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domingo, 16 de fevereiro de 2020

## COMO EXPRESSÕES REFERENCIAIS REFEREM (6) NOMES PRÓPRIOS: METADESCRITIVISMO

DRAFT G



6
 NOMES PRÓPRIOS (III): METADESCRITIVISMO


Ermanno Bencivenga uma vez notou que nossas convicções filosóficas comportam-se por vezes como pêndulos, que primeiro oscilam para um lado e depois para o outro.[1] Um resultado disso é que, quando consideradas por um período demasiado breve, elas nos oferecem a ilusória impressão de que continuarão para sempre seguindo a mesma direção. A teoria da referência direta dos nomes próprios alegadamente proposta por Stuart Mill não teve uma vida longa. Ela caiu por Terra com o aparecimento das teorias descritivistas de Frege, Russell, Wittgenstein, Strawson, Searle e ainda outros. Parecia então que a verdadeira teoria da referência dos nomes próprios havia sido, enfim, ao menos delineada. Contudo, o que ninguém seria capaz de prever é que algo semelhante à teoria milliana iria renascer, metamorfoseado na forma da teoria causal-histórica dos nomes próprios defendida por Saul Kripke, Keith Donnellan e ainda outros, em um movimento que ainda hoje persiste. Como tentei mostrar no capítulo anterior, não é nem um pouco certo que esse movimento seja definitivo. Com efeito, meu objetivo no presente capítulo é o de inverter a direção do pêndulo na direção de uma teoria essencialmente descritivista, mesmo que preservando algumas consequências imprescindíveis de toda a reflexão produzida pela concepção causal-histórica.
   Minha hipótese de trabalho sobre as teorias descritivistas dos nomes próprios é a de que elas falham por “falta de estrutura”. Um nome próprio não pode estar no lugar de um simples amontoado fortuito de descrições, como pretenderam descritivistas de Frege a Searle. As descrições que compõem o feixe devem ser submetidas a algum princípio estruturador. Por não dar conta da organização interna do feixe, a versão searleana da teoria do feixe perde em poder explicativo, dando a impressão de que as teorias causais-históricas constituem uma opção mais plausível.
   Por força dessa hipótese de trabalho, meu objetivo será mostrar que as descrições constitutivas do significado dos nomes próprios devem satisfazer uma regra mais geral, capaz de lhes hierarquizar valorativamente. As descrições constitutivas do feixe são de fato regras-descrições, ou seja, expressões de regras semântico-cognitivas, as quais devem servir para de algum modo conectar o nome próprio com o seu objeto de referência. A suposta regra estruturadora do feixe de descrições deve ser uma regra de regras, a saber, uma regra de ordem superior, uma meta-regra exprimível por meio de uma meta-descrição. Por isso chamo a versão do descritivismo que irei propor de uma teoria meta-descritivista dos nomes próprios (em alguma medida também um metadescritivismo causal, dado que um indispensável elemento causal acabará sendo a ela implicitamente integrado[2].)
   Há também diferenças de abordagem. Quero começar investigando sistematicamente os tipos de descrições pertencentes ao feixe. Os filósofos que investigaram nomes próprios sempre tomaram como exemplos descrições substitutivas aleatoriamente escolhidas. Quero mostrar que precisamente por serem arbitrariamente escolhidas, tais descrições eram muitas vezes destituidas de qualquer importância real para a identificação do objeto a ser referido pelo nome próprio. Frege, por exemplo, sugeriu que o nome ‘Aristóteles’ pudesse estar no lugar das descrições ‘o maior discípulo de Platão’ e ‘o tutor estagirita de Alexandre o Grande’. E Wittgenstein sugeriu que o nome ‘Moisés’ pudesse estar no lugar da descrição ‘o homem que quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Mas, como veremos, nenhuma dessas quase folclóricas descrições desempenha um papel fundamentador na identificação das pessoas por elas indicadas.

Regras-descrições fundamentais
Há sem dúvida descrições mais e menos importantes associadas ao nome próprio. Considere, por exemplo, o nome ‘Moisés’. A descrição ‘o homem que guiou os israelitas até a Terra prometida’ parece bem mais importante do que ‘o homem que quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Afinal, a falsidade da última descrição traria muito menos consequências que a falsidade da primeira.
   Com o fito de hierarquizar as regras-descrições, quero distinguir três grupos de descrições definidas atributivas capazes de exprimir partes do conteúdo informativo dos nomes próprios: os grupos A e B, contendo o que chamarei de descrições fundamentais, e o grupo C, contendo aquilo que chamarei de descrições auxiliares. Quero evidenciar que os grupos A e B são os das descrições realmente relevantes para a identificação do objeto, enquanto o grupo C é o das descrições que, embora frequentemente exemplificadas e de maior ou menor valia para a conexão com o objeto, não chegam a desempenhar um papel realmente importante, ainda que por vezes pareçam. Quero começar procedendo de modo meramente classificatório.
   Vejamos primeiro o que chamei de descrições fundamentais. Para encontrá-las gostaria de proceder atentando para a sua relevância na linguagem. Mas como fazê-lo? J.L. Austin, o filósofo da linguagem ordinária, aconselhava que ao fazermos filosofia tivéssemos à mão o Oxford English Dictionary. Contudo, não podemos buscar aí os tipos de descrição mais importantes associados aos nomes próprios, posto que nomes próprios não se encontram, em geral, dicionarizados. Mas isso não nos deve desanimar. Pois se os nomes próprios não se encontram em geral dicionarizados, pelo menos muitos deles se encontram “enciclopedizados”. Daí o conselho: Se quiseres encontrar as descrições que importam a um certo nome próprio, hás de começar consultando o cabeçalho do seu respectivo verbete nas enciclopédias! Vejamos o que podemos encontrar, por exemplo, no verbete ‘Aristóteles’ do meu pequeno dicionário filosófico da Penguin. Lá está escrito:

Aristóteles = (384 a.C – 322 a.C.) nascido em Estagira, no norte da Grécia, Aristóteles produziu o maior sistema filosófico da antiguidade. (Segue-se uma lista das principais obras de Aristóteles.)

Quando examinamos esse e outros verbetes do gênero para o nome ‘Aristóteles’, o que depreendemos é que eles abreviam especialmente duas regras-descrições, uma estabelecendo o lugar e o tempo de seu nascimento e morte (ao que se adicionam etapas de sua carreira espaciotemporal), a outra estabelecendo as propriedades mais importantes de Aristóteles, aquelas que constituem a razão mesma pela qual aplicamos o nome. Essas propriedades são sobretudo as idéias e argumentos apresentados no opus aristotélico.
   Podemos agora abstrair desse caso concreto dois tipos de regras-descrições fundamentais próprias dos grupos A e B respectivamente:

A) Regra localizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos localização e carreira espaciotemporal do objeto[3].
B) Regra caracterizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos as propriedades mais relevantes do objeto – aquelas que constituem a própria razão pela qual o nomeamos.

Consideremos agora as regras-descrições localizadora e caracterizadora de Aristóteles, separando-as de modo mais explícito. Elas podem ser brevemente resumidas como se segue:

(a) Descrição localizadora do nome ‘Aristóteles’ = a pessoa que nasceu em Estagira em 384 a.C., filho do médico da corte, que viveu a maior parte de sua vida em Atenas, teve de fugir para Assos, retornou a Atenas, mas acabou tendo de fugir para Chalkis, onde morreu em 322 a.C.
(b) Descrição caracterizadora do nome ‘Aristóteles’ = o autor das doutrinas filosóficas relevantes expostas na Metafísica, na Física, na Ética a Nicômano, no Organon, nos Tópicos e nas demais obras que compõem o opus aristotélico.

Tais regras fundamentais podem ser mais e mais descritivamente detalhadas. No caso de Aristóteles elas ultimadamente se justificam pelos testemunhos históricos. Além disso, parece que a regra caracterizadora é nesse caso algo mais relevante, tendo no final maior peso.
   Para evidenciar a importância das regras-descrições fundamentais, eis alguns exemplos de descrições definidas do grupo A, que retiro diretamente do cabeçalho de verbetes da Wikipedia.[4] Eles apresentam como condições de identificação propriedades localizadoras de objetos referidos por nomes próprios:

1.     Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = a pessoa que nasceu na cidade de Três Corações em 1940 e que hoje vive em Santos e nos EUA.
2.     Taj Mahal = um mausaléu construído de 1630 a 1652 perto da cidade de Agra, na Índia, existindo até os dias atuais.
3.     Paris = cidade de mais de dez milhões de habitantes situada no centro norte da França, às margens do rio Sena. Seu surgimento como cidade remonta ao século IX.
4.     Amazonas = o rio que nasce nas montanhas do Peru e desagua no atlântico, seguindo a linha do equador. Junto aos seus afluentes ele forma a maior bacia hidrográfica do mundo. Existe desde tempos imemoriais...

É preciso notar que a descrição localizadora possui ao menos um elemento caracterizador, que consiste na discriminação do tipo de objeto a ser referido. Assim, Pelé é discriminado como sendo uma pessoa, o Taj Mahal como um mausaléu, Paris como uma cidade, o Amazonas como um rio, Vênus como um planeta... Esse mínimo de caracterização é indispensável para que a descrição localizadora chegue a fazer sentido.
   Que as regras-descrições do grupo B também são fundamentais você também pode comprovar consultando os cabeçalhos dos mesmos verbetes em enciclopédias em geral. Na mesma ordem, eis o que eles resumidamente dizem:

1.     Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = o mais famoso jogador de futebol de todos os tempos.
2.     Taj Mahal = o belíssimo mausaléu de mármore feito pelo imperador Shah Johan para a sua esposa favorita, Aryumand Bam Began...
3.     Paris = a capital da França, centro econômico e turístico do país e uma das mais belas cidades do mundo.
4.     Amazonas = o mais caudaloso e provavelmente também o mais longo rio do mundo, responsável por 1/5 da água doce que desagua nos oceanos.

É basicamente em razão da importância das propriedades denotadas por tais descrições definidas que esses nomes são usados por nós. Elas podem ser consideradas de essencial importância na medida em que resultam da concordância entre usuários privilegiados acerca do que seriam as propriedades objetivas mais fundamentais associadas aos respectivos nomes.

Regras-descrições auxiliares
Quero agora considerar as descrições definidas que ficaram de fora, a saber, as descrições auxiliares, pertencentes ao grupo C. Elas constituem um grande número de descrições que por vezes no quotidiano usamos no lugar do nome. Por isso mesmo, como já sugeri, elas por vezes confundiram os filósofos dificultando a detecção do que é mais importante. No que se segue apresento uma classificação que, apesar de assistemática, pode ser útil.
   (1) Um primeiro caso do grupo C é o de descrições que podem ser chamadas de metafóricas, frequentemente usadas no lugar do nome próprio. Exemplos são descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘a águia de Haia’, ‘a cidade luz’, ‘a dama das camélias’. As propriedades que elas aludem não são, em geral, as que chamam atenção por sua peculiaridade. Mas elas nos chamam atenção como sugestivos e pitorescos artifícios mnemônicos. Assim, ‘o marechal de ferro’ chama atenção por apontar para uma característica marcante do marechal Floriano Peixoto, que foi o seu caráter autoritário e intransigente. Mas isso é de pouca monta no sentido de nos permitir identificar univocamente Floriano Peixoto, pois existiram muitos outros marechais com traços de caráter semelhantes. O que mais propriamente nos permite identificar Floriano Peixoto é, certamente, saber que ele satisfaz a descrição localizadora (a) de ter sido ‘a pessoa nascida em Joazeiro em 1839, que esteve na guerra do Paraguai e no Acre e que veio a falecer em Barra Mansa em 1895’, além da descrição caracterizadora (b) de ter sido ‘o segundo presidente e o primeiro vice-presidente do Brasil, responsável pelos atos de repressão que consolidaram a república’, ambas encontradas em enciclopédias.
     (2) Há também regras-descrições auxiliares não-metafóricas, que podemos classificar como acidentais, apesar de bem conhecidas. Exemplos de descrições acidentais bem conhecidas são ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo pela filha do faraó’ e ‘o tutor de Alexandre o Grande’. Essas descrições são conhecidas pela maioria das pessoas que sabem os significados dos respectivos nomes ‘Moisés’ e ‘Aristóteles’. Mesmo assim são acidentais, pois certamente nem Moisés nem Aristóteles deixariam de ser quem se acredita que foram se elas fossem descobertas falsas.
   A esse tipo pertence também uma descrição muito peculiar, que é aquela da forma ‘o portador do nome ‘N’’, por exemplo, ‘o portador do nome ‘Aristóteles’’. Embora conhecidas e exploradas em implausíveis teorias metalinguísticas dos nomes próprios, as descrições dessa forma são acidentais, pois ninguém deixaria de ser quem é, nem de ser identificável como quem é, se tivesse recebido um nome diferente ou se tivesse mudado seu nome. Com efeito, é um mero acidente que Aristóteles tenha sido batizado com o nome ‘Aristóteles’, enquanto não parece ter sido igualmente acidental para nós o fato de ele ter escrito o opus aristotélico ou de ser um filósofo antigo. Se em um mundo possível Nicômaco, o médico da corte de Felipe, ao invés de ter batizado o filho nascido em Estagira em 384 a.C. de ‘Aristóteles’, o tivesse batizado com o nome de ‘Pitacus’, e se Pitacus tivesse estudado com Platão, escrito todo o opus aristotélico e tido exatamente o mesmo curso de vida de Aristóteles, nós não hesitaríamos em dizer que nesse mundo possível Pitacus teria sido o nosso Aristóteles.[5] Que a regra-descrição da forma ‘o portador do nome ‘N’’ não é fundamental para a identificação de um objeto particular se deixa comprovar pelo fato de que podemos utilizar um nome próprio e, após descobrirmos que ele é incorreto, substituí-lo pelo nome correto da mesma pessoa. Além disso, podemos saber quem é uma pessoa – onde e quando encontrá-la e saber o que é importante acerca dela – sem nos recordarmos ou sem sequer sabermos como ela se chama. Parece, pois, que o nome próprio entendido como uma marca sensível é como o rótulo de um fichário que contém as regras-descrições mais e menos relevantes; podemos trocar o rótulo, mas o que realmente importa é o conteúdo do fichário (mesmo que alguma marca sensível seja necessária para dizermos qual o fichário que estamos considerando, ela é no final das contas contingente).
   Essas considerações nos levam a uma conclusão curiosa. Se admitirmos que em nossas reflexões sobre a linguagem uma explicação filosoficamente relevante é aquela que tem um importe epistemológico ou metafísico[6], então uma teoria filosófica da semântica dos nomes próprios não é uma teoria sobre aquilo que chamamos de nome próprio na linguagem corrente, que é a marca sensível do nome, a sua expressão fonética ou ortográfica, o que podemos chamar de expressão simbólica do nome. Essa expressão é aquilo que faz com que, por exemplo, a palavra ‘Köln’ possa ser tida como um nome diferente de ‘Colônia’. Uma teoria filosoficamente relevante dos nomes próprios precisa ser uma teoria dos conteúdos semânticos constitutivos dos nomes próprios, capaz de explicitar os mecanismos de referência contidos nas regras-descrições relevantes associadas aos nomes como marcas sensíveis; ela é uma teoria do fichário e não do seu rótulo, que embora requerido é enquanto tal contingente, pois pode variar[7].
   Podemos fazer aqui uma distinção paralela a que já vimos entre o sentido lexical e o conteúdo semântico dos indexicais. O sentido lexical do nome próprio é o de um termo usado para nomear um objeto particular; esse sentido pode ser indicado por descrições do tipo ‘o portador do nome ‘N’’. Uma teoria do sentido lexical do nome próprio é possível, mas lhe faltará importe epistêmico, posto que ela não nos permitirá distinguir qual é o portador do nome. Uma teoria do conteúdo semântico do nome próprio, por sua vez, será uma teoria da sua significação cognitiva, dos seus sentidos fregeanos, daquilo que há de comum entre as regras estabelecedoras dos critérios de identificação de seus portadores. Só semelhante teoria terá força explicativa para esclarecer a relação epistêmica entre o nome próprio e o seu objeto. Mas por isso mesmo para ela a marca sensível de um nome próprio torna-se, no final das contas algo acidental, pois se admite que um conjunto de marcas sensíveis diversas possa convencionalmente exprimir um idêntico ou similar conteúdo semântico sem com isso deixar de produzir um ato de nomeação do mesmo objeto. Nesse caso sim, chamamos essas marcas sensíveis de ‘expressões simbólicas’ do nome próprio. Por isso para nós o nome próprio é um conteúdo semântico identificador acrescido de alguma marca sensível convencionada que torne esse conteúdo comunicável.[8]
(3) Há também regras-descrições acidentais e geralmente desconhecidas. Exemplos são ‘o marido de Pitias’, ‘o amante de Herphylis’, ‘o neto de Achaeon’. Poucos sabem que essas descrições se associam todas ao nome ‘Aristóteles’. Tais descrições definidas podem, naturalmente, ser multiplicadas à vontade, sendo encontradas aos montes em biografias. Considere, por exemplo, a descrição definida: ‘o filósofo austríaco que ao se engajar como soldado na Primeira Guerra Mundial ameaçou suicidar-se caso seus superiores não o enviassem a lugares realmente perigosos’, que faz parte da biografia de Ludwig Wittgenstein.[9] Por serem conhecidas de alguns poucos, elas não têm função relevante em sua associação com o nome próprio. Imagine que tudo o que um falante sabe de Aristóteles é que ele foi o neto de Achaeon. Ele não será capaz de fazer uso desse nome de modo a comunicar-se com outras pessoas em geral, pois a falta de compartilhamento da descrição não auxilia as pessoas a reconhecerem no nome ‘Aristóteles’ por ele usado o filósofo grego ao invés de, digamos, o milionário grego Aristóteles Onassis.[10]
   (4) Finalmente, há descrições auxiliares adventícias, como a expressa pela descrição ‘o filósofo mencionado pelo professor’ ou ‘a senhora que nos foi apresentada na reunião’. As regras aqui expressas associam o nome ao contexto no qual foi propriamente usado. Elas são provisórias. Elas costumam ser constituidas, usadas por algum tempo e depois abandonadas e esquecidas, não sendo por isso constituintes semânticos permanentes e característicos do nome. Contudo, por se reportarem a um contexto conhecido por um grupo de falantes em um certo período de tempo, tais regras podem bastar para que um falante seja capaz de usar o nome próprio em conversação de modo que ele seja univocamente reconhecido pelos seus interlocutores, com a possibilidade de subsequente troca de informações sobre o seu portador.
   Nesse ponto poderia ser feita a seguinte objeção. Afora o fato de constarem nos cabeçalhos dos verbetes das enciclopédias, não parece haver maiores razões para se privilegiar as descrições ditas fundamentais. Afinal, do mesmo modo como as descrições auxiliares são contingentes, o mesmo pode acontecer com as próprias descrições fundamentais: é perfeitamente possível que Aristóteles não tivesse escrito suas obras filosóficas, que Pelé não tivesse se tornado jogador de futebol, que o Taj Mahal não tivesse sido construído perto de Agra! Podemos, afinal, imaginar mundos possíveis nos quais nada disso seja o caso, mas onde mesmo assim atribuimos existência a Aristóteles, Pelé e o Taj Mahal. As descrições fundamentais não designam, pois, uma essência necessária ao portador do nome próprio. Em contrapartida, podemos identificar um único objeto por meio de uma descrição auxiliar: para saber que alguém está falando de Aristóteles pode ser suficiente saber que ele fala do fundador do Liceu, ou do tutor de Alexandre, ou quem sabe até mesmo do amante de Herphylis.
   A única coisa que posso fazer diante dessa objeção é pedir ao leitor paciência. Só após a introdução de regras de ordem superior capazes de selecionar as combinações de regras-descrições de primeira ordem capazes de justificar a aplicação de um nome próprio é que a importância das descrições dos grupos A e B se tornará iniludível.

A regra disjuntiva
Cumpre, pois, antes de tudo, demonstrar que há meios de distinguir quais as combinações entre as descrições do feixe que licitam a aplicação referencial do nome próprio. Para tal precisamos buscar uma regra-descrição de segunda ordem capaz de se aplicar às regras-descrições de primeira ordem associadas a um nome próprio qualquer, de maneira a selecionar as combinações que tornam a aplicação do nome possível. Essa regra de regras deve ser, portanto, uma meta-regra, uma regra meta-descritiva aplicável aos feixes de descrições que associamos a nomes próprios em geral.
   Como encontrá-la? Para começar podemos descartar como insuficientemente relevantes as descrições do grupo C. Elas são identificadoras apenas no sentido de auxiliar na conexão do falante com o objeto, na medida em que possibilitam a sua inserção em um meio comunicacional que já tem como pressuposto que as verdadeiras regras de identificação do objeto capazes de concluir essa conexão já são conhecidas, senão por todos, ao menos pelos usuários privilegiados do nome ou pelo conjunto desses usuários privilegiados. A evidência que podemos oferecer para isso é que as descrições auxiliares podem estar ausentes, mesmo em seu conjunto: podemos imaginar que Aristóteles não tivesse sido nem o maior discípulo de Platão, nem o tutor de Alexandre, nem o filho de Nicômano, nem o marido de Pítias, nem o fundador do Liceu, e que mesmo assim fosse o grande filósofo grego por nós conhecido. Contudo, o mesmo não pode ser dito das descrições fundamentais. Não podemos conceber que nem a descrição localizadora nem a descrição caracterizadora se apliquem; não podemos conceber “~A & ~B”.  Para evidenciar isso, basta lembrarmo-nos do exemplo dado por Searle do especialista em Aristóteles que veio nos informar ter descoberto que Aristóteles não escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um ignaro mercador de peixes veneziano do renascimento tardio...[11] Nós responderemos que na melhor das hipóteses ele poderá estar falando de outra pessoa de nome Aristóteles, mas que ela não tem nada a ver com a pessoa que temos em mente. E a razão disso é que nenhuma das regras-descrições fundamentais que associamos ao nome ‘Aristóteles’ está sendo minimamente satisfeita.
   Se a regra meta-identificadora exclui “~A & ~B”, incluiria ela “A & B”? Deveria ela exigir a conjunção da descrição localizadora com a descrição caracterizadora, ou somente rejeitar a sua disjunção? Ainda que usualmente os objetos referidos pelos nomes próprios satisfaçam uma conjunção de condições dos grupos A e B de descrições, é muito fácil conceber situações e casos incomuns em que o nome se refere sem que a condição pertencente a um desses dois grupos seja satisfeita.
   Para evidenciar esse ponto considere uma vez mais o nome ‘Aristóteles’. Não é difícil imaginar mundos possíveis próximos ao nosso, nos quais ele existiu sem satisfazer a conjunção das regras de localização e de caracterização para Aristóteles. A regra de localização para Aristóteles não precisa necessariamente se aplicar: podemos perfeitamente conceber um mundo possível próximo ao nosso no qual Aristóteles escreveu o opus aristotélico, mas nasceu e morreu em Roma alguns séculos mais tarde, não tendo existido nenhum discípulo de Platão chamado Aristóteles e nascido em Estagira no século IV a.C. Mesmo assim, não hesitaremos em reconhecer nele o nosso Aristóteles, posto que ao menos a regra de caracterização continua sendo satisfeita.
   Podemos também conceber um mundo possível nos qual somente a regra de localização para Aristóteles é satisfeita, mas não a regra de caracterização, pois nele a filosofia de Aristóteles nunca existiu. Suponha que nesse mundo Aristóteles tenha nascido em Estagira em 384 a.C., filho de Nicômano, médico da corte de Felipe, e que aos 17 anos ele tenha viajado para Atenas para estudar com Platão. Infelizmente, pouco após a sua chegada ele foi acometido de uma febre cerebral que o incapacitou para atividades intelectuais pelo resto da vida, até a sua morte em Chalkis em 322 a.C. Apesar disso, parece que temos elementos suficientes para reconhecer nessa pessoa o nosso Aristóteles “em potência”. Mas aqui só a regra de localização está sendo satisfeita.
   Outra evidência de que a satisfação da conjunção das regras identificadoras não é necessária é que há nomes próprios que por convenção se referem a um objeto somente através de sua localização ou então somente através de sua caracterização.
   Como exemplo do primeiro tipo, suponhamos que alguém decida chamar de Z o centro de um círculo. Esse ponto satisfaz a condição do tipo A de ter localização espaciotemporal definida, mas para que a identificacão seja feita não é preciso que o ponto possua nenhuma característica distintiva relevante. Em nosso exemplo ele é apenas um ponto que uma vez estabelecido pode ser usado, digamos, para que se efetuem mensurações geométricas.
   Outro exemplo que pode ser nesse contexto lembrado é o do nome ‘Vênus’. A regra de localização é ‘o segundo planeta do sistema solar, orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra enquanto tem sido identificado como tal e provavelmente já há milhões de anos’, enquanto a regra de caracterização é ‘um planeta com um terço da massa da Terra e densa atmosfera’. Contudo, o que importa aqui é que a regra de localização seja satisfeita, a regra de caracterização quase nada importando. Se Vênus perdesse parte de sua massa ou se perdesse a sua atmosfera, que o torna o planeta brilhante que vemos, conquanto continuasse a ser um planeta (uma demanda já incluída na regra de localização), ele continuaria a ser Vênus. Podemos imaginar que Vênus perca tanto de sua massa que se torne do tamanho de um asteróide. Mas nesse caso ele deixaria de ser um planeta para ser um asteróide, deixando de satisfazer a própria regra de localização. Podemos ainda imaginar que ele deixe de orbitar o sol. Mas nesse caso ele não deixará de satisfazer a regra de localização, pois no tempo em que foi denominado Vênus pelos astrônomos ele ainda orbitava o sol. Mesmo que seja descoberto que ele não pertenceu ao sistema solar primitivo, tendo vindo do espaço há um milhão de anos atrás, ainda assim ele satisfará a regra de localização.
   Uma maneira de se parafrasear o que acontece em tais casos é dizer que neles a regra de caracterização é a própria regra de localização. Lembremo-nos que a regra de caracterização foi definida como a razão pela qual escolheu-se usar o nome próprio. Mas no caso do centro Z do círculo essa razão é a própria localização e no caso de Vênus a regra de localização é a razão que realmente conta.
   Também existem exemplos que exigem apenas a satisfação da regra de atribuição. Um deles é oferecido pelo nome ‘Almostásim’, que aparece no conto de Borges intitulado El aciercamento de Almostásim. Almostasim é um ser, possivelmente uma pessoa, que pelo contato com as outras emana perfeição. Alguns acreditam que podemos nos aproximar dele pelo contato com outros seres humanos que tenham se tornado repositórios limitados de sua ilimitada grandeza. Apenas nessas indicações vagas se constitui a regra caracterizadora desse nome. Mas não há uma regra identificadora de sua localização espaciotemporal, pois ninguém jamais encontrou Almostásim e alguns até mesmo negam que ele exista.
   Há, finalmente, um exemplo de nome próprio que por definição não pode ter regra de localização: trata-se da palavra ‘Universo’ (ou ‘Multiverso’, como alguns preferem). O objeto referido por esse nome tem regra de caracterização: ele é tudo o que poderia ser comprovado como empiricamente existente. Mas ele não pode ter regra de localização espaciotemporal, pois ao conter todo o espaço e todo o tempo, o Universo não pode estar nem no espaço nem no tempo.[12]
   Ora, se excluirmos a possibilidade de  “~A & ~B” e a necessidade de “A & B”, é forçoso que a condição meta-descritiva usual para a aplicação do nome próprio seja “A ˅ B”, ou seja, uma disjunção inclusiva das descrições localizadora e caracterizadora. Dessas considerações segue-se uma primeira e mais rudimentar versão da regra referencial meta-identificadora para os nomes próprios, a ser aplicada a regras-descrições fundamentais de primeiro nível pertencentes aos grupos A e B. Chamo-a de regra disjuntiva:

     RD:
Um nome próprio ‘N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G de objetos
see,
(i-a) x satisfaz sua regra de localização L
 e/ou
(i-b) x satisfaz sua regra de caracterização C.
(assumindo a satisfação de Cc)

Para exemplificar: podemos aplicar o nome próprio ‘Aristóteles’ a um objeto da classe dos seres humanos se e somente se existe um indivíduo que (i-a) satisfaz a regra de localização para ‘Aristóteles’, que é a de ter nascido em Estagira em 384 a.C. tendo vivido a principal parte de sua vida em Atenas... e falecido em Chalkis em 322 a.C. e/ou (i-b) satisfaz a regra de atribuição de ‘Aristóteles’, que é a de ter produzido o conteúdo do opus aristotélico. Essa instanciação de RD já pode ser considerada uma regra de identificação para o portador do nome ‘Aristóteles’. Não obstante, uma regra de identificação que tenha essa forma ainda é, como veremos mais tarde, demasiado rudimentar.
   Algumas considerações adicionais sobre RD precisam ser feitas. A primeira é a de que digo “N refere-se propriamente ao objeto x” entendendo por isso que a referência feita por um usuário idealizado do nome que realmente conhece a regra, o que costuma ser somente o caso dos usuários privilegiados, embora não necessariamente. Trata-se aqui de uma referência própria no sentido de que é feita com suficiente base cognitiva, o que geralmente não acontece quando uma pessoa emprega nomes como ‘Murray Gell-Mann’ e ‘Isaac Newton’ sem saber propriamente sobre quem está falando.
   A segunda consideração adicional é a de que a classe G é algo equivalente ao genus proximum, com a função limitadora de estabelecer o gênero de coisas mais relevante ao qual x pertence. O recurso à classe G serve para limitar previamente o escopo da definição, pois sem isso teríamos de escolher um entre todos os objetos do universo, o que consumiria demasiado tempo. Para o nome ‘Aristóteles’, por exemplo, G pode designar a classe dos seres humanos. Com isso excluimos de antemão que ‘Aristóteles’ seja o nome de um colégio ou de um programa de computador. Mesmo que em um mundo possível um programa de computador denominado ‘Aristóteles’ produzisse o opus aristotélico, não teríamos com base nisso razão para admitir que ele fosse o nosso Aristóteles, até mesmo no caso em que ele fosse construído por alienígenas no ano 384 a.C. em Estagira, utilizado por mais de vinte anos em Atenas e finalmente desmantelado em 322 a.C. em Chalkis. Preferiríamos considerar essa uma coincidência ou uma falsificação. O recurso a uma classe G mais estrita pode ser particularmente útil para desambiguar os nomes próprios. Se G for entendida como a classe dos filósofos antigos, fica de antemão excluido que Aristóteles possa ser um grande armador grego que viveu no século XX ou o nome de um aluno do curso de filosofia da UFRN.
   Aqui poderia ser feita a seguinte pergunta: em RD as descrições auxiliares desaparecem; mas então qual é o papel das descrições auxiliares? A resposta começa a emergir quando nos perguntamos se as descrições auxiliares sozinhas seriam capazes de identificar o portador de um nome próprio. Suponha que certo objeto satisfaça muitas ou todas as descrições auxiliares associadas ao seu nome, mas sem satisfazer nenhuma das descrições fundamentais. Suponha que um certo Aristóteles tenha vivido no século XVI em Veneza e que ele tenha sido um mercador de peixes intelectualmente obtuso. Mas suponha que mesmo assim ele satisfaça a maioria as descrições auxiliares para esse nome. Suponha que ele tenha sido filho de um um homem chamado Nicômaco, neto de Achaeon, que ele tenha sido marido de Pítias e amante de uma Herphylis e que tenha fundado um Liceu e ensinado um tal de Alexandre. Ora, por mais notáveis que fossem essas coincidências, elas não seriam relevantes, pois lhes faltariam os contextos apropriados de localização e caracterização.  Afinal, esse Nicômaco não poderia ser o médico chamado Nicômano que sabemos ter trabalhado na corte do Felipe da Macedônia, nem o avô Achaeon pode ser aquele mesmo que viveu no século IV a.C. Nem Pítias nem Herphylis poderiam ser mulheres da Grécia antiga, apesar dos nomes. O Alexandre que esse falso Aristóteles ensinou não poderia ter sido o maior conquistador de todos os tempos. E o Liceu que esse inepto fundou não poderia ter nada a ver com o Liceu que preservou o aristotelismo antigo. A barafunda conceitual criada na tentativa de se conceber uma situação na qual só as descrições auxiliares permanecessem as mesmas não é capaz de produzir mais do que uma série de curiosas e estranhas coincidências, que se nos apresentam como uma persiflagem incapaz de nos convencer da autenticidade do Aristóteles proposto. Por mais que se adicionem umas às outras, as descrições auxiliares sozinhas são incapazes de nos prover de uma verdadeira regra de identificação do nome próprio.

Regra meta-identificadora: primeira versão
Embora a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições que realmente importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um lado estreita demais e de outro ampla demais. Afinal, logo veremos que há casos de aplicação nos quais somente uma das regras-descrições fundamentais é apenas parcialmente satisfeita, enquanto a outra não é satisfeita de modo algum e mesmo assim o nome possui referência. Pior ainda, podemos imaginar casos de aplicação do nome próprio nos quais ambas as regras fundamentais são aplicáveis e mesmo assim o nome não possui referência!
   Consideremos primeiro um caso que demonstra a estreiteza da aplicação da regra disjuntiva. Trata-se do caso óbvio no qual a regra localizadora é mesmo incompletamente satisfeita enquanto a regra caracterizadora não é nem um pouco satisfeita, mas mesmo assim o nome próprio se aplica. Imagine um mundo possível próximo ao nosso, uma situação contrafactual na qual não existiu a filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles que morreu ainda jovem, pois o seu navio afundou no mar Egeu quando ele decidiu viajar para Atenas para estudar com Platão. Mesmo assim, se soubermos que ele nasceu em Estagira em 384 a.C., que foi filho do médico Nicômano da corte de Felipe e que foi enviado pelo avô Achaeon para Atenas aos 17 anos se tornar discípulo de Platão, não teremos dúvida de que se trata de nosso Aristóteles “em potência”, mesmo que RD não chegue a ser satisfeita. A regra localizadora foi parcialmente satisfeita, uma vez que as informações que temos do curso de vida de Aristóteles depois dos 17 anos desapareceram. Já a regra caracterizadora não foi em nada satisfeita, visto que esse jovem cuja vida fora truncada pelo destino nada deixou escrito.
   Consideremos agora um caso no qual só a regra caracterizadora é satisfeita e mesmo assim de modo incompleto. Imagine um mundo possível próximo ao nosso no qual não existiu nenhum Aristóteles e nenhuma obra aristotélica no mundo antigo, embora tenha existido Platão e os outros filósofos gregos. Imagine que nesse mundo, no século XII, em Córdoba, um filósofo árabe que leu toda a filosofia grega disponível tenha escrito em grego antigo partes da obra de Aristóteles, incluindo o Organon e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o pseudônimo de ‘Aristóteles’ (ou, se quisermos, que tenha escrito em árabe todo o conteúdo ideativo e argumentação relevante do opus aristotélico). Em tal situação, na qual não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos, embora com alguma relutância, a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles nesse mundo.
   Claro que há limitações para esse procedimento. Se, em um mundo possível similar ao nosso no qual a filosofia aristotélica nunca existiu, em 384 a.C. em Estagira o médico da corte não fosse Nicômano, mas apesar disso ele teve um filho que foi chamado de Aristóteles, o qual morreu pouco após o seu nascimento, teremos dificuldade em crer que ele tenha sido o nosso Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo Aristóteles tivesse escrito apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós provavelmente não o reconheceríamos como o nosso Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como estranhas e inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-identificadora disjuntiva deva ser completada por uma condição exigindo que as regras-descrições fundamentais sejam apenas suficientemente satisfeitas de acordo com as circunstâncias dadas, não precisando, pois,  ser completamente satisfeitas.
   Consideremos agora o caso em que as descrições caracterizadoras são conjuntivamente satisfeitas, mas apenas de modo parcial. Nesse caso parece que o limite mínimo de satisfação exigido para cada descrição se tornaria menor do que o limite mínimo para a satisfação da descrição no caso em que somente uma das regras fundamentais fosse incompletamente, mas suficientemente satisfeita. Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um único Aristóteles em 384 a.C., não em Estagira, mas em Atenas, tivesse estudado com Platão, escrito apenas as Categorias e depois morrido, parece que isso já seria suficiente para admitirmos que se trata do nosso Aristóteles. Nesse caso parece que da satisfação insuficiente de cada disjunto resulta uma satisfação suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a exigência de uma satisfação suficiente da disjunção inclusiva deve incluir a consideração da soma da satisfação dos disjuntos.
   Uma dúvida importante que resta é sobre a medida exata do que devemos entender como sendo suficiente. Não creio que exista uma resposta para isso. Afinal, a linguagem empírica é inevitavelmente vaga e nossos critérios de aplicação das palavras não delimitam as suas fronteiras extensionais de maneira cortante. Há sempre casos incertos, acerca dos quais não sabemos se devemos ou não aplicar nossos critérios. Importante é que apesar dessa vaguidade de nossa linguagem natural, somos em geral perfeitamente capazes de nos comunicar sobre os objetos de referência. Por isso a vaguidade da linguagem natural, que supostamente reflete a vaguidade própria das divisões da realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição dessa linguagem, mas um fato a ser admitido, sendo frequente que uma linguagem vaga seja aquela capaz de modular o discurso de maneira mais satisfatória.
   Outro ponto é que o Aristóteles recém-mencionado deixaria de ser o nosso Aristóteles se existisse um ou mais concorrentes que também satisfizessem a regra disjuntiva. Assim, imagine um mundo possível no qual Nicômano tivesse como filhos dois gêmeos idênticos batizados ‘Aristóteles’, que eles fossem estudar com Platão e que tivessem escrito o opus aristotélico a quatro mãos. Embora seja possível dizer que esse mundo tem dois “Aristóteles”, sob outra perspectiva é possível dizer que esse mundo não tem nenhum Aristóteles, pois um nome próprio é um termo singular que por definição só pode se aplicar a apenas um objeto único e próprio. Essa consideração nos leva a uma nova condição a ser adicionada, que é a de o nome ter apenas uma única e mesma referência. Precisamos admitir como condição de aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma condição de unicidade, qual seja, a de que no domínio considerado somente um único e mesmo objeto satisfaça a regra disjuntiva.
   O principal caso no qual a condição de unicidade deixa de ser satisfeita é aquele em que a regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra de atribuição é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1 no qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em Estagira em 384 a.C., mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não fez coisa alguma em filosofia até sua morte em Chalkis em 322 a.C., e (b) um filósofo de nome Aristóteles, que escreveu boa parte do opus aristotélico em Roma cerca de duzentos e cinquenta anos mais tarde. Nessas circunstâncias, não temos mais como decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles, se o grego ou o romano, pois as nossas duas regras identificadoras fundamentais entram em conflito uma com a outra. A alternativa mais natural e imediata é abandonarmos a suposição de que nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto que a condição de unicidade do objeto não é satisfeita.
   Esse caso nos faz lembrar do paradoxo do navio de Teseu relatado nos manuais de filosofia. Digamos que esse navio tenha recebido o nome de ‘Calibdus’. No curso dos anos Teseu repôs pouco a pouco as partes do seu navio até que, no final, todas elas foram substituídas. Contudo, alguém decidiu então recondicionar as partes antigas que haviam sido guardadas e com elas construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte: “Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos ao certo o que responder. Uma primeira suposição poderia ser a de que ambos são o navio de Teseu. Mas isso seria contraditório, pois um termo singular não pode se referir a mais de um objeto. A maioria das pessoas tenderá a dizer que o verdadeiro navio de Teseu é aquele no qual ele navegou todos aqueles anos, mas ainda assim restará um desconforto: o segundo navio é o único que é realmente o mesmo que aquele que foi inicialmente construido! O problema não é irrelevante pois, como já foi notado, se os dois navios se chocarem e começarem a afundar, Teseu, que, como todo bom comandante deseja afundar com o seu próprio navio, terá de decidir se permanecerá no velho ou se não deverá antes tentar saltar para o novo.
   O que consideramos até agora já nos permite uma resposta mais segura para esse velho paradoxo. A razão da incerteza se encontra no fato de que percebemos que a questão de saber qual dos dois navios é Calibdus é capaz de se tornar indecidível devido a um conflito criterial entre as duas regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz uma regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma longa carreira espaciotemporal sob o comando de Teseu. A segunda regra, satisfeita pelo segundo navio, pertence ao aspecto caracterizador. Ela nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído com um certo material específico. Percebemos aqui a razão do desconforto.
   Nesse ponto alguém poderá, com razão, objetar que a regra caracterizadora é mais complexa. Ela não diz respeito apenas a um mesmo material, mas inclui características funcionais e estruturais que foram preservadas em ambos os navios. Como consequência, parece que o primeiro navio deve ser o Calibdus comandado por Teseu, pois ele satisfaz mais completamente as regras-descrições fundamentais. Por isso essa costuma ser a primeira ideia que nos vem à mente. Contudo, podemos equilibrar essa diferença aumentando a rapidez da substituição das partes velhas pelas novas, de modo a encurtar a carreira espaciotemporal do navio até que a substituição das peças se complete. Imagine que toda a sequência de substituições de partes tivesse lugar em apenas três meses. Nesse caso começaríamos a ter dúvidas. E se ela tivesse lugar em uma semana? Imagine agora que o Calíbdus de Teseu seja construido e batizado com esse nome, mas que ele não seja sequer lançado ao mar. Horas depois de pronto, os trabalhadores começam a construir um segundo navio ao lado, mas com peças retiradas do Calibdus, ao mesmo tempo que outras pessoas enviam peças novas para substituir as peças que o Calibdus havia doado para o navio ao lado, de modo que após uns três dias teremos dois navios idênticos, um ao lado do outro. Nesse caso, nossa tendência será a de dizer que o segundo navio é o verdadeiro Calibdus, pois tudo o que aconteceu foi que ele, por assim dizer,  “mudou de lugar”.
   Mas, voltemos à estória de Calibdus como tendo navegado por um certo tempo sob o comando de Teseu. Como um mesmo nome próprio não pode nomear mais de um objeto, resta a estratégia de renomear os navios. Se nos for útil, podemos introduzir nomes próprios substitutivos, admitindo a existência de dois navios: o Calibdus-1, que satisfaz por completo a regra de localização e parte da regra de caracterização, e o Calibdus-2, que embora não satisfazendo a regra de localização, satisfaz por completo a regra de caracterização, a qual entre outras coisas requer a preservação do mesmo material do navio desde que ele foi inicialmente construido. Do mesmo modo, no exemplo anterior podemos propor a existência de dois Aristóteles no mundo possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e que satisfaz somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o autor de boa parte do opus aristotélico, e que satisfaz somente a regra de caracterização. Seria um erro, porém, ver nisso uma resposta ao mesmo problema. Trata-se simplesmente de um novo lance no jogo de nomear, uma proposta de novas convenções para novos termos referenciais, a serem usados no lugar do termo malogrado.
   Adicionando as condições de suficiência e unicidade à regra disjuntiva, chegamos a uma mais apropriada formulação da regra meta-identificadora reguladora do comportamento semântico das regras-descrições fundamentais concernentes a cada nome próprio. Eis como ela pode ser formulada:

RMI1:
Um nome próprio ‘N’ refere-se a um objeto x pertencente a uma classe G de objetos
see
(i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N
 e/ou
(i-b) x satisfaz uma regra de caracterização C para N
 e
      (ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e
      (iii) unívoca.
      (Assumindo a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)

Chamo a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora RM1 às regras-descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra meta-identificadora para as regras-descrições fundamentais desse nome próprio ou – para evitar a introdução de uma terminologia especiosa – de regra de identificação ou regra definicional desse nome próprio (essa regra pode também ser vista, se preferirem, como uma simples instanciação de RMI1 na qual as variáveis ‘N’, G, L, e C são substituídas por constantes). Lembremo-nos também que a condição (ii), de suficiência, é para ser aplicada “ao todo”, ou seja, ao somatório da satisfação de cada disjunto. Isso nos permite resgatar a intuição de que a regra pode ser aplicada (sendo portanto aplicável) quando cada disjunto isoladamente considerado é insuficientemente satisfeito. A regra será aplicável se a soma da satisfação de cada disjunto for suficiente para sua aplicação. Finalmente, nada custa adicionar (iv): a condição de que haja uma relação causal do tipo Cc entre o nome e o objeto referido, ainda que essa relação tenha pouco ou nenhum valor explicativo (veremos que quando elementos dela passam a ter valor explicativo ela passa a ser explicitada dentro da própria regra disjuntiva).
   A regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’ pode ser agora abreviadamente expressa como:

RI1-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ refere-se propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos
see
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a.C.
 e/ou
(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico
 e
(ii) a satisfação da regra de localização e/ou da regra de aplicação para x é em seu todo suficiente e
(i)               unívoca.
(Assumindo-se ainda a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)


O nome Aristóteles é colocado aqui entre com o imtuito de salientar que como marca sensível ele não é um componente indispensável: um outro signo poderia eventualmente satisfazer as mesmas condições.

Regra meta-identificadora: primeira versão
Embora a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições que realmente importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um lado estreita demais e de outro ampla demais. Afinal, logo veremos que há casos de aplicação nos quais somente uma das regras-descrições fundamentais é apenas parcialmente, enquanto a outra não é satisfeita de modo algum e mesmo assim o nome possui referência. Pior ainda, podemos imaginar casos de aplicação do nome próprio nos quais ambas as regras fundamentais são aplicáveis e mesmo assim o nome não possui referência!
   Consideremos primeiro o caso da estreiteza da definição. Aqui a regra localizadora pode ser mesmo incompletamente satisfeita e a regra caracterizadora não é nem um pouco satisfeita. Imagine um mundo possível próximo ao nosso, uma situação contrafactual na qual não existiu a filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles que morreu ainda jovem, pois o seu navio afundou no mar Egeu quando ele decidiu viajar para Atenas para estudar com Platão. Mesmo assim, se soubermos que ele nasceu em Estagira em 384 a.C., que foi filho do médico Nicômano da corte de Felipe e que foi enviado pelo avô Achaeon para Atenas aos 17 anos para estudar com Platão, não teremos dúvida de que se trata de nosso Aristóteles “em potência”, mesmo que RD não chegue a ser satisfeita. A regra localizadora foi parcialmente satisfeita, uma vez que as informações que temos do curso de vida de Aristóteles depois dos 17 anos desapareceram. Já a regra caracterizadora não foi em nada satisfeita, visto que esse jovem que teve a vida truncada pelo destino nada escreveu.
   Consideremos agora um caso no qual só a regra caracterizadora é satisfeita e mesmo assim de modo incompleto. Imagine um mundo possível próximo ao nosso no qual não existiu nenhum Aristóteles e nenhuma obra aristotélica no mundo antigo, embora tenha existido Platão e os outros filósofos gregos. Imagine que nesse mundo, no século XII, em Córdoba, um filósofo árabe que leu toda a filosofia grega disponível e tenha escrito em grego antigo partes da obra de Aristóteles, incluindo o Organon e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o pseudônimo de ‘Aristóteles’ (ou, se quisermos, que tenha escrito em árabe todo o conteúdo ideativo relevante do opus aristotélico). Em tal situação, na qual não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos, talvez com com alguma relutância, a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles nesse mundo.
   Claro que há limitações para esse procedimento. Se, em um mundo possível similar ao nosso, no qual a filosofia aristotélica nunca existiu, em 384 a.C. em Estagira o médico da corte não fosse Nicômano, mas apesar disso ele teve um filho que foi chamado de Aristóteles, o qual morreu pouco após o seu nascimento, teremos dificuldade em crer que ele tenha sido o nosso Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo Aristóteles tivesse escrito apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós provavelmente não o reconheceríamos como o nosso Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como estranhas e inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-identificadora disjuntiva deva ser completada por uma condição exigindo que as regras-descrições fundamentais sejam apenas suficientemente satisfeitas de acordo com as circunstâncias dadas, não precisando, pois,  ser completamente satisfeitas.
   Consideremos agora o caso em que as descrições caracterizadoras são conjuntivamente satisfeitas, mas apenas de modo parcial. Nesse caso parece que o limite mínimo de satisfação exigido para cada descrição se tornaria menor do que o limite mínimo para a satisfação da descrição no caso em que somente uma das regras fundamentais fosse incompletamente, mas suficientemente satisfeita. Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um único Aristóteles em 384 a.C. não em Estagira, mas em Atenas, tivesse estudado com Platão, escrito apenas as Categorias e depois morrido, parece que isso já seria suficiente para admitirmos que se trata do nosso Aristóteles. Nesse caso parece que da satisfação insuficiente de cada disjunto resulta uma satisfação suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a exigência de uma satisfação suficiente da disjunção inclusiva deve incluir a consideração da soma da satisfação dos disjuntos.
   Uma dúvida importante que resta é sobre a medida exata do que devemos entender como sendo suficiente. Não creio que exista uma resposta para isso. Afinal, a linguagem empírica é inevitavelmente vaga e nossos critérios de aplicação das palavras não delimitam as suas fronteiras extensionais de maneira cortante. Há sempre casos incertos, acerca dos quais não sabemos se devemos ou não aplicar nossos critérios. Importante é que apesar dessa vaguidade de nossa linguagem natural, somos em geral perfeitamente capazes de nos comunicar sobre os objetos de referência. Por isso a vaguidade da linguagem natural, que supostamente reflete a vaguidade própria das divisões da realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição dessa linguagem, mas um fato a ser admitido, sendo admissível pensar que graus de vaguidade sejam mesmo requeridos para modular o discurso de maneira mais satisfatória.
   Outro ponto é que o Aristóteles recém-mencionado deixaria de ser o nosso Aristóteles se existisse um ou mais concorrentes que também satisfizessem a regra disjuntiva. Assim, imagine um mundo possível no qual seja comum que as pessoas tenham duas cabeças.  Nesse mundo o médico Nicômano teve um filho de duas cabeças absolutamente idênticas, ambas batizadas ‘Aristóteles’. Elas foram estudar com Platão e escreveram o opus aristotélico conjuntamente. Embora seja possível dizer que esse mundo tem dois “Aristóteles” (o ‘Aristóteles-da-direita’ e ‘o Aristóteles-da-esquerda’, com cursos de vida muito próximos embora não idênticos), sob outra perspectiva seria possível se questionar se esse mundo na verdade não possui nenhum Aristóteles, pois um nome próprio é um termo singular que por definição só pode se aplicar a um único objeto distinguível de todos os outros.
   Essa consideração nos sugere uma nova condição a ser adicionada, que é a de o nome ter apenas uma única e mesma referência. Precisamos admitir como condição de aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma condição de unicidade, qual seja, a de que no domínio considerado somente um único e mesmo objeto satisfaça a regra disjuntiva.
   O principal caso no qual a condição de unicidade deixa de ser satisfeita é aquele em que a regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra de aplicação é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1 no qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em Estagira em 384 a.C., mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não fez coisa alguma em filosofia até sua morte em Chalkis em 322 a.C., e (b) um filósofo de nome Aristóteles, que escreveu boa parte do opus aristotélico em Roma cerca de duzentos e cinquenta anos mais tarde. Nessas circunstâncias, não temos mais como decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles, se o grego ou o romano, pois as nossas duas regras identificadoras fundamentais entram em conflito uma com a outra. A alternativa mais natural e imediata é abandonarmos a suposição de que nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto que a condição de unicidade do objeto não é satisfeita.
   Esse caso é similar ao do paradoxo do navio de Teseu relatado nos manuais de filosofia. Digamos que esse navio tenha recebido o nome de ‘Calibdus’. No curso dos anos Teseu repôs pouco a pouco as partes do seu navio até que, no final, todas elas foram substituídas. Contudo, alguém decidiu então recondicionar as partes antigas que haviam sido guardadas e com elas construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte: “Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos ao certo o que responder. Uma primeira suposição poderia ser a de que ambos são o navio de Teseu. Mas isso seria contraditório, pois um termo singular não pode se referir a mais de um objeto. A maioria das pessoas tenderá a dizer que o verdadeiro navio de Teseu é aquele no qual ele navegou todos aqueles anos, mas ainda assim restará um desconforto: o segundo navio é o único que é realmente o mesmo que aquele que foi inicialmente construido! O problema não é sem interesse prático, pois, como já se notou, se os dois navios se chocarem e começarem a afundar, Teseu, que, como todo bom comandante, deseja afundar com o seu próprio navio, terá de decidir se permanecerá no velho ou se não deverá antes tentar saltar para o novo.
   O que consideramos até agora já nos permite uma resposta mais segura para esse velho paradoxo. A razão da incerteza se encontra no fato de que percebemos que a questão de saber qual dos dois navios é Calibdus é capaz de se tornar indecidível devido a um conflito criterial entre as duas regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz uma regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma longa carreira espaciotemporal sob o comando de Teseu. A segunda regra, satisfeita pelo segundo navio, pertence ao aspecto caracterizador. Ela nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído com um certo material específico. Percebemos aqui a razão do desconforto.
   Nesse ponto alguém poderá, com razão, objetar que a regra caracterizadora é mais complexa. Ela não diz respeito apenas a um mesmo material, mas inclui características funcionais e estruturais que foram preservadas em ambos os navios. Como consequência, parece que o primeiro navio deve ser o Calibdus comandado por Teseu, pois ele satisfaz mais completamente as regras-descrições fundamentais. Por isso essa costuma ser a primeira ideia que nos vem à mente. Contudo, podemos equilibrar essa diferença aumentando a rapidez da substituição das partes velhas pelas novas, de modo a encurtar a carreira espaciotemporal do navio até que a substituição das peças se complete. Imagine que toda a sequência de substituições de partes tivesse lugar em apenas três meses. Nesse caso começaríamos a ter dúvidas. E se ela tivesse lugar em uma semana? Imagine agora que o Calíbdus de Teseu seja construido e batizado com esse nome, mas que ele não seja sequer lançado ao mar. Horas depois de pronto, os trabalhadores começam a construir um segundo navio ao lado, mas com peças retiradas do Calibdus, ao mesmo tempo que outras pessoas enviam peças novas para substituir as peças que o Calibdus havia doado para o navio ao lado, de modo que após uns três dias teremos dois navios idênticos, um ao lado do outro. Nesse caso, nossa tendência será a de dizer que o segundo navio é o verdadeiro Calibdus, pois tudo o que aconteceu foi que ele, por assim dizer,  “mudou de lugar”.
   Mas, voltemos à estória de Calibdus como tendo navegado por um certo tempo sob o comando de Teseu. Como um mesmo nome próprio não pode nomear mais de um objeto, resta a estratégia de renomear os navios. Se nos for útil, podemos introduzir nomes próprios substitutivos, admitindo a existência de dois navios: o Calibdus-1, que satisfaz por completo a regra de localização e parte da regra de caracterização, e o Calibdus-2, que embora não satisfazendo a regra de localização, satisfaz por completo a regra de caracterização, a qual entre outras coisas requer a preservação do mesmo material do navio desde que ele foi inicialmente construido. Do mesmo modo, no exemplo anterior podemos propor a existência de dois Aristóteles no mundo possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e que satisfaz somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o autor de boa parte do opus aristotélico, e que satisfaz somente a regra de caracterização. Seria um erro, porém, ver nisso uma resposta ao mesmo problema. Trata-se simplesmente de um novo lance no jogo de nomear, uma proposta de novas convenções para novos termos referenciais, a serem usados no lugar do termo malogrado.
   Adicionando as condições de suficiência e unicidade à regra disjuntiva, chegamos a uma mais apropriada formulação da regra meta-identificadora reguladora do comportamento semântico das regras-descrições fundamentais concernentes a cada nome próprio. Eis como ela pode ser formulada:

RMI1:
Um nome próprio ‘N’ refere-se a um objeto x pertencente a uma classe G de objetos
see
(i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N
 e/ou
(i-b) x satisfaz uma regra de caracterização C para N
 e
      (ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e
      (iii) unívoca.
      (Assumindo a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)

Chamo a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora RM1 às regras-descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra meta-identificadora para as regras-descrições fundamentais desse nome próprio ou – para evitar a introdução de uma terminologia especiosa – de regra de identificação ou regra definicional desse nome próprio (essa regra pode também ser vista, se preferirem, como uma simples instanciação de RMI1 na qual as variáveis ‘N’, G, L, e C são substituídas por constantes). Lembremo-nos também que a condição (ii), de suficiência, é para ser aplicada “ao todo”, ou seja, ao somatório da satisfação de cada disjunto. Isso nos permite resgatar a intuição de que a regra pode ser aplicada (sendo portanto aplicável) quando cada disjunto isoladamente considerado é insuficientemente satisfeito. A regra será aplicável se a soma da satisfação de cada disjunto for suficiente para sua aplicação. Finalmente, nada custa adicionar (iv): a condição de que haja uma relação causal do tipo Cc entre o nome e o objeto referido, ainda que essa relação tenha pouco ou nenhum valor explicativo (veremos que quando elementos dela passam a ter valor explicativo ela passa a ser explicitada dentro da própria regra disjuntiva).
   A regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’ pode ser agora abreviadamente expressa como:

RI1-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ refere-se propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos
see
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a.C.
 e/ou
(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico
 e
(ii) a satisfação da regra de localização e/ou da regra de aplicação para x é em seu todo suficiente e
(ii)             unívoca.
(Assumindo-se ainda a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)


O nome Aristóteles é colocado aqui entre com o imtuito de salientar que como marca sensível ele não é um componente indispensável: um outro nome poderia eventualmente satisfazer as mesmas condições.

Regra meta-identificadora: segunda e última versão
Embora RMI1 já seja uma regra bastante satisfatória, explicando a maioria dos casos de aplicação de nomes próprios, ela resulta de uma análise ainda incompleta. Afinal, não é difícil demonstrar que a condição de unicidade é derivada e que RMI1 não dá conta de contra-exemplos que dependem de um estágio anterior a essa derivação. Para tal quero examinar dois contra-exemplos.
   Um primeiro contra-exemplo vale-se da fantasia da Terra-Gêmea. Uma Terra-Gêmea deve ser como a nossa. Nela tudo existe e acontece de forma idêntica (ou quase idêntica) ao que existe e acontece em nossa Terra. Assim, o que se aplica a um objeto na Terra deve se aplicar ao seu Doppelgänger na distante Terra-Gêmea. Não obstante, mesmo que soubéssemos da existência de uma Terra-Gêmea, nós continuaríamos tendo uma forte intuição de que ao pronunciarmos o nome ‘Aristóteles’ estamos a nos referir ao nosso Aristóteles e não ao Aristóteles da Terra-Gêmea. Contudo, se considerarmos nossa primeira formulação da regra de identificação para Aristóteles, ela não parece mais aplicável, pois tanto o Aristóteles da nossa Terra quanto o da Terra-gêmea parