arché. Esse princípio pertencia à natureza (physis), daí o naturalismo dos pré-socráticos. Eles eram bons cientistas, conheciam matemática, geometria, engenharia, astronomia. Por isso mesmo, o pensamento deles, embora incluindo elementos religiosos, caracterizava-se por um rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto comum era o de substituir as explicações mitológicas da natureza e de suas anomalias por princípios especulativos que pelo menos tivessem a forma de princípios científicos, uma vez que em tais domínios a ciência como ciência era impossível.

 

1

 

Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o filósofo jônico Tales de Mileto (647-524 a.C.). Ele também foi um astrônomo e matemático, tendo previsto um eclipse solar no ano de 585 a.C. Ele acreditava que a água fosse o princípio de todas as coisas, posto que a vida nasce das coisas úmidas. O princípio água coincidia com o divino, donde tudo se encontra pleno de deuses.

    Para Nietzsche, Tales foi a primeira pessoa a ter a ideia de uma unidade na multiplicidade de tudo o que existe, a intuição original de que tudo é um, de que o universo possui uma unidade constitutiva e que nós podemos ter, em princípio, acesso cognitivo a ela.[1] O esforço no sentido de obter uma compreensão unificadora de todas as coisas foi característica da filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica ocidental.

   A busca da unidade na multiplicidade tem sido em nossa época reforçada através da noção de consiliência, que consiste na assunção da existência de uma unidade da realidade.  Esse pressuposto é essencial à toda investigação. Ele faz com que através da investigação nós possamos ter como princípio orientador a sugestão de que as diferentes ideias, caso verdadeiras, possam se complementar umas às outras, reforçando-se assim em sua plausibilidade.

   Tales foi sucedido por outros dois filósofos Jônicos mais jovens do que ele: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro sugeriu que o mundo fosse resultado de um elemento indefinido ou, mais literalmente, do Ápeiron, que se traduz como o ilimitado. Essa é uma ideia importante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos.

   Anaximandro (610-546 a.C.) foi responsável pela ideia de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros, que não cai nem para um lado nem para outro, pelo equilíbrio das forças. O filósofo da ciência Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de inércia e mesmo o da gravitação. A filosofia dos pré-socráticos atua entre a mitologia e a ciência e, às vezes, como uma clara antecipação da última.

   Anaxímenes (599-524 a.C.), por sua vez, sugeriu que o princípio originador e constitutivo fosse o ar. Afinal, não podemos permanecer vivos sem respirarmos. E disso ele supôs que o mundo inteiro, tal como um ser vivo, também fosse dependente da existência do ar para subsistir. Como explicou em um dos fragmentos:

 

Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo inteiro.[2]

 

Anaxágoras (500-428 a.C.), nascido na Jônia, foi outro importante filósofo pré-socrático. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente em filosofia. Ele entendia a Arché como sendo o nous, ou seja, a mente ou pensamento. Para ele a mente era algo que embora fosse material era absolutamente puro:

 

A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.

 

A mente seria uma força infinita que, agindo sobre a matéria informe, dá origem a tudo o que existe nesse mundo.

 

   Anaxágoras foi também o defensor da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang. Segundo ele, no começo todo o universo se encontrava comprimido em um átomo primordial:

 

Todas as coisas estavam juntas, infinitamente pequenas em número e pequenez, pois o pequeno era infinitamente pequeno. E como estava tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.

 

Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior, jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua. Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais (atualmente dizemos que também possuímos em nossos corpos átomos das estrelas). Essa expansão do universo existe hoje e continuará existindo sempre. E com isso também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido gerados, com sol e lua próprios e habitados por criaturas tão inteligentes quanto nós.[3]

   Em meio a tudo isso a única coisa que continua a mesma e que tudo move é a mente. Nesse último ponto seu Big-Bang difere do nosso, uma vez que preferimos substituir seu conceito animista de mente pelo de leis fundamentais da natureza.

 

2

 

Princípios múltiplos. Outros filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo múltipla. Assim, os seguidores de Pitágoras, tendo percebido que tudo na natureza possuía quantidades e formas, concluiu que os números eram o princípio fundamentador do universo. Eles seriam o fundamento, começando do número um, que é base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria. Com base na matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que objetivava explicar não só o universo, mas também a vida humana. Eles acreditavam na doutrina da transmigração das almas que influenciou o pensamento de Platão.

   Também acreditavam em princípios múltiplos os filósofos atomistas, que foram Leucipo e seu discípulo Demócrito (460-370 a.C.), do qual restaram muitos fragmentos, além de Epicuro (341-270 a.C.), um filósofo grego da época helenista. Para Demócrito o mundo é constituído do que ele chamou de átomos, que são partículas invisíveis, indivisíveis, com solidez e impenetrabilidade, tamanhos e formas diversas e infinitos em número. Eles constituem todas as coisas visíveis. Afora os átomos, só o que existe é o espaço ou vazio. Os átomos se movem e se chocam uns contra os outros segundo leis deterministas. Como consequência, os atomistas foram os primeiros filósofos distintamente materialistas. Mas isso não os impedia de acreditarem no espírito, pois as almas humanas poderiam ser entendidas como constituídas de átomos extremamente sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode ser porque os átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças enquanto estávamos dormindo, interagido com os átomos de nossas almas.

   É importante notar que os atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória decidimos chamar de átomos, que compõem a tabela periódica, mais tarde substituídos por partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons, quarks, gluons e fótons. Mesmo que eles de maneira alguma pudessem antecipar a física das partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a ideia de que o universo deveria ser formado por partículas invisíveis discretas móveis e possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de dois mil anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas eram corretas.

   Além das especulações cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:

 

É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.

Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.

A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.

Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo aquele que não o procura.

Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma virtuosa é o universo.

Em verdade, porém, nada sabemos, pois no abismo encontra-se a verdade.

 

É curioso notar que esses dísticos valem hoje tanto quanto valeram há 2.500 anos atrás. Parece que o ser humano em certos aspectos pouco ou nada aprendeu com os erros de seus antepassados.

   Um outro pré-socrático pluralista que merece ser citado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 450 a.C.), que se considerava um deus e que segundo a lenda deu fim a sua vida atirando-se na cratera do Etna. Ele foi um precursor de Darwin ao sugerir especulativamente que as espécies se desenvolvem através de uma luta na qual seres que por acaso nascem com as mais diversas características entram em disputa de modo que só os mais aptos sobrevivem. Para ele os seres vivos se originaram do mar e o ser humano em tempos primevos deveria ser muito diferente, considerando que hoje ele precisa de anos de completa dependência dos pais para poder sobreviver por si mesmos, diversamente dos animais.

   Ele foi o inventor da ideia de que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele encontrou em filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água (Tales), o ar (Anaxímenes), o fogo (Heráclito) e a terra (Xenófanes). Eles são imutáveis e combinam-se uns aos outros de modo a formas o universo visível. Essa teoria foi aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair por terra.

   Para Empédocles atuam sobre os quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o amor) e discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com que o universo sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos em tempos tudo se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram todos perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a da harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força da discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os elementos e formando os objetos hoje conhecidos, até quando terra, ar, água e fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava estarmos em um estágio intermediário, em que as forças da discórdia agem de maneira cada vez efetiva.

   A doutrina cíclica de Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados sem forma, crescendo e se diferenciando até envelhecer e, na morte, tornam-se outra vez matéria informe.

   A ideia de um mundo cíclico foi famosamente reapresentada por Nietzsche sob a forma do que ele chamou de o eterno retorno. Mas ele o entendia como um experimento psicológico para testar a autenticidade de nossas atitudes perante a vida.[4] Para tal ele imaginou que as nossas vidas devessem se repetir identicamente nos mais ínfimos detalhes um número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e decisão, retornasse outra vez e assim infinitamente, essa seria a prova de uma atitude absolutamente afirmativa diante de sua existência.

    Finalmente, a ideia de um mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem sido presente na cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang é para ser seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo uma versão atual daquilo que Empédocles propôs de forma puramente especulativa.

 

3

 

Heráclito. Quero me deter em Heráclito e Parmênides, que foram os mais impressionantes filósofos pré-socráticos. Na antiguidade eles eram considerados opostos, pois Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a imobilidade. Mas veremos que nem por isso eles se opõem verdadeiramente, posto que por detrás da mudança Heráclito enfatizava a unidade da razão, que pode ser comparada ao Ser de Parmênides.

    Heráclito (florescimento 500 a.C.), como Nietzsche, Wittgenstein, e ainda outros, foi um filósofo que se exprimia por meio de aforismos. Muitos desses aforismos são profundos e nos dizem algo ainda hoje. Eis alguns deles:

 

A harmonia invisível é mais forte do que a visível.

O que está em cima é idêntico ao que está embaixo.

A natureza ama ocultar-se.

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).

A harmonia invisível é mais forte que a visível.

Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.

 

Heráclito pertencia à nobreza hefésia. Foi um pensador de índole aristocrática, misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se por meio de aforismos de tom profético. Seus dísticos eram intencionalmente obscuros, de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir racionalmente.

   Heráclito era um elitista no que concerne aos seres humanos. Embora a razão seja um bem comum a todos, para ele poucos fazem uso dela:

 

A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem falar.

As opiniões dos homens são jogos de crianças.

 

Heráclito, ao que parece, era também um filósofo capaz de odiar em medida pouco comum, como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus concidadãos. Faço aqui apenas uma breve seleção deles:

 

Os porcos preferem a lama à água limpa.

Os cães ladram para o que desconhecem.

Tudo o que rasteja merece ser chicoteado.

Um para mim vale mil se for o melhor.

Asnos preferem a grama ao ouro.

 

Se você quiser ofender alguém gravemente sem precisar lançar mão de palavrões, basta se lembrar de algum desses aforismos.

   Heráclito foi o filósofo do conflito. Para ele o conflito entre os opostos é necessário, pois é dele que nasce a mais bela harmonia. Ele considerava as guerras necessárias:

 

A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.

 

A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Por exemplo, foi graças à genialidade e astúcia de um general grego, Temístocles, que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a continuação da produção cultural grega com o aparecimento de Platão e Aristóteles. Hegel era um admirador de Heráclito. A ideia hegeliana de que a razão humana é apenas um momento da razão universal parece ter sua origem em Heráclito.

   Mas não seria a necessidade da guerra uma ideia ultrapassada, posto que esperamos que no futuro as guerras deixem de existir? Essa seria uma maneira bastante superficial de entendermos o que Heráclito quis dizer. Mesmo que as guerras deixem de existir, os conflitos entres grupos humanos continuarão existindo de forma mais elevada, por exemplo, como conflito de influências e ideias. Se Heráclito estivesse aqui entre nós ele diria que a sua ideia de guerra, agora entendida de forma metafórica como qualquer forma de convulsão social, continuará sempre existindo, dado que é inerente à vida humana em sociedade.

   Outra ideia iconoclasta de Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas oposições são interdependentes, o que deve desfazer a ilusão escapista de que possa haver um mundo inteiramente justo e inteiramente bom, ao menos dentro da perspectiva humana. Essa ideia vale para a sociedade e também para os indivíduos. Para Heráclito o ser humano é constitutivamente aprisionado ao conflito, de modo que a possibilidade de que ele se eleve à afirmação de uma existência para além do conflito é enganosa. De onde se pode concluir que seria melhor para ele que ele aceitasse o conflito e tentasse superá-lo conscientemente pela ação ou pela reflexão – aqui um ponto de contato entre Heráclito e Nietzsche.

   Faço uma pausa para lembrar um livro: O visconde partido ao meio de Ítalo Calvino. Na estória, o visconde Medardo di Terralba é uma pessoa que na Guerra contra os mouros foi partido em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o problema separando as metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes. Mas eles incorreram em um erro, pois um deles herdou a parte má do visconde, enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a parte má se transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que era vivo, belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era ingênuo e esquecia de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por considerá-lo tedioso. A estória termina quando as duas metades se reencontram e entram em duelo. Curiosamente, durante a luta elas pareciam querer aproximar-se uma da outra. Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que reúne as duas partes e faz reviver o visconde original. Sem grande surpresa esse novo visconde passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa medida, ciente outra vez dos extremos volitivos do bem e do mal que deve manter sob o controle de sua consciência.

    Para Heráclito a Arché não era a água, nem o ar, nem a terra, mas o fogo, no qual outros elementos se desfazem. Segundo ele:

 

Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre vivente fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.

 

Para ele sem o conflito o mundo se desfaria em nada. Ele não foi só o filósofo do conflito, mas também do movimento, da mudança. Como o fogo, tudo se encontra em movimento, embora preso a medidas determinadas por leis. Também a vida é tensão, conflito, mudança incessante:

 

Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois novas águas correm sempre por ele.

 

Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao movimento e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de oposições, existe a ordem oculta da natureza, imposta pelas leis da razão (o logos) e alcançável através do pensamento. Para ele é a razão que secretamente domina o mundo. Heráclito era um panteísta que acreditava que Deus se encontra em todas as coisas. Mas esse Deus, o Uno, era para ele a própria razão que revela a identidade na diferença, a unidade no todo e a medida de cada coisa. A razão, disse ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os habitantes de sua cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem os grandes poetas como Homero e Hesíodo.

    O fundamento último da filosofia de Heráclito não está, portanto, no movimento, nem no conflito dos opostos, mas na ideia da unidade do todo, na ideia de que a razão, que subjaz ao conflito, é capaz de unificar os opostos e dar lhes proporção e medida. Sob a perspectiva do Deus que para ele é a razão ou o Uno, todas as tensões são reconciliadas e as diferenças harmonizadas. Como ele disse:

 

Para o Deus todas as coisas são justas e boas, mas os homens sustentam que algumas coisas são erradas e outras certas.

 

Há também em Heráclito o que me parece uma sugestão acerca da natureza da filosofia como um saber antecipador da ciência, que ele apresenta na forma do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o expõe:

 

A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos, graças ao deus que está nela.

 

Esse juízo de Heráclito sobre a sibila era na verdade sobre seus próprios pensamentos. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da filosofia. Muito da filosofia pré-socrática metaforicamente antecipa o que será futuramente tematizado em maior rigor e detalhe por outros filósofos ou mesmo descoberto pela ciência. Por isso a filosofia tem sido chamada de o berçário das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da ciência.

 

4

 

Parmênides. Talvez o mais influente dentre os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), o fundador da escola eleática. Para ele o princípio, a arché, era o que ele chamou de o ser. Ele definiu o ser como uma coisa imóvel e imutável. A ideia central é a de que o ser, o uno, é, enquanto o não-ser, a mudança, o vir-a-ser, é apenas uma ilusão. Precisa ser assim porque se qualquer coisa vem a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem a ser do ser então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se qualquer coisa vem do não-ser, então ela nada é, pois nada vem do não-ser.

   Mas o que é, afinal, o ser? Parmênides apresenta o ser como possuindo uma lista de atributos. Para ele o ser é incorruptível, nem ele é gerado nem perecível, encontrando-se inteiro em cada instante. Ele é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel e também finito e redondo, pois a esfera finita era para os gregos o símbolo da perfeição, embora isso seja melhor entendido como uma metáfora. Em conformidade com o modo de pensar dos pré-socráticos o ser parmenideano deve, pois, pertencer à physis, à natureza. E como ele adiciona que o objeto do pensar e do ser é o mesmo,[5] ele parece estar apontando para o objeto do pensamento verdadeiro. O ser parmenideano parece tomar o lugar dos deuses do politeísmo, mas perdendo a qualidade de projeção antropomórfica característica dos últimos. Seu discurso sobre o ser também poderia estar apontando para as leis da natureza, mais tarde aproximativamente apreendidas pela mente humana, no que parece possível de ser encontrada uma proximidade última entre Parmênides e Heráclito.

   Parmênides complementa esse pensamento metafísico-ontológico (i.e., daquilo que é, que existe de maneira mais geral) com algumas sugestões epistemológicas que dão início a um domínio de investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chega até os dias de hoje. Ele distingue explicitamente a via do conhecimento da via erro. O conhecimento diz respeito ao ser enquanto o erro diz respeito ao pretenso conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é imutável, diversamente do pretenso conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é o conhecimento daquilo que aparece aos sentidos e se apresenta como mutável.

   Vale a pena transcrevermos aqui o fragmento principal do poema de Parmênides:

 

E agora (disse a musa) vou falar: e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que não pode ser que ele não seja; esse é o caminho da verdadeira persuasão, pois segue a verdade. O segundo caminho diz que o que não é, é, e que o não-ser é necessário; essa via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é, nem o expressar em palavra.[6]

 

Filósofos posteriores, tanto materialistas como idealistas, foram influenciados por Parmênides. Assim, os atomistas, que eram materialistas, acreditavam que os átomos eram o ser, pois estes eram imutáveis e indestrutíveis. Já Platão acreditava que o ser eram as ideias imutáveis e indestrutíveis, existentes em um mundo puramente inteligível e superior ao mundo material.[7]

   Os discursos de filósofos como Heráclito e Parmênides nos impressiona mesmo hoje, mas o que eles significam possui muito de enigmático, tendo por isso mesmo suscitado inúmeras interpretações. O poema de Parmênides pode ser interpretado como uma antecipação metafórica e sincrética do que será mais tarde desenvolvido por outros. Considere, por exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides. Eles perceberam que ao dizer que o ser é e que não pode não ser ele estava vislumbrando os princípios da identidade e da não-contradição mais tarde tematizados por Aristóteles.

   O efeito tão sublime quanto ofuscante do poema de Parmênides parece ser o resultado da condensação de ideias diversas, mas relacionadas, vagamente expressas em algumas poucas linhas. Há no ser parmenideano um resquício da religião, dado que ele possui ainda características divinas, como as de ser eterno e indestrutível. Mas ele também possui características lógicas, por antecipar os princípios da identidade e da não contradição. Afora isso, ele distingue conhecimento de erro, constrangendo-nos a buscar a verdade no lugar da falsidade, a qual não pode sequer ser dita sem revelar a sua natureza.

 

5

 

 

Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituído as explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem o que poderíamos chamar de a forma da teorias científicas, entendendo-se por isso ideações especulativas que detém suficiente analogia com as últimas, cuja criação é motivada por conhecimento prévio da natureza da investigação científica. É isso o que há em comum entre o atomismo especulativo de Demócrito e a teoria atômica da microfísica contemporânea, ou entre a especulação de Anaxágoras e a presente teoria cosmológica do Big-Bang. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga explicação do cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos que eles mesmos não tinham como avaliar, dado a insuficiência de meios e informações que lhes permitissem resultados precisos em um domínio de investigação ainda não existente.

   Tais especulações só se deram porque esses filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências que eles conheciam e cujo desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a matemática importada do Egito e da Babilônia, como o caso da geometria, considerada pela primeira vez pelos gregos em abstração de suas aplicações, o que permitiu que ela fosse axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de Euclides intitulada Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia tomados dos egípcios. Platão já acreditava que a terra se movia. Sabemos, por exemplo, do notável feito de Erastótenes (circa 300 a.C.). Ele conseguiu medir o diâmetro da terra com razoável precisão, sabendo que ela era redonda. Ele mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a outra, devido à circunferência da terra. Tomando como comparação as medidas dos triângulos formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu calcular com certa precisão a circunferência da terra, um feito extraordinário que foi esquecido nos séculos seguintes. Havia também um conhecimento de engenharia e de rudimentos de física, como pode ser ilustrado pela lei de Alavanca de Arquimedes (287-222 a.C.) ou por sua medição da massa específica de diferentes substâncias, estabelecida pela relação entre o volume de água por elas deslocado e o peso. É assim evidente que os gregos já estavam cientes da imensa vantagem teórica e prática que só o conhecimento científico é capaz de trazer.

 

6

 

Auguste Comte. O estudo dos pré-socráticos nos oferece uma excelente oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos perguntamos sobre o que os pré-socráticos estavam fazendo e sobre a natureza da filosofia em sua relação com a ciência, alguma luz pode ser trazida pela consideração da assim chamada “lei dos três estados” desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o mais importante filósofo francês do século XIX.

   A chamada lei dos três estados da evolução da civilização, já antevista por outros, foi desenvolvida por Comte em seu Curso de filosofia positiva.[8] Esses estados são o teológico, o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar lei tal como ela ainda pode ser reconhecida como plausível. Em adição a isso observo primeiro que não se trata de uma lei no sentido mais estrito, mas de uma regularidade tendencial. Trata-se da identificação de uma vaga sucessão de três estados, que tendem a se sobrepor de modo parcial e irregular no desenvolvimento da civilização. Eis como Comte a apresenta:

 

A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes estados teóricos: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três métodos de filosofar (...)[9]

 

O estado teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o fetichismo, caracterizado pelo animismo, a ideia de que objetos inanimados também são deuses. Ele passa então ao politeísmo, no qual certo número de deuses concorrem na explicação das anomalias da natureza. Nesses dois subestados cada anomalia pode ser explicada por um deus diferente, não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa unificação só é realizada no terceiro subestado, o do monoteísmo, que se caracteriza pela crença na existência de um único Deus. Isso permite uma explicação unificada do mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estado teológico corresponde à infância da humanidade. Ele é repetição do que ocorre no crescimento cognitivo do indivíduo humano, correspondendo à sua infância, ou seja, ao estado no qual a criança acredita na existência de fadas, bruxas e gnomos.

