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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

(5) NEODESCRITIVISMO SOBRE O CONCEITO DE ÁGUA (livro Cognitivismo semântico)

Draft artigo para o livro.




– 5 –
NEODESCRITIVISMO SOBRE O CONCEITO DE ÁGUA


Este capítulo contém uma refutação do argumento da Terra Gêmea de Putnam, conhecido por conduzir à conclusão de que o significado está “fora da cabeça”, além de uma breve refutação da sugestão de Kripke de que “Água é H2O” exprime uma identidade necessária e a posteriori. Essas refutações resultam do desenvolvimento de uma análise neodescritivista mais elaborada do conceito de água. É por ela que começaremos.

O descritivismo como deve ser
Para começar, consideremos a concepção descritivista ou neo-fregeana tradicional do significado da palavra ‘água’. Ela explica o significado ou conteúdo informativo em termos de um sentido ou modo de apresentação (Art des Gegebenseins) fregeano. Por ser assim, para o descritivista tradicional o sentido da palavra ‘água’ deve ser expresso linguisticamente na forma de descrições de propriedades fenomenais como as de transparência, falta de gosto e de odor etc. Esse sentido ou modo de apresentação, por sua vez, determinaria a referência e a extensão, tal como Frege sugeriu.[1]
     Essa maneira de ver contrasta com a concepção causal-externalista advogada por Hilary Putnam, segundo a qual o significado relevante da palavra ‘água’ não é aquilo que se instancia internamente em nossas cabeças na forma do que ele chamou de estereótipos, mas algo externo, determinado pela microestrutura essencial H2O compartilhada pelos volumes líquidos que formam a extensão do conceito.
     Uma primeira coisa a ser notada contra a maneira de ver tradicionalmente e quase que perversamente atribuida ao descritivismo é que o descritivista não tem obrigação alguma de restringir-se a meras descrições de superfície de propriedades fenomenais perceptíveis, como a de ser um líquido transparente, inodoro e insípido, no caso da água. Como bem o percebeu Avrum Stroll, descrições também podem ser de ordem funcional ou dinâmica.[2] Elas podem denotar processos temporais como, por exemplo, ‘um composto que reage com oxigênio e ferro produzindo oxidação’. Mas se é assim, então precisamos notar que também não há razão alguma para excluir a própria microestrutura essencial de uma substância do alcançe das descrições. Uma expressão como ‘composto químico com dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio’ não é menos descritiva do que a expressão ‘líquido transparente e inodoro que serve para beber’. Como percebeu Stroll, que tudo isso faz parte do conteúdo cognitivo-informativo expresso pela palavra ‘água’ é atestado de forma inquestionável por modernos dicionários nas mais diversas línguas. Assim, só para dar um exemplo, o melhor dicionário da língua portuguesa, o Houaiss, nos diz que a água é:

1. Substância (H2O) líquida e incolor, inodora e insípida, essencial à vida da maior parte dos organismos e excelente solvente para muitas outras substâncias; óxido de hidrogênio 2. (hidrol.) a parte líquida que cobre 70% da superficie terrestre sob a forma de lagos, mares e rios.

Descrições como essa cobrem propriedades superficiais e profundas, funcionais ou não. Se quisermos defender um descritivismo consequente devemos admitir o ponto suficientemente óbvio de que aquilo que as definições de qualquer dicionário moderno tentam fazer é sumarizar descritivamente o significado da palavra ‘água’. Tais descrições, por sua vez, são expressões resumidas das convenções constitutivas do conteúdo epistêmico da palavra.

Evolução do conceito de água e sua regra de caracterização
Se a concepção descritivista que acabo de introduzir for correta, então deve ter acontecido com o conceito de água o que aconteceu com muitos outros. O conceito de água – o significado dessa palavra[3] – sofreu um crescimento histórico em complexidade, resultante do acréscimo de convenções constitutivas, sendo interessante investigá-las. Comecemos, pois, com o homem das cavernas.[4] Como ele teria entendido o seu termo para designar aquilo que chamamos de ‘água’? Certamente, ao menos isso ele sabia:

Água = líquido transparente, sem gosto e inodoro, que aplaca a sede e apaga o fogo, cai das núvens sob a forma de chuva e enche os rios, lagos e mares.

     Esse é o único significado da palavra água que se identifica com o significado que Kripke e Putnam sugeriram que o descritivista defende que ela tem. Mas é preciso reconhecer que isso aconteceu já há muito tempo... A maioria de nossos conceitos sofre em sua história alterações semânticas bem conhecidas dos linguístas e a palavra ‘água’ não é exceção. No curso de vários milhares de anos, o significado, o conteúdo semântico dos termos correspondentes à palavra ‘água’ em diferentes línguas tem gradativamente sofrido alterações, geralmente sob a forma de acréscimos. Aos poucos lhe foram sendo adicionadas descrições de propriedades disposicionais mais complexas. Eis algumas delas, que já se haviam adicionado às já mencionadas uns três séculos atrás, na Europa:

Água = líquido que é um bom solvente, que não se mistura com óleos, que é mal condutor de eletricidade quando em estado puro, mas que a conduz muito bem quando misturado com sais, que reage em contato com o ferro produzindo ferrugem...

     Tais descrições são funcionais ou dinâmicas, dizendo respeito a disposições que envolvem algum experimento. O núcleo de sentido que inclui as descrições já conhecidas pelo homem das cavernas, adicionadas ao que o senso comum informado já nos dizia por volta de 1700, constitui o que eu gostaria de chamar de o sentido popular da palavra ‘água’.
     Mas a evolução desse conceito não parou por aí. Entre 1760 e 1830 deu-se uma revolução em nosso entendimento do conceito de água.[5] Em 1768 Lavoisier colocou hidrogênio e oxigênio em uma garrafa e aqueceu a mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água. Através dessa e de outras experiências ele acabou por concluir que a água é composta de duas porções de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781 Cavendish fez na Inglaterra uma experiência similar usando fagulhas elétricas. Em 1783 Lavoisier conseguiu realizar o procedimento inverso, decompondo a água em oxigênio e hidrogênio. Em 1811 Avogadro estabeleceu a composição atômica da água como sendo HO1/2, um resultado que foi corrigido por Berzelius, que finalmente estabeleceu a fórmula H2O em 1821... Com o passar do tempo, mais e mais detalhes da microestrutura foram sendo descobertos, como o de que a água é um composto dipolar que tende a formar estruturas isoméricas quando em estado líquido, o que determina propriedades macrofísicas, como a da alta tensão superficial.
     As adições ao significado da palavra ‘água’ resultantes da investigação científica de sua microestrutura subjacente fizeram surgir então descrições microestruturais centradas na idéia de que:

     Água = composto químico constituido de dois átomos de hidrogênio e
     um átomo de oxigênio (além de ser um composto dipolar etc).

     Pode ser que essa descrição da microestrutura já constitua tudo o que realmente importa. Mas suspeito que o quadro mais completo não seja tão simples. Afinal, parece que faz parte de um conhecimento mais completo de que água é H2O sabermos que 2H2 + O2 → 2H2O. Além disso, parece que o químico não deixa de enriquecer o conhecimento do conteúdo informativo envolvido ao aprender que a ferrugem se forma pelo contato do ferro com a água pela equação geral “2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2”, embora essa me pareça ser mais propriamente uma contribuição para o entendimento da constituição de 2Fe(OH)2 (ferrugem), assim como a fórmula anterior o foi para o entendimento da constituição de H2O. Também parece que as descrições de superfície de experiências científicas (como as de Lavoisieur, Cavendish, Avogadro e muitos outros) fazem parte do que os químicos precisam saber para entenderem que a água seja composta de H2O. Além disso, o conhecimento da microestrutura é o que permite entender propriedades fenomenais da água, como as de ter alta tensão superficial e de ser um solvente universal. Assim sendo, parece que nosso entendimento da composição química se complementa através de uma grande variedade de relações inferenciais que nos permitem derivar o micro do macro representado por eventos de superfície e vice-versa. Parece que quando nos referimos à água como o composto de estrutura química H2O, estamos nos referindo de forma abreviada às múltiplas descrições que apontam para a fórmula química como o elemento inferencial central na constituição daquilo que os especialistas – os químicos – são capazes de ter em mente com o termo. Trata-se aqui da água como sinônimo do que os químicos chamam de ‘hidróxido de hidrogênio’, ‘óxido de hidrogênio’, ‘monóxido de dihidrogênio’ etc. Chamo a esse núcleo de significação, centrado na descrição microestrutural do composto, de sentido científico da palavra conceitual ‘água’, em contraposição ao seu núcleo de significação popular mencionado anteriormente.[6]
     Aqui surge a questão. Em que medida a introdução dessas relações entre a estrutura química e outros fenômenos faz realmente parte do sentido da palavra ‘água’? Uma resposta aparece quando fazemos um paralelo entre esse caso e o caso das propriedades fenomenais macroestruturais da água consideradas no início. A água é fenomenalmente, em primeiro lugar, um líquido transparente, inodoro e insípido – o assim chamado ‘líquido aquoso’. Mas a isso já havíamos juntado descrições de relações inferenciais: ela serve para aplacar a sede, para lavar, para apagar o fogo... Mais tarde aprendemos que em contato prolongado com o ferro ela produzia ferrugem. Se admitimos que no sentido popular tudo isso passou a fazer parte do significado da palavra ‘água’ (como os dicionários insistem em afirmar), devemos concluir que também deve ser assim quando tratamos do significado científico da palavra – de água como ‘hidróxido de hidrogênio’ – devendo o conhecimento das reações químicas e experiências relacionando macro e micro e vice-versa ter a ver com o conhecimento do inteiro conteúdo informativo (significado) que pode ser visado através da palavra, tal como ele é conhecido por usuários privilegiados como é o caso dos especialistas (o que pode ser mais detalhadamente constatado se consultarmos léxicos e enciclopédias).
     A objeção a essa sugestão não se deixa esperar: o número de relações inferenciais é indeterminadamente amplo. Parece que se admitirmos isso corremos o risco de recair em uma espécie indesejável de holismo semântico extremado, segundo o qual qualquer coisa pode significar qualquer outra, ou seja, que nada significa nada. Contudo, é possível responder que as descrições funcionais relativas a vínculos inferenciais externos à fórmula química da água ou à sua descrição fenomenal contribuem para o significado da palavra ‘água’ apenas na medida em que estão mais próximas dos núcleos descritivos microfísico e macrofísico respectivamente, e que a contribuição para o significado diminui gradativamente com o afastamento desses centros, na medida em que elas passam a contribuir mais para o significado dos outros termos relacionados. Eis porque saber que 2H2 + O2 → 2H2O é mais central para o entendimento do significado da expressão ‘hidróxido de hidrogênio’ do que para saber o sentido da palavra ‘oxigênio’. Eis porque saber que 2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2 é mais central para o entendimento do significado de 2Fe(OH)2, ou seja, da expressão ‘hidróxido de ferro’ (ferrugem) do que para o entendimento da expressão ‘hidróxido de hidrogênio’. Isso nos dá algum insight sobre como as descrições que relacionam uma variedade de palavras conceituais distribuem proporcionalmente as suas contribuições para o conteúdo de significação dessas palavras sem que para tal os seus significados acabem por se dissipar na vacuidade de um holismo semântico extremado.
      Finalmente, gostaria de sugerir que, dentro de uma concepção descritivista consequente, o sentido ou significado – o conteúdo informativo – da palavra ‘água’, se entendido em sua maior amplitude, que é abarcada quando a palavra é usada em contextos suficientemente genéricos, não-restritivos ou topicamente neutros, seja constituido hoje em dia pelo conjunto dos dois núcleos – o popular e o científico – de significação da palavra. Assim, no proferimento “O livro A biografia da água fornece uma exposição abrangente desse conceito”, a palavra ‘água’ aparece em seu contexto de maior amplitude, querendo dizer tudo o que ela pode querer dizer. É isso a meu ver o que os dicionários modernos buscam sumarizar e que se encontra sintéticamente exposto em enciclopédias.

Uma regra geral de caracterização
Em conformidade com o que dissemos, é possível definir o conceito genérico de água – que contém os elementos de significação recém-considerados – como sendo constituido por uma regra de caracterização ou de aplicação. Essa regra nos permite aplicar a palavra ‘água’ a tudo aquilo a que efetivamente somos capazes de aplicar sem que cheguemos a ter a impressão de que a estamos usando de modo impróprio. Aqui vai uma sugestão:

     RC-água:
Podemos designar um volume líquido x com a palavra ‘água’
see
o núcleo popular de significação para a palavra ‘água’ e/ou o seu núcleo científico estiver(em) sendo suficientemente satisfeito(s) pelo volume líquido x e mais do que qualquer outro conceito que com ele(s) conflite.

     Note-se que com essa regra conceitual introduzimos uma distinção sutil entre o conceito e o significado, o sentido ou conteúdo cognitivo. O sentido é constituído pelas regras-descrições do núcleo semântico científico e popular. O conceito é algo mais: ele é a regra caracterizadora como um todo, que contém esses sentidos. Sendo assim o conceito possui um sentido. Dessa maneira espero poder fazer justiça à semelhança e diferença sutis que sentimos haver entre o sentido e o conceito.
     Por meio de RC-água também seríamos capazes de dar ao conceito de água a sua mais genérica aplicação, que tanto serve a líquidos que satisfazem apenas ao núcleo popular quanto a líquidos que satisfazem apenas ao núcleo científico. Por meio dessa regra podemos distinguir a água de outros volumes líquidos que satisfazem parte da condição de significação (o núcleo popular ou o núcleo científico) para o conceito de água, como o de álcool, que muito pouco satisfaz do núcleo popular e nada do núcleo científico do conceito de água, mas satisfaz o núcleo popular (fenomenal) e científico (microestrutural) da regra de caracterização constitutiva do conceito de álcool. O conceito de álcool visivelmente conflita com o de água na satisfação de alguns critérios semânticos, pois se a maior parte de um volume líquido for água e uma pequena parte for álcool, nós diremos que se trata de água com álcool, mas não que a água é feita de álcool, pelo fato de que os critérios de RC-água são mais completamente aplicáveis, mas não que é água feita de álcool. O mesmo não aconteceria se tivéssemos dois conceitos que satisfazem a regra, mas que não entram em competição. Por exemplo: o conceito de neve e o conceito de água não conflitam entre si: neve são flocos de cristais de gelo constituídos de hidróxido de hidrogênio. Assim, parte de sua regra de caracterização é satisfeita pelo núcleo científico do conceito de água, mesmo que as suas propriedades fenomenais sejam em sua maioria diversas.

Divisão do trabalho cognitivo
Aqui poderia surgir a velha objeção externalista de que em geral sabemos muito pouco das descrições constitutivas do significado da palavra ‘água’. A maioria de nós muito pouco sabe, por exemplo, de seu núcleo científico, exceto que se trata de H2O (mas o que é exatamente H2O poucos sabem).
     A resposta a essa objeção de ignorância do significado passa pela observação prévia de que, com efeito, em muitos casos nosso conhecimento do significado como sentido fregeano – como conteúdo informativo – é realmente muito limitado. Todos nós conhecemos bastante bem o significado de palavras triviais como ‘sapato’, ‘mesa’, ‘pedra’. Mas quando usamos termos com conotações científicas ou técnicas cujos detalhes não precisam ser considerados no discurso ordinário, nosso conhecimento do conteúdo de significação costuma se tornar incompleto no sentido de se permanecer superficial, aspectual, fragmentário. Contudo, na medida em que somos cientes disso, na medida em que sabemos que não sabemos, não surgem problemas. O conhecimento do significado que precisamos ter para inserir tais termos corretamente no discurso é em geral muito pequeno, ao menos em contextos pouco exigentes, que são os mais comuns. Sempre que fazemos uso de um termo com conhecimento limitado ou insuficiente de seu significado, nós deferimos um conhecimento muito mais completo do significado a outros membros da comunidade linguística; àqueles que por uma ou outra razão poderiam ser chamadas de usuários privilegiados do termo. O resultado é que o sentido completo do termo é geralmente constituído, senão por aquilo que cada usuário privilegiado sabe, ao menos pelo conjunto das coisas que os diversos usuários privilegiados do termo sabem no interior de uma comunidade linguística. (Considere, por exemplo, a expressão ‘teoria das cordas’: quantos sabem o que isso em todos os detalhes significa? Tanto quanto estou informado, nem mesmo os teóricos das cordas). Com essas considerações quero fazer apelo ao que gostaria de chamar de uma divisão cognitiva do trabalho da linguagem. Trata-se de uma distribuição do conhecimento do significado entre os falantes, a qual é entendida sob uma perspectiva internalista – uma idéia que já havia sido esboçada por um descritivista clássico como John Locke[7] e que foi redescoberta por Hilary Putnam sob um entendimento externalista.[8]
     O mesmo se dá ao que parece com a palavra ‘água’: não obstante o fato de essa palavra poder ter como conteúdo de significação os conjuntos nucleados das descrições superficiais e profundas recém-mencionadas, não é preciso que cada falante tenha em mente ambos os conjuntos, nem que os conheça em grandes detalhes, para dar sentido à palavra em um proferimento, ou seja, para inseri-la corretamente no discurso de maneira a fazer-se entender e provocar as respostas adequadas. Ele pode simplesmente ter em mente apenas aquilo que todos nós sabemos, como a descrição ‘líquido transparente, inodoro, insípido’ ou a descrição ‘líquido constituído de H2O’, o que já basta para a comunicação. Em outros casos a pessoa pode ter apenas uma vaga noção do significado da expressão conceitual e ainda assim ser capaz de inseri-la corretamente em discursos com propósitos suficientemente genéricos, confiando na existência de usuários privilegiados capazes de completar o conteúdo de significação do termo. Com efeito, é até mesmo possível que a pessoa associe um termo geral a uma descrição incorreta, conquanto ela seja convergente, ou seja, conquanto ela inclua a sua referência em uma classe (um genus proximus) ao qual ela realmente pertence. Assim, se alguém pensa que ‘baleia’ é o nome de um peixe grande do mar, essa descrição é incorreta, mas ainda assim convergente, pois já classifica a sua referência corretamente como um animal marinho, permitindo ao falante se referir a baleias no sentido de ser capaz de inserir corretamente a palavra no discurso usual. O que não é possível é que a pessoa não saiba realmente nada sobre o sentido do termo, ou que associe a ele descrições que não são apenas incorretas, mas que são divergentes com relação às que exprimem o sentido original por nos fazerem classificar incorretamente aquilo a que se referem, rejeitando as suas notas mais gerais. Esse é o caso da criança que pensa que o termo de espécie natural ‘baleia’ designa uma montanha na serra das Cajazeiras – uma descrição errônea e divergente.[9] Nesse caso a criança não será capaz de inserir corretamente a palavra no discurso nem de se referir a baleias. Finalmente, um pressuposto indispensável é que a pessoa conheça os limites do que sabe: ela precisa ter pelo menos um conhecimento tácito da estrutura geral das regras caracterizadoras de conceitos, sua função sintática etc.

Contextos de interesse e sentidos de aplicação
O ponto crucial para o qual gostaria de chamar atenção é que aquilo que as pessoas têm em mente ao usar a palavra ‘água’ pode sofrer oscilações contextuais. Ou seja: o que queremos dizer quando usamos certas palavras pode variar com o contexto de interesses envolvido, que defino como sendo o contexto das intenções e circunstâncias pragmáticas envolvidas na interação comunicativa. Com a variação desse contexto varia o que queremos dizer com certas palavras, o valor cognitivo que com elas pretendemos veicular, elevando-se o valor dos aspectos do significado que para algum propósito nos interessam. Quanto à palavra ‘água’, nós vemos isso acontecer claramente quando o contexto enfatiza um dos dois núcleos semânticos há pouco mencionados.
     Mais circunstanciadamente, podemos dizer que há primeiro contextos de interesse genéricos, não restritivos ou topicamente neutros, nos quais somos autorizados a ter em mente apenas a satisfação suficiente de:

(A) uma disjunção entre os dois núcleos de significado da palavra 'água' – o popular e o científico.

     Esse é o caso no qual aplicamos RC-‘água’. Esse é o uso mais genérico concebível para a palavra ‘água’, aquele cujos critérios são os mais liberais. Nesse sentido poderíamos dizer que um líquido transparente, insípido, inodoro, que aplacasse a sede e apagasse o fogo... mas que possuisse estrutura química XYZ, seria água, e do mesmo modo poderíamos dizer que um líquido com constituição química H2O, mas que se apresentasse fenomenalmente como um óleo escuro, venenoso e inflamável, também não deixaria de ser água.
     Não obstante, o que importa é notar que há contextos de interesse que chamo de “Bs”, nos quais é demandado que tenhamos em mente apenas um dos núcleos ao neles usarmos a palavra.
     Considere, para exemplificar, o contexto de uma comunidade de pescadores onde tudo o que as pessoas almejam é cavar um poço de modo a obter água doce para beber e lavar. Aqui o contexto de interesse é popular. Nesse caso, o que importa se reduz a:

(B1) o núcleo popular de significação da palavra.

Aqui as pessoas chamarão de água o líquido que tiver as propriedades de superfície da água, sem se preocupar se a sua composição química é a de hidróxido de hidrogênio ou não, conquanto ele sirva adequadamente às funções por elas esperadas da água, como as de aplacar a sede e lavar. Se for descoberto que o líquido que os pescadores tiram do poço tem uma estrutura química diferente de H2O (sob o suposto de que estar assegurada nenhuma alteração nos efeitos, incluindo nenhum dano à saúde), eles não encontrarão razão alguma para deixar de usar a palavra ‘água’ na denominação do líquido por eles usado.
     Agora imagine, por contraste, que algumas pessoas estejam fazendo experimentos em um laboratório de química com o objetivo de decompor amostras de água através de métodos como o da eletrólise. Nesse caso, o que elas têm em mente é:

    (B2) o núcleo de significação científico da palavra.

     Aqui o contexto de interessesse é o científico. Tudo o que for hidróxido de hidrogênio será para essas pessoas água, independentemente das propriedades de superfície que a amostra tiver. Afinal, elas querem usar a palavra ‘água’ no sentido daquilo cuja estrutura química essencial é H2O. Se um líquido oleoso, escuro, venenoso e inflamável se evidencia como possuindo – contra todas as apostas – a estrutura química H2O, eles não hesitarão em chamá-lo de água, mesmo querendo saber por que mágica ele não demonstra as propriedades superficiais da água.

A fantasia da Terra Gêmea: respostas conflitantes
Quero agora fazer uma primeira aplicação da recém-exposta análise neodescritivista do conceito de água, usando-a para explicar, sob uma perspectiva inteiramente internalista, o que acontece na famosa fantasia da Terra Gêmea sugerida por Hilary Putnam.[10] De acordo com essa fantasia existe uma Terra Gêmea que é idêntica à nossa em tudo, exceto pelo fato de que nela o líquido transparente e inodoro que aplaca a sede e apaga o fogo tem uma estrutura química XYZ e não H2O. Nesse caso, se em 1750, pouco antes da descoberta da microestrutura da água, Oscar apontasse para um copo D’água e dissesse “Isso é água”, ele estaria se referindo a um líquido constituido por H2O. Contudo, o seu Doppelgänger da Terra Gêmea, o Oscar-gêmeo, ao dizer “Isso é água” estaria se referindo a XYZ e não a H2O. Com base nisso, Putnam faz o seguinte raciocínio. Como Oscar e Oscar-gêmeo em 1750 tinham em suas cabeças apenas descrições de superfície, as quais eram exatamente as mesmas, e como eles estavam realmente se referindo a coisas de naturezas diferentes e com extensões diferentes, o significado da palavra ‘água’ (‘what they meant with the word’) não poderia estar em suas cabeças, mas fora delas! O significado possui, portanto, um componente extensional fundamental, que é externo e determinado pela estrutura química essencial do volume líquido apontado, o qual possui identidade-L (microestrutural) com os outros volumes líquidos de aparência similar. É isso, escreve Putnam, o que sempre foi entendido pela palavra. A isso pode ser acrescentado que a causa real e objetiva dos proferimentos de fato possui uma natureza essencial diversa na Terra e na Terra-Gêmea: em um caso ela é H2O, no outro XYZ.
     Críticos de Putnam como A. J. Ayer, Eddy Zemach e D. H. Mellor, que preferiram se manter fiéis a uma posição descritivista ou neo-fregeana tradicional, sugeriram que a pretensa intuição semântica da fantasia putnamiana é incorreta.[11] Oscar e Oscar Gêmeo não estavam apontando para coisas diversas. Eles estavam apontando para a mesma espécie de coisa – o mesmo líquido transparente, insípido, inodoro etc. E a prova disso é que o significado da palavra ‘água’ para eles já se mostra inteiramente expresso nas descrições de superfície (as descrições que Putnam chamou de estereótipos).
     Stroll, que compartilha dessa opinião, imagina uma situação em que desde 1750 tivesse havido comércio entre as pessoas da Terra e as da Terra Gêmea, e que grandes quantidades de água fossem transportadas da Terra para a Terra Gêmea e vice-versa, sem que as estruturas moleculares do líquido em questão chegassem a ser descobertas. Ora, se um dia fossem, afinal, descobertas as diferenças nas estruturas químicas, as pessoas não iriam concluir que a água da Terra Gêmea não é água. Elas concluiriam apenas que é uma água de outro tipo!
     Se seguirmos a intuição dos descritivistas neo-fregeanos, o problema de Putnam não chega a se colocar. Oscar e Oscar-gêmeo estavam apontando para a mesma espécie de referência porque tinham os mesmos sentidos determinadores da referência em suas cabeças. E a extensão seria também a mesma, cobrindo tanto a água da Terra como a da Terra Gêmea. Assim, não havendo desacordo algum entre o significado e os estados psicológicos dos Oscares, os significados podem ser considerados como estando sempre em suas cabeças.
     Não obstante, é importante perceber que ambas as alternativas explicativas – a de Putnam e a de seus críticos – são intuitivamente fortes, o que gera um dilema incômodo, tanto para os defensores do externalismo semântico quanto para os internalistas neo-fregeanos tradicionais. Nenhum dos dois grupos encontra meios de acomodar as intuições contraditórias.

Como solucionar o conflito
É nesse ponto que entra o meu argumento. Ele se vale da análise neo-descritivista aprimorada do conceito de água proposta nesse capítulo, além do velho princípio fregeano de que o sentido determina a referência. O argumento baseia-se na observação de que na verdade existe uma dupla interpretação possível para a referência feita pelos Oscares: a interpretação do ponto de vista deles e a interpretação do ponto de vista nosso. A primeira interpretação dá conta da intuição dos neo-fregeanos, enquanto a segunda dá conta da intuição dos putnamianos. O resultado vantajoso de semelhante análise é que conseguimos alcançar uma acomodação satisfatória entre as duas intuições conflitantes.
     Consideremos primeiro a interpretação do ponto de vista dos Oscares. Nesse caso, aquilo que queremos levar em consideração é o significado da palavra ‘água’ tal como ele era conhecido pelas pessoas em 1750. Nesse caso devemos dar razão aos fregeanos, pois a descrição que exprimia o significado da palavra ‘água’ era por essa época apenas a de um líquido transparente, sem gosto e inodoro, que aplacava a sede e apagava o fogo e que enchia os rios, lagos e mares, sendo um bom solvente que não se misturava com óleos etc.[12] Ou seja: descrições fenomenais e disposicionais e nada mais. Nesse caso o contexto de interesses envolvido era inevitavelmente popular. Nesse caso interessamo-nos por considerar apenas o núcleo de sentido popular da palavra ‘água’, que é exatamente o mesmo tanto para Oscar quanto para o Oscar Gêmeo, que mantinham as mesmas descrições, o mesmo significado em suas cabeças. Mas como nesse caso tanto Oscar quanto Oscar Gêmeo estavam se referindo à mesma espécie de coisa com uma única e mesma extensão, que envolve todo o líquido aquoso de ambas as terras, a igualdade do que eles tinham em suas cabeças é perfeitamente compatível com a idéia fregeana de que o significado determina a referência e a extensão.
     Quanto à possível objeção de que a causa objetiva última dos proferimentos são as microestruturas H2O num caso e XYZ no outro, isso aqui pouco importa, pois no contexto de interesses popular vigente em 1750 as pessoas estavam perfeitamente e inteiramente autorizadas a dizer que aquilo que realmente causou as diferentes impressões sensíveis foi o conjunto das manifestações fenomenais constitutivas da superfície da água (líquido transparente, inodoro, insípido...), as quais eram as mesmas tanto aqui quanto na Terra Gêmea. Não há uma razão a priori para se privilegiar o discurso causal em termos moleculares sobre o discurso causal em termos das características macrofísicas, exceto quando nada se sabe acerca das primeiras.
     Há, todavia, uma segunda maneira descritivista de analisar o que Oscar e Oscar Gêmeo estavam dizendo, que é a de interpretar a questão da referência feita pelos Oscares sob nosso próprio ponto de vista. Essa interpretação corresponde exatamente à intuição seguida por Putnam, embora ele não a analisasse nesses termos. Ela vem a tona quando nos interessamos em colocar em pauta o núcleo de significado científico da palavra ‘água’, que só mais tarde veio a ser descoberto. Nesse caso, obviamente, diremos que Oscar estava se referindo ao líquido com microestrutura H2O, enquanto Oscar Gêmeo estava se referindo ao líquido com microestrutura XYZ. E nesse caso diremos que ambos os líquidos possuiam extensões muito diferentes, o primeiro se restringindo aos volumes de água da Terra e o segundo aos volumes de água da Terra Gêmea. Mas há aqui um ponto crucial que tem passado despercebido. É que no caso em questão estamos sem perceber considerando o significado da palavra ‘água’ usada por Oscar e Oscar Gêmeo tal como ele é conhecido por nós mesmos hoje, mas não como ele era conhecido pelos Oscares em 1750, que não se encontravam em condições de acessar a idéia de uma fórmula química, nem mesmo se eles fossem químicos. Ora, mas se é assim, o que nós realmente estamos considerando não deve ser o que os próprios Oscares tinham em suas cabeças, como pretende Putnam, mas simplemente o que nós mesmos temos hoje em nossas cabeças ao nos referirmos às referências dos Oscares! Mas o que nós temos em nossas cabeças ao pensarmos no proferimento “Isso é um copo d’água” dito por Oscar é claramente diferente do que nós temos em nossas cabeças ao pensarmos “Isso é um copo d’água” dito pelo Oscar-Gêmeo. No primeiro caso incluímos o conceito de H2O no conteúdo do proferimento, enquanto no segundo incluímos o conceito de XYZ (a assim chamada água-gêmea), o que faz com que o correlacionamento entre a variação do que é encontrado no mundo real e a variação do que acontece nas cabeças dos intérpretes da frase seja preservado. Ora, isso permite que os significados em questão sejam considerados como estando em nossas cabeças e determinando, a partir delas, ao modo fregeano, as referências e extensões correspondentes.
     O que filósofos como Putnam deixaram de perceber é que tudo o que fazemos é projetar os nossos próprios sentidos descritivos da palavra ‘água’ nos proferimentos dos Oscares, usando-os como instrumentos indexicais para a nossa própria determinação de suas diferentes referências e extensões, as quais são, em última instância, fregeanamente determinadas pelos diferentes sentidos da palavra ‘água’ que temos em nossas próprias cabeças.
     O que essa dupla aplicação de nossas intuições de senso comum sugere é o inverso do famoso coloquialismo de Putnam. Ela é: “Divida-se o bolo como quiser, o significado permanecerá na cabeça!” Com efeito, minha conclusão é que a resposta neo-descritivista que sugiro para a questão do significado da palavra ‘água’ tem maior poder explicativo do que a resposta de Putnam, pois tanto explica a sua intuição de que os Oscares estavam se referindo a coisas diferentes, como também explica a intuição dos neofregeanos tradicionais, segundo os quais os Oscares estavam se referindo à mesma coisa com a mesma extensão.
     O que fiz até agora foi apenas desenvolver uma elucidação natural e a meu ver bastante convincente de idéias neo-descritivistas e neo-fregeanas, para então aplicá-las à fantasia da Terra Gêmea, considerando-a do ponto de vista de quem realmente avalia a referência. Trata-se de uma explicação tão simples e razoável que a ausência de sua consideração na literatura chega a ser curiosa. Uma vez, porém, que ela é admitida, tudo se deixa explicar sem maiores comoções. Não é só o conflito entre intuições que se explica pela escolha de diferentes sujeitos e modos de avaliação dos proferimentos dos Oscares. Agora não precisamos mais nos afastar da idéia demasiado plausível de que o significado diz respeito a regras convencionalmente fundadas[13] – um afastamento que seria inevitável se o significado fosse alguma coisa externa, a pairar de algum modo fora das cabeças. Além disso, não precisamos mais ser forçados a concluir contra-intuitivamente que talvez não saibamos ainda ou talvez não venhamos nunca a conhecer o significado de muitos de nossos termos gerais. E nem somos mais forçados a concluir que os Oscares em 1750 não conheciam realmente o significado da palavra ‘água’ no sentido próprio da palavra, mesmo que eles fossem estranhamente capazes de entender esse significado, usá-lo referencialmente e comunicá-lo uns aos outros.[14]

O status epistêmico do enunciado "Água é H2O"
Outra conseqüência interessante diz respeito à nossa análise da frase de identidade “Água é H2O”. Segundo a análise kripkiana essa frase possui um status epistêmico especial: ela exprime uma verdade necessária e a posteriori. É a posteriori porque foi descoberta pela ciência; é necessária porque ‘água’ e ‘H2O’ são designadores rígidos, aplicáveis à mesma substância em qualquer mundo possível.[15] Nossa análise do que queremos dizer com a palavra 'água' demonstra que não é assim.
     Como parece ter ficado claro, o conceito de água pode adquirir ao menos três sentidos (A), (B1) e (B2). A frase “Água é H2O” entendida como uma frase de identidade é falsa nos sentidos (A) e (B1), pois no sentido (A) a disjunção dos núcleos de significado popular e científico do termo ‘água’ não pode ser identificada com o seu núcleo científico mais restrito (ou com o conceito de H2O), enquanto no sentido (B1) o núcleo de significado popular do termo ‘água’ é obviamente diferente do seu núcleo científico (ou H2O). Apenas no caso de o ‘é’ ser entendido mais naturalmente como um ‘é’ de constituição, e não mais de identidade, podemos dizer que no sentido popular da palavra ‘água’ (B1) a frase “A água é (constituida de) H2O” é verdadeira, algo já percebido por Stroll. Mas essa é uma verdade contingente a posteriori, pois o líquido transparente, inodoro e insípido que chamamos de água poderia ser constituido de outra coisa. Não obstante, a frase “Água é H2O” pode ser interpretada como uma frase de identidade verdadeira no contexto de interesse que envolve (B2), onde o ‘é’ pode ser substituído por ‘é o mesmo que’. Contudo, nesse caso não teremos uma verdade necessária a posteriori. Pois aqui a palavra ‘água’ é usada no sentido de ‘hidróxido de hidrogênio’ e o que estamos realmente querendo dizer é:

Hidróxido de hidrogênio é (o mesmo que) H2O.

Mas como ‘hidróxido de hidrogênio’ é por definição H2O, o que estamos de fato afirmando é “H2O = H2O”, ou seja, uma tautologia analítica e não uma identidade descoberta a posteriori. Concluimos, pois, que em nenhum dos sentidos considerados a frase “Água é H2O” expressa uma verdade necessária a posteriori.


Apêndice: Tyler Burge e o externalismo do pensamento
Há uma experiência em pensamento complementar a de Putnam, que foi imaginada por Tyler Burge com respeito ao conceito de artrite e que vale a pena ser lembrada. O que Burge pretendeu foi, para além de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser entendido de maneira extensional, mas que as crenças, ou seja, os próprios conteúdos de pensamento, estão fora da cabeça. Quero aqui resumir o argumento de Burge e em seguida mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível para o que acontece.
     Embora Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação contra-factual, podemos torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome Oscar sinta dor na coxa e procure um médico dizendo

     Acho que tenho artrite na coxa.

Como artrite é entendida como uma inflamação dolorosa e deformante das juntas, o médico lhe explica que a sua crença é falsa, que ele não pode ter artrite na coxa. Imagine agora que Oscar viaje para uma região do país na qual seja costume usar a palavra ‘artrite’ de um modo muito mais amplo, para se referir a toda e qualquer inflamação. Chamemos a comunidade lingüística dessa última região de B e chamemos a comunidade lingüística da primeira região de A. Suponha que, uma vez tendo chegado à região da comunidade lingüística B, Oscar procure um médico com a mesma queixa “Acho que tenho artrite na coxa”. Nesse lugar, como seria de se esperar, o médico irá confirmar a suspeita, concordando com a verdade de sua crença.
     Com base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida, os estados psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na primeira e na segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu comportamento. Mas as crenças, os pensamentos expressos nos proferimentos, precisam ser diferentes, posto que o pensamento expresso pelo primeiro proferimento é falso, enquanto o pensamento expresso pelo segundo proferimento é verdadeiro, e um mesmo pensamento não pode ser falso e verdadeiro. Podemos até marcar o significado diverso da palavra ‘artrite’ no segundo proferimento com uma nova palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A conclusão do argumento é que o conteúdo de pensamento não pode ser algo meramente psicológico. Esse conteúdo deve pertencer também ao mundo externo, às relações sociais da comunidade que envolve o falante.
     Contra essa conclusão é possível encontrar uma explicação internalista e descritivista para o que acontece. Para o internalismo a palavra ‘artrite’ deve exprimir um conjunto de regras-descrições constitutivas de seu significado. Uma delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’, faz parte do sentido da palavra para a comunidade lingüística da região B, mas não para a comunidade lingüística da região A. Assim, embora o conteúdo de pensamento expresso na frase “Acho que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar nas regiões A e B possa ser considerado exatamente o mesmo, há uma diferença que foi justamente lembrada por John Searle em uma crítica que atinge o cerne da questão:

É uma pressuposição de pano-de-fundo por trás do nosso uso social das palavras de que nós compartilhamos significados comuns com outras pessoas em nossa comunidade.[16]

     Ou seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na coxa”, ele está pressupondo que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ pertence à linguagem que ele está usando, ou seja, que os outros falantes competentes da linguagem a consideram convencionalmente aplicável. O que ele tem em mente ao proferir a sua frase diante do primeiro médico poderia ser reapresentado como

(a)     Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística A, a qual pertence o meu interlocutor.

     Essa é uma frase falsa porque a segunda sentença da conjunção é falsa. Vejamos agora como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente quando diz ao segundo médico que acha que está com artrite na coxa:

(b)    Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística B, a qual pertence o meu interlocutor.

     A frase (b) é verdadeira porque exprime uma conjunção verdadeira. E a diferenca de sentido entre (a) e (b) é evidente, pois enquanto uma está indexicalmente associada à comunidade linguística A, a outra está indexicalmente associada à comunidade linguística B. Pode ser verdade que se nos restringirmos ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a mesma frase nas regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles têm em mente com os proferimentos – o conteúdo completo de seus pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional que envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade varia com a comunidade linguística envolvida, sendo diferente para o mesmo proferimento nas comunidades linguísticas das regiões A e B. Trata-se de uma assunção discursiva indispensável de que as regras de verificação constitutivas do pensamento devam estar em conformidade com as convenções da comunidade linguística na qual ele é expresso. Essa assunção é transgredida por Oscar quando ele fala com o médico da comunidade A, mas ela não é transgredida quando ele fala com o médico da comunidade B. É isso o que explica porque o pensamento de Oscar em A é falso, enquanto o pensamento de Oscar em B é verdadeiro. O pressuposto de que o pensamento expresso deve estar em conformidade com as regras da linguagem não é, porém, externo ao falante! Ele é um elemento psicológico de ordem disposicional, que completa o conteúdo de pensamento e que pode ser explicitado por Oscar sempre que isso for requerido.
     Burge chamou-nos atenção para uma coisa importante: que a verdade ou a falsidade do pensamento completo depende da comunidade lingüística que envolve o falante. Mas diversamente do que ele pensa essa dependência não é externa no sentido de o pensamento não ser psicológico, encontrando-se como que disperso no meio social. A dependência social reside exclusivamente em a comunidade lingüística satisfazer ou não uma condição de verdade interna ao pensamento no sentido amplo, nomeadamente, a condição de que a regra de aplicação do termo ‘artrite’ usada pelo falante seja uma regra fundamentada nas convenções lingüísticas compartilhadas pela comunidade lingüística com a qual ele se comunica.
     Finalmente, a explicação dada nos permite parafrasear em termos internalistas a distinção entre conteúdo estreito (narrow content) e conteúdo amplo (wide content), ao menos para o caso em questão. Para o externalista, o conteúdo estreito é aquele que está na mente do falante, enquanto o conteúdo amplo é aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade. A análise internalista do exemplo de Burge nos permite sugerir que o conteúdo estreito de pensamento é a própria ocorrência cognitivo-linguística do pensamento (expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”), enquanto o conteúdo amplo do pensamento nada mais é do que aquilo que está sendo presumido no que é pensado, existindo na mente do falante como uma disposição que uma vez expressa será aceita ou rejeitada pela comunidade linguística.






[1] O descritivista neo-fregeano provavelmente discordará de Frege quanto à questão do status ontológico dos conteúdos informativos constitutivos do significado descritivo de uma expressão. Para Frege os sentidos e suas conjugações em pensamentos precisam ser entidades abstratas, platônicas, de modo a ter a sua comunicabilidade, garantida. Contudo, para o neo-fregeano contemporâneo esse é um preço ontológico alto demais. A reação mais natural é a de localizar esses conteúdos de informação em nossas cabeças, na forma de instanciações cognitivas de convenções ou de suas combinações, confiando em que o fundamento convencional intersubjetivo dessas instanciações tornaria esse conteúdo informativo instanciado intrinsecamente capaz de ser comunicado.
[2] Ver Avrum Stroll: Sketches and Landscapes: Philosophy by Examples, cap. 2.
[3] Desnecessário dizer que me refiro ao significado ou conceito de água e não, naturalmente, à palavra que o exprime; o primeiro pouco se altera, mesmo sendo expresso por uma grande variedade de palavras em diferentes línguas e épocas.
[4] Se acharem esse apelo demasiado fantasioso sugiro pensarem no homem da idade do bronze ou então em alguma tribo indígena não contactada.
[5] A história da descoberta da composição química da água é complexa e controversa, de modo que o que apresentarei aqui será um breve sumário. Ver, por exemplo, Philip Ball: A Biography of Water (California: University of California Press 2001), cap. 5

[6] Vale notar que se entendido em um sentido suficientemente amplo, o descritivismo é capaz de incluir o que é indicado pelo rótulo genérico de inferencialismo semântico. Com efeito, as descrições que associamos a um termo não deixam de expressar um conteúdo inferencial específico. Sobre o inferencialismo, ver Robert Brandom: Articulating Reasons: An Introduction to Inferentialism, cap. 1.
[7] John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, 2.31.4-5, 2.32.12, 2.29.7, 3.10.22, 3.11.24.
[8] Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, in Language and Reality, Philosophical Papers, vol. 2, pp. 227-229.
[9] Esse exemplo é paralelo ao do nome próprio ‘Einstein’ usado como abreviação da descrição errônea ‘o inventor da bomba atômica’ (Kripke). Contudo, essa descrição errônea é ainda assim convergente, pois guarda traços comuns com o portador do nome, que era um cientista e um ser humano. Se o usuário do nome ‘Einstein’ o associasse a uma descrição divergente como, por exemplo, o nome de um diamante conhecido como “a pedra única” (ein-Stein), ele seria certamente considerado incapaz de usar a palavra corretamente.

[10] Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, in Language and Reality, Philosophical Papers, vol. 2.
[11] A. J. Ayer: Philosophy in the Twentieth Century p. 270. Ver também D. H. Mellor: “Natural Kinds” e Eddy Zemach: “Putnam’s Theory on the Reference of the Substance Terms”.
[12]  Putnam observou que em 1750 e mesmo muito antes já se assumia a existência de uma substância ou essência pura, comum às massas d’água, o que acabou sendo descoberto como sendo sua microestrutura química H2O. Contudo, como essa substância comum não podia ser determinada, para o que se queria dizer com a palavra ‘água’ tanto fazia que ela fosse H2O ou XYZ. Além disso, a idéia de uma substância pura subjacente pode ter valido para os químicos pouco antes das descobertas de Lavoisieur. Mas ela não valia muito antes disso, quando seria igualmente razoável imaginar que os volumes de água fossem como os volumes de ar ou urina, que não passam de misturas. Se quisermos, aliás, podemos fazer regredir a fantasia aos Oscares das cavernas, ou aos da Idade do Bronze, que certamente não teriam nem porque nem como postular um substrato único comum ao que chamamos de água.
[13] Uso a expressão ‘regra convencionalmente fundada’ para designar combinações de regras que não são elas próprias convencionais, mas que se baseiam em regras que foram ao menos implicitamente convencionadas.
[14] Como escreveu Putnam “Oscar1 and Oscar2 understood the term ‘water’ differently in 1750” (Mind, Language and Reality, p. 224, grifo meu). Ele foi bem mais cuidadoso em seu livro Representation and Reality, onde tentou responder à objeção de que em 1750 o significado era, afinal, o mesmo. Seu argumento é o de que embora em 1750 os Oscares não pudessem ter critérios explícitos de identificação da substância água, eles sabiam o significado do termo no sentido comum de saberem usá-lo corretamente no discurso (p. 32). Mas isso não muda coisa alguma. Se fizermos uma experiência hoje com eletrólise usaremos a palavra ‘água’ ao concluir que as porções de hidrogênio e oxigênio resultantes são componentes da água. Mas o uso-significado feito pelos Oscares não poderia ser o mesmo. Assim, é mais coerente dizer que aquilo que os Oscares em 1750 tinham em mente ao usar a palavra ‘água’ era o que Putnam chama de significado como estereótipo, descrições de superfície, enquanto no uso atual dessa palavra nós somos capazes de ir além, mas apenas porque hoje conhecemos as descrições microestruturais. Minha conclusão é que se o externalismo for razoavelmente enfraquecido, ou ele passa a não dizer mais coisa alguma, ou o que ele diz se torna algo completamente trivial, como é o caso da afirmação de que os significados de nossos termos referentes a coisas externas são geralmente originados da experiência de suas referências...
[15] S. Kripke: Meaning and Necessity, pp. 128, 134, 150.
[16] J.R. Searle: Mind: A Brief Introduction, p. 184.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

(2) REABILITANDO O VERIFICACIONISMO (do livro 'Cognitivismo semântico')





–  2  –
REABILITANDO O VERIFICACIONISMO


O verificacionismo costuma ser visto hoje como uma relíquia da filosofia da primeira metade do século XX. Afinal, embora inicialmente defendido pelos filósofos do Círculo de Viena, parece que ele cedo se mostrou incapaz de resistir ao acúmulo de argumentos contrários, tanto de dentro quanto de fora do Círculo. Meu objetivo nesse capítulo é mostrar que o princípio da verificabilidade não está tão morto quanto geralmente se pensa. Ele encontra formas mais liberais e flexíveis do que as que os positivistas lógicos tentaram desenvolver, como, por exemplo, a forma proposta por Charles Sanders Peirce, que nunca foi refutada.[1] E uma dessas formas mais liberais e flexíveis é a do próprio Wittgenstein – que afinal foi quem primeiro teve a ideia que os membros do positivismo lógico tentaram então elaborar de diversas maneiras. Aqui, retornando à metodologia e assunções do próprio Wittgenstein, meu objetivo é apresentar alguns argumentos em defesa do que pode ser chamado de verificacionismo semântico, que consiste na sugestão de que o conteúdo epistêmico (cognitivo, factual, descritivo, informativo...) de frases declarativas deva ser constituido por suas regras de verificação.

A origem do verificacionismo semântico
Um primeiro ponto a ser lembrado é que, diversamente do que se costuma pensar a idéia de que o significado de um enunciado é o seu modo de verificação não se deve aos filósofos do positivismo lógico. O introdutor do princípio foi Wittgenstein, como os próprios membros do círculo de Viena sempre reconheceram.[2] Com efeito, se consultarmos a obra desse filósofo, veremos que ele já formulava o princípio em suas conversações com Waismann em 1929, mantendo-o em seus escritos na década seguinte. Além disso, não há sequer evidência explícita de que ele tenha mais tarde abandonado o princípio em troca de uma concepção puramente performativa do significado como função do uso, como pensam alguns. Afinal, é perfeitamente admissível que o verificacionismo e a vaga tese posterior de que o significado é função do uso sejam reconciliáveis. Afinal, Wittgenstein intercala os conceitos de uso, verificação e significado como se indicassem a mesma coisa em frases como:

Se você quer conhecer o significado de uma sentença, pergunte por sua verificação. Eu saliento o ponto de que o significado de um símbolo é seu lugar no cálculo, o modo como ele é usado.[3]

   Nessa leitura o significado é o modo de uso, que são regras de uso, o que inclui regras semântico-cognitivas, as quais, em se tratando de frases enunciativas, seriam regras de verificação.
   É sempre bom consultarmos o que disse o verdadeiro autor de uma idéia. Se compararmos o verificacionismo wittgensteiniano com o verificacionismo do Círculo de Viena, perceberemos que há contrastes marcantes. Um primeiro deles é que Wittgenstein não estava nem um pouco preocupado em utilizar esse princípio como uma arma para o combate à metafísica, como queriam os membros do círculo. O objetivo maior teria sido o de alcançar uma representação abrangente (übersichtliche Darstellung) pela elucidação de um princípio central, constituidor da função semântica de nossa linguagem representacional.
   Outra diferença marcante é que Wittgenstein não se preocupou em precisar seu princípio por meios formais, diversamente da maior parte dos membros do Círculo, particularmente Ayer e Carnap. Não estou objetando contra isso. O que me parece, contudo, é que um trabalho nessa direção precisaria ser antes respaldado por uma consideração suficientemente detida de como nossa linguagem natural realmente funciona, sendo facilmente concebível que a desconsideração desse ponto tenha precipitado distorções que acabaram por tornar o princípio aparentemente inviável.
     Uma vez dito isso quero começar examinando algumas considerações de Wittgenstein sobre o princípio da verificação. Depois irei examinar algumas famosas objeções ao princípio, no intuito de demonstrar que elas são bem mais frágeis do que parecem.

Verificacionismo wittgensteiniano
Eis algumas das declarações de Wittgenstein apresentando o princípio da verificabilidade:

Uma frase (Satz) que não se deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).[4]
São duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condições, então elas têm o mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam diferentes).
Determino sob que condições uma frase pode ser verdadeira ou falsa, então determino desse modo o sentido da frase. (Esse é o fundamento de nossas funções de verdade.)[5]
Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento muito bem definido para saber se a frase é verificada.[6]
O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira ou falsa, assim determino o sentido da frase.[7]
O sentido de uma frase é o método de sua verificação.[8]

     O que chama atenção em declarações como essas é o seu caráter fortemente intuitivo. Elas parecem expor lugares comuns acerca de nosso uso linguístico, corroborando a sugestão wittgensteiniana de que teses filosóficas são triviais por explicitarem aquilo que todos nós sempre soubemos. Tais enunciados do princípio seriam, aliás, o que Wittgenstein chama de ‘frases gramaticais’, no caso enunciados explicitadores de regras que estão no fundamento das práticas linguísticas constitutivas de nossa linguagem factual. Parece aqui insurgir-se o pensamento de que se o significado epistêmico de nossas asserções não puder ser analisado em termos verificacionais, então não resta maneira alguma pela qual ele possa ser explicado.
    Há alguns pontos adicionais a serem notados. Um primeiro é que a regra ou procedimento ou método (combinação de regras) verificacional deve constituir a porção do conteúdo da sentença assertiva que tem sido chamada de sentido ou conteúdo epistêmico ou cognitivo ou descritivo ou informativo ou factual. Trata-se daquilo que Frege chamou de pensamento (Gedanke), que seria o portador primário do valor-verdade.
     Um segundo ponto que devo notar é que se o pensamento, o conteúdo epistêmico expresso pela frase assertiva, é o portador primário da verdade, e se o pensamento é a regra de verificação da frase, então, obviamente, a regra de verificação é o portador primário da verdade. Assim, dizer que uma frase declarativa éd verdadeira é uma maneira indireta de se dizer que o pensamento que ela veicula é verdadeiro, o que, por sua vez, é dizer que a sua regra de verificação, que é o pensamento, é verdadeira. Mais além, dizer que a regra de verificação é verdadeira nada mais é do que dizer que ela é efetivamente aplicável. Por outro lado, dizer que o pensamento, o conteúdo epistêmico, é falso, é dizer que a regra de verificação que o constitui não é efetivamente aplicável. Isso tem ao menos uma consequência interessante, pois quer dizer que a regra de verificação vem associada tanto à verdade quanto à falsidade do pensamento que constitui ou da frase que exprime, não sendo necessário recorrer a uma regra de falsificação, como alguns especularam.
     Aquilo a que a regra de verificação se aplica é o fazedor da verdade, que podemos chamar de fato.[9] Considere a frase “Frege era barbudo”. Aqui a regra de verificação se aplica a um fato no mundo, logo a frase é verdadeira. Considere agora o enunciado “Russell era barbudo”: aqui a regra de verificação não se aplica a nenhum fato no mundo, logo a frase é falsa. (Por ser assim torna-se claro que não existem propriamente fatos negativos: a frase “Russell não era barbudo” não se aplica ao fato negativo de ele não usar barba. Pois “Russell não era barbudo”  quer dizer o mesmo que “É falso que Russell era barbudo”, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que “A regra de verificação para a asserção ‘Russell era barbudo’ não se aplica a nenhum fato que a satisfaça”, ou seja, que o fato positivo de Russell ser barbudo não existe.)
     Outro ponto, acentuado por Wittgenstein, é que geralmente há uma variedade de maneiras de se verificar (ou falsificar) um enunciado, cada maneira constituindo um diferente aspecto do seu significado. Como ele notou:

A consideração do modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge ganhou a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, obviamente não é o significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não é a disjunção ‘eu vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se excluirmos qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós alteraremos o seu significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós excluíssemos da verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se excluíssemos todos os meios de verificação, isso destruiria o significado. É claro que nem toda espécie de verificação é realmente usada para verificar “Cambridge venceu”, nem qualquer verificação proverá o significado. As diferentes verificações do vencer a corrida de botes ocupam diferentes lugares na gramática de “ter vencido a corrida de botes”.[10]

     Usando o vocabulário wittgensteiniano podemos dizer que a regra verificacional se aplica quando temos a cognição, a tomada de consciência de um fato. Essa cognição pode ser direta, pela satisfação de constelações criteriais de algum modo constitutivas do fato, ou indireta, pela satisfação de critérios que nos permitam inferir esse mesmo fato. A regra de verificação de uma asserção é complexa. Ela é como uma árvore cujas ramificações são sub-regras capazes de verificar o enunciado sob perspectivas as mais diversas. A passagem de Wittgenstein nos convida a fazer uma investigação pragmática precisa e detalhada da estrutura das regras de verificação em diferentes espécies de enunciados. Esse é um empreendimento importante que não foi pelo que me consta tentado. No que se segue quero limitar-me, porém, a responder às principais objeções ao princípio da verificabilidade assim entendido.
    
A objeção da inverificabilidade do próprio princípio
A primeira e mais notória objeção ao princípio da verificabilidade é que ele é auto-aniquilador. O argumento é o seguinte. O princípio da verificabilidade deve ser tautológico ou sintético. Tautológico, ou seja, analítico,[11] ele não pode ser, pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece claramente informativo. Além disso, enunciados analíticos são auto-evidentes e a sua negação é incoerente, o que não parece ser o caso do princípio da verificabilidade. Por conseguinte, ele é sintético. Mas se é sintético, então ele precisa ser destituído de sentido, posto que quando tentamos aplicar o princípio da verificabilidade a ele mesmo, descobrimos que ele é inverificável. Como conseqüência, o princípio é destituído de significado pelos seus próprios standards...
     Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o princípio da verificabilidade de fato não possui valor-verdade, pois ele não passa de uma recomendação metodológica, de uma prescrição, de uma proposta.[12] A. J. Ayer defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma opção mais convincente... Todavia, um ouvinte teimoso de outra convicção poderia responder que simplesmente não sente a necessidade de optar por coisa alguma... Na verdade, a resposta de Ayer não parece apenas ad hoc. Ela vai contra a sugestão wittgensteiniana de que aquilo que estamos fazendo é tão somente analisar as intuições subjacentes à nossa linguagem natural em busca de princípios gerais nela embutidos. Por isso, impor à nossa linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e mesmo confusivo como meio de esclarecer o significado.
     Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de Wittgenstein de que tal princípio nada mais deve fazer do que exprimir nosso entendimento do que é efetivamente caucionado pela linguagem cotidiana, de modo a formar uma frase gramatical expressiva de uma condição que de diversos modos precisa ser satisfeita pela totalidade de nossa linguagem factual. Ora, uma vez que admitimos que o princípio faz explícitas intuições lingüísticas pré-existentes, tornamo-nos autorizados a pensar que ele é analítico, ou seja, que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade entre as expressões ‘significado ou conteúdo epistêmico de uma sentença declarativa’ e ‘o modo (ou os modos) como o o seu valor-verdade é estabelecido’. Assim, tomando p como uma sentença assertiva qualquer e entendendo a palavra ‘regra’ em um sentido que inclui combinações de regras (procedimentos, métodos), podemos definir o significado epistêmico de p através da seguinte proposição analítico-conceitual:

(Df.) Conteúdo epistêmico de p = a regra de verificação para p.

    Contra tal sugestão se poderia ainda ser objetado que, sendo analítico, o princípio de verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua negação ser incoerente, o que não é claramente o caso. Em busca de uma resposta gostaria de começar remontando a uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke. Esse filósofo distinguiu entre conhecimento sensitivo (sintético ou empírico) e relações de idéias (verdades analíticas); as últimas, por sua vez, foram distinguidas como provendo conhecimento intuitivo ou demonstrativo.[13] As frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação é claramente contraditória. Mas nem todas as relações de ideias, as frases analíticas, são intuitivas. A frase “A soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos” exprime conhecimento demonstrativo, mas nem por isso deixa de exprimir uma relação de idéias, sendo (pelo que parece) uma frase analítica. O conhecimento demonstrativo é o que se baseia em demonstrações cujas premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, ou seja, por verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente informativo, ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio da verificabilidade não poderia ser uma relação de ideias demonstrativa expressa por uma frase analítica?
     Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema da geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal, em casos como os teoremas da geometria, é fácil atualizar os caminhos já pré-determinados que conduzissem à sua demonstração. Mas não há um caminho similar para se demonstrar o princípio da verificabilidade.
     A resposta surge quando comparamos o princípio da verificabilidade com enunciados que tal como ele nunca foram demonstrados e que não parecem à primeira vista demonstráveis, mas que através de análise acabam por se revelar verdades demonstrativas encobertas. Isso acontece, por exemplo, com enunciados complexos da linguagem ordinária, cuja verdade necessária não se revela de imediato, mas que a uma análise acabam por demonstrar-se tautologias analíticas. Eis um conhecido exemplo:

Uma mesma superfície não pode em toda a sua extensão ser vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto).

Esse enunciado não é analiticamente intuitivo. Na verdade ele já foi visto e até hoje é visto como um exemplo standard do que poderia ser um juízo sintético a priori.[14] Mas se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro que (i) cores podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem ocupar a mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes, parece daí resultar o caráter analítico do enunciado de que uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde. Eis como esse argumento pode ser melhor organizado:

1        Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.
2        Uma superfície delimita um lugar.
3        (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
4        Cores são coisas que ocupam superfícies.
5        (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.
6        Vermelho e verde são cores diferentes.
7        (5,6) O vermelho e o verde não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.

     Parece-me claro que as premissas 1, 2, 4 e 6 são (se pensadas no contexto adequado) intuitivamente analíticas. Por conseguinte, a conclusão também deve ser analítica, mesmo que não pareça.
     A sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da verificabilidade seja uma verdade analítica demonstrativa encoberta não-trivial, podendo ter o seu caráter auto-evidente esclarecido através de uma elucidação de seus pressupostos. Eis minha maneira de chegar a isso:

  1. Sentidos (significados) são regras ou combinações de regras semânticas.
  2. Conteúdos epistêmicos são espécies de sentidos.
  3. (1,2) Conteúdos epistêmicos são regras ou combinações de regras semânticas.
  4. Enunciados expressam conteúdos epistêmicos (sentidos cognitivos, descritivos, factuais...).
  5. (3,4) Os conteúdos epistêmicos dos enunciados são regras ou combinações de regras semânticas.
  6. Regras semântico-cognitivas são regras criteriais (baseadas em critérios de aplicação).
  7. (5,6) O conteúdo epistêmico de um enunciado depende de regras cognitivas que são também criteriais, ou seja: regras cognitivo-criteriais.
  8. O conteúdo epistêmico de um enunciado depende dos modos de determinação de sua verdade.
  9. Os modos de determinação da verdade do enunciado são constituidos por meio de regras cognitivo-criteriais.
  10. (7,8,9) O conteúdo cognitivo do enunciado depende de regras criteriais que são modos de determinação de sua verdade.
  11. As regras cognitivo-criteriais determinadoras da verdade do enunciado constituem aquilo que chamamos de sua regra de verificabiliade.
  12. (10,11) O conteúdo ou sentido epistêmico do enunciado é constituido por sua regra de verificabilidade.

     Parece-me que as premissas 1, 2, 4, 6, 8, 9, 11 são claramente analíticas, embora as conclusões 10 e 12 não sejam claramente analíticas. Com efeito, as primeiras premissas se demonstram claramente analíticas se pensarmos que os sentidos (fregeanos) devem ser obviamente regras ou combinações de regras, se considerarmos que as asserções têm obviamente sentidos cognitivos dependentes de critérios, sendo as suas regras de significação regras cognitivo-criteriais que não podem ser outras que não as regras determinadoras do valor-verdade daquelas asserções, as quais decidimos chamar de regras de verificabilidade... Como as conclusões 10 e 12 decorrem de premissas analíticas elas também precisam ser analíticas. Como a conclusão 12 enuncia o principio da verificabilidade, este é um princípio analítico-conceitual quod erat demonstrandum.

A objeção do holismo verificacional
Uma objeção sofisticada é a proveniente da generalização da tese de Duheim feita por W. V-O. Quine. Segundo Quine, “nossos enunciados sobre o mundo externo não fazem frente à experiência sensível individualmente, mas em um corpo corporativo”.[15] A implicação anti-verificacionista disso é clara: como o que é verificado é todo um sistema de enunciados, e nunca um enunciado isoladamente considerado, não faz sentido pensar que o enunciado tem uma regra de verificação distintiva, intrínseca, que possa ser identificada com o significado que a ele atribuimos.
     Em meu juízo, se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de que nenhum enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do sistema é perfeitamente correta (ficando em aberto quais e quantos); ela constitui o que poderíamos chamar de um holismo formal ou estrutural. Mas a conclusão insinuada por Quine de que a admissão deste holismo formal destrói o verificacionismo nada tem de segura, pois ela demanda que a admissão de um holismo formal implique em um holismo verificacional, ou seja, relativo aos procedimentos verificacionais concretos e às regras de verificação neles envolvidas. Mas é precisamente isso o que nunca acontece.
     Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é inspirada no fato bem conhecido dos filósofos da ciência, de que enunciados observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses auxiliares para poderem ser verdadeiros. Isso é correto in abstracto; afinal, há uma maior ou menor interdependência entre nossos enunciados, que não podem adquirir valor-verdade em isolamento, o mesmo valendo para os enunciados observacionais. Contudo, se desse holismo formal ou abstrato se segue um holismo verificacional é outra questão. Em meu juízo, a tese de Quine é equívoca porque embora um sistema de enunciados no final das contas deva se confrontar como um todo com a realidade, os seus enunciados não se confrontam nem conjuntivamente nem simultaneamente com a realidade.
     Um exemplo bem conhecido pode esclarecer o que quero dizer. Sabemos hoje que Galileu descobriu a verdade do enunciado: (1) “Júpiter tem luas” pela observação telescópica. Seus contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados da observação telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas filósofos da ciência hoje tem consciência de que eles não estavam de todo destituídos de razão. Pois uma assunção auxiliar para a aceitação da verdade do enunciado “Júpiter tem luas” é que o telescópio seja um instrumento confiável. Ao aperfeiçoar o telescópio Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do telescópio, segundo a qual o poder de ampliação desse aparelho resulta do seu comprimento focal dividido pela distância focal da ocular. Mas para que essa assunção auxiliar fosse garantida, faltava ainda no tempo em que Galileu construiu o seu telescópio, a comprovação de outras assunções auxiliares, como as que constituem as leis da óptica.[16] Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i / sen r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida em 1626 por Snell, enquanto as observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas outras hipóteses auxiliares também assumidas, a verificação feita por Galileu de que o planeta Júpiter tem luas pode ser apresentada como resultado do seguinte argumento indutivo:

  1. Observação telescópica de quatro astros orbitando Júpiter.
  2. (Lei da ampliação do telescópio)
  3. ((sen i / sen r = n2/n1))                       .                                                         
  4. Conclusão: O planeta Júpiter tem luas.

     Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça secundariamente o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria ainda mais o argumento. Da consideração da inclusão dessas e de outras premissas constitutivas de hipóteses auxiliares comprovadas, o defensor do holismo verificacional conclui que o enunciado 4 não possui uma regra de verificação independente, constitutiva de seu conteúdo epistêmico.
     Mas há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que esses enunciados não são conjuntivamente verificados: a inferência da conclusão 4 com base em 1 em boa medida pressupõe uma anterior verificação da premissa 2, que por sua vez em alguma medida pressupõe a verificação da premissa 3 (o que indiquei através dos parênteses). Depois, esses enunciados não foram verificados simultaneamente: Galileu verificou o enunciado 4 como conseqüência direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se realizou pela observação diária que ele fez das variações das posições dos quatro astros alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se deu simultaneamente à verificação dos enunciados 2 e 3. Ele foi posterior à verificação do enunciado 2 e se fosse feito por nós seria também posterior à verificação do enunciado 3, enunciados dos quais também depende a força indutiva da conclusão. Contudo, por serem pressupostas e anteriores, torna-se claro que as verificações de 2 e 3 podem ser separadas da verificação de 4 por 1. O procedimento verificacional do enunciado 4 se restringe ao requerimento da verdade do enunciado 1.
     Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o enunciado observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de raciocíno própria do procedimento verificacional não é

     O
     A1 + A2... + An
     Logo P

Mas sim:

     O
     (assumindo a prévia verificação de A1 + A2... + An)
     Logo P

     Essa pressuposição de uma verificação prévia (maior ou menor) das hipóteses auxiliares pressupostas é o que faz toda a diferença, pois nos permite separar a regra de verificação de P, que associa P diretamente à observação associada a O, das regras de verificação das hipóteses auxiliares, que são assumidas como já tendo sido aplicadas.
     Além disso, podemos claramente distinguir aquilo que verifica cada hipótese auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser verificada através de simples medições empíricas; e a lei da refração de Snell foi estabelecida com base em medições empíricas da relação entre variações do ângulo de incidência da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade que em um nível formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da verificação de outros enunciados, ao nível dos procedimentos cognitivos concretos, a verificação dos enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que nos permite isolar o procedimento ou regra verificacional inerente ao próprio enunciado em questão e identificá-lo com aquilo que fundamentalmente estamos querendo dizer com ele. Ou seja: como os diferentes enunciados auxiliares devem ser verificados em separado e anteriormente ao procedimento que verifica o enunciado, somos capazes de distinguir e individuar o que conta no procedimento em questão, a sua regra de verificação, o que torna o holismo formal inofensivo quando considerado como crítica ao verificacionismo semântico. Por confundir a estrutura formal envolvida com o procedimento verificacional concreto, instanciador da regra verificacional naquilo que lhe torna semanticamente relevante, o argumento de Quine produz a impressão equívoca de que a verificação enquanto tal deva ser um procedimento holístico e que por isso o significado do enunciado não possa ser identificado com uma regra de verificação.
     Finalmente, como cada enunciado tem um sentido que lhe é próprio, torna-se outra vez perfeitamente razoável identificar o sentido do enunciado com o seu modo de verificação, posto que ambos são individuados pelo próprio enunciado e não pelo sistema de enunciados. A conclusão inescapável é que o holismo verificacional não se sustenta, pois a simples admissão do holismo formal, isto é, do fato dos enunciados estarem sempre em alguma medida inferencialmente enovelados uns nos outros, não é suficiente para nos fazer concluir que as suas regras verificacionais não possam ser distinguidas umas das outras de modo a serem identificadas com os significados representacionais de seus respectivos enunciados.
     O exame do que acontece concretamente quando um enunciado é verificado nos mostra que mesmo assumindo um holismo formal, as regras ou procedimentos de verificação são distinguiveis umas das outras na mesma medida dos significados dos enunciados correspondentes – uma conclusão que apenas sugere a esperada correlação entre o significado como conteúdo cognitivo do enunciado e o seu modo de verificação.

O problema da assimetria existencial-universal
Outra objeção é a de que o princípio da verificabilidade só se aplica conclusivamente a frases existenciais, mas não a frases universais. Para verificarmos uma frase existencial como “Algumas peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça de cobre que se expande ao ser aquecida; mas para verificarmos conclusivamente uma frase universal como “Todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, precisaríamos vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro e em seu passado, o que é impossível. É verdade que a universalidade absoluta é uma ficção e que, quando falamos em frases universais, estamos sempre tendo em vista certo âmbito de aplicação. Mas ainda assim o problema permanece. Pois como o próprio caso da expansão do cobre exemplifica, o âmbito de aplicação costuma ser muito mais amplo do que tudo o que podemos efetivamente experienciar, impossibilitando uma verificação conclusiva. Assim sendo e também pelo fato de que as leis científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu a alguns se perguntar se não seria melhor admitirmos que o sentido cognitivo das frases universais é constituido por regras de falsificação ao invés de regras de verificação; seria essa a resposta correta?[17]
      Penso que não. O problema é que, como já foi observado no início, não parece existir uma regra de falsificação do enunciado, assim como certamente não existe uma força desassertiva do pensamento, nem algo como uma regra de desidentificação do nome ou uma regra de desaplicação do predicado. Podemos, por exemplo, falsificar o enunciado “Todos os corvos são pretos” com a verificação do enunciado “Esse corvo é albino”. A regra de verificação desse último enunciado é tal que, se aplicada, falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”. Mas se o significado do enunciado universal fosse uma regra capaz de falsificá-lo, e a regra de verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é, quando aplicada, aquilo que falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”, então parece que devemos admitir que o enunciado “Todos os corvos são pretos” é sinônimo de “Esse corvo é albino” (ou que o último seja ao menos parte do sentido do primeiro, uma vez que sua verificação o falsifica). Mas isso seria absurdo: a regra de verificação para corvos albinos não tem nada a ver com o significado da afirmação de que todos os corvos são pretos.
     Parece, pois, que devemos admitir que o significado do enunciado universal seja realmente a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece inevitável o retorno do problema da inconclusividade da verificação desses enunciados. Não é necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que a objeção da inconclusividade é falha, emergindo do fato de que há um sério engano em nosso reconhecimento usual da forma lógica dos enunciados universais. Basta um breve exame para mostrar que eles são simultaneamente probabilistas e conclusivos. Considere outra vez a frase:

     O cobre se expande ao ser aquecido.

 A sua forma não é:

Afirmo que é absolutamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas,

onde o ‘absolutamente certo’ significa ‘sem possibilidade de erro’. Essa forma seria apropriada para verdades formais como

      Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,

 pois aqui não pode haver erro (exceto erro procedimental, o que deixamos fora de consideração). Mas essa forma não é apropriada a verdades empíricas sobre as quais não vige a certeza lógica resultante das próprias convenções conceituais adotadas. A forma lógica da frase em questão é outra. Ela é a da certeza prática expressa por

Afirmo que é praticamente certo que toda peça de cobre se expande ao ser aquecida,

onde ‘praticamente certo’ significa ‘com uma probabilidade suficientemente elevada para que a possibilidade de erro possa ser negligenciada’. Se aceitarmos essa paráfrase, uma frase como “O cobre se expande ao ser aquecido” se torna conclusivamente verificável, pois podemos claramente encontrar evidências indutivas protegidas por razões teóricas que tornem de modo conclusivo praticamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal não é “├ todo S é P” (usando o símbolo fregeano de asserção), mas:

     ├ é praticamente certo que todo S é P,

e enunciados dessa forma são conclusivamente verificáveis. Essa é mais uma razão para concluirmos que não há nada de errado em identificarmos o significado da frase universal com a sua regra de verificação.

A objeção da indireticidade
Outra objeção comum é a de que a regra de verificação de frases com conteúdo empírico exige tomarmos como ponto de partida observações diretas e intersubjetivamente possíveis dos fatos. Contudo, muitos enunciados não dependem da observação direta para serem verdadeiros, como é o caso de “A massa do elétron é de 9,109 . 10 Kgs elevados à trigésima primeira potência negativa”. Isso nos força a admitir que muitas regras de verificação são indiretas. Como escreveu W. G. Lycan[18], se não admitirmos isso seremos conduzidos a um instrumentalismo grotesco, no qual aquilo que é real será reduzido ao que é intersubjetivamente observado, não existindo mais coisas como eléctrons e suas massas... Mas se, por outro lado, admitirmos que há verificações indiretas, como decidir quais são as observações diretas e quais as indiretas? Não se trata de uma dessas distinções desesperadamente confusas?
     Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com exigências inadequadas. Nossas frases assertivas são proferidas em práticas lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se distinguir a observação direta da observação indireta deve ser sempre relativo à prática lingüística que estamos tomando como modelo. Podemos ser confundidos pelo fato de que (i) nas práticas linguísticas observacionais cotidianas a verificação direta costuma ser considerada aquela resultante da observação virtualmente interpessoal de objetos sólidos, opacos e de tamanho médio, suficientemente próximos, sob iluminação adequada, por observadores em condições normais e com os sentidos desarmados... É assim que a presença da tela de meu computador, da mesa e da prateleira adiante são por mim verificadas. Por ser a forma mais usual de observação, essas práticas tendem a ser vistas como um modelo fundamental para a observação direta, a ser contrastado com, digamos, a observação indireta através de sintomas perceptualmente acessíveis, através de instrumentos óticos, através de espelhos etc. Mas seria um erro infeliz usar esse contraste para avaliar o que acontece em outras práticas linguísticas.
     Para contrastar quero considerar inicialmente (ii) a prática linguística do bacteriologista. Nessa prática o que está em causa é a descrição de bactérias vistas ao microscópio. Nela ver bactérias ao microscópio é o modelo da observação e verificação direta. Mas o bacteriologista pode dizer que verificou indiretamente a presença de um vírus devido a alterações que ele constatou nas células bacterianas que ele viu ao microscópio, usando como modelo de observação direta a observação microscópica. Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista são todas indiretas, a não ser que tenha em mente o modelo de observação das práticas observacionais cotidianas, o que não seria nada usual. Mas até isso é possível dizer, contanto que esteja claro o modelo de comparação que estamos usando.
     Consideremos agora (iii) a prática linguística do paleontólogo. Nela a descoberta de restos fósseis será uma maneira direta de se verificar a existência desses seres em um passado remoto, posto que a observação ao vivo é descartada. Por comparação e contraste com esse modelo, o paleontólogo pode falar de verificações indiretas. Assim, se ele sugere terem vivido hominídeos em certo local apenas por ter encontrados lesões provocadas por instrumentos em ossadas fósseis de animais, essa constatação poderá ser considerada resultante de uma verificação indireta na prática paleontológica, em contraste com o encontro de restos fossilizados de hominídeos.  Claro que na prática linguística do paleontólogo – tanto quanto na prática linguística do bacteriologista – qualquer das verificações poderá ser dita indireta se comparada com as verificações que cotidianamente fazemos de objetos opacos de tamanho médio próximos a nós (modelo da prática (i)). Contudo, essa ambiguidade não costuma ser problemática, a menos que o contexto deixe dúvidas sobre o modelo de comparação que está sendo usado.
     Se a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de uma frase pelo próprio falante será dita direta, ainda que subjetiva, enquanto que a determinação da verdade por outros, com base no comportamento, será geralmente tida (por não-behavioristas) como indireta. Não há aqui uma maneira fácil de comparar com a prática de observação de objetos físicos de tamanho médio para considerar qual delas é a mais direta, visto que elas pertencem a domínios verificacionais muito distintos.
     A conclusão é a de que quando consideramos o que realmente fazemos com as palavras vemos que não há nenhuma dificuldade real em se distinguir entre verificações diretas e indiretas, conquanto tenhamos clareza sobre a prática lingüística no interior da qual essa verificação está sendo considerada, ou seja, sobre o modelo de comparação escolhido. Basta que os falantes compartilhem entre si os pressupostos da prática lingüística em relação a qual o proferimento é avaliado e estejam cientes do modelo de comparação nela empregado para se tornarem capazes de alcançar acordo sobre se a verificação/observação é direta ou indireta.

Contra-exemplos empíricos
Outra espécie de objeção diz respeito a enunciados que possuem sentido, mas que não parecem possuir regra de verificação. Em meu juízo, esse tipo de objeção demanda consideração caso a caso.
     Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, em uma circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de demonstrar coragem, digamos, pouco após o nascimento. Se adicionarmos ao exemplo o pressuposto de que o único meio de verificar se João era corajoso seria pela observação de seu comportamento, esse enunciado se torna logicamente inverificável. Sendo assim, segundo o princípio da verificação esse enunciado não tem significado. Contudo, ele parece ser perfeitamente significativo!
     A resposta é que o enunciado “João era corajoso” nas circunstâncias consideradas apenas aparenta ter significado. Ele pertence ao conjunto dos enunciados que aparentam ter sentido cognitivo, mas não tem. No caso, trata-se de uma frase que possui um sentido gramatical, dado pela combinação do nome próprio não vazio com um predicado. Mas não temos (por suposto) critério para aplicarmos ou não o predicado. Assim, o enunciado não tem função na linguagem e nada é capaz de dizer. Ele faz parte do conjunto de enunciados tais como “O universo duplicou de tamanho essa noite” e “O mundo inteiro surgiu cinco minutos atrás”. Esses enunciados apenas aparentam ter algum sentido factual, pois possuem sentido gramatical e são capazes de sugerir imagens e produzir ilações em nossas mentes. Mas a rigor nada dizem.
     Wittgenstein considerou um caso paralelo em Sobre a Certeza. Considere a constatação “Você está diante de mim agora” feita ao acaso, em circunstâncias normais, por uma pessoa que se encontra diante de outra. Ele sugeriu que tal frase apenas aparenta ter sentido, dado que somos capazes de imaginar situações nas quais ela teria algum uso, alguma função na linguagem, por exemplo, uma situação em que estivesse tão escuro que fosse difícil ao interlocutor identificar o falante.[19] O mesmo se dá com a frase “João era corajoso”. Somos facilmente capazes de imaginar situações contrafactuais na quais ele teria ou não teria demonstrado coragem, preenchendo a frase de significado. Nas circunstâncias supostas, porém, o enunciado não possui sentido.
     O que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também é necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de Java viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado sobre o passado foi plenamente verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de datação. A verificação observacional direta de acontecimentos passados é fisicamente e praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de verificação cuja aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão. Podemos imaginá-la, mas ela não pertence ao que queremos dizer com a frase.
     Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa pedra pousou uma águia há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou mais de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não há nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como se diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e pelo quanto sabemos não é sequer fisicamente realizável (não podemos voltar ao passado). Mas é difícil admitir que enunciados empíricos cuja verificabilidade é apenas lógica sejam verificáveis no sentido próprio do termo, no sentido de possuirem um significado epistêmico ou factual. Pode ser que a distinção entre verificabilidade lógica e empírica seja uma distinção entre níveis de verificabilidade que se pressupõem, correspondendo a níveis de significação. Mas se a verificabilidade de um enunciado pretensamente empírico for apenas lógica, ele será carente de conteúdo cognitivo. Não saberemos o que fazer com ele. Ele não será capaz de cumprir com a função própria de um enunciado empírico, que é a de representar um estado de coisas real ou possível.
   Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a diferença de que a verificação direta é agora fisicamente possível. O proferimento “Daqui a 7 dias irá chover” é indiretamente verificável pela metereologia (que verifica conclusivamente o enunciado “Daqui a sete dias (provavelmente) irá chover”), mas será diretamente verificável em uma semana. O enunciado “Daqui a cerca de onze bilhões de anos (provavelmente) o sol irá se expandir e engolirá Mercúrio” pode ser ao menos indiretamente verificado com base no que sabemos do destino de estrelas como o sol. Já para uma frase como “O primeiro bebê a nascer em Montes Claros em 2040 será do sexo feminino” temos uma regra de verificação que só poderá ser aplicada no futuro e de forma direta, o que nem por isso a invalida enquanto tal. Esses enunciados não são apenas logicamente, mas também fisicamente e até mesmo praticamente verificáveis; o primeiro indiretamente e o segundo diretamente, mas em um tempo futuro. Vemos que não há uma fórmula geral e única para o procedimento verificacional. Parece que a espécie de regra de verificação exigida varia com o enunciado em sua inserção na prática linguística na qual ele é realizado, sendo geralmente a confusão entre casos diversos, pertencentes a práticas diversas aquilo que pode levar-nos a crer que existem enunciados que possuem sentido ou conteúdo epistêmico, mas que apesar disso são inverificáveis.

Contra-exemplos formais
É possível estender a aplicação da tese verificacionista aos enunciados formais da lógica, da matemática e da geometria. Nesse caso a regra verificacional é constituido pelos procedimentos (combinações de regras) formais que demonstram a sua verdade, acrescentando-lhe sentido representacional dentro do sistema formal no qual é considerado. A principal diferença com relação à verificação empírica é que no caso da verificação formal, dispor da regra de verificação já é o mesmo que aplicá-la, posto que os critérios a serem satisfeitos são os próprios axiomas já estabelecidos pelo sistema.
     Um muito falado contra-exemplo a essa sugestão é a conjectura de Goldbach. Essa conjectura costuma ser enunciada como

g = Todo número inteiro par acima de dois resulta da soma de dois números primos.

A objeção é a de que essa conjectura possui significado mesmo que nunca se tenha conseguido prová-la, mesmo que o procedimento verificacional formal para g não tenha sido ainda encontrado. Logo, o significado de f não pode ser uma regra de verificação!
     A resposta a esse argumento é fácil demais e advém da observação de que a conjectura de Goldbach não passa de mera conjectura. Ora, o que é uma conjectura? Não é uma afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da plausibilidade de uma proposição. Assim, a verdadeira forma da conjectura de Goldbach é:

     É plausível que g.

Mas “É plausível que g”, melhor dizendo, “[Afirmo que] é plausível que g”, ou ainda (usando o sinal fregeano da asserção) “├ é plausível que g”, é algo diferente de

     Afirmo que g

 ou “├ g”, que é aquilo que poderíamos dizer se quisessemos enunciar o teorema de Goldbach, ou seja, a conjectura provada. Ora, a regra de verificação do reconhecimento do enunciado de plausibilidade é bem menos exigente do que a regra de verificação capaz de demonstrar g. Se nosso caso fosse o de “Afirmo que g”, a saber, uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra de verificação exigida seria realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso caso é

     [Afirmo que] é plausível que g,

no qual a regra de verificação consiste tão somente em um procedimento verificacional capaz de sugerir que g possa ser provada. Ora, esse procedimento verificacional, essa regra, de fato existe. Ela consiste simplesmente em considerar exemplos de números pares aleatoriamente dados, como 2, 4, 8 e verificar se eles podem resultar na soma de dois números primos, como (respectivamente) 1 + 1, 5 + 3, 17 + 7. E essa regra verificacional não só existe como tem sido aplicada até hoje, sem exceção, a todos os números inteiros pares considerados. Essa é a razão que realmente temos para sustentar a conjectura de Goldbach. Se uma exceção tivesse sido encontrada a conjectura ruiria; ela teria sido provada falsa, pois “├ ~g” é incompatível com

     [Afirmo que] é plausível que g.

     Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. É realmente plausível que g seja o caso. O que não é verificável nem foi verificado é a afirmação de g, o teorema. Essa afirmação não faz realmente sentido, não possui conteúdo epistêmico, posto que ainda não dispomos de um procedimento matemático que a verifique. O erro consiste na confusão de uma suposição com uma afirmação, de uma conjectura com um teorema.
     Em resumo: que a conjectura de Goldbach, como afirmação de plausibilidade, tanto pode ser demonstrada verdadeira como também falsa. Ela é considerada verdadeira porque tem obtido comprovação constante. Ela será falsa se for encontrado um contra-exemplo: um número par acima de 2 que não resulte da soma de dois primos. A conjectura será falseada se for encontrado um caso de inaplicabilidade da regra verificacional que nos mande buscar sempre a soma de dois números primos de modo a resultar no número par em questão.
     Um caso contrastante é o do último teorema de Fermat. Eis como ele costuma ser formulado:

 f = não existem três números positivos x, y e z que satisfazem a equação “xⁿ + yⁿ = zⁿ” se n for superior a 2.

     Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995 Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém poderia aqui objetar que mesmo antes de sua demonstração f já era chamado de ‘o teorema de Fermat’ e que, portanto, fazia sentido como teorema mesmo sem que tivéssemos uma demonstração...
     Mas essa seria uma objeção ingênua. Pois com ela esquecemos que ‘o teorema de Fermat’ é uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema equivocamente, apenas devido ao fato de que antes de sua morte Fermat escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia colocá-la no papel, já que a margem de seu caderno era muito estreita para cabê-la. (Hoje sabemos, aliás, que Fermat não poderia ter escrito isso a sério, visto que a matemática da época não lhe provia de meios para demonstrar a sua conjectura.) Seja como for, a verdade é que f não passava de uma conjectura da forma

     [Afirmo que] é plausível que f,

até que Wiles a demonstrou, só depois disso tornando-se realmente um teorema. Assim, antes de 1995 todo o sentido ou conteúdo epistêmico que podia ser dado a f era na verdade “[Afirmo que] é plausível que f”, uma conjectura que era demonstrada pelo fato de que nunca foram encontrados os números x, y e z capazes de satisfazer a equação. Já o sentido ou conteúdo epistêmico de f, melhor dizendo, “Afirmo que f” ou “├ f” (que muito poucos realmente conhecem) deve incluir a demostração encontrada por Wiles, que nada mais é do que a aplicação de uma extraordinariamente complexa combinação verificacional de regras. (Naturalmente, não podemos cair no erro de confundir o significado gramatical de f com o seu sentido epistêmico. Qualquer identidade absurda, mesmo “Cesar é um número primo”, tem um sentido gramatical.)
     Penso ter refutado os principais argumentos contra o verificacionismo. Os críticos do princípio acertavam em alvos errados pensando ter atingido o princípio da verificabilidade. O que eles atingiram foram as suas próprias malversações do princípio. Quando seguimos a metodologia de Wittgenstein, considerando como a linguagem natural é realmente usada de maneira a tornar seus enunciados significativos, vemos que os modos de verificação são múltiplos e variados. Mas a ideia fundamental de que o significado epistêmico de um enunciado consiste em seus procedimentos verificacionais permanece.





[1] Ver o estudo de C. J. Misak, Verificationism: History and Prospects, cap. 3. Para Peirce o verificacionismo era perfeitamente compatível com a metafísica, que ele via como uma espécie de saber empírico de maior amplitude. Misak é simpática ao verificacionimo de Peirce, que por sua ênfase pragmática se assemelha ao de Wittgenstein.
[2] Como nota Hans-Johann Glock em seu Wittgenstein-Lexikon: “o princípio foi primeiramente defendido pelo círculo de Viena, mas seus membros o atribuem a Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”, p. 354.
[3] A. Ambrose (ed.), Wittgenstein’s Lectures 1932-35 (Amherst: Prometheus Books, 2001), p. 29. Ou, como notou Moritz Schlick, “Enunciar o significado de uma sentença equivale a enunciar as regras de acordo com as quais a sentença é usada, e isso é o mesmo que enunciar o modo como ela pode ser verificada.” In Gesammelte Aufsätze – 1926-1936 (Vienna: Gerold & Co., 1938), p. 340.
[4] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 245.
[5] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 244.
[6] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 47.
[7] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis p. 244.
[8] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, pp. 226, 227.
[9] Ver discussão sobre a natureza ontológica dos fatos no capítulo anterior.
[10] Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-5, p. 29.
[11] Entendo uma proposição analítica no sentido mais usual como sendo aquela cuja verdade decorre da combinação dos sentidos de suas partes constitutivas. Quine (em “Two Dogmas of Empiricism”) rejeitou esse conceito de analiticidade por este se basear no conceito demasiado vago de significado. Contudo, a vaguidade em si mesma não é um defeito, a menos que seja confundida com imprecisão. Vago ou não, o conceito de analiticidade cumpre aqui com a sua função de produzir uma definição perfeitamente inteligível e em enquanto tal irretocável (R. G. Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228; ver também H. P. Grice e P. F. Strawson em “In Defense of a Dogma”).
     Também parece falaciosa a rejeição de Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade através de sinonimidade e necessidade, em razão da excessiva proximidade semântica entre os vários conceitos envolvidos (significado, sinonimidade, necessidade...), o que produz, segundo ele, uma quase-circularidade na definição. Afinal, em nossas definições é natural e mesmo indispensável que os conceitos usados pertençam a um mesmo campo semântico. Cadeira, por exemplo, se define como ‘banco com encosto feito para uma só pessoa se sentar’, mas tanto o conceito de cadeira, como o de banco e o de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa definição é quase-circular.
[12] Essa posição foi aceita ou defendida por Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A. J. Ayer (ver C. J. Misak: Verificationism: Its History and Prospects, pp. 79-80).
[13]  John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.
[14]  Ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason, p. 100 ss.
[15] W. V-O. Quine: “Two Dogmas of the Empiricism”, p. 41. Mais tarde Quine restringiu o seu holism, o que não altera a validade de meu contra-argumento.
[16]  Merrilee Salmon: Introduction to Logic and Critical Thinking, p. 276.
[17] Ver C. G. Hempel: “Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11, 1950, 41-63.
[18] W. G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 121-122.
[19] Ver Wittgenstein: Über Gewissheit, sec. 10.