   O estado metafísico é o que faz a transição entre os estados teológico e positivo. Nele os seres humanos buscam substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem do imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações personificadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de preferência reduzindo-se tudo a um único princípio. Exemplos de tais princípios explicativos são as Archai dos pré-socráticos. Esse estado é uma passagem intermediária entre os estados religioso e o científico.

   Os estados religioso e metafísico são para Comte importantes por motivarem os seres humanos a buscar o conhecimento científico quando ele ainda não é possível. Assim, o ser humano persistiu observando os movimentos dos astros por milhares de anos quando buscava através disso meios de prever o futuro. Ora, foi só essa crença supersticiosa que permitiu que se chegasse a descobertas astronômicas reais, desde a medição, distinção e previsão dos os movimentos das estrelas e planetas, do geocentrismo de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura que consistiu no heliocentrismo de Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Newton. Sem um longo estado de especulação pré-científica nada disso poderia ter ocorrido. Para Comte esse foi o momento da adolescência da humanidade. Em termos de desenvolvimento cognitivo do indivíduo trata-se realmente da adolescência, na qual os jovens se comportam como aprendizes de feiticeiros, acreditando tudo saber sem terem aprendido o suficiente. (Piaget identificou a característica metafísica do adolescente com o domínio intuitivo da lógica proposicional.)

   Fazendo abstração de qualquer tentativa de datar os estados[10] a consideração do estado metafísico nos auxilia na compreensão do que os filósofos pré-socráticos estavam fazendo, pois os princípios ou Archai por eles buscados encontravam-se de algum modo entre os deuses da mitologia e as leis naturais. Podemos aqui distinguir duas espécies teóricas de Archai, digamos, as excessivas e as escassas. As excessivas são as que adicionam a entidades naturais propostas como formas de leis entidades com vida e consciência própria semelhantes aos deuses. As escassas são as que se restringem a entidades naturais propostas e formas de leis, sem a adição de entidades supernaturais. Os pré-socráticos são os melhores exemplos de filósofos metafísicos no sentido proposto por Comte porque suas Archai apresentam o inteiro espectro, já que eles estavam enfadados da mitologia e aspiravam a ciência sem ter condições de alcançá-la, disso resultando suas especulações. Assim, a água de Tales era um princípio exuberante: ela funciona como se fosse uma lei natural a possibilitar a vida, encontrando-se ao mesmo tempo repleta de deuses. O ar de Anaximandro era necessário à respiração e, portanto, à vida. Em Empédocles os quatro elementos eram regidos pelas forças do Amor e do Ódio, que apesar de receberem nomes de afetos eram físicas, regulando nomologicamente o curso cíclico do universo. Para os pitagóricos esses princípios eram números e formas tornadas exuberantes, posto que não só satisfazem relações matemáticas e geométricas, mas que devem determinar o destino dos seres viventes. O ar de Anaximandro é uma Arché que permite, pela sua respiração, fazer o homem e o universo viverem, sendo também espírito, ainda que menos exuberante. O mesmo acontece com a mente de Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico é menor, posto que essa mente deve pertencer à physis; ainda assim trata-se de um princípio espiritual capaz de comandar o curso do universo. Exemplos de Archai escassos, elementos ou formas de leis não espirituais, são os átomos de Demócrito, o Ápeiron de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e o ser de Parmênides. Neles o aspecto espiritual tende a desaparecer, permanecendo alguma coisa vaga e obscura, uma forma que toma o lugar de uma inalcançável compreensão do todo. Princípios metafísicos fundamentadores da realidade como um todo continuaram sendo propostos ao longo de toda a história da filosofia. Assim, Platão tinha as ideias, Aristóteles a substância, os medievais tinham o Deus dos filósofos, Leibniz tinha as mônadas, Kant tinha o noumenon, Hegel tinha o absoluto, Heidegger tinha o Ser, Wittgenstein tinha o indizível... Sob essa perspectiva o período metafísico foi mantido até a primeira metade do século XX, em variação com a perspectiva positivista de Comte.

   O último estado é o científico ou positivo. Aqui o ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta pelo “como”. Ele desistiu de buscar princípios últimos explicativos de todo o universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados, ou seja: leis da natureza. Ao invés de buscar por uma verdade absoluta o ser humano passou a buscar verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente de poder sempre estar errado. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da humanidade, correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem adulto.

   O ponto importante é que se Comte estiver certo então a filosofia, compreendida pelo que ele chama de metafísica, deverá ser toda ela em algum ponto substituída pela ciência.

 

7

 

A lei dos três estados precisa ser complementada pela classificação das ciências particulares feita por Comte, uma vez que os estados religioso e metafísico antecedem o nascimento de cada uma delas e que elas nascem em sucessivamente, em dependência uma da outra.

   Para Comte as ciências particulares podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a sua complexidade. A generalidade opõe-se a complexidade e vice-versa. Quanto mais geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto mais complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte das ciências particulares nós chegamos ao seguinte quadro:

 

Maior complexidade              SOCIOLOGIA

                                               PSICOLOGIA

                                               BIOLOGIA

                                               QUÍMICA

                                                FÍSICA                          Maior simplicidade                 

 

A física é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em compensação suas leis devem se aplicar ao universo inteiro. A química diz respeito a combinações entre os átomos. Ela se aplica ao fenômeno emergente que são os compostos químicos que existem na terra, mas não se aplica a maior parte do universo, que não permite a composição química mais complexa. A biologia se aplica à vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que cobrem parte da terra. A psicologia diz respeito apenas aos seres vivos conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não se aplicando aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres vivos conscientes capazes de se reunir na formação de sociedades complexas e podemos nos perguntar se essas sociedades não são também um fenômeno emergente. Há um grande número de outras ciências, mas elas são derivadas, por exemplo, a geologia, que usa conhecimentos da física, da química, da biologia, etc. com o objetivo de estudar rochas. A astronomia (que Comte erroneamente considerava uma ciência particular) aplica conhecimentos de física, química, etc. para estudar o cosmo. A neurociência intenta aplicar nosso conhecimento de biologia, bioquímica, biofísica, etc. para estudar o funcionamento do cérebro...

   Importante é notar que a passagem do estado metafísico para o estado científico se deu no emergir de cada ciência particular em tempos muito diferentes. A “física” aristotélica (enquanto física) era puramente especulativa e completamente errônea, tendo prevalecido até o fim da Idade Média, tornando-se realmente ciência só após Galileu, no século XVI. Entre as ciências empíricas a física surgiu primeiro, uma vez que ela é pressuposta pelas outras ciências particulares, mas não as pressupõe. A química só passou de seu estado metafísico para o estado científica no final do século XVIII, pressupondo em muito a física. A biologia só começou a se libertar das especulações durante o século XIX com Pasteur, pressupondo para seu desenvolvimento o conhecimento de ciências mais básicas, incluindo invenções como a do microscópio. E a psicologia e a sociologia se encontram ainda hoje em um estado parcialmente conjectural (metafísico), a despeito do otimismo de Comte quanto à última. Ciências derivadas como a neurociência, por sua vez, dependem para seu desenvolvimento de toda espécie de desenvolvimentos anteriores de outros ciências, inclusive na produção dos meios de pesquisa. Quando consideramos o que se deu realmente vemos que a lei dos três estados diz respeito apenas a uma tendência geral de sucessão, não existindo um tempo histórico para cada estado, visto que eles se sobrepõem de tal maneira que ainda hoje encontramos resíduos do estado teológico e muito do estado metafísico, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. 

   Filósofos em geral sempre torceram o nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam feridos pelo seu cientismo positivista, por sua maneira antifilosófica e apressada de substituir a conjectura filosófica pela ciência. Sartre chegou a dizer que Comte está na origem do fascismo... Mas isso é bastante injusto. Friamente consideradas, certas ideias de Comte parecem-nos hoje, em suas linhas gerais, bem mais plausíveis do que algumas especulações de Sartre, especialmente quando revisada de uma perspectiva mais ampla e generosa.

 

7

 

J. L. Austin. A consideração da lei dos três estados nos leva diretamente a uma outra ideia, que é a de que a filosofia é uma protociência. Segundo ela a filosofia é aquilo que é possível fazer antes do surgimento da ciência. Quando ainda não sabemos o suficiente sobre os métodos a serem empregados, quando não sabemos sequer quais são os dados que devem ser considerados mais fundamentais, por isso mesmo não tendo critério para saber que teoria devemos escolher, o que resulta é uma pluralidade de filosofias. Essa situação também permite um uso relativamente livre da imaginação na busca de soluções meramente especulativas. E isso é aquilo que mais caracteriza a filosofia. Como observou J. L. Austin em uma famosa metáfora que não me canso de repetir, na qual prepara o terreno para seu plano de retirar da filosofia uma ciência da interação comunicativa:

 

Na história da investigação humana, a filosofia tem o lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta, frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante. Isso aconteceu há muito tempo atras com o nascimento da matemática, e ainda com o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.[11]

 

Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar, batizar... disso resultando o que ele chamou de a teoria dos atos de fala, que hoje é estudada mais nos cursos de linguística do que nos de filosofia.[12] Esse é o conceito de filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. O sol inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição da filosofia dos pré-socráticos.

   A questão que resta é se realmente toda a presente filosofia poderá um dia ser substituída pela ciência. E ainda outra questão é a de se saber se novas questões nunca antes colocadas não poderão surgir.

   Finalmente, há uma objeção à ideia de filosofia como protociência que me parece resultar de simples confusão. Ela foi feita por Anthony Kenny, que observou que pelo menos os domínios centrais da filosofia, como a metafisica, as teorias do significado e a ética, continuarão para sempre filosóficas.[13] O erro está na concepção de ciência usada. A concepção que Kenny tinha em mente, a mais difundida, provinha do positivismo lógico e se resumia ao emprego de experimentos verificacionais (Carnap) ou falseadores (Popper), notadamente os passíveis de repetição. Tais concepções se aplicam quando muito à física, mas não se aplicam a domínios obviamente científicos como a teoria da evolução, que não é passível de experimentos repetíveis. Ademais, o que dizer de ciências como a linguística, a história, a antropologia física? Concepções positivistas de ciência costumam ser reducionistas, por isso deixando de corresponder ao que cientistas e pessoas educadas costumam chamar de ciência, que é algo muito mais amplo. Se quisermos entender a filosofia como protociência tendo tal concepção em vista a conclusão de Kenny é inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo que ele tem de mais central, jamais poderá dar lugar à ciência.

   Há, contudo, uma definição de ciência não reducionista, que se complementa perfeitamente com a ideia de filosofia como protociência. Trata-se do que um sociólogo da ciência, John Ziman, sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais fundamental da investigação científica é que ela é um conhecimento público consensualizável (públic consensualizable knowledge).[14] Explicando: o conhecimento científico precisa ser apto à possível obtenção de consenso quanto aos seus resultados da parte de uma adequada comunidade de ideias.  Essa é a concepção implicitamente vigente entre os cientistas. A antropologia física é científica porque a comunidade científica é capaz de concordar com os seus resultados. A teoria das cordas pertence à microfísica, que é ciência, porque é ao menos fisicamente possível que ela venha a obter uma comprovação experimental com a qual os físicos estejam de acordo. Mas isso não acontece com a astrologia, visto que os astrólogos jamais conseguiram um acordo sobre seus resultados. E isso também não acontece com a filosofia. Resumindo-nos aos pré-socráticos, não temos como dizer quem estava certo, se Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou Demócrito. A pergunta sequer faz sentido.

 

8

  

O triângulo filosófico. Há, por fim, ainda uma outra maneira conhecida de se entender a natureza da filosofia que nos pode auxiliar.[15] Vou resumi-la.

   A ideia é que filosofia é uma prática cultural derivada. Um exemplo de prática cultural derivada é a ópera. Ela é basicamente um resultado derivado de três práticas artístico-culturais que são: a poesia, o enredo literário e a melodia instrumental junto ao canto lírico. Tendo em vista a filosofia parece que podemos considerá-la como uma prática cultural derivada das três práticas culturais mais fundamentais, que são as práticas religiosa, artística e científica. A filosofia não é propriamente nenhuma dessas três práticas, mas retira material, métodos e motivações de cada uma delas. Da prática religiosa ela retira a motivação mística, visível em sua perspectiva abrangente, como no tradicional e impossível esforço para explicar o universo como um todo e o lugar do homem nele. Da prática artística ela retira seu caráter inevitavelmente metafórico, como visto em seus conceitos fundamentadores (como o ser, a ideia, a coisa em si, o absoluto...), em suas imagens retóricas, em seus exemplos. Finalmente, da prática científica ela retira seu objetivo heurístico, além de sua metodologia formal ou empírica. Com isso podemos construir um triângulo em cujos vértices encontram-se a religião, a arte e a ciência, encontrando-se a filosofia no espaço interior do triângulo, como é sugerido abaixo:

 

                                                    CIÊNCIA

 

                                                  FILOSOFIA

 

                RELIGIÃO                                                     ARTE

 

Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos esses elementos. É evidente o elemento estético nos aforismos de Heráclito ou no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreve em tom oracular e o poema de Parmênides é apresentado por uma deusa contendo o elemento místico. Finalmente, o Heráclito busca a sabedoria do logos e Parmênides tem por objeto o conhecimento do verdadeiro, tal como ele pode ser buscado pela ciência. A mesma combinação podemos encontrar nos outros filósofos pré-socráticos.

   Podemos intuitivamente situar os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo. Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e heurísticos podem ser postados no meio do triângulo, a exemplo de Platão. Filósofos cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Hegel. Filósofos com predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos como Nietzsche, podem ser postados próximos do vértice artístico do triângulo. Filósofos com predominância dos elementos estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger, podem ser postados próximos à linha de baixo do triângulo. E ainda, Filósofos com interesses particularmente heurísticos, como Locke, Russell, Rudolph Carnap e Saul Kripke podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo.

   O triângulo filosófico nos ajuda até mesmo a classificar as filosofias de diferentes culturas. Filósofos alemães, desde místicos como Meister Eckhart até filósofos de grande estatura como Kant, Husserl e Heidegger, geralmente demonstravam proximidade do vértice religioso, que foi maximamente exemplificada no idealismo absoluto de Hegel. A filosofia francesa, desde Descartes, mas em um nível extremo no movimento pós-modernista de pensadores como Foucault, Deleuze e Derrida, possui ênfase estética, tendendo ao extremo artístico. Finalmente, a filosofia anglo-americano-australiana põe ênfase no aspecto heurístico, próprio do vértice científico. Basta considerar exemplos de filósofos como Locke, Russell, W. V-O. Quine, Saul Kripke, e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin e John Searle.  

 

9

 

A filosofia dos pré-socráticos foi no século V substituída pela filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses, junto a filósofos como Kant, Hume e Hegel, constituem o cânone, se assim podemos chamar, da tradição filosófica, pela amplitude, coesão lógica e força imaginativa de seus sistemas. Eles foram tentativas de explicar o mundo e o lugar do homem nele com base no conhecimento e na cultura de suas épocas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

II

O IDEALISMO PLATÔNICO

 

Em comparação com os pré-socráticos Platão é um mundo. Ele e seu aluno Aristóteles foram os dois grandes filósofos do mundo antigo, comparáveis a Hume, Kant e Hegel na filosofia moderna. Eles foram os primeiros a construir grandes sistemas filosóficos tentando explicar especulativamente o mundo como um todo e o lugar que o homem nele ocupa. Ao fazê-lo desenvolveram amplas visões de mundo (Weltanschauungen) ainda hoje influentes. Eles viveram em um tempo no qual a cultura grega começara a declinar com a tomada de Atenas por Esparta, o que parece dar razão à Hegel, com sua observação de que a filosofia é como a coruja de Minerva, que só alça seu voo ao anoitecer.

   Platão (428-348 a.C.) pertenceu à aristocracia ateniense. Era para ter-se tornado um político. Mas decepcionou-se com as atrocidades da democracia ateniense, principalmente com a condenação de Sócrates. Platão tentou influenciar politicamente Dionísio, o tirano grego de Siracusa, o que quase lhe custou a vida. Depois disso acabou vivendo o resto de sua longa vida como professor na academia por ele fundada. As maiores influências no pensamento de Platão foram os filósofos pré-socráticos, principalmente Parmênides e Heráclito, junto ao misticismo e fetichismo numéricos dos pitagóricos. Mas a principal influência foi a de Sócrates, de quem foi discípulo.

 

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É difícil explicar uma personalidade como a de Sócrates. Ele nunca deixou palavra escrita, pois queria que sua palavra se imprimisse nas mentes das pessoas. Acredita-se que cerca de dois terços de Atenas era constituído de escravos, de modo que mesmo com poucos recursos o cidadão Sócrates podia se dar ao luxo de viver pelas ruas de Atenas discutindo filosofia. Segundo Nietzsche, um crítico sarcástico, a responsável teria sido sua esposa Xantipa. Para se livrar da presença dessa mulher difícil, quarenta anos mais jovem, que muito trabalho lhe dava e nenhum prazer, Sócrates resolveu ir para as ruas de Atenas, onde, conversando com as outras pessoas, desenvolveu seu talento para a dialética. A mãe de Sócrates era uma parteira. Sócrates não a decepcionou. Ele tornou-se, segundo suas próprias palavras, um parteiro de ideias, que ele fazia nascer à fórceps das cabeças das pessoas com as quais conversava.

   Os interesses de Sócrates eram muito diversos dos interesses dos pré-socráticos. Enquanto aqueles tinham a cosmologia como o centro de suas preocupações, Sócrates se interessava pela ética. Sócrates defendia uma forma de intelectualismo moral. Para ele a moral é uma forma de conhecimento radicada na natureza humana. Por isso, a má ação é sempre resultado de alguma forma de ignorância. Quem age mal é uma pessoa que não sabe fazer uma adequada estimativa do que tem a ganhar ou perder com sua ação. Ninguém faz o mal sabendo-se ultimamente culpado.  A pessoa espera obter algum ganho como a riqueza, o poder ou o prazer, não percebendo que com isso ela está causando um dano maior a si mesma. Sócrates acreditava que a perda da virtude é um mal que é feito à integridade psicológica da pessoa. Por isso é melhor sofrer do que praticar uma injustiça. A conclusão de Sócrates foi a de que uma pessoa só é capaz de ser feliz se for virtuosa. Não que a virtude seja o mesmo que a felicidade. Mas a verdadeira felicidade pressupõe a virtude, cuja ausência implica na infelicidade.

   Se Sócrates estava certo ou o quanto ele estava certo são questões muito difíceis de serem respondidas, uma vez que não sabemos ao certo o que é a felicidade e menos ainda como medi-la. Além disso, o que dizer de pessoas sem consciência moral, que não tem sentimento de culpa quando fazem coisas erradas? Não poderiam elas ser felizes na ausência de virtudes? Ou a espécie de felicidade por elas alcançada não seria plena?

   Para além da ética, uma outra contribuição de Sócrates foi a introdução do problema dos universais na filosofia. Ele teria sido a primeira pessoa a sugerir que só podemos dizer um de muitos se recorrermos a universais, ou seja, a conceitos gerais. Assim, podemos atribuir justiça a muitas e muito diversas ações, bondade às mais diversas pessoas, beleza a muitas coisas diversas. Mas isso só deve ser possível porque temos um conceito geral do que seja a justiça, o bem e a beleza, que foram posteriormente chamados de os universais. Além disso, se somos capazes de comparar, por exemplo, dizendo que uma ação é mais justa que outra, é porque devemos ter um modelo de justiça que permita a comparação. Como consequência, o objetivo de Sócrates era investigar, não as coisas justas, boas e belas, mas o que é a justiça, o bem, a beleza. Ele queria encontrar definições para termos como ‘justiça’, ‘beleza’, ‘coragem’, ‘amizade’, etc. E ao buscar definições ele estava fazendo o que na tradição analítica contemporânea chamamos de análise conceitual.

   A preocupação de Sócrates com definições de termos gerais de importância filosófica aparece como uma constante nos diálogos platônicos. Nesses diálogos encontramos sempre perguntas da forma “O que é X?”, onde X está no lugar de um termo conceitual que desempenha em geral alguma função central em nosso entendimento do mundo. Assim, a pergunta poderá ser “O que é a virtude?” (Protágoras). “O que é a coragem?” (Laques), “O que é a justiça?” (República), “O que é o conhecimento?” (Teeteto), e assim por diante.

   Por seu questionamento moral Sócrates incomodava as pessoas que detinham poder em Atenas. Ele incomodava os políticos por recusar-se a participar de ações desonrosas. Ele incomodava os sofistas, que eram pessoas que cobravam para ensinar a arte da oratória às pessoas de modo a fazê-las obter sucesso, posto que ele mesmo nada cobrava pelos seus ensinamentos e desprezava os valores mundanos. Decidiram livrar-se dele. Sócrates foi acusado de desdenhar os deuses e corromper a juventude, devendo ser por isso condenado a morte. O objetivo parece ter sido apenas o de fazer com que ele fugisse de Atenas. Mas como ele não fugiu, tiveram de submetê-lo a um julgamento público. No final os juízes concluíram que ele era culpado e que deveria ser condenado a morte, mas que teria o direito de decidir por uma pena alternativa que não fosse a morte, mas que fosse suficientemente severa, como a de ser banido de Atenas ou ter a língua cortada.

   Sócrates reagiu argumentando que não só não era culpado, como fez grandes favores ao estado através de ações e ensinamentos. Por conseguinte, não deveria ser punido, mas recompensado. Como acontecia com os heróis da Polis, ele merecia viver dos favores do estado pelo resto da vida. Afrontado, o júri não teve outra opção senão condená-lo à morte por envenenamento com cicuta.

   Platão foi testemunha desses acontecimentos e podemos atribuir à influência de Sócrates seu ensinamento de que a mais elevada de todas as ideias, algo semelhante ao sol que ilumina tudo o mais, é a ideia do bem. A ética de Platão não era diferente da de Sócrates. Quando agimos mal nós fixamos nossa atenção em algum bem, esquecendo-nos das consequências, que para nós mesmos podem ser piores.

 

2

 

Voltemos a Platão. O centro radial de seu sistema, do qual partem as explicações, foi a sua doutrina das ideias. Essa doutrina surgiu como uma maneira de conciliar a doutrina do mundo em mudança constante de Heráclito com a doutrina do Ser imutável de Parmênides, objeto único do conhecimento. A solução de Platão consiste na admissão da existência de dois mundos completamente separados um do outro: o mundo visível e o mundo inteligível. O mundo visível é o das aparências sensíveis no qual tudo se encontra em constante mudança, tal como Heráclito pensava. O verdadeiro mundo, porém, deve ser o mundo inteligível, que é o mundo do ser e que é imutável. O mundo inteligível é constituído de ideias (idea) ou formas (eidos), eternas e imutáveis. E o conhecimento só é possível porque tem por objeto, não as coisas do mundo visível, em constante mudança, mas as ideias eternas e imutáveis. Esse mundo das ideias é para ele o único verdadeiramente real. Para ele os dois mundos, o das ideias e o dos sentidos existem e sempre existirão paralelamente um ao outro, em completa independência um do outro.

   Exemplos centrais de ideias são as do bem, da beleza, da justiça, do conhecimento, da coragem, da amizade. Essas são ideias sublimes, cuja definição será buscada nos diálogos. Mas há também ideias mais vulgares, como as de cama, homem, água ou fogo. Para Platão existe uma hierarquia das ideias, a mais elevada de todas sendo a ideia do bem, que como o sol ilumina todas as outras. Para ele, sem sabermos o que é o bem não seremos capazes de compreender e definir as outras ideias de maneira adequada. Abaixo do bem há ideias como a de ser, identidade, semelhança, movimento... e ainda justiça, beleza e virtude. E mais abaixo temos ideias como as de homem, cama, água e fogo. Ideias que estão embaixo implicam nas que estão em cima, por exemplo, a ideia da justiça implica na ideia do bem. Contudo, Platão nunca conseguiu expor essa hierarquia de modo coerente.

  Para Platão as ideias possuem numerosos atributos: elas não se encontram nem no espaço nem no tempo, elas são essências imutáveis, absolutas e sublimes. Diversamente do ser de Parmênides e dos pré-socráticos em geral, elas são transcendentes em relação à physis, nada possuindo de material. A transcendentalidade das ideias é uma inovação original de Platão: ele as apresentou como existindo em uma realidade supra-sensível, para além da dimensão física, em uma ruptura definitiva com o naturalismo dos pré-socráticos.

   No sentido usual as ideias são entidades psicológicas que se encontram no espaço e no tempo. Se digo “Acabei de ter uma ideia”, a ideia é algo que aconteceu há alguns segundos e em um lugar específico, qual seja, na minha cabeça. Mas as ideias de Platão não são entidades psicológicas. Elas são entidades objetivas transcendentes, às quais todos nós podemos em princípio ter acesso.

   Além disso elas são entidades singulares. Só existe uma ideia do belo, só uma ideia da justiça, uma da virtude, uma do bem. É por isso que a ideia de um número não pode ser a mesma coisa que os números, dado que os números se repetem e se adicionam – não é possível que na soma 2 + 2 = 4 duas ideias do número 2 se juntem. Sendo objetivas e singulares, as ideias são objetos, mesmo que abstratos. Para demonstrar isso Platão usava o recurso de substantivar ou nominalizar predicados que designavam ideias.

   Assim, no enunciado “Sócrates é sábio” a ideia de sabedoria comparece de modo secundário. Nós só nos referimos mesmo à sabedoria quando colocamos a palavra no lugar do sujeito em um enunciado como “A sabedoria é uma virtude”, nominalizando o predicado. Aqui a palavra ‘sabedoria’ se refere primariamente a um objeto abstrato: a ideia de sabedoria. Para evidenciar esse ponto Platão usava em grego expressões que podem ser traduzidas como “o X-em-si-mesmo”, “a X-idade”, ou “aquela coisa própria que é X”.

    Por serem unitárias as ideias desempenham o papel fundamental de universais, permitindo-nos “dizer o mesmo de muitos”, em outras palavras, permitindo a espécie de síntese característica da predicação. Isso fica claro quando consideramos enunciados do tipo Fa, como “Sócrates é sábio”, “Parmênides é sábio”, “Heráclito é sábio”. Podemos predicar a sabedoria de muitas coisas. Segundo Platão essas coisas participam da sabedoria no sentido de que elas são cópias ou imitações da Sabedoria-em-si-mesma.

   Outra propriedade das ideias é a de serem autopredicativas. O belo-em-si-mesmo é belo, a justiça-em-si-mesma é justa. As coisas belas são belas de modo aspectual. Sócrates era feio de rosto, mas tinha beleza interior. O belo em si mesmo, contudo, é belo em todos os aspectos. Isso se torna problemático quando pensamos em ideias relacionais. O grande é grande. Mas esse é um predicado relacional. É grande em relação a que? Se é em relação a tudo o que possa ser grande ele deve ser infinitamente grande.

   Seguindo o tratamento que Sócrates deu aos conceitos, Platão considerava as ideias passíveis de definição. Por exemplo, existem muitos triângulos com as mais variadas formas. A ideia de triângulo não possui uma forma específica. Mas ela pode ser definida: “o triângulo é um polígono com três lados”. Filósofos analíticos contemporâneos falariam de análise ao invés de definição, o que demonstra que a assim chamada tradição analítica, bem considerada, é continuação da filosofia tradicional.

   O mais importante é a maneira pela qual as ideias se relacionam às coisas do mundo visível. Platão tinha duas metáforas: a da participação (méthexis) e a da cópia ou imitação (mímesis). A ideia é uma coisa única. Mas muitas coisas do mundo visível podem participar dela, ou, se quiserem, copiá-la. Assim, as muitas coisas belas participam da ideia de beleza, assim como as muitas coisas justas participam da ideia de justiça. Ou então dizemos que coisas sensíveis contêm cópias imperfeitas das ideias. Para Platão nós só podemos conhecer o mundo sensível porque ele contém cópias, mesmo que imperfeitas, das ideias ou formas. O substrato não ideativo, não formal do mundo sensível é e será para sempre incognoscível.

 

3

 

Além da contribuição para a ontologia através da doutrina das ideias, Platão contribuiu para a epistemologia através de sua teoria dos graus de conhecimento e de sua análise das ideias de conhecimento e crença. A primeira é apresentada nas bem conhecidas analogia da linha dividida e na alegoria da caverna. Quero me restringir aqui a algumas observações sobre sua análise das ideias de conhecimento e verdade e de suas consequências epistemológicas.

   No diálogo Teeteto Platão analisa o conceito de conhecimento como sendo a crença verdadeira a qual se adiciona um logos (razão). Mas logos é uma palavra com mais de um sentido, o que termina fazendo o diálogo terminar inconcluso. Contudo, basta substituirmos a palavra ‘logos’ pelas palavras ‘justificação’ ou ‘evidência’ que chegamos à definição de conhecimento como crença verdadeira justificada. Essa definição foi aceita por Kant e atravessou intacta mais de dois mil anos de filosofia. Desde a década de 1960 do século XX essa definição tradicional tem sido objeto de críticas devido à descoberta de contra-exemplos que parecem demonstrá-la insuficiente. No que se segue quero abrir parênteses para explicar essa definição e mostrar que, se bem entendida, ela sobrevive incólume aos contraexemplos, demandando apenas algum detalhamento suplementar.

   Comecemos com a exigência de que a crença seja verdadeira. Se uma pessoa sabe que p (sendo p uma proposição qualquer), é preciso que p seja verdadeira. Uma pessoa pode saber que a Lua tem pedras, pois isso é verdadeiro, mas ninguém pode saber que a Lua é feita de queijo suíço, pois isso é falso. Também não podemos saber algo e não acreditar que seja verdadeiro. É contraditório dizer: “Sei que sou professor de filosofia, mas não acredito nisso”. Se não acredito é porque não sei, ao menos em circunstâncias normais. Finalmente, se eu sei então sou capaz de justificar, ou seja, sou supostamente capaz de apresentar evidência justificadora da minha afirmação. Por exemplo: se digo que sei que Villa Lobos compôs as Bachianas Brasileiras, é porque sou capaz de justificar isso dizendo que assisti uma apresentação das Bachianas no Youtube. Mesmo que em muitos casos eu tenha esquecido a justificação de algo que sei, se eu sei é porque de alguma forma eu me dispus de uma justificação. Por exemplo, eu sei que a Divina Comédia começa com “Nel mezzo del cammin di mostra vita mi ritrovai per uma selva oscura...” porque li isso algumas vezes, mas não me recordo onde. Mesmo que não me recorde onde, basta que alguém abra o livro para se certificar de que estou justificado em dizer que sei. O que não posso é prescindir da justificação ou me valer de justificação que não seja reconhecível por outros como sendo razoável. Não posso dizer, por exemplo: “Estive na Lua enquanto dormia porque me recordo claramente disso”, pois essa não é uma justificação razoável. Até aqui as objeções são contornáveis. Contudo, a definição tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada foi desafiada através de alguns exemplos sugeridos por Edmund Gettier que em um pequeno artigo de 1963, onde apresentou casos nos quais havia crença verdadeira justificada, mas sem conhecimento. Desde então uma enorme quantidade de artigos foi apresentada na tentativa de substituir ou remendar o insight platônico.

   Eis um contra-exemplo do tipo Gettier que serve para exemplificar. Suponhamos que ontem Maria ouviu do professor Pedro que hoje ele estaria pela manhã na universidade para avaliar uma defesa de tese. Como Pedro é um professor petreamente sério, Maria pensa que sabe que ele se encontra agora na universidade. Ele de fato se encontra na universidade. Maria tem, assim, uma crença verdadeira justificada. Mas na verdade ela não sabe, pois durante a madrugada os três filhos adolescentes de Pedro sofreram um sério desastre de carro e se encontram agora hospitalizados. Pedro suspendeu todos os seus compromissos para hoje. Contudo, por mro acaso ele se realmente encontra na universidade, pois veio rapidamente ao seu escritório pegar alguns documentos.

   Embora existam dezenas de soluções inteligentes para o problema, elas parecem todas insatisfatórias. De minha parte não tenho dúvidas de que a melhor solução é bastante intuitiva e preserva o essencial da definição tradicional. Ela foi aventada desde o início, mas só foi suficientemente desenvolvida por Robert Fogelin e mais tarde tornada mais rigorosa por mim mesmo.[16] Para chegar a ela basta se notar que em todos os contra-exemplos do tipo Gettier a justificação nunca é suficiente para tornar a proposição verdadeira: dizer que o confiável Pedro havia afirmado ontem que viria hoje à universidade... quando adicionado ao conhecimento do fato de que seus três filhos foram acidentados e que por causa disso ele suspendeu seus compromissos deixou de ser suficiente como justificação de que ele se encontra agora na universidade. Mas dizer que ele se encontra na universidade por tê-lo visto entrar em seu escritório há poucos minutos sim. A solução consiste, pois, em exigir que a terceira condição, a condição de justificação, seja suficiente para tornar a proposição verdadeira da perspectiva de um sujeito avaliador e no momento de sua avaliação. O sujeito avaliador é sempre alguém que conhece mais fatos do que a pessoa que apresenta sua pretensão de conhecimento, o que inclui as razões para considerar a justificação por ela dada insuficiente. No caso acima o sujeito avaliador é uma pessoa que sabe que os filhos de Pedro foram acidentados e que ele suspendeu seus compromissos para hoje na universidade... Esse sujeito dirá que Maria não sabe porque a justificação por ela dada não é suficiente para tornar sua afirmação verdadeira. Se ela tivesse dito, por exemplo, que viu Pedro entrando em sua sala alguns minutos antes, sua justificação seria plenamente aceita pelo sujeito avaliador. Concluímos, pois, que uma pessoa S sabe que p se e somente se (i) é verdade que p, (ii) a pessoa acredita que é verdade que p e, por fim, (iii) a justificação que a pessoa S oferece para p é considerada por um avaliador Sa (que pode ser até mesmo o próprio S em um momento posterior) mais inteirado dos acontecimentos como suficiente para tornar a proposição p verdadeira. A definição de conhecimento sugerida por Platão não demanda revisão, mas aperfeiçoamento.

   Platão fez usos epistêmicos de sua doutrina das ideias. Ele explica como podemos dizer o falso. Dizer o falso não é dizer nada (como em Parmênides), mas dizer algo diferente do que é, atribuir ao que é uma outra combinação de ideias. Se o estrangeiro do diálogo Sofista profere a sentença “Teeteto está sentado” e Teeteto realmente está sentado, isso é verdadeiro, pois ele se refere com o nome ‘Teeteto’ ao jovem Teeteto e usa o verbo para dizer de um estado de coisas que é que ele é assim como ele diz que é; mmas quando o estrangeiro profere a frase “Teeteto está voando” quando Teeteto na verdade está sentado, embora ele se refira a Teeteto com o nome, ao usar o verbo voar ele diz do que não é que é, dizendo assim o falso.[17] Aqui Platão sugere pela primeira vez a definição de verdade como correspondência, que em Aristóteles é apresentada como:

 

Dizer do que é que não é e dizer do que não é que é, é falso, enquanto dizer do que é que não é e do que é que é, é verdadeiro.[18]

 

Aqui se encontra uma primeira formulação da teoria da verdade como correspondência, segundo a qual um enunciado verdadeiro é aquele que corresponde ao modo como as coisas estão dispostas na realidade. Aqui podemos sugerir que quando uma combinação conceitual de ideias que ocorre em nosso pensamento corresponde à combinação das ideias copiadas nas coisas, então dizemos o verdadeiro. Mas quando ela não corresponde à combinação copiada nas coisas então estamos dizendo o falso. Apesar disso a sentença falsa não deixa de ser significativa, uma vez que a combinação conceitual de ideias é que é responsável pela sua significação, encontre ela um correlato objetivo ou não.

   Mas por que razão o mundo visível é constituído de cópias das ideias? Platão responde com o mito da formação do mundo. Para Platão, tanto o mundo das ideias como o mundo sensível sempre existiram. Mas eles existiam em paralelo, e o mundo sensível era um caos primevo incognoscível e indefinível, não podendo ser considerado real. O Deus-Demiurgo, guiado pela ideia do bem, decidiu tomar como modelos as ideias ou formas do mundo das ideias e por meio delas enformar coisas sensíveis a partir da matéria caótica do mundo primevo, de modo a produzir indivíduos que fossem cópias, ainda que imperfeitas, das ideias perfeitas. O Demiurgo pode ser entendido como o símbolo da razão operando no universo. É só por formarem cópias imperfeitas das ideias que as coisas do mundo sensível podem ser chamadas de reais. As ideias doam realidade às coisas que as enformam.

   Essa maneira de entender o mundo sensível permite a Platão oferecer uma explicação inteiramente racionalista da aquisição do conhecimento. Ele acreditava na ideia da transmigração das almas ensinada pelos místicos pitagóricos. Para ele, antes de serem incorporadas, nossas almas estiveram vagando no mundo das ideias ou então pertenciam a outros seres vivos. Uma vez incorporadas, as ideias foram apagadas, tornando-se inconscientes. Mas quando temos a experiência sensível de coisas no mundo visível, por exemplo, de ações justas, somos levados a rememorar a ideia de justiça com a qual tivemos contato no mundo das ideias ou em outras encarnações.[19] A conclusão impressionante é que todo nosso conhecimento não passa de reminiscência (anamnesis). Usando o conceito kantiano de conhecimento a priori como aquele que não é proveniente da experiência, mesmo que dela dependa para ser formado, podemos dizer que todo o conhecimento humano é para Platão conhecimento a priori. No diálogo Menon ele ofereceu uma comprovação de sua teoria no exemplo de um escravo que, induzido por Sócrates, é levado a desenhar na areia a prova de um teorema de geometria. Para Platão ele o fez por reminiscência da geometria euclideana que sua alma já conhecia desde sempre. Nós hoje estamos em condições de oferecer uma explicação diferente. Nós diríamos que a evolução natural produziu em nossas mentes a capacidade inata de aplicação geometria euclideana, que usamos o tempo inteiro ao nos movermos no mundo. A experiência pode nos fazer tomar consciência dos procedimentos de aplicação da geometria euclideana e de como provar um teorema a partir de axiomas. Mas a espécie humana aprendeu essa geometria através de um processo de seleção natural que é empírico e de natureza ultimamente indutiva.

  

4

 

Platão foi um filósofo capaz de rever suas ideias, submetendo-as à crítica. Foi assim com a doutrina das ideias. Na primeira parte do diálogo Parmênides ele apresenta ao jovem Sócrates uma série de objeções à doutrina das ideias que Sócrates não consegue responder.

   Uma primeira objeção foi a de que se admitimos que predicados remitem a ideias, então assim como admitimos as ideias de bem e de virtude, precisamos admitir ideias como as de cabelo, lama e sujeira. Só que essa é uma admissão repugnante para Sócrates, que a rejeita sem saber respondê-la.

   Outras objeções são contra as metáforas de participação e cópia. Quanto à cópia há um problema de simetria. Como nota Parmênides, se as coisas brancas são como a ideia de brancura, então a ideia de brancura deve ser como as coisas brancas. Mas isso não parece certo! Uma resposta a favor de Platão seria a de que a relação de semelhança não é realmente simétrica. Afinal, embora a face que vejo no espelho seja reflexão de minha face, a minha face não é reflexão da face que vejo no espelho. A relação de cópia é de semelhança por derivação.

   Uma outra objeção diz respeito à participação. Se as coisas precisam participar da ideia, então ela perde a sua unidade e homogeneidade. A imagem proposta por Parmênides é a de vários marinheiros carregando uma vela sobre as costas. Outra imagem é a do bolo de passas. Imaginando que as coisas particulares sejam como os marinheiros ou como as passas no bolo, cada qual participa de parte da ideia e não do todo e a ideia precisa dividir-se por partes, cada qual contendo coisas diversas. A outra alternativa é a de que a ideia se multiplica pertencendo por completo a cada coisa que dela participa. Nos dois casos a ideia perde a sua unidade e homogeneidade original.

   Sócrates tenta retrucar sugerindo que a ideia deve ser como o sol que ilumina o dia e todas as coisas que nele se encontram. Essa é uma bela metáfora, mas não sabemos como resgatá-la.

    Ainda outra objeção presente no Parmênides é a do terceiro homem, mais tarde apresentada por Aristóteles. Se os homens H1, H2… H3 são todos cópias da ideia de homem, então parece que é preciso haver uma nova ideia da qual tanto os homens particulares quando a ideia de homem são cópias. Mas se for assim, então precisaremos de ainda outra ideia para garantir a última relação e assim por diante. A essa objeção seria possível responder que a ideia é sui generis, e que o argumento do terceiro homem trata a ideia como se fosse uma coisa visível entre outras.

    Quero ainda lembrar uma objeção simples de Aristóteles contra a teoria. Trata-se da objeção de que Platão duplica os mundos. Além do mundo empírico precisamos de um mundo inteligível contendo um número ilimitado de ideias, o que é anti-econômico. A solução de Aristóteles será a de colar o mundo inteligível ao mundo sensível, de maneira a formar um único mundo. Por isso uma maneira trivial de distinguirmos a ontologia de Platão da ontologia proposta por Aristóteles consiste em dizer que para Platão, se o mundo físico deixar de existir o mundo das idéias permanecerá existindo; mas para Aristóteles, se o mundo físico deixar de existir, como ele desaparecerá também o mundo das ideias ou formas.

 

5

 

Há também objeções contemporâneas à doutrina. Quero considerar três. A primeira, que proponho aqui, é algo que deveria ocorrer a qualquer estudante de lógica simbólica: Platão, não conhecendo a lógica predicativa desenvolvida por Gottlob Frege, confundia nossa gramática de superfície com a gramática lógica no que diz respeito a nominalização de predicados. Para o que Platão sabia de lógica um enunciado como “Sócrates é sábio” teria a mesma estrutura que “A sabedoria é uma virtude”, ou seja, uma estrutura do tipo Sujeito-Predicado ou Fa (onde a é sujeito e F é o predicado). Ora, como Platão consegue encontrar os referentes de sujeitos como ‘Sócrates’ no mundo visível, e mesmo pessoas e ações virtuosas, mas não encontra no mundo visível nenhum referente que para o termo ‘A sabedoria’ na posição do sujeito, ele conclui que deve haver um mundo inteligível no qual exista A-sabedoria-em-si-mesma, ou seja, a ideia da sabedoria.

   A lógica dos predicados por sua vez nos sugere que um termo como ‘a sabedoria’ é apenas uma forma nominalizada do predicado ‘...é sábio’, remetendo por isso a ele. Quando analisamos completamente os dois enunciados acima veremos que embora as suas estruturas gramaticais sejam idênticas, as suas estruturas ou formas lógicas são completamente diversas. “Sócrates é virtuoso” tem a estrutura lógica do tipo Fa. Mas “A sabedoria é uma virtude” apenas parece ter a forma lógica de Fa. O que ela quer dizer é “Tudo o que é sábio é virtuoso”, ou ainda, “Para todo x, se x é sábio, então x é virtuoso”, ou, por fim (chamando ‘...é sábio’ de ‘S’ e ‘...é virtuoso de ‘V’, “(x) (Sx → Vx)”). Aqui o sujeito ‘A sabedoria’ deixa de existir. Passamos outra vez a falar de coisas sábias, mas não mais da sabedoria-em-si-mesma, como Platão acreditava.[20]

   Uma segunda objeção vem de Nietzsche, que foi um crítico mordaz da civilização cristã como negadora do mundo. Para Nietzsche Sócrates foi o primeiro cristão e o cristianismo é o platonismo do povo. No início do século V a.C. Atenas havia caído sob o jugo de Esparta e seguia um caminho de decadência do qual nunca mais se recuperou. Platão foi um prisioneiro do ideal ascético, um escapista incapaz de suportar as duras vicissitudes de uma realidade que estava além de seu controle. Criou então para si e seus discípulos a ilusão de que esse mundo sensível que tão pouco nos traz é pouco mais do que aparência, deslocando a realidade para um mundo puramente intelectual, seu fantasioso mundo das ideias. Esse mundo das ideias passaria a possuir a realidade (a plenitude do ser) com a qual ele não queria se deparar no mundo empírico.

   A psicanálise freudiana pode ser aqui chamada para reforçar Nietzsche. Platão nunca se casou e chegou a afirmar que o intercurso sexual só deveria ser mantido com vistas à reprodução. Aristóteles, que negava a existência de um mundo separado de ideias, teve duas esposas consecutivas e dois filhos. A psicanálise poderia ver na negação do mundo sensível uma justificação inconsciente para a rejeição dos impulsos sexuais. 

   A Terceira objeção poderia vir da filosofia terapêutica de Wittgenstein, para quem muito de nossa filosofia consiste na produção de “nós do pensamento”, de “castelos de carta” com palavras, e que a função crítica do filósofo é desatar os nós do pensamento ao desfazer os castelos de carta da linguagem, trazendo as palavras de suas férias metafísicas de volta para o seu labor cotidiano.[21]

   Para um filósofo wittgensteiniano o conceito platônico de ideia seria irresgatável. Platão dá objetividade ao conceito de ideia originariamente psicológico, além de lhe prover do atributo de objetividade e de máxima realidade. Como não há suporte intuitivo nem justificação suficiente para essa inversão de valores semânticos, a ideia platônica não deve passar de uma fata morgana intelectual. Se a introdução da noção de ideia for capaz de ser teoreticamente produtiva, ela será aceitável. Sem isso, tratar-se-á de um conceito ininteligível e destituído de sentido.

   Para testar esse ponto sugiro invertermos as sílabas dos termos: ideia passa a ser aiedi, forma passa a ser amrof, o uno passa a ser onu, o ser passa a ser res, a realidade passa a ser edadilaer. Em seguida substituímos as palavras no texto platônico. Assim, ao invés de uma frase como “as ideias são a causa da realidade de todas as coisas e o uno é a causa da realidade de todas as ideias” termos a frase “as saiedis (ou samrofs) são a causa da edadilaer de todas as coisas e o onu é a causa e a essência de todas as saiedis (ou samorfs). A primeira frase é obscura, a segunda é ridiculamente vazia de sentido.

   Uma última tentativa de defender Platão dando sentido às ideias seria dizer que elas são como as leis da natureza. Como tais elas seriam objetivas, imutáveis e até mesmo reais e capazes de doar certa realidade àquilo a que se aplicam. A lei da gravidade, por exemplo, precisa ser distinguida de nossa expressão conceitual dessa lei, que pode ser falsa. Por que não poderíamos dizer o mesmo de ideias como as de bem e de justiça? Talvez porque não podemos falar de modo primário do bem-em-si-mesmo, como Russell mostrou, assim como não faz sentido falar da gravidade-em-si-mesma, mas de propriedades gravitacionais do espaço-tempo. Parece que a objeção de que Platão hipostasia as ideias, provendo-lhes sub-repticiamente de atributos que não lhe são pertinentes, permanece.

 

6

 

Quero agora resumir a psicologia de Platão. Ele tomou dos pitagóricos a sugestão de que a alma (psiqué) possui três partes: uma parte apetitiva, outra volitiva (corajosa, energética) e outra racional. A parte apetitiva concerne ao desejo, ao apetite, ao impulso instintivo. A parte volitiva concerne à emoção, ao espírito, à coragem, à energia. E a parte racional concerne ao pensamento, ao entendimento, ao intelecto, à razão. As primeiras duas são compartilhadas com os animais, sendo a última propriamente humana. (Daí podermos definir o homem como um animal racional.)

   Para elucidar a interação entre essas três partes Platão sugeriu a imagem de uma biga celeste com um condutor, que seria a razão, e dois cavalos, um bom (a alma volitiva) que quer alçar-se aos céus e outro mau (a alma apetitiva) que lhe dá muito trabalho ao seu condutor e precisa ser chicoteado.

   Platão associa essas partes da alma ao que os gregos tinham como sendo as quatro virtudes cardinais. A virtude da parte racional é a sabedoria. A virtude da alma volitiva é a coragem. Da união da parte apetitiva com a parte volicional surge a virtude da temperança. Finalmente, da harmonia de cada uma dessas partes da alma de modo a formar um todo temos a virtude da justiça.

   A teoria da tripartição da alma tem equivalentes contemporâneos. Um primeiro deles se encontra na divisão freudiana do psiquismo em três instâncias: a do Id (Es), das pulsões instintivas, a do Ego (Ich), que possuí a vontade responsável pelo controle motor, e a do Super-ego (Über-Ich) responsável pela repressão e controle das pulsões. Parece claro que a parte apetitiva da alma corresponde ao Id, a parte volitiva corresponde ao Ego e a parte racional corresponde aproximadamente ao Super-Ego.

   Mas há diferenças. Uma delas é o grande papel que Freud atribui ao inconsciente. Outra é que em Freud o Ego é o condutor, mediando entre a razão e as pulsões instintivas, enquanto para Platão o condutor deve ser a razão, ou seja, é algo aproximadamente correspondente ao Super-Ego.

  Há, por fim, uma possível fundamentação científica para a tripartição platônica da alma. Trata-se da distinção proposta pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean em sua teoria do cérebro triúno.[22] Segundo essa teoria, nosso cérebro é constituído por três computadores inter-relacionados e evolucionariamente originados. O arquiencéfalo, correspondente ao bulbo raquideano e ao cerebelo, responsável pelas disposições instintivas do organismo, como a fome e o desejo sexual... o mesencéfalo, constituído pelo sistema límbico e responsável pelas emoções e motivações. Já o neoencéfalo, que constitui o córtex, e que no ser humano ocupa mais do que 70% da massa encefálica, é responsável pelo pensamento, pela racionalidade e pela consciência. A teoria do cérebro triúno não deixa, pois, de demonstrar a existência de divisões neurofisiológicas suficientemente próximas daquilo que Platão havia sugerido. Há, portanto, bases científicas plausíveis para a tripartição da mente proposta por Platão.

   Platão acreditava na imortalidade da alma, o que em uma época pré-científica era uma ideia menos implausível do que na nossa. Ele acreditava que a alma vive no corpo como em uma prisão ou túmulo. O corpo é como a casa de um caramujo, a alma, devendo ser por ela carregado até a libertação final. O corpo é a origem dos males. Ele é a sede de preocupações, doenças, paixões e fantasias, que conduzem aos conflitos que na sociedade conduzem às guerras. Para ele se a alma é boa nesse mundo, ela irá viver após a morte em alguma maravilhosa ilha bem aventurada, mas se ela é má ela será castigada no Tártaro, que era o nome que os gregos tinham para o inferno, pois só o sofrimento purifica o espírito. Tudo isso é platonismo.

 

7

 

Na antiguidade e durante o período medieval os diálogos políticos que receberam maior atenção foram O Timeu e As Leis, escritos na velhice de Platão. Foi só depois do renascimento que a importância da República foi descoberta. Nesse diálogo colossal, pela primeira vez na história um estado utópico é experimentalmente construído; um estado que deveria ser capaz de realizar plenamente a sua função própria de prover a felicidade de seus cidadãos.

   A questão fundamental que percorre a República é sobre como devemos definir a justiça. Em uma das definições iniciais, a justiça acontece quando cada um recebe o que merece. Mas isso nos dizer muito pouco. Após serem testadas várias sugestões implausíveis, Sócrates sugere que a justiça seja investigada em grande escala. Como a justiça se dá dentro de uma sociedade, nós devemos procurar saber qual será a forma de um estado ideal, pois o estado ideal será aquele no qual reina a justiça. Sendo assim, uma vez conhecido o estado ideal, dele poderemos mais facilmente depreender o que é a justiça.

   Ao considerar como é uma cidade-estado Platão observa que ela tem como princípio operante a divisão do trabalho. Ninguém pode fazer bem todas as coisas. Assim, cada segmento da sociedade se especializa em fazer uma coisa e troca as coisas que faz pelas coisas de que precisa.

   A divisão de trabalho segue-se de uma divisão de classes. Ele teve a ideia de fazer uso da teoria da tripartição da alma para dividir os cidadãos do estado ideal em três classes, segundo o predomínio das partes apetitiva, volitiva e racional da alma. As pessoas com predomínio da parte apetitiva da alma formarão a classe trabalhadora, dos agricultores e artesões, o que inclui mercadores e qualquer coisa que envolva alguma atividade física laboral. (Em nosso mundo atual isso incluiria a classe dos comerciantes e mesmo dos trabalhadores da indústria.) As pessoas com predomínio da parte volitiva da alma formam a segunda classe, a dos auxiliares, ou seja, a dos militares encarregados da defesa da cidade-estado, o que era indispensável no mundo antigo. As pessoas com predomínio da parte racional da alma formam a terceira classe, a dos governantes-filósofos. No pensamento de Platão, assim como a parte racional da alma deve ter domínio sobre as partes apetitiva e volitiva, a classe que representa a parte racional do estado, representando a virtude da sabedoria, deve ter domínio sobre as classes que representam a busca de honras e de lucros.

   Para que as pessoas não se sentissem ressentidas ao serem escolhidas como pertencentes a classes inferiores, mesmo que isso fosse feito para o seu próprio bem, Platão recorre a uma “nobre mentira”, que é a de que por decisão dos deuses, os trabalhadores tem uma alma de bronze, os militares tem alma de prata, e os filósofos (naturalmente) possuem almas de ouro.

   A favor de Platão pode ser notado que em seu sistema há tanto igualdade de oportunidades quanto mobilidade social. Até os vinte anos todos deverão estudar educação física e artes no sentido amplo (os gregos aprendiam a ler através da poesia). E o aprendizado não deverá ser forçado, pois nesse caso as pessoas esquecem. Ele deverá ser baseado no puro prazer de aprender. Quanto a mobilidade social, ele lembra que os pais não podem por antecipação saber a predominância da parte da alma que terão os filhos. Pode ocorrer que o filho de um guardião tenha a alma de bronze, ou que o filho de um agricultor tenha uma alma de ouro. Por isso, após um período inicial de educação universal haverá um primeiro exame, quando os jovens completarem vinte anos. Quem for reprovado ficará pertencendo à classe trabalhadora, tornando-se agricultor, artesão, comerciante ou coisa do gênero. Quem for aprovado continuará aprendendo ciências como matemática e astronomia por mais dez anos, até um segundo exame, quando completarem trinta anos. Só quem for aprovado nesse segundo exame terá o direito de aprender filosofia. Para Platão a filosofia não pertence ao início, mas ao final do processo de aprendizado. Com efeito, mesmo hoje é de se esperar que o filósofo, enquanto filósofo, possua uma ampla gama de pressupostos para ser capaz de desempenhar adequadamente seu oficio.

   Platão regulamenta a vida das pessoas em cada classe. Os auxiliares e guardiões terão vida igualitária e não terão posses, para não serem corrompidos. Não beberão em copos de ouro, pois o ouro eles deverão trazer em suas almas. Mulheres terão os mesmos direitos dos homens na escala social; elas poderão ir para a guerra e se tornarem guardiãs. Entre os auxiliares e guardiões não haverá casamento, o sexo será controlado com objetivos principalmente eugênicos, filhos não desejados sendo postos à parte. As crianças serão educadas em creches, sem saberem quem são os seus pais. Ele acreditava que isso implementaria maior senso comunitário de união entre os membros da classe, o que parece a nós um preço demasiado grande. Entre os quarenta e os cinquenta anos, além de estudarem ciências, os guardiões deveriam ganhar experiência do mundo juntando-se à classe trabalhadora. Só depois dos cinquenta anos os guardiões poderiam concorrer para que um deles se tornasse o rei, que seria então um rei-filósofo, capaz de saber o que pode proporcionar a boa vida aos seus concidadãos.

   É interessante o que Platão diz sobre os prazeres e bens materiais. Os cidadãos pertencentes à classe dos guardiões e auxiliares não podem ter posses. Eles devem receber o suficiente para viverem confortavelmente e de maneira igualitária. Isso é essencial para que não haja corrupção, nem ambição demeritória. Quem poderá adquirir posses serão as pessoas da classe dos agricultores, artesãos, comerciantes... Elas poderão acumular riquezas em medida suficiente, pois pela inclinação de suas naturezas não buscam integridade nem honras, mas principalmente os prazeres físicos. O estado zelosamente administrado pelos guardiões isso será benéfico para a classe apetitiva. A ideia aqui implícita, de que a riqueza não deve ser usada para corromper a política, é perfeitamente atual.

   Platão acreditava que só quando os governantes forem sábios e o rei for filósofo uma república terá cidadãos felizes. Ele terminou concluindo, com muito bom senso, que seu estado ideal é apenas um experimento imaginativo. Mas esse experimento pode ser uma maneira de orientar pessoas com relação à ideia de justiça.

   O estado idealizado por Platão como produzindo o máximo de felicidade para os seus cidadãos seria um estado justo. Mas o que caracteriza a justiça que ele encerra? Ora, ela se caracteriza pela comunhão do indivíduo com a comunidade, na harmonia entre as classes, uma harmonia que resulta de cada um fazer aquilo que é capaz de fazer melhor, recebendo como recompensa aquilo que prefere. A justiça consiste em cada um fazer e ter o que lhe compete, ou seja: poder fazer o melhor e receber em troca o que por natureza mais deseja.[23] O estado ideal proposto por Platão é projetado para permitir que seus membros floresçam naquilo que eles possuem de melhor de modo a maximizar a cooperação social. E um homem justo é aquele que ocupa o lugar que lhe é próprio na sociedade. A resultante harmonia entre as partes de sua alma fará dele uma pessoa justa, refletindo assim a justiça social como a harmonia entre as classes do estado. Por ser a justiça um conceito social, não faz sentido as pessoas se perguntarem se são justas em uma sociedade injusta. O grande exercício de pensamento que que foi a construção de um estado supostamente perfeito possibilita ao seu autor uma explicação plausível da natureza da justiça.

   Mas essa não é a única conclusão importante do diálogo. Já vimos que a virtude da parte racional da alma é a sabedoria, a virtude da alma volitiva é a coragem, a da alma apetitiva unida à parte volitiva é a temperança, e que a harmonia das partes da alma dá lugar à virtude da justiça. Platão observa que cada classe de seu estado ideal incorpora em si uma das virtudes consideradas cardinais: os guardiões incorporam a sabedoria; os auxiliares incorporam a fortaleza ou coragem; a classe trabalhadora incorpora a temperança. E a justiça consiste, como dissemos, na harmonia entre as classes, no fato de que cada classe perfaz a tarefa que lhe é apropriada.

   Finalmente, com base nessas ideias Platão distinguiu cinco tipos de constituição política que tendem a se seguir uma à outra, decrescendo em virtude: monarquia (ou aristocracia), timocracia, oligarquia, democracia e a tirania. A melhor forma de constituição era para Platão a monarquia ou aristocracia, que preserva todas as virtudes sob o timão a sabedoria. O estado ideal concebido por Platão pertence a esse primeiro tipo, sob o suposto de que o monarca ou os aristocratas são sábios. Quando os governantes deixam de ser sábios, o que temos é a timocracia: aqui o governo é feito por militares, pelos que mantém a virtude da fortaleza ou coragem. A timocracia tende a degenerar, dando lugar a uma forma de governo ainda inferior, qual seja, a oligarquia. Esta ainda conserva alguma virtude de temperança, mas perdeu a virtude da coragem. A oligarquia degenera-se em democracia, que se caracteriza pela rejeição da temperança, ainda mantendo a ideia de justiça. Na democracia as pessoas agem por amor ao lucro, pois o dinheiro é o que permite a satisfação dos desejos materiais. Por fim, como as pessoas na democracia perderam a temperança, elas são facilmente enganadas por um líder demagogo que se alça ao poder e acaba por aprisionar os cidadãos em um meio totalitário. É assim que a democracia se degenera em tirania, que é o governo de déspotas que perderam até mesmo a ideia de justiça.

 

8

 

Apesar de ser tida pelo próprio Platão como uma construção especulativa, sua República foi em alguma medida realizada na prática durante a Idade Média. No século X a divisão entre a classe clerical poderosa, que era uma classe celibatária que preservava o saber, a classe dos príncipes e nobres, preparados para ir à guerra e proteger os seus reinos pela força, e a classe dos servos, responsáveis pela produção de bens materiais, lembra-nos claramente a divisão tripartite das classes proposta na República de Platão. Isso significa que a projeção social da tripartição da alma proposta por Platão encontrou alguma concretização histórica.

   Karl Popper responsabilizou Platão, Hegel e Marx por, ao rejeitarem a democracia, influenciarem as pessoas no sentido de fazê-las crer em estados totalitários. Popper observou que Platão e Heráclito pertenciam à velha aristocracia grega que havia perdido o poder para a democracia. Dois de seus tios foram mortos nessa disputa ao defenderem o governo dos trinta tiranos. A herança aristocrática de Platão o fazia sentir-se ressentido com a democracia.

   A favor de Platão é preciso lembrar que a República foi um trabalho especulativo que tinha como fio condutar a tentativa de aclarar o que deve ser entendido como justiça em uma sociedade. Ele via a especulação filosófica como aquilo que ela é: a busca da verdade como uma forma de “entretenimento” intelectual. Diversamente de Marx, ele já havia perdido a ambição de mudar o mundo pela especulação filosófica.

   Afora isso, a democracia grega, que condenou Sócrates à morte e que mais tarde forçou Aristóteles a se exilar de Atenas de maneira a salvar a sua vida pouco tinha a seu favor. E a crítica feita por Platão à democracia ateniense como o governo de uma multidão de pessoas cujo objetivo é a satisfação de desejos materiais, sem as virtudes de temperança, fortaleza e sabedoria, justifica-se ainda hoje como uma crítica às formas atuais de democracia. Um filósofo contemporâneo como Philip Kitcher defende que as pessoas precisam ser educadas para a democracia, e que ela precisa ser cientificamente refinada de modo a possibilitar aos eleitores escolher como governantes aqueles cujas ações realmente correspondam aos seus interesses, o que muitas vezes não acontece.[24]

   O maior clássico da filosofia política do século XX foi o livro de John Rawls intitulado Uma teoria da justiça. Para que possamos conceber uma sociedade verdadeiramente justa Rawls idealizou uma famosa experiência em pensamento. Imagine que você tenha várias alternativas de sociedade para escolher e que você deva escolher entrar em uma delas. Você conhece a natureza humana e sabe como as diversas sociedades funcionam. Mas você não sabe como irá entrar em uma dessas sociedades: se rico ou pobre, se jovem ou velho, se inteligente ou tolo, se branco ou negro... Você deverá escolher entrar na sociedade coberto pelo que Rawls chamou de “véu da ignorância”. Nesse caso, que sociedade você escolheria? A resposta é que você preferiria entrar em uma sociedade social-democrática no sentido da em que a expressão é usada nos países nórdicos... Pois essa será a sociedade onde, em qualquer situação, você estará mais seguro. Você não escolherá entrar em uma sociedade sem mobilidade como a da Roma antiga, onde terá boas chances de entrar como escravo jamais lhe sendo possível o destino.

   Uma questão é saber quantos de nós, sob o véu da ignorância, escolheria entrar na sociedade ideal proposta por Platão. Desconfio que muitos não se sentiriam satisfeitos. Apenas para começar, suponha que você tenha nascido com as partes apetitiva e racional da alma desenvolvidas, mas que a parte volitiva seja bastante fraca. Nesse caso você não terá lugar na sociedade ideal de Platão, pois não estará bem nem entre os agricultores nem entre os guardiões. Não há lugar na sociedade platônica para a combinação de ouro com ferro.

 

9

 

No incômodo capítulo X da República Platão condena a arte. Segundo Platão, a arte é mímesis, que significa ‘cópia’. Mas como as coisas visíveis são cópias das ideias e a arte é cópia dessas cópias, trata-se de algo demasiado imperfeito e enganador. Platão aceitava em sua república apenas poesias e hinos patrióticos. É muito difícil concordar com Platão nesse ponto, pois foi exatamente essa a forma de arte que as mais lamentáveis ditaduras do último século apoiaram.

   Uma razão externa para discordarmos de Platão consiste no fato de que os artistas se encontram em geral voltados para o mundo sensível: seu material de trabalho é a vida como ela é, sem anestesias ou consolações filosóficas. Voltados como estavam para experiências emocionais e sensórias, eles eram os maiores críticos da ascese platônica. Se o estudo das matemáticas a facilitava, a experiência estética a dificultava.

   Mas existem razões internas para discordarmos de Platão, concernentes a limitações no próprio argumento. Para esclarecer o que há de mais errado na concepção de arte de Platão quero fazer uma comparação com R. G. Collingwood, que distinguia três formas de arte: a arte como entretenimento, a arte sacra, e o que ele chamou de arte própria, a mais elevada forma de arte, que pode ter aqui como modelo a tragédia grega ou Shakespeare. Para ele a única forma de arte verdadeiramente merecedora do nome seria a arte própria, cujo objetivo era o de despertar a consciência: reavivar nas pessoas aquilo que elas procuram esconder de si mesmas adoecendo a sociedade. Como ele mesmo escreveu:

 

Conhecer a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve além do nível de experiência meramente físico. Uma consciência verdadeira dá ao intelecto uma fundação firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre areia movediça.[25]

 

 

Por isso o artista deve ser um profeta

 

 

...não no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta a sua audiência, sob o risco de desagradá-la, os segredos de seus próprios corações. (...) Como porta-voz de sua comunidade, os segredos que ele precisa pronunciar são os dela mesma. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade conhece o seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade engana-se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença da mente, que é a corrupção da consciência.[26]

 

Quero exemplificar esse ponto lembrando de uma música cantada por Billie Holiday, intitulada “Estranho Fruto” (Strange Fruit). Traduzo livremente[27]:

 

Árvores do sul dão um estranho fruto

Sangue nas folhas, sangue nas raízes

Corpos negros balançando à brisa do sul

Estranho fruto pendurado sob os álamos.

Cena pastoral do galante sul

Olhos abaulados, bocas retorcidas

Perfume de magnólia, doce e fresco

E o repentino odor de carne queimada.

Um fruto para os corvos arrancarem

Para a chuva lavar e o vento sugar

Para o sol apodrecer e da árvore tombar

Aqui se dá uma estranha e amarga colheita.

 

O estranho fruto são dois negros que foram linchados e enforcados sob uma árvore na Carolina do Sul, em meio a uma multidão que se orgulhava do feito. Não havia leis proibindo o linchamento. A cantora foi perseguida e até mesmo presa por ter tido a ousadia de continuar cantando a música. Mas a sua letra amplia o sentimento de injustiça ao denunciar metaforicamente, com irônica elevação de alma, um cenário cruel. E não encontramos nada aqui de cópia da realidade, ao contrário, digamos, de um artigo de jornal noticiando o acontecimento. O que percebemos é uma maneira de se denunciar uma injustiça concreta colocada em contraposição flagrante ao ideal de justiça.

   Quero dar apenas mais dois outros exemplos de arte própria. A primeiro diz respeito a Machado de Assis, tal como ele é interpretado pelo crítico literário Roberto Schwarz. Segundo Schwarz, a segunda fase da obra machadiana é uma sofisticada crítica social, que de tão sutil passou quase despercebida. Isso acontece com o personagem Brás Cubas, a defunto autor da peça literária incomparável que se chama As memórias póstumas de Brás Cubas. Ele é um homem rico, inteligente, perspicaz e crítico, orgulhando-se de ter aurido seus valores no mais progressista pensamento europeu da época. Mas, ao mesmo tempo ele se gaba de nunca ter ganhado a vida com o suor do próprio rosto, tem como amante uma senhora casada e dá importância a toda espécie de superficialidade, como quando rejeita uma pretendente ao saber que ela é manca ou mesmo quando inventa um emplastro capaz de curar qualquer tipo de doença com o objetivo único de obter notoriedade. Outro exemplo é o mimado Bentinho, o personagem moralizador do romance Dom Casmurro, cuja mãe era por ele considerada um exemplo ímpar de doçura e bondade, mas que vivia do aluguel de escravos. Para Schwarz Machado de Assis está ironizando as contradições de nossa classe abastada, que em suas convicções se pretende progressista, mas que em suas ações está disposta a ceder a toda espécie de baixeza.

   Ainda um exemplo são os filmes fortes de Cláudio Assis, principalmente O baixio das bestas, em que ele denuncia a desumanidade nos canaviais pobres de Pernambuco. Como ele mesmo comenta a respeito: “As piores coisas acontecem diante dos olhos de todos e ninguém faz nada para impedir”.

   Em todos os casos acima não há intenção alguma de copiar a realidade, a menos que seja para denunciá-la, opondo a ela a ideia mesma de justiça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III

ARISTÓTELES E A METAFÍSICA

 

Aristóteles (384-322 a.C.) teve uma vida mais difícil do que Platão. Ele nasceu em Estagira, na Macedônia, filho do médico da corte de Amyntas III, avô de Alexandre o Grande. Aos 18 anos foi para Atenas e passou os próximos vinte anos estudando junto a Platão. Após a morte do último não lhe herdou o lugar na academia, o que o fez deixar Atenas. Foi então preceptor de Alexandre, tendo passado algum tempo na ilha de Lesbos fazendo observações sobre a vida de animais e plantas acompanhado de seu amigo Teofrastus, um botânico.[28] Só para dar um exemplo de suas pesquisas: foi ele quem teve a ideia de fazer um furo no ovo fertilizado de uma galinha para observar o coração do embrião batendo, descrevendo pela primeira vez a origem de uma criatura viva. Seu conhecimento das espécies naturais teve influência direta nos conceitos que desenvolveu em sua metafísica, como os de potencialidade e atualidade, matéria e forma.

   Depois vieram dez anos de sorte. Com a Conquista de toda a Grécia por Alexandre ele pôde voltar para Atenas e fundar o Liceu, que se tornou o primeiro instituto científico da história, recebendo consideráveis fundos do governo. Chegaram até a construir um zoológico. Nos dez anos seguintes Aristóteles desenvolveu a sua filosofia na forma pela qual a conhecemos hoje, trabalhando feito um mouro e mesmo assim encontrando tempo para fazer dois filhos. Mas as coisas para ele também não eram assim tão fáceis. Conta-se que uma vez Aristóteles escreveu a Alexandre reclamando por este ter condenado a morte um filósofo inocente. A resposta teria sido: “Eu também mato filósofos”. Aristóteles engoliu em seco. Com a inesperada morte de Alexandre, vitimado pela febre aos 32 anos, o céu veio abaixo. Livres do domínio macedônio, os atenienses decidiram vingar-se de estrangeiros como Aristóteles. Como a Sócrates, acusaram-no de impiedade (desconsideração pelos deuses), o que significava pena de morte. Para salvar sua vida Aristóteles teve de exilar-se em Assos, adoecendo e vindo a morrer meses depois aos 62 anos de idade. Platão, diversamente, morreu dormindo aos 80 anos.

   Platão dividiu as pessoas entre os “amigos das ideias” e os “gigantes da terra”. Os amigos das ideias eram pessoas razoáveis como ele mesmo, que buscavam um mundo de coisas perfeitas e imutáveis, as ideias. Eram idealistas geralmente versados nas matemáticas. Já os gigantes da terra são barulhentos e só acreditam naquilo que podem ver e tocar com as próprias mãos e até mesmo espremer... Para eles só é real aquilo que conseguem manipular e que resiste ao toque.[29] Não creio que Platão tivesse em mente Aristóteles ao escrever isso, mas o fato é que este último se distinguia do mestre pelo naturalismo e por uma forte tendência empirista, mesmo que com eventuais recaídas platônicas.[30] Aristóteles tinha profundo interesse por zoologia e botânica. Diversamente de Platão, ele casou-se e, com a morte da esposa amasiou-se de uma serva macedonense com a qual teve um filho e uma filha.

   Aristóteles escreveu uma obra vasta opinando, certo ou errado, sobre quase tudo o que era investigado na época. Foi o primeiro sistematizador da lógica através de sua teoria do silogismo. Suas contribuições para a metafísica foram imensamente influentes.

 

1

 

A Metafísica é uma coleção de quatorze livros que costumam tratar do que Aristóteles chamava de filosofia primeira ou ciência buscada. Somente dois séculos e meio mais tarde Andrônico de Rhodes, que pela primeira vez publicou as obras de Aristóteles em Roma, teve a ideia de chamar o conjunto dos escritos relacionados à filosofia primeira de metafísica, o que significa “depois da física” ou “para além da física”. A razão foi possivelmente casual: na ordem dos escritos os manuscritos vinham depois da física, que Aristóteles chamava de filosofia segunda. Mas foi um acaso feliz, uma vez que “meta” pode significar “além de”, “acima de”, e o objeto da filosofia primeira era para Aristóteles superior ao de todas as outras ciências.

   O que foi chamado de Metafísica é na verdade uma barafunda confusa, anotações de aulas, textos desconexos que tem quebrado as cabeças dos intérpretes, de modo que não tenho esperança de fazer aqui uma exposição linear do que Aristóteles escreveu. Ele deu várias explicações sobre o que seria a filosofia primeira. Eis as quatro mais conhecidas:

 

1.    A investigação do ente enquanto ente[31],

2.    A investigação da substância,

3.    A investigação da causas e princípios primeiros,

4.    A investigação de Deus e da substância supra-sensível.

 

Essas definições se encontram inter-relacionadas: A investigação do ente enquanto ente é primariamente a investigação na substância (a Arché de Aristóteles). Substâncias supra-sensíveis como Deus são investigadas pela teologia, as quais são também causas primeiras.[32]

   Como a substância, as causas e princípios primeiros, Deus como substância supra-sensível, serão tópicos pertencentes ao estudo da metafísica, dizer que a metafísica as investiga não constitui uma definição. Resta apenas (1): A investigação do ente enquanto ente. Mas o que Aristóteles quer dizer com isso? Ser é aqui entidade ou coisa, de modo que ao investigar o ser enquanto ser ele está querendo dizer que pretende investigar as entidades enquanto são elas mesmas, ou seja, naqueles atributos que são comuns a todas elas. Ciências especiais investigam entidades naqueles atributos que são comuns a uma classe delas, como a investigação das entidades como seres vivos (biologia) ou a investigação de entidades enquanto relações numéricas (matemática). Como Aristóteles escreve:

 

Há uma ciência que investiga o ente enquanto ente e os atributos que convém a ele em virtude de sua própria natureza. Isso não é o mesmo que qualquer uma das assim chamadas ciências especiais, pois nenhuma delas lida de maneira geral com o ente enquanto ente – antes, cada uma recorta uma parte do ser e investiga os atributos dessa parte. Isso é, por exemplo, o que as matemáticas fazem.[33]

 

Ou seja: a metafísica investiga os atributos que convém às entidades em geral de maneira “tópico-neutra”, ou seja, os atributos que convém, senão a todas as classes de entidades, a grande maioria delas.

   O ponto fica mais claro quanto comparamos as sugestões de Aristóteles com as investigações feitas pela metafísica contemporânea. Essa última trata daquilo que não é investigado por nenhuma das ciências particulares, mas que é sempre pressuposto em suas investigações, aparecendo sempre em suas terminologias sem ser questionado. São questões que atravessam as ciências particulares e que fazem parte. Elas constituem, digamos, a moldura através da qual pensamos o universo. Como bem definiu A. E. Taylor em seu livrinho sobre Aristóteles, a metafísica deve expor os “princípios estruturantes universais sem os quais não poderia existir nenhum sistema ordenado de objetos conhecíveis”.[34] Isso fica mais claro quando consideramos alguns exemplos de conceitos que a metafísica contemporânea investiga:

 

Propriedade, causalidade, espaço e tempo, objetos materiais, número, existência, necessidade, possibilidade, o todo e a parte, princípios lógicos universais...

 

No vocabulário das ciências particulares falamos o tempo todo de propriedades, existência, relações causais, etc. Considere o caso das propriedades: tudo o que existe possui propriedades. São propriedades físicas, químicas, biológicas, psicológicas e sociais. Além disso todas as ciências particulares empíricas tratam de relações causais entre os fenômenos por elas estudados. Esses fenômenos ocorrem sempre no espaço e no tempo. Essas ciências tratam de particulares, de objetos materiais, que vão desde os átomos da física, passando pelas moléculas da química, pelos estados mentais da psicologia, até as sociedades e seus indivíduos.  Finalmente, todas elas consideram números de entidades, sejam elas físicas, químicas, biológicas ou sociais… e também consideram a existência ou inexistências das entidades pertencentes aos seus domínios... Fica claro que embora todas essas ciências apliquem conceitos como os de propriedade, indivíduo, causalidade, existência – conceitos pertencentes à metafísica – nenhuma delas se ocupa da investigação da natureza e função desses conceitos ou das relações que eles possam ter entre si.  Esses conceitos são considerados por muitos hoje como sendo empíricos, mas que não parecem tais pelo fato de que seu campo de aplicação é tão amplo que eles dizem respeito, senão a tudo o que existe, a maior parte daquilo que existe.

   Aristóteles merece o crédito de ter sido a primeira pessoa a perceber que conceitos referenciais que pertencem aos mais diversos âmbitos de aplicação demandam uma investigação própria: a de sua filosofia primeira. Como e o quão justificadamente ele desenvolveu a sua metafísica é uma outra questão.

 

2

 

Consideremos, pois, o conceito aristotélico de substância (ousia). Como Aristóteles chegou até ele? A resposta é: pelo exame da estrutura da linguagem. Ele pressupôs que a estrutura da linguagem representativa fosse capaz de refletir a estrutura última da realidade, um pressuposto que foi repetido no início do século XX por Russell e Wittgenstein sob a inspiração da revolução na análise lógica operada por Gottlob Frege.

   Ora, a mais fundamental unidade do dizer em nossa linguagem é a frase predicativa singular. Por exemplo: “Sócrates é calvo”, “Veneza é uma bela cidade”, “Este cão é um caramelo”. Tais frases tem a forma Fa, onde F é um predicado designando uma propriedade e a é um sujeito que se refere a um indivíduo. Para Aristóteles o sujeito se refere ao que ele chamou de ousia, que significa ‘ser’: o que é ou existe no sentido mais forte da palavra. Por vezes Aristóteles usou também a palavra ‘hypokeímenon’, que significa o que está sob, o que deu origem à enganosa tradução latina de ousia como ‘substância’ (sub-stare = ‘estar sob’). Assim, para Aristóteles a substância (ousia) é o que há de mais fundamental, pois é o que existe sem precisar de outras coisas para existir; essa independência se demonstra linguisticamente pelo fato de que a substância pode ser o repositório de muitos predicados, mas não pode ser predicada de nada. Em um exemplo: Se digo que Sócrates é sábio, a sapiência de Sócrates precisa de Sócrates para existir. Mas Sócrates não precisa ser sábio para existir. Mais além, posso predicar de Sócrates muitas propriedades, mas não posso usar o indivíduo Sócrates para predicar coisa alguma. Logo, parece que o indivíduo Sócrates é a substância, a ousia, o existente primário.

   O fato de a substância ser aquilo que é referido pelo termo singular não é suficiente para que possamos identificá-la de forma precisa. Uma frase como “O ócio é o humus do espírito” tem como sujeito ‘o ócio’, mas ele não se refere a uma substância. Aristóteles precisava, pois, descobrir critérios de identificação mais adequados do que ele queria entender como sendo aquilo que existe sem precisar de outra coisa para existir. Há pelo menos dois momentos claramente distinguíveis no desenvolvimento desses critérios: os de sua exposição nas Categorias e em sua Metafísica.

   No texto inicial, que é o das Categorias, Aristóteles distinguiu dois sentidos da palavra ‘substância’. O sentido próprio é o que ele chama de (i) substância primeira. Trata-se aqui do indivíduo espaço-temporalmente localizável, do particular concreto, como Sócrates ou Bucéfalo. Quando digo “Sócrates é sábio” estou me referindo ao indivíduo de nome Sócrates que em um certo momento se encontra em um lugar específico. Mas há também um sentido complementar do termo substância, que Aristóteles chama de (ii) substância segunda. Trata-se da espécie de coisa à qual o indivíduo referido essencialmente pertence. No caso de Sócrates trata-se do fato de que ele é homem (no sentido de que é um ser humano). Assim, se digo “Sócrates é um homem” estou através do predicado me referindo à substância segunda.

   Na Metafísica Aristóteles revelou-se insatisfeito com a definição de substância apresentada nas Categorias. A razão é que na Metafísica ele passou a contrastar a identificação da substância primeira com o indivíduo particular com a distinção por ele introduzida entre forma e matéria de um indivíduo. Assim, a pergunta que ele se fez é se a substância é (i) a matéria do indivíduo, (ii) a sua forma (como espécie ou como gênero), (iii) o composto da forma e da matéria desse indivíduo.

   Ao que parece a substância não pode ser a matéria pura e simplesmente. Assim, uma esfera de cobre possui a forma, com base na qual a definimos como sendo esférica, mas ela é feita de uma matéria, o cobre. Um ser humano possui a forma do ser humano, mas uma matéria de ossos, músculos, gordura... Assim, Sócrates e Bucéfalo possuem formas substanciais imanentes, além da matéria. O problema é que quando, falamos da matéria somos forçados a nos referir a formas, pois o cobre é um metal, cuja matéria é o elemento metálico de número atômico 29, e a matéria do corpo humano, descrita como sendo feita de ossos e músculos pode também descrita como forma; a forma do músculo, por exemplo, é feita basicamente de uma matéria que pode ser descrita como feita de miofibrilas proteicas.

   No livro VI ele fez uma interessante experiência em pensamento, retirando uma a uma as propriedades de um indivíduo particular de modo a fazer restar só a matéria.[35] O resultado é que simplesmente nada de dizível ou cognoscível resta! Como ele mesmo conclui: “A matéria (destituída de qualquer forma) é incognoscível”[36]. O problema de se definir a substância torna-se aqui o de definir o que é primariamente substância, se a matéria de que é constituído o indivíduo, sua forma (ou formas), ou o composto de forma e matéria.

   Eis a passagem crucial da Metafísica na qual ele sugere dois sentidos fundamentais no entendimento do que é a substância:

 

Segue-se que substância tem dois sentidos: (i) um substrato último que não é mais predicado de coisa alguma. Uma substância é (ii) um esse tal-e-tal (tode ti) separável – que por natureza é a feição ou forma de qualquer coisa.[37]

 

Comecemos analisando a primeira frase da citação: “uma substância é um substrato último que já não é mais predicado de coisa alguma”. Como sujeito último, a substância é um indivíduo impredicável. Como tal ele não pode ser dito de qualquer outra coisa, ou seja, ele é o repositório último das predicações que não pode ser predicado de coisa alguma. Contudo, o que pode ser objeto de predicações, mas não pode ser predicado de nada não é algo que se deixe explicitar pela linguagem. Por exemplo: Eu posso apontar para Sócrates e dizer: “Sócrates é um homem”. Aqui eu predico de Sócrates uma forma substancial, a sua essência, que é a de ser um ser humano. Assim, ser humano não pode ser substância no sentido daquilo que é objeto último de predicações. Mas que dizer da referência do nome próprio ‘Sócrates’? Considere a frase “Esse é Sócrates”. Ela pode ser entendida no sentido de “Isso tem a múltiplas propriedades pelas quais identificamos Sócrates”, ou mesmo, seguindo W. V-O. Quine, um lógico contemporâneo, “Isso socratiza”. Aqui ‘Sócrates’ aparece como predicado de modo a representar as múltiplas propriedades que o individuam! Mas então o nome ‘Sócrates’ não serve para fazer referência à substância como o indivíduo que é “sujeito último e que já não é dito de qualquer outra coisa.” A única maneira de nos referirmos à substância primeira não predicável é usando o pronome demonstrativo ‘esse’ que, com ajuda do um gesto apenas indica uma certa região espaço-temporal. Com efeito, enquanto tal, o ‘esse’ não pode ser predicado de coisa alguma. Se aponto para algo e digo “Esse é esse”, só posso estar dizendo que esse é o mesmo que esse, o que não transforma o ‘é isso’ em um predicado.

   Chegamos agora à segunda frase da citação de Aristóteles: “Uma substância é aquilo que é um esse tal-e-tal e também é separável”. Essa segunda caracterização é a mais completa e abrange também a primeira, resolvendo para Aristóteles o problema da definição da substância. Isso é possível porque o demonstrativo “esse tal-e-tal” (tode ti) aponta para o que pode ser capturado pela linguagem. Como? Ora, primeiro através da localização espaço-temporal obtida pelo “esse”; depois através de qualquer atribuição que a ele seja acrescentada, ou seja, o tal-e-tal. Assim, com o demonstrativo ‘esse’ nós nos referimos a um algo, um indivíduo espaço-temporalmente localizado, sem determiná-lo através de propriedades, algo que sabemos apenas ser material. Trata-se por isso daquilo de que podemos predicar outras coisas, mas que não pode ser de nada predicado. Mas se nós nos limitássemos a definir a substância como qualquer coisa espaço-temporalmente localizável pelo ‘esse’, estaríamos condenados a deixá-la fora da linguagem. Contudo, podemos acrescentar ao local indicado pelo demonstrativo o tal-e-tal, a predicação da essência da coisa, da forma substancial, que para Aristóteles (como bom biólogo) era primordialmente a predicação de uma espécie zoológica ou botânica.

  Suponha agora que nos encontremos diante de Sócrates dizendo: “Isso é um homem”. Essa é uma frase do tipo “esse tal-e-tal’. Através dela nós indicamos uma coisa que não pode ser predicação de coisa alguma e dela predicamos a humanidade. Pois bem: ser uma coisa localizada que é humana é ser uma substância no sentido mais próprio. A substância torna-se assim capturada pela linguagem como contendo uma forma que é uma essência e que, por isso mesmo, pode ser definida. Afinal, Aristóteles define o ser humano como um animal racional. Se digo “Isso é um homem”, estou dizendo o mesmo que “Isso... é um animal racional”, ou seja, estou definindo o indivíduo designado pelo demonstrativo ‘isso’ como sendo um animal racional. Como é sabido, para Aristóteles uma definição real seria aquela na qual distinguimos a diferença específica de um gênero próximo. O gênero próximo é o da animalidade e a diferença específica é a da racionalidade. A espécie natural, à qual pertence o que é indicado pelo ‘isso’, é a dos animais racionais.

   Finalmente, faltou ser considerada a segunda cláusula da segunda frase: a substância “também é separável.” Ele quer dizer com isso que ela é ontologicamente fundamental. Melhor dizendo: A substância como um todo apresenta uma unidade intrínseca, não sendo um mero agregado. (Uma mão não é uma substância, pois não possui unidade intrínseca, um monte de lixo também não, pois é mero agregado, mas um certo homem é uma substância). Espécies naturais geralmente possuem unidade intrínseca.

   Podemos agora concluir. A substância aristotélica não pode ser a matéria do indivíduo, uma vez que ela é por si mesma incognoscível e indizível. Ela deve ser ou (a) o composto da matéria (indicada pelo ‘esse’) e da forma indicada pelo seu complemento como ‘o tal-e-tal’) ou então a (b) espécie como forma substancial. Como a espécie pode ser dita de muitas coisas (por exemplo, dos muitos homens que são seres humanos, e não apenas de Sócrates) parece que devemos concluir que a substância é o composto. Aristóteles não parece ter concordado com isso, reservando um lugar privilegiado para a forma como espécie. A razão não é difícil de ser encontrada. Ele queria reservar um lugar especial para a forma como espécie substancial porque ele acreditava existirem substâncias que são formas sem matéria, como é o caso de seu Deus, das esferas celestes e da razão humana. Trata-se em meu juízo de uma recaída no platonismo com a qual não precisamos concordar.

   Aristóteles adicionou à predicação da forma substancial mais nove gêneros supremos por ele chamadas categorias (katêgoria = predicado), que ele teria já encontrado em Platão. As categorias, o que de mais fundamental pode ser predicado da substância primeira, podem ser dispostas na seguinte tábua:

 

Substância         Exemplo: “(esse) ser humano” (Sócrates).

Qualidade          é sábio,

Quantidade        tem 160 m de altura,

Relação              é Casado com Xantipa,

Onde                  está na Ágora,

Quando              pelo meio-dia,

Posição              de pé,

Ter                     segura um bastão,

Fazer                  está falando,

Ser afetado        está respondendo a uma pergunta.

 

Para Aristóteles, tudo o que podemos dizer da substância está contido na classe de predicados por ele chamados de categorias. Por exemplo: apontando para Sócrates (o indivíduo, a substância primeira) eu posso dizer uma frase do tipo “Esse tal-e-tal”, no caso “Esse é um homem”, indicando a substância como forma definível (homemdf = animal racional) do indivíduo. Mais além, eu posso dizer que esse homem (Sócrates) é sábio (predicando-lhe uma qualidade), que ele tem um metro e sessenta de altura ou que pesa 68 Kg. (quantidade), que é marido de Xantipa (relação), que se encontra na Ágora (onde) na manhã do dia 23 de julho do ano 398 a.C. (quando), que está de pé (posição), que segura um bastão (ter), que está falando (fazer) e que está respondendo a uma questão (está sendo afetado).[38]

   Aqui podemos considerar uma última propriedade da substância que terá grande importância no sistema de Aristóteles: o fato de que a substância serve de substrato para a mudança. Como suporte para as outras categorias, a substância deve poder permanecer a mesma no tempo enquanto as outras categorias se modificam. Por exemplo, esse ser humano, Sócrates, é o mesmo e dele predicamos a sapiência. Mas não predicamos a sapiência dele quando ele era criança, nem que ele tinha 160 cm de altura, nem que era casado com Xantipa. Além disso, quando bebê ele não ficava de pé; ele andava de gatinho e sequer sabia falar. Mesmo assim o Sócrates criança é certamente o mesmo Sócrates foi condenado a beber cicuta aos 70 anos.

    Resumindo: as características mais distintivas da substância são as de que (1) ela é o sujeito último dos predicados e não é para ser predicada de coisa alguma; (2) a substância é um ente capaz de subsistir por si mesmo e na independência do resto; (3) ela é algo intrinsecamente unitário, não podendo ser mero agregado (um monte de lixo não é substância) ou parte de algo (eu sou uma substância, mas minha mão não é); (4) ela pode servir como substrato da mudança.

 

3

 

Um problema que surge aqui é o quanto tem a ver a forma aristotélica com as ideias de Platão. Seriam as formas aristotélicas universais abstratos? Há algumas evidências textuais mostrando que sim. A forma aristotélica seria algo comum a um número maior ou menor de indivíduos, embora sempre dependente deles para existir. Eis o que ele escreve na Metafísica:

 

O que resulta, enfim, é uma forma de determinada espécie, realizada nessas carnes e ossos: por exemplo Cálias e Sócrates; e eles são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos indivíduos), mas são idênticos pela forma (a forma é, de fato, indivisível).[39]

 

Isso justifica a observação de que a diferença entre a ideia platônica e a forma aristotélica é que se o mundo deixasse de existir as ideias platônicas continuariam a existir, enquanto as formas aristotélicas desapareceriam. A forma aristotélica funciona aqui como um lençol transparente, firmemente colado a todos os objetos que dela compartilham. Contudo, caso adotada essa sugestão conduz Aristóteles a problemas ainda maiores do que Platão com a sua doutrina das ideias. Como pode, afinal, a forma universal de Aristóteles permanecer a mesma e ainda assim se dividir entre os diferentes objetos aos quais se aplica?

   Aristóteles não é, porém, consistente com essa sugestão. Na seção 13 do livro Z da Metafísica ele oferece argumentos que parecem destrui-la. Talvez a sugestão dos filósofos medievais de que para Aristóteles não existem universais nas coisas (in rebus), mas somente na mente (post rem), após abstração, seja a maneira mais sensível de interpretar o filósofo. Mesmo assim não parece que a mente finita, tal como a entendemos hoje, tenha lugar para o universal abstrato post rem.

   Considerações como essas permitiram a Aristóteles analisar a substância como uma combinação de matéria (hylê), exemplificada como o referente do “isso”, e de forma (eidos ou morphê), exemplificada pelo referente do “tal-e-tal”. A forma é aqui o remanescente da ideia platônica. Assim como para Platão nós só podemos adquirir conhecimento do mundo visível porque ele contém cópias imperfeitas das formas, Aristóteles irá dizer que é pela forma que identificamos as coisas do mundo visível, mas sem pretender que existam forma (ou ideias) separadas da matéria, como fazia Platão. Diversamente de Platão, para Aristóteles a forma só existe no particular, no indivíduo, mas de modo idêntico ao de Platão, para Aristóteles é só a forma que torna o indivíduo inteligível. É a forma que permite caracterizar a substância como possuindo uma unidade intrínseca, como sendo algo determinado, algo que subsiste por si e separadamente das outras coisas. Assim, a matéria de uma esfera de cobre é o conteúdo material do cobre. A matéria de um corpo humano seria para Aristóteles formada de uma composição de terra, água, fogo e ar, ou, para nós, de moléculas de água e da química do carbono. A forma de um estado, segundo Aristóteles, é dada por sua constituição, mas a sua matéria é dada pela sua população. Contudo, a matéria também pode ser vista como forma e só nesse sentido ela é cognoscível. O conteúdo material da bola de cobre é formado por moléculas de cobre. A água do corpo humano é formada por moléculas. A população de um estado é formada por pessoas. Tudo isso são formas, mas de modo mais homogêneo. Para tornar esse ponto mais claro, considere as partículas subatômicas como a matéria, ou ainda, as microcordas, caso a teoria das cordas seja correta. Nesse último caso todo o universo pode ser visto como sendo composto de uma mesma matéria, que seriam as cordas. E o resultado seria uma grande homogeneidade. Por isso podemos dizer que o responsável pela heterogeneidade das determinações específicas, pela diversidade, é a forma. Resta uma pergunta: Existiria uma matéria última, não redutível à nenhuma forma? Esta seria a assim chamada “matéria prima”, a matéria por si mesma, sem qualquer qualificação formal. Mas esta é por definição incognoscível.

 

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O próximo ponto é a questão da mudança. Desde Heráclito é aceito que o mundo sensível é caracterizado pela mudança, movimento, transformação.

   Para dar conta da mudança Aristóteles lança mão de uma nova dualidade conceptual: a distinção entre potência (dunamis) e ato (energeia). A potência é definida como a capacidade de vir a ser, enquanto o ato é simplesmente a capacidade de ser. O melhor exemplo explicativo é o de uma semente. Uma semente pode dar origem a um abacateiro. Uma outra semente, quase igual à primeira, pode dar origem a uma mangueira. Uma semente tem o potencial de se transformar em uma coisa ou em outra. A semente do abacateiro é abacateiro em potência, que posteriormente se transforma no abacateiro em ato. Para Aristóteles toda substância não só é constituída de matéria e forma, mas ela própria é ao mesmo tempo sempre potência e ato. Mas há em toda substância uma correlação entre o que dizemos ser matéria ou potência de um lado e o que dizemos ser forma ou atualidade de outro. Uma substância possui não somente matéria e forma, mas também potência e ato. Ela é ato na forma que ela presentemente possui. Mas ela é também potência pela capacidade que ela possui de atualizar-se em outra forma. Por exemplo: uma semente tem a potencialidade de se transformar em uma árvore, mas ela não é árvore em ato, mas apenas em potência. A árvore foi semente em potência, mas agora é árvore em ato, ela adquiriu essa forma. Ademais, para Aristóteles matéria e forma são geralmente uma só coisa em diferentes aspectos. A matéria é a forma em potência, enquanto a forma é a matéria que se atualizou. A matéria é atualizada pela forma, que por sua vez atualiza a matéria.

   A distinção entre ato e potência permitiu a Aristóteles responder a Parmênides quando este afirmou que o ser é imutável, pois do não ser não pode advir o ser, caso contrário o não ser seria, e do ser não pode advir o não ser, a menos que o ser não seja. A resposta de Aristóteles foi a seguinte: O ser pode advir do não ser porque o não ser já é ser em potência, enquanto o não ser pode advir do ser porque o ser já é não ser em potência. Por isso, pensava ele, a mudança é no final das contas a passagem do ser para o ser: de um ser em potência para o ser em ato.[40]

   Como complemento a sua explicação da mudança, Aristóteles ainda adiciona a famosa teoria das quatro causas, que tão facilmente se confunde com um arcaísmo filosófico. Talvez porque a palavra causa seja aqui enganosa. Na verdade, trata-se de uma teoria dos elementos envolvidos na explicação da mudança enquanto ela tiver caráter teleológico. Esses elementos são a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final.

   Para tornar isso claro, imagine que um artífice pretenda esculpir uma estátua. Ele precisará primeiro de uma pedra de mármore. Essa é a causa material. Além disso ele precisa ter uma ideia do que irá fazer, por exemplo, uma estátua do deus Apolo. Essa é a causa formal, a forma ainda não atualizada. Além disso o escultor precisará trabalhar no bloco de mármore de modo a esculpir a estátua do deus Apolo. Essa é a causa eficiente. Por fim, a estátua do deus Apolo deverá ser colocada no templo, de modo a servir como objeto de adoração: essa é a assim chamada causa final, o propósito de toda a ação.

   A teoria das quatro causas não serve apenas para explicar as ações humanas intencionais. Ela serve à biologia de Aristóteles. Assim, um pequeno arbusto para crescer e se transformar em uma árvore precisa de uma matéria, a madeira da qual ela é constituída. Mas ele também precisa de uma forma: o arbusto tem a finalidade inscrita em sua genética de se transformar em uma árvore. Para que isso aconteça também estão envolvidos elementos constitutivos da causa eficiente: é preciso haver luz, água e elementos nutritivos adequados para que o arbusto se transforme em árvore. Há, finalmente, a causa final: a árvore servirá para dar frutos e dessa maneira permitir a continuação da espécie à qual ela pertence.

   A teoria das quatro causas não serve, obviamente, para explicar eventos causais no mundo físico. Se um asteroide por acaso cai sobre o planeta Júpiter, a finalidade do asteroide não é a de cair no planeta Júpiter, nem é o caso de que dessa maneira ele realize a sua forma, digamos, a de aumentar minimamente a massa desse planeta gigante.

 

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Uma última questão diz respeito ao Deus aristotélico, ou seja, à definição de metafísica como teologia e investigação das causas últimas. O argumento se inicia com uma questão acerca do tempo. Teve o tempo um início? A resposta é que se o tempo tivesse um início então faria sentido perguntarmos o que havia antes do tempo. Mas ao usar a palavra ‘antes’ já estamos pressupondo o tempo. O mesmo acontece se nos perguntarmos se o tempo teria um fim. Nesse caso será possível perguntar o que acontecerá depois do tempo. Mas ao usar o advérbio ‘depois’ nós também pressupomos o tempo. A conclusão é que o tempo não tem nem início nem fim: o tempo é eterno. Contudo, Aristóteles também percebeu que a passagem do tempo é intrinsecamente ligada à mudança, ao movimento. Esse é um ponto passivo. Nós marcamos o tempo através de relógios que se valem de mudanças cíclicas com idêntica duração. Era assim nos tempos primevos, quando os homens contavam os dias e os anos. E é assim ainda hoje quando podemos fazer uso de relógios atômicos. E quando percebemos o passar do tempo é porque a natureza nos dotou de relógios biológicos internos. Assim, parece realmente plausível que em um mundo sem mudança o tempo deixaria de existir.

   Tentando conceber um tempo sem mudança, imagine que nosso universo inteiro se congele por um ano, permanecendo durante todo esse tempo sem qualquer mudança. Pode parecer possível, não? Mas quando imaginamos isso, nós como que nos postamos fora do universo, de uma perspectiva sob a qual somos plenamente capazes de averiguar a passagem do tempo, por exemplo, por possuirmos relógios capazes de medir a passagem de um ano. Mas nesse caso não estamos considerando mais o universo como um todo, pois nós e nossos relógios, que estamos fora, também devemos pertencer a ele dele. A conclusão é que não faz sentido dizer que o universo, agora entendido como absolutamente tudo o que existe (nós e nossos relógios incluídos) possa ficar congelado por um ano, pois ele não poderia incluir relógios capazes de marcar esse tempo. Aqui Aristóteles tinha razão.

   Tendo concluído que o tempo e a mudança são eternos, Aristóteles se pergunta sobre a causa última de todas as mudanças, de todos os movimentos, que para ele não é mera causa eficiente, mas causa final, um telos. Ele pensa que se o tempo-mudança é eterno, então a causa do tempo-mudança precisa ser também eterna. Contudo, aquilo que gera as sequências causais não pode ser algo temporal, pois a admissão disso implicaria em uma causa dessa causa e em uma progressão infinita de causas finais. Ora, para os gregos, a ideia de uma progressão infinita era absurda. Como conclusão, deve existir uma causa que seja incausada, um movente imóvel, que Aristóteles chama de Deus (theos). Se tempo e mudança se encontram intrinsecamente ligados, a causa incausada é causa do próprio tempo. Essa causa incausada precisa ter três características: ela precisa ser eterna, imóvel e ato puro. Se não fosse eterna o tempo-mudança que ela causa não seria eterno. Se fosse móvel ela seria causada e não seria mais a causa primeira, o primo motor. Se contivesse matéria ela teria potência e seria capaz de mudança, logo deve ser ato puro. Mas ela deve ser o motor imóvel do universo, sendo através dela que Aristóteles oferece a razão última do mundo sensível.[41]

   Mas então, como é possível que o deus aristotélico movimente sem se movimentar? Ora, precisamente porque ele não é causa eficiente, mas causa final. Para Aristóteles, da mesma forma que somos atraídos pelo bem e pelo belo, somos atraídos por Deus. O primo motor move o mundo da mesma forma que o objeto amado atrai o amante. É por algo que ele chama metaforicamente de “amor” que o mundo se move em direção a Deus.

   Quanto a esse Deus imaterial direcionador do universo, Aristóteles especula que ele deva ser puro pensamento. Como esse pensamento deve ser perfeito, ele não pode pensar em nada que seja inferior a si mesmo. Por conseguinte, ele deve ser o pensamento que se pensa a si mesmo, pensamento do próprio pensamento.

   Estamos aqui muito longe do Deus pessoal da cristandade, que criou o mundo e responde aos clamores humanos, e mesmo das deidades mitológicas, que intermediavam as ações humanas nos poemas épicos que os gregos tanto prezavam. O deus aristotélico não se preocupa com o mundo. Somos nós que, em nossa busca de perfeição, movemo-nos em direção a ele.

   Como se tudo isso não bastasse. Aristóteles adiciona que se Deus é pensamento então ele é vivo. Afinal, pensamento e inteligência são inerentes à vida. Como ele escreve:

 

Se nessa feliz condição em que às vezes nos encontramos Deus se encontra perenemente, isso nos enche de maravilha. E se ele se encontra numa condição superior, é ainda mais maravilhoso. E ele se encontra efetivamente nessa condição. E ele também é vida porque a atividade da inteligência é vida. E ele é precisamente essa atividade. E essa atividade subsistente por si é vida ótima e eterna.[42]

 

Diversamente do Deus cristão, o primo motor aristotélico não pode ser onisciente nem onipotente, posto que ele nem pensa o mundo nem opera sobre ele. Mas ele não é só eterno como também onipresente: Aristóteles afirma que o primeiro movente imóvel está em todo o universo e tudo move e, sendo assim, também se encontra dentro de nós, movendo-nos. Deus, como o pensamento do que há de mais excelente (ele mesmo) é pura felicidade e em sua contemplação também consiste a nossa maior felicidade.

   Aristóteles queria saber quantas substâncias imóveis existem na esfera celeste e foi perguntar a um amigo astrônomo. Como o número de movimentos celestes rotatórios eternos é 55, o número de substâncias imóveis deve ser o mesmo. Mas ele acreditava haver além disso uma causa incausada superior às outras, que os ordenasse e que seria primo motor. O cristianismo transformou o primo motor aristotélico em Deus e as outras substâncias imóveis em inteligências angélicas.

   Einstein acreditava que as ideias vêm de Deus. Ingmar Bergman certa vez notou que Deus está no coração dos homens Teóricos do caos falam de organização espontânea e de atratores estranhos. C. S. Peirce postulou em uma evolução por amor criativo operando no cosmo (o agapismo). Alguns desconfiam que a terceira lei da termodinâmica, prevendo a morte do universo pelo constante e inevitável aumento da entropia, possa não ser universal. Kant, em sua Crítica da Razão Pura, refinou o conceito de Deus na forma mais aceitável de uma ideia da razão, ou seja, um conceito diretivo, que serve apenas para orientar nosso entendimento em direção a sínteses cada vez mais amplas. As intuições que levaram Aristóteles à postulação especulativa do que ele chamou de causa primeira podem não ser tão incríveis nem se encontrar tão remotamente distantes de nós quanto parecem à primeira vista.

 

6

 

Aristóteles defendeu famosamente o princípio da não contradição como sendo o mais fundamental no livro IV da Metafísica. Segundo ele, em sua versão ontológica o princípio diz que não é o caso que uma coisa seja ela mesma e diferente dela mesma ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva. Quem quiser negar esse princípio, escreve ele, deverá ficar mudo feito um tronco de árvore, pois ela não poderá dizer algo sem negar o que disse ao mesmo tempo. Essa pessoa não conseguirá sequer negar o princípio, pois negá-lo assumindo sua falsidade será a mesma coisa que também afirmá-lo.

   O princípio da não-contradição pode ser linguisticamente expresso como dizendo que um enunciado não pode ser verdadeiro e falso no mesmo sentido e ao mesmo tempo. Formalmente ele pode ser expresso como “~(A & ~A)”. Há dois princípios irmãos que podem ser adicionados a ele. O princípio da identidade e o do meio excluído. O princípio da identidade nos diz que uma coisa é ela mesma ou que um enunciado implica nele mesmo. Formalmente podemos escrevê-lo como A A. O princípio do meio excluído, por sua vez, nos diz que ou uma coisa é ela mesma ou ela não é ela mesma, não havendo uma terceira alternativa. Ele pode ser formalmente apresentado como “A v ~A”. Esses princípios são logicamente relacionados, pois se uma coisa é ela mesma (ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva), ou seja, se A A, então não pode ser que ela seja e não seja ela mesma, formalmente: ~(A & ~A). E se uma coisa é ela mesma, então ela não pode ser outra coisa senão ela mesma, ou seja: A v ~A. Eis como essa equivalência pode ser demonstrada aplicando-se tabelas de verdade:

 

      A     (A A)    ≡   ~(A & ~A)   ≡   (A v ~A). 

      V          v                        v                     v

      F           v                        v                     v

 

Esses princípios se equivalem e, para quem leva a sério a lógica clássica, é fácil demonstrar que essas equivalências são verdades lógicas (tautologias). Contra a objeção de que existem afinal inúmeras verdades lógicas é possível responder que essas são as mais simples que podemos encontrar, daí serem eles com razão candidatos às leis fundamentais sobre as quais se baseia o que hoje chamamos de cálculo dos enunciados.[43]

   É muito difícil rejeitar esses princípios. Considere o mais disputado entre eles, que é o princípio do terceiro excluído: “A v ~A”. Pode-se argumentar que deve haver algo que não é nem A nem não-A. Por exemplo, considere a frase “Está chovendo”. Pode ser que seja noite e que exista algo como um sereno, com gotículas de água no ar que parecem estar descendo lentamente... mas não será apenas uma névoa? Não, não há como decidir... Nesse caso se alguém disser “Está chovendo” não haverá como se dizer que a frase é verdadeira ou falsa. Alguém poderá então concluir que esse é um caso de rejeição do terceiro excluído ou ~(A v ~A). Mas uma consideração mais cuidadosa do caso mostra que isso é incorreto, pois no contexto considerado o proferimento “Está chovendo” deixa de fazer sentido, o mesmo acontecendo com sua negação. Em casos como esse nós não somos capazes de enunciar coisa alguma. Nós apenas suspendemos o juízo, posto que o proferimento é inverificável e, portanto, sem sentido factual.[44] Podemos sempre precisar essa fronteira de modo que pronunciamentos limítrofes possam outra vez expressar enunciados verdadeiros ou falsos, no caso acima construindo um medidor capaz de nos dizer mais exatamente quando é verdadeiro ou falso que está chovendo.

 

7

 

Antes de dizer algo sobre a contribuição de Aristóteles para a ética é importante fazer um mapeamento geral das concepções morais. Existem três momentos da ação moral. O primeiro deles é o da intenção: uma pessoa pode querer fazer o bem ou o mal. O segundo deles é o da ação: a pessoa realiza uma boa ou má ação. O terceiro deles é o da consequência da ação, que também pode ser boa ou má. Geralmente, a boa intenção conduz a uma boa ação, a qual conduz a uma boa consequência.

   As éticas que colocam a origem do valor ético na intenção do agente são chamadas de éticas da virtude. Esse foi o caso das éticas gregas em geral, que não eram individualistas e tinham como fim mostrar como o cidadão poderia melhor servir à polis. As éticas que colocam a origem do valor ético na ação são as éticas ditas deontológicas. Elas procuram estabelecer regras diferenciadoras da boa (ou má) ação, a exemplo dos dez mandamentos cristãos. Finalmente, há as éticas que põem a origem do valor na consequência da ação. Essas são as éticas consequencialistas. Há três tipos de consequencialismos: o egoísmo ético, que põe a origem do valor moral no fazer bem a si mesmo (ex: uma sociedade de criminosos). O altruísmo ético, que põe a origem do valor moral no fazer bem aos outros (ex: os Amishes), e o utilitarismo, que busca fazer bem tanto ao agente quanto às outras pessoas que possam estar envolvidas.

   Certamente, tanto a intenção quanto a ação e a consequência têm importância moral. E é claro que quando julgamos uma ação isolada o que mais nos importa avaliar é a intenção do agente. Uma pessoa pode, com a melhor das boas intenções, realizar uma ação que, contra todas as expectativas, se demonstra funesta! Mas do ponto de vista do que um povo e uma cultura através do tempo devem estabelecer como sendo o valor moral, aquilo que realmente importa são as consequências. Ou seja: as consequências geralmente boas são aquilo que determina quais as regras que, uma vez seguidas, trazem boas consequências tornando-se, portanto, boas. E as consequências geralmente boas, elas próprias geralmente resultantes do seguimento de boas regras, são o que determina o que é para ser contado como virtude.

   Alguns exemplos esclarecem o que quero dizer. O que consideramos virtude pode variar culturalmente: nos tempos homéricos a força física era considerada uma virtude, e nos romances de Jane Austen a constância é uma virtude, uma vez que ajuda a assegurar um casamento bem sucedido.[45] Sem dúvida entre Esparta a disposição para cometer atos violentos era mais valorizada do que em Atenas. Tratava-se de uma sociedade guerreira que precisava submeter a qualquer preço o povo nativo escravizado, que era mais de 90% da população. A consequência boa determinava o que seria a ação boa, o que, sob a perspectiva dos cidadãos determinava o que seria considerado virtude.

   A conclusão é que a origem – o centro irradiador – do valor moral é para ser encontrada nas éticas consequencialistas. Mas qual delas? O egoísmo ético tem a limitação de restringir a felicidade social: quando cada qual age só pensando em seu próprio bem resta pouco lugar para o amor, para a amizade, para o exercício do que há de bom na natureza humana. O mal de algumas sociedades hoje economicamente muito desenvolvidas é que as pessoas “vivem para si mesmas”, sendo o bem comum mediado por leis impessoais, restando pouco espaço para uma natural interação altruísta. O altruísmo ético, por sua vez, limita a liberdade individual. Há algumas regiões tropicais nas quais vivencia-se um altruísmo coletivo que faz bem a todos, mas sob o preço de um forte compartilhamento de gostos e valores através do qual o desenvolvimento individual fica comprometido. O melhor dos consequencialismos parece ser aquele que propõe um balanço entre o egoísmo e o altruísmo: o utilitarismo. Segundo o utilitarismo a boa ação é aquela da qual resulta um bem maior para todos, inclusive para o agente. Um bom utilitarismo seria capaz de determinar as melhores regras e as melhores virtudes na melhor sociedade.[46] Desenvolver uma forma adequada de utilitarismo é, contudo, uma tarefa mais complexa do que se possa pensar. (Uma sugestão nesse sentido encontra-se na seção 6 do capítulo VI)

   Aristóteles via a função da ética como a de maximizar a felicidade (eudaimonia) coletiva de modo a possibilitar a boa vida na sociedade e valores gerados no interior da polis. Em vista disso ele inventou uma ética do justo meio.[47] A ação moralmente correta é aquela feita por um agente que sabe escolher o justo meio entre o extremo do excesso e o extremo da falta. Assim, uma pessoa corajosa é aquela que sabe escolher o justo meio entre a temeridade e a covardia. Uma pessoa liberal é aquela que sabe escolher o meio caminho entre a avareza e a prodigalidade. Uma pessoa justa é a que é capaz de escolher o meio caminho entre os ganhos e as perdas... Certamente, essas medidas devem variar de pessoa para pessoa e sob diferentes circunstâncias sociais.[48]

   Para Aristóteles o comportamento virtuoso é algo que pode ser socialmente aprendido: é como aprender a atirar os dardos no centro do alvo. Com efeito, é preciso exercício e experiência junto às pessoas certas em uma sociedade suficientemente bem ordenada para que alguém se torne capaz de escolher o justo meio.

   Uma pergunta que surge é sobre quem decide qual é o justo meio. Um senhor de escravos pode se comportar segundo o justo meio da sociedade em que vive. Ele será considerado virtuoso pelos seus pares e talvez até mesmo pelos escravos, mas nada do que faz será considerado virtuoso pelos que consideram as regras dessa sociedade perversa. A ética do justo meio encontra parece aqui encontrar seus limites.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS:

HELENISMO, ROMA, IDADE MÉDIA

 

A morte de Alexandre em 123 a.C. deu origem a um período conturbado e instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte do mundo conhecido, mas as suas diferentes regiões acabaram por ser governadas por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro cultural. Na última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande maioria, destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente acabou se deslocando para Roma.

   As escolas filosóficas mais bem sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si mesmo diante de poderes que ele era incapaz de influenciar.[49] Com efeito, há em todas elas um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de autoajuda. Há certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos a um nível filosoficamente tolerável, ou seja, ao menos suficientemente coerente e consistente com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece que haja um ponto de corte claro e definitivo). Com isso quero dizer que essas filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada, encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e curta.

 

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As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo eram seguidas por tribos humanas diversas, na medida em que seus membros encontravam sua afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro (341-270 a.C.) foi um materialista atomista, fortemente influenciado por Demócrito e Leucipo e preocupado com questões práticas.[50] Para ele não precisamos temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós... Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos que constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen) através dos quais as cadeias causais do mundo natural são rompidas.[51]

   Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela filosofia cristã e ainda hoje é comum. O problema é que se pensarmos bem, parece que se introduzíssemos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não parece que com isso aumentaríamos nossa liberdade. Para exemplificar, imagine que alguém comece a se comportar de maneira inesperada, imprevisível, errática. Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que ela deixou de ser racional. E como designamos como sendo livres somente seres racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não somos mais capazes de aplicar o conceito de liberdade a semelhantes decisões e ações.   

   A filosofia da vida de Epicuro ainda possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar ações, como o de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso do prazer de comer ou de fazer sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento, de tranquilidade e de serenidade alcançados pela ausência de perturbações físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo. Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os prazeres estáticos. Como os prazeres estáticos dependem da satisfação dos desejos ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e necessários, os naturais mas desnecessários e os não-naturais e desnecessários. Exemplos de desejos naturais e necessários são os de alimento e de companhia. Esses desejos são essenciais à felicidade, razão pela qual devem ser sempre buscados. Os desejos naturais mas desnecessários são os de coisas como o consumo de pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos buscar satisfazê-los, mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo em risco a tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há os desejos não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras. Eles são os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana, mas subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos logo nos acostumamos com eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao satisfazê-los passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se adicionando a animosidade e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes, o que destrói os nossos prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da satisfação desses desejos devem ser a todo custo evitados!

   O pensamento de Epicuro é importante no sentido de dar ao prazer um lugar mais apropriado. Durante a Idade Média, como resultado do que Nietzsche mais tarde chamou de ideal ascético, o hedonismo epicurista foi desvirtuado como se o prazer devesse ser reduzido ao prazer físico e como se tudo o que Epicuro defendesse fosse a indulgência nos prazeres físicos. Mas o prazer possuía para ele uma aplicação mais ampla e suas reflexões acerca do assunto eram muito mais elaboradas e matizadas do que se possa pensar à primeira vista.

  Não obstante, há coisas a serem criticadas. Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos, dado que eles são por natureza diversos uns dos outros naquilo de que necessitam. A Grécia não teria tido o brilhantismo de um governante como Péricles, nem a ousadia e astúcia de um general como Temístocles se prazeres sociais como os do poder, da honra e da gloria não fossem apreciados. Além disso, se compararmos o epicurismo com a filosofia dos gregos antigos seremos capazes de ver inequívocos traços de decadência: a perda da audácia da filosofia de outrora se fazia sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros, como a busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para Aristóteles um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não de um prazer estático. Mas tais prazeres sublimados, como os da criação e da descoberta, não são mais aquilo que Epicuro tinha em mente.

 

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Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso foi o estoicismo. Ele começou com Zeno de  Citium (335-263 a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus (279-206 a.C.). O sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras como Sêneca (4 a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco Aurélio (121-189 d.C.).[52]

   Os estoicos dividiam a filosofia em lógica, física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística aristotélica. Um exemplo simples é o argumento “Se é dia, então há luz; há dia, portanto há luz”, no qual usamos a regra do Modus Ponens para obter a conclusão.

   A contribuição para a física consistiu em uma visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos. O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se encontra em simpatia consigo mesmo, ou seja, harmonicamente interconectado de maneira determinista.

   A parte mais influente do estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem. Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria... Para os estoicos há duas espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais, as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia) quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita.[53] Como consequência o estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.

   O mundo romano, vão e cruel, fez com que muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina, com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e destruiu as provas de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada. Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que, tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele, enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos, o que seria melhor do que ser supliciado. Esses exemplos nos fornecem uma luz sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no mundo romano.

   Não quero negar que existe certa verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira através da fé em uma razão petrificadora das paixões.[54] Parece claro que muito do estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida em concordância com a natureza? Não há uma resposta. Para Marco Aurélio isso significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação virtuosa teria sido certamente muito diversa. Explicar a virtude em termos de harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.

 

3

 

Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava pela desconfiança de tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do ceticismo foi Pirro de Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles. Pirro nada escreveu. Também, para que escrever quando não se acredita em nada? Disseram os pósteros que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam alimentá-lo e vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois conseguiu viver mais de 90 anos.

   Se Pirro nada escreveu, seu discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que devemos muito dos que sabemos sobre o ceticismo antigo. O método dos céticos para alcançar a paz de espírito era o seguinte:

1)    Argumente por uma tese (por exemplo, viveremos após a morte).

2)    Argumente por uma antítese (por exempo, não viveremos após a morte).

3)    Perceba que, após o acúmulo de argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.

4)    Uma vez percebido isso você chega à epoché, à suspensão da crença.

5)    Uma vez chegado à epoché você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.

 

A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é difícil na areia movediça da argumentação filosófica.

  O sucesso do ceticismo deveu-se em parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso ela tenha sido a mais rejeitada nos difíceis tempos que se seguiram.

 

4

 

O filósofo mais original do período romano foi Plotino (204-270), um neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a do Bem. Mas o bem é Deus, o indizível Uno. Embora o Uno não tenha criado o mundo conscientemente, como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento espiritual. Deus produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume que sai do frasco. Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações espirituais, esses eflúvios, somos todos nós e tudo o que se encontra ao nosso redor. Há vários níveis de emanações, as que constituem princípios intelectuais, as que produzem os movimentos da alma e as que constituem a natureza visível. Tal como as ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis. Além delas só existe um fundo escuro de matéria incognoscível.

   A doutrina das emanações teve importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, que no cristianismo se estabelece entre o Deus pessoal, criador das escrituras, e o mundo empírico.

 

5

 

A Idade Média começou no século V d.C., com a queda do Império Romano ocidental (476 d.C.) e acabou no século XV d.C. A filosofia medieval acabou por recuperar o nível e as temáticas das filosofias de Platão e Aristóteles, mas sem alterar o paradigma por eles definido. Os dois mais importantes filósofos cristãos, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as estruturas teóricas desenvolvidas por Platão e Aristóteles e as cristianizaram: Agostinho batizou Platão e Tomás de Aquino batizou Aristóteles. As Arché, a ideia do bem, a Substância Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão, criador e pessoal, enquanto o núcleo central da filosofia medieval continuou sendo a metafísica, principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado ao pensamento contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das escrituras sagradas. Não foram poucos os filósofos que foram proibidos de escrever por terem infringido essa norma. E Giordano Bruno foi queimado vivo por reincidir.

    A figura mais influente no início do cristianismo foi Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele nasceu no que é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, e o seu pai pagão. Note-se que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com a tomada de Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410 a.C. e o império decadente já havia sido praticamente convertido ao cristianismo. Por isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo medieval.

   Em seu livro Confissões ele descreve a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual sentimento e razão estavam em conflito com a paixão física, o constrangia ao extremo. Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele se interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo… Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando por converter-se ao cristianismo.

   A principal marca do pensamento agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação. Deus ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a verdade.

   Após Agostinho a Idade Média bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de mercadoria que funcionava provendo as necessidades diversas em locais diversos desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império eram pouco organizados e lutavam entre si. O próprio Agostinho em antecipação escreveu:

 

Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado pela cruz de cristo.[55]

 

A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período difícil em que a Europa foi retalhada em pequenos feudos com duas classes, a dos nobres e a dos servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a monastérios cuja função era apenas a de conservar o que os antigos haviam feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o principal responsável pelo silencioso, mas imenso, avanço civilizatório produzido pelo cristianismo – o avanço que possibilitou o fim da escravidão na Europa. Foi um período de despojamento e de pobreza e analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de resto podia esperar.

   O único filósofo importante surgido na alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena (810-877). Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma história cíclica do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final retornam a Deus. O universo passa por quatro fases:

 

1.    A da natureza não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.

2.    A da natureza criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo sensível.

3.    A da natureza criada e não criadora. É o mundo criado no espaço e no tempo, no qual vivemos. Ele não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os outros seres, mas a espécie, a qual se determina nos indivíduos em virtude do Espírito.

4.    A da natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado original e retorna a Deus como alma separada do corpo.

 

O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através disso todas as coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que às transcende. Eriúgena inventou uma filosofia do processo que certamente influenciou filósofos como Hegel.

   No ápice da filosofia medieval encontra-se Tomás de Aquino (1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do conhecimento em obras imensas como a Summa Theologica e a Summa contra Gentiles. O gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra teológica, o que o torna pouco acessível a não iniciados.

   No tempo de Aquino a Metafísica de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e autoridades papais torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o primo motor – não parecia nada com um Deus pessoal preocupado com seres humanos que havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia. Aquino conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou Aristóteles, assim como Agostinho havia antes cristianizado Platão. Ele fez isso ao introduzir a distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação está nas escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu erros. Mas a filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo natural. O mundo visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é um mundo real e efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo natural foi criado por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo ao nosso redor nós ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última da metafísica aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo natural através dos olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do próprio Deus.

   Essa maneira de ver inovadora foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.

   Tomás de Aquino é muito lembrado pelas cinco vias. Argumentos para provar a existência de Deus podem ser lógicos ou empíricos. O Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109 d.C.), visando provar a existência de Deus, era um argumento lógico. Segundo esse filósofo, Deus deve ser definido como o que de maior pode ser pensado. Mas isso significa que ele precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós seríamos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado. (Tomás discordava desse argumento por pensar que não somos capazes de conhecer a natureza de Deus a ponto de dar sentido à definição de Anselmo).

   Resumidamente, os argumentos empíricos que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são (1) Deve haver um motor imóvel que seja causa eficiente do movimento; (2) deve haver uma causa de todas as causas; (3) tudo é contingente, logo deve haver algo necessário; (4) as criaturas são imperfeitas, logo deve haver perfeição absoluta; (5) o mundo é organizado, logo deve haver um ser que o organizou.

    Todos esses argumentos parecem-nos hoje implausíveis. Não precisamos desse horror ao infinito. Não há nada que nos force a pensar que deva haver uma causa primeira eficiente imóvel, inclusive porque, obviamente, somos sempre capazes de nos perguntar sobre a sua causa. Uma sequência potencialmente infinita de causas parece plenamente concebível (negação de 1 e 2).  A necessidade do todo pode justificar a contingência das partes, não demandando um ser necessário externo (negação de 3). E a extrema organização do mundo vivo nesse minúsculo ponto do universo onde vivemos se explica por milhões de anos de evolução natural, que embora tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra, tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo (negação de 4 e 5). Claro, as respostas da ciência não precisam ser definitivas, mas essas são agora as melhores que temos, e uma fé instintiva não parece boa alternativa. Aquino se deixa perdoar: afinal, se vivêssemos na atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo e sem os esclarecimentos da psicologia profunda sobre nós mesmos (particularmente Freud), dificilmente nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos sagrados. Não temos hoje a mesma desculpa.

   Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia. Embora, como Aristóteles, ele fosse um proto-empirista que não acreditava em ideias inatas, ele também não era um empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um recipiente passivo. Ou seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que vai se enchendo de conhecimento de modo aleatório, pois ele põe ênfase em suas capacidades inatas de aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da iluminação, mas defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma luz natural da razão capaz de transformar o objeto no mundo, que é potencialmente pensável, em objeto atualmente pensável na mente. Mas esse intelecto ativo não é mais do que uma faculdade natural criada por Deus para nos permitir conhecer a natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, para ele o conhecimento começa com a sensação. As coisas particulares são compostas de matéria e forma. Ao conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos formalmente idênticos a eles, formando cópias das formas substanciais e acidentais em nossos órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele chama de “espécies sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória como phantasmas (imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que entra em ação o intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os conceitos imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo, que é o quadro negro no qual os conceitos são inscritos. Importante aqui é a capacidade do intelecto ativo de formar princípios a partir da experiência, a exemplo do princípio da não-contradição. Aquino explica esses princípios de modo semelhante àquele pelo qual mais tarde Kant definiu os juízos analíticos: são juízos nos quais o predicado está contido no sujeito. Exemplo pode ser dado pelo enunciado definitório: “Homens são animais racionais”. Aqui o predicado animal racional está contido no conceito de homem.

   Ainda mencionáveis (entre outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao escolasticismo tardio: Duns Scotus e William of Ockham (século XIV). A filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que quer dizer, em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.

   Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de Aquino de que a identidade individual de uma coisa dependeria de sua matéria. A matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na água, ou a matéria de uma certa cadeira, sendo a madeira de que são feitos esses objetos, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a árvore. Quanto à matéria prima, a matéria última de que as coisas são feitas, além de ser comum a todos os indivíduos, além de indeterminada, não é sequer cognitivamente acessível.[56] Já a forma comum, por exemplo, a forma de Sócrates como pertencendo à espécie humana, é indiferente à individuação por ser comum a todos os homens. Por conseguinte, nem a matéria nem a forma comum são capazes de individuar qualquer coisa. Aquilo que identifica precisa ser uma forma própria do indivíduo em questão, uma “diferença individualizante”, a haecceitas capaz de distinguir essa árvore das outras árvores e Sócrates dos outros homens.[57]

   William de Ockham (1285-1347), o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne (1050-1125), sustentou a ideia radical de que os universais nada mais são do que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo proferimento de uma palavra como ‘o bem’ ou de um predicado como ‘...é bom’. Segundo este nominalismo, universais no sentido realista, entendidos como entidades reais comuns a muitos indivíduos, como o bem, a justiça, o conhecimento, não podem existir. Ockham também rejeitava a existência de universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de apreender quididades ou formas gerais.[58] Ele admitia a existência de universais como conceitos mentais e, de modo derivado, como termos gerais, mas em qualquer dos casos eles não possuem nenhuma existência metafísica, não passando de particulares. Em sua filosofia madura ele veio a entender o universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez. Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.

 

4

 

Uma versão contemporânea do nominalismo é aquela segundo a qual termos gerais como ‘o bem’, ‘a justiça’... se referem a classes de objetos. Assim, se dizemos que Aristóteles é branco e que Platão é branco, ambos os predicados nos dizem o mesmo porque eles se referem à mesma classe de objetos.[59]

   Um problema encontrado no nominalismo de classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes podem ter a mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo: o termo geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal com coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão, ou seja, deveriam dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros exemplos não é o caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação da noção de mundo possível ao problema dos universais.[60] Um mundo possível é como um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto em outros mundos possíveis, então a extensão de expressões conceituais com sentidos diferentes poderia ser diferente. Por exemplo: existem mundos possíveis nos quais animais com rins não possuem coração e vice versa, o que justifica a diferença na intensão ou sentido dos termos.

   Um problema é que para ser assim parece ser necessário que os mundos possíveis pertençam à mesma classe dos mundos atuais, ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi plenamente aceita por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto o mundo atual, com o único problema que eles são inacessíveis a nós. Em que pese a originalidade da posição de Lewis, a sugestão que apresentarei no capítulo sobre a teoria dos tropos terá a vantagem de não nos comprometer com posições especulativas inescrutáveis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

V

A REVOLUÇÃO CARTESIANA

 

Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria analítica, que permite transformar linhas geométricas em fórmulas algébricas que prescindem do espaço. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é tido como o fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a chamada revolução cartesiana, que mudou o eixo da filosofia teórica da metafísica para a epistemologia.

   As filosofias helenista, romana e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles, que punha ênfase na metafísica. O ponto de partida da filosofia teórica era a investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, do ser enquanto ser. Secundariamente se desenvolvia uma investigação epistemológica sobre os a natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu. Ele já era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que começasse por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança, chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o vetor da filosofia teórica do ser para o pensamento. E aqui também a filosofia se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o homem uma parte essencial do programa da filosofia teórica.

 

1

 

O culprit do desenvolvimento da filosofia de Descartes foi a disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo o ceticismo pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio do ceticismo é o de que tudo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado, então também os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o ceticismo colocar em questão a sobrevivência da alma ou mesmo a existência de Deus. Descartes era um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La Flèxe, o mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado por amigos a fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do ceticismo. O resultado terminou sendo a grande obra de argumentação e estilo filosófico chamada Meditações de filosofia primeira (Meditationes de Prima Philosophia).

   O objetivo de Descartes nas Meditações era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e, como veremos, dela ele erigiu toda a sua filosofia. Para chegar a essa certeza ele começou por estabelecer um método, o da dúvida. Segundo esse método, tudo o que pude ser duvidado é considerado como se fosse falso. Assim, Descartes começou por aplicar esse método a coisas vistas à distância. Claro, podemos nos enganar quanto a elas. Uma árvore vista na neblina à distância é por vezes confundida com um ser humano. Mas não parece que possamos nos enganar quanto a coisas que se encontram muito próximas de nós. Descartes apresentou então seu argumento do sonho. Já aconteceu, notou ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando que o fogo estava a crepitar quando na verdade ele já tinha se apagado há algum tempo. Nada nos garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso redor na verdade não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso descartar o mundo sensível ao meu redor como objeto de incerteza. Para magnificar seu raciocínio desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a dúvida estendida a regiões acima de qualquer suspeita. Para aplica-la ele imaginou um gênio maligno imensamente poderoso que empregaria toda a sua astúcia para o enganar. O gênio maligno produziria em Descartes a alucinação de ser um filósofo vivendo na França no século XVII, quando na verdade ele poderia não passar de uma alma flutuando isolada no espaço vazio e sendo constantemente confundida. O gênio seria tão malevolente que até mesmo em seu pensamento matemático ele estaria sendo enganado. Ao somar 3 + 2 o gênio poderia levar Descartes a concluir que o resultado é 5, quando na verdade todos sabem que é 6 (se você discorda, caro leitor, pode bem ser que também esteja sendo confundido pelo gênio maligno).

   Contudo, imediatamente após isso Descartes descobriu algo que é capaz de resistir às mais incríveis artimanhas do gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que Descartes se engane, fazer com que ele não exista. Nem pode ele fazer com que Descartes não esteja pensando ao ser por ele enganado, uma vez que só se engana quem pensa. Se alguém pensar que 3 +2 = 7, isso é obviamente falso, mas não é possível que ao fazer esse cálculo errado a pessoa não exista ou não esteja pensando. Descartes resume essa descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum) em seu Discurso do Método, e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações. Ao menos no presente, enquanto estou pensando, não há dúvida que eu existo como ser pensante. Que eu sou uma coisa que pensa (enquanto penso) é uma certeza indevassável, que além disso possui a clareza e distinção, que para ele formam o critério de verdade. Para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que permitiria a Arquimedes levantar o mundo, é a certeza do cogito que lhe permitirá construir seu sistema metafísico.

   Nos passos seguintes de seu argumento Descartes cuida de construir seu sistema de pensamento. Vou resumir. Uma vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui, pois, uma ideia inata de Deus. Mas Descartes, um ser humano limitado, não seria capaz de pensar Deus, algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que existisse esse ser infinitamente superior, e que ele tivesse posto em sua na mente a ideia de si mesmo, a ideia de Deus. Por conseguinte, Deus existe. Mas Deus é, entre outras coisas, infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente bom, ele não permitiria o engano sistemático, nem a existência do gênio maligno a nos fazer acreditar na existência de um mundo externo que na verdade não existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Logo, não só podemos estar certos de que o mundo externo existe, mas também de que 3 + 2 = 5.

 

2

 

É importante em Descartes a defesa do dualismo interacionista quanto ao que é hoje chamado de problema da relação mente-corpo. Para ele existem duas substâncias, (i) a substância extensa (res extensa) e (ii) a substância pensante (res cogitans). A substância extensa constitui o que hoje chamamos de mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera o atributo da extensão o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos ter uma ideia clara e distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída pelas mentes e por seus conteúdos, incluindo emoções e sensações. A substância pensante pode ser de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é simplesmente Deus.

   Descartes tinha uma prova do dualismo de substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o contexto opaco introduzidos por verbos de atitude proposicional. Considere o seguinte argumento plenamente válido:

 

          (1)

O objeto a tem a propriedade F.

a = b.

O objeto b tem a propriedade F.

 

Compare esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar, que é um verbo de atitude proposicional:

 

          (2)

Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.

Zorro = Dom Diego.

Maria duvida que Dom Diego existe.

 

O uso do verbo de crença proposicional introduz um contexto opaco que torna a conclusão falaciosa. O mesmo acontece no argumento:

 

          (3)

Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.

Corpo = mente

Descartes pode duvidar da existência de sua mente.

 

Como a conclusão é obviamente falsa, Descartes concluiu que a segunda premissa precisa ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é enganoso por assimilar a forma do argumento (3) na forma do argumento (3), quando na verdade sua forma é idêntica a (2). O argumento (3) se baseia em um argumento que é tornado inválido pelo fato de conter um verbo de atitude proposicional que introduz um contexto opaco.

   Um outro problema é com o dualismo interacionista com relação ao problema mente-corpo. Para Descartes, a mente e o corpo interagem causalmente um com o outro. Assim, se eu piso em um caco de vidro isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação desagradável me faz levantar o pé e, em seguida, fazer um curativo. O problema que aqui surge é o de explicar como é possível a interação entre algo que não ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso, físico. A princesa Elisabeth da Bohêmia, uma pessoa brilhante, colocou a questão em uma carta a Descartes:

 

(...) parece que toda determinação do movimento se dá por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por aquela que a move, ou bem, pela qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas primeiras condições e a extensão pela terceira. [61]

 

Diante dessa objeção Descartes não conseguiu muito além do reconhecimento de que há coisas que precisamos aceitar como um mistério.

 

3

 

Um outro ponto de ligação entre a filosofia de Descartes e a discussão contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o mundo externo. A hipótese do gênio maligno é o que chamamos de uma hipótese cética (hoje preferimos a hipótese de que somos cérebros em cubas com os nervos ligados a um supercomputador que nos faz alucinar uma realidade virtual). Com base na hipótese cética do gênio maligno o seguinte argumento cético pode ser construído:

 

Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu não sei se tenho duas mãos.

Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não sei se tenho duas mãos.

 

Esse argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas mãos” pode ser aqui substituído por qualquer enunciado trivial: eu não sei se estou de pé, eu não sei se estou vestido, eu não sei se estou vendo alguma coisa... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma sobre o mundo externo.

   A contraposição do argumento cético é o argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial qualquer, digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a hipótese cética assim:

 

Eu sei que tenho duas mãos.

Se eu sei que tenho duas mãos então não estou sendo enganado por um gênio maligno.

Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.

 

O argumento anticético prova tanto quanto o argumento cético. A questão fica sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Ainda assim, a inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar certo quanto o anticético.[62]

 

4

 

Não quis entrar em detalhes sobre o sistema de Descartes aqui sinopticamente resumido. Quero apenas assinalar a importância de sua filosofia para a libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele destampou a garrafa da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade, cada qual criando uma concepção de mundo própria.

   Os filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas. Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento matemático herdado de Euclides. Esse foi o caso dos filósofos continentais, como Spinoza, Leibniz e o próprio Descartes. Os empiristas, por sua vez, foram os que punham ênfase na experiência empírica como a fonte principal (senão a única) do conhecimento humano, minimizando a participação da razão, quando não a excluindo. Eles importavam para a filosofia o modo de pensar de cientistas empíricos, como Galileu e Newton. Esse foi o caso dos filósofos britânicos como Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mill. Kant foi quem tentou a grande síntese entre racionalismo e empirismo, fechando assim o ciclo iniciado por Descartes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Friedrich Nietzsche: “Os filósofos Trágicos, in Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, col. Os pensadores, ed. Victor Civita (São Paulo: Abril Cultural 1978), pp. 10-12.

[2]  Nas citações dos pré-socráticos fiz livre uso de G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield: The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), além das traduções que se encontram em Os Pré-Socráticos: Fragmentos, doxografia e comentários, Col. Os Pensadores (São (Paulo: Abril Cultural 1973).

[3]  Esse ponto foi notado por Anthony Kenny em A New History of Western Philosophy, (Oxford: Oxford University Press 2004) vol. I, p 25.

[4] Friedrich Nietzsche: A gaia ciência, sec. 285, 341.

[5] No poema sentença é: “To gar auto noein estin te kai einain”. Edward Hussey traduz para o inglês como “The same thing is there to be thought and is there to be”, que em português fica sendo “a mesma coisa está lá para ser pensada e para ser”. Ver Edward Hussey: The Presocratics (London: Gerald Duckworth 1972), p. 84.

[6] Edward Hussey: The Presocratics (London: Gerald Duckworth 1972), p. 81. G. S. Kirk, J. E, Haven, M Schofield: The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press 1995), 244-245.

[7] Giovanni Reale, baseado em H. Schwabl e Mario Untersteiner, encontrou em Parmênides os sinais de uma terceira via, a da opinião plausível (doxa) baseada na experiência sensível, reconhecendo, porém, a aporia resultante da tentativa de reconciliar essa admissão com a afirmação de que só o ser imutável e absoluto pode ser conhecido. Ver Giovanni Reale: História da filosofia antiga (São Paulo: Edições Loyola 1993) pp. 107-116.

[8] Comte: Cours de philosophie positive (Paris: Rouen Fréres 2830), p 3 e ss. Em tradução portuguesa ver “Curso de filosofia positiva” e “Discurso sobre o espírito positivo” na coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural 1973), vol. XXXIII. 

[9] Course se Phisosophie Positive, Prèmier Lesson, p. 2.

[10] Tendo em vista a perspectiva de sua época Comte datou o estágio teológico como anterior à revolução francesa, o estágio metafísico com estando entre aquela revolução e a queda de Napoleão, depois disso vindo o estágio positivo. Essa é, porém, uma maneira obviamente ideológica de se resolver a questão. É melhor admitir uma lenta sobreposição dos três estados subsequentes, da qual mesmo hoje ainda não saímos.

[11]  J. L. Austin: 1956b/1979: 232

[12] O livro foi publicado depois de sua morte sob o título de How to Do Things with Words (Oxford: Clarendon Press 1962)

[13]  Anthony Kenny: Aquinas...

[14] Procurei desenvolver em algum detalhe a concepção de John Ziman no capítulo III de meu livro intitulado The Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory (Langam: UPA 2002).

[15] Ver Claudio Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Theory. (Lohan: UPA 2002)

[16] Ver Robert Fogelin: Pyrronian Reflexions on Knowledge and Justification (Oxford: Oxford University Press 1994). Minha versão formalmente mais rigorosa foi republicada em Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014) cap. 5

[17]  Platão: Sofista  263 b-e

[18]  Aristóteles: Metafísica 1011b 25-27.

[19]  Mênon, 81 c-d.

[20] Um erro mais elementar consistia em não distinguir predicados relacionais. Para Platão um objeto sensível pode ser grande e também pequeno enquanto só a ideia do grande é sempre grande. Mas A é grande em relação a B, e pequeno em relação a C, tratando-se do mesmo predicado relacional aplicado a duplas diferentes de objetos e não mais a um mesmo objeto.

[21] Ludwig Wittgenstein: Investigações filosóficas I, sec. 116.

[22] Paul D. McLean: The History of Neuroscience in Autobiography, ed. L. R. Squire (London: Academic Press 1988), vol. II, cap. 20.

[23]  República IV, 433, 443 d-e.

[24]  Philip Kitcher: Science, Truth, and Democracy (Oxford: Oxford University Press 2003).

[25] R. G. Collingwood:  The Principles of Art (Oxford: Oxford University Press) p. 284.

[26] R. G. Collingwood: The Principles of Art (Oxford: Oxford University Press). 336.

[27] Eis o poema original de Abel Meerpool:

 

“Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the Southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees.


Pastoral scene of the gallant South
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolia sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh.


Here is a fruit for the crow to pluck
For the rain to wither, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop.”

[28] Ver Armand Marie Leroi: How Aristotle Invented Science (Penguin 2015).

[29]  Platão: Sofista 246 a-e.

[30] A. E. Taylor notou que Aristóteles não conseguiu desvencilhar-se de todo do idealismo de seu mestre. Embora conhecesse história natural, nota ele, para outras ciências empíricas era mal preparado. Diversamente de Platão, ele não acreditava no movimento da terra, rejeitava o atomismo e a posição de médicos como Hipócrates, segundo a qual é o cérebro e não o coração o centro do sistema nervoso. (Ver A. E. Taylor, Aristotle, pp. 61-62.)

[31]  Geralmente se traduz como investigação do “ser enquanto ser”, mas essa tradução é confusiva. Sigo aqui Jonathan Barnes (ed.) Aristóteles (São Paulo: Ideias e Letras 2001), p. 106 ss.

[32]  Giovanni Reale: Aristóteles (São Paulo: Loyola 2015), pp. 28-29.  

[33]  Aristóteles: Metafísica, livro III, 1003 a20-26. J. Barnes (ed.): The Complete Works of Aristotle: The Revised Oxford Translation (Princeton: Princeton University Press 1985)  

[34] A. E. Taylor: Aristotle. (New York: Dover 1956 (1916)), p.42

[35] Metafísica livro VII (Z), 1028b 10-25.

[36] Metafísica livro VII (Z), 1036a 8.

[37] Metafísica livro V (D) 8, 1017b 23-25.

[38] O número de categorias proposto por Aristóteles variava. As últimas duas não aparecem em todas as exposições. E não parece que ele tenha tido um critério próprio para sua escolha.

[39] Metafísica 1034a 5-8.

[40] Aristóteles: Física I, sec. 8

[41] É preciso notar que a admissão de que Deus seja ato puro e de que existam substâncias imateriais (Deus, as inteligências celestes, a razão humana) contém uma grave inconsistência. Essas substâncias deveriam ser formas sem matéria, em outras palavras, deveriam ser formas ou ideias universais supostamente imutáveis, ou seja, ideias platônicas. Mas Aristóteles não prima pela consistência quando se trata de introduzir elementos platônicos em seu empirismo.

[42] Aristóteles: Metafísica XII (L), 7, 1072b 24-28.

[43] Precisamos sustentar esses princípios para construirmos tabelas-verdade, as quais definem os conectivos lógicos e as regras do cálculo proposicional.

[44] O sentido cognitivo ou factual é diferente do sentido meramente gramatical, dependendo da verificabilidade do proferimento. Entendo o enunciado como sendo o mesmo que o sentido factual. Nas leis do pensamento os As expressam enunciados. Por isso não é possível enunciar o que está dentro da fronteira indivisa.

[45] Alasdair MacIntyre: Depois da virtude (Bauru: EDUSC 2001).

[46] Ver “Razões para o utilitarismo (uma introdução utilitarista à ética)”, em Claudio Costa:  Arquiteturas Conceituais (Minas Gerais: Dialética 2022)

[47] Aristóteles: Ética a Nicômano Livro II, sec. 6.

[48] Aristóteles: Ética Eudêmica Livro II, sec. 3.

[49] G. W. F. Hegel: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Dritter Teil: Die Römische Welt (1833)

[50] Epicuro: Cartas e máximas principais (Penguin-Companhia 2021).

[51] Lucrecio: Sobre a natureza das coisas (De rerum natura) (Autêntica 2021), 2.256-2.263.

 

[52]  Ver Sêneca, Marco Aurélio: Grandes Mestres do Estoicismo. Trad. Artur Costrino  (Edipro 2021).

[53] Meditações, o livro escrito por Marco Aurélio quando ele defendia o império nas fronteiras do norte, é repleto de alusões à morte, como se ao invocar a sua presença ele melhor pudesse dominar seu receio de encontrá-la.

[54] Ver James A. Mollison: “Nietzsche Contra Stoicism: Naturalism and Value, Suffering and Amor Fati.” In Inquiry, 2019, 61: 1, 93-115. Para uma discussão do contexto histórico ver Bertrand Russell: A History of Occidental Philosophy, cap. 28.

[55]  Comentário ao Evangelho de João (2, 2).

[56] Opus Oxoniensis Ox II, d. 3, q. 5, n. 1.

[57] Reportata Parisiensia II, d. 12, q. 5, n. 1, 8, 13, 14. Opus Oxoniensis., II, d.3, q. 6, n. 15. Em meu livro sobre a referência dos nomes próprios procurei investigar essa diferença individualizante como uma regra conceitual de identificação do nome próprio. Ver How do Proper Names Really Work? (Berlim: De Gruyter 2023), cap. III.

[58] Wilhelm of Ockham: Opera Philosophica et Theologica , G. Gál. et al. eds., NY: The Franciscan Institute, 1977-88, Vol. II-2.

[59] Anthony Quinton. “Properties and Classes,” Proceedings of the Aristotelian Society 58, 33-58.

[60] D. K. Lewis, On the Plurality of the Worlds (Oxford: Oxford University Press 1986).

[61]  Tradução de Rafael Teruel Coelho para a Revista Instauratio Magna, da Universidade Federal do ABC, v. 1, n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” – 6/16 Mai 1643. In Oeuv. Res. De Descartes, vol III, Correspondance. Org. Charles Adam & Paul Tannery, Paris: Libraria Philosophique, J. Vrin, pp. 660-2, 1996.

[62]  Para uma resposta possível (a meu ver a única) ao problema do ceticismo sobre o mundo externo ver meu artigo “The Sceptical Deal wth our Concept of External Reality”, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions (Newcastle upon Tyne: CSP 2014), capítulo 6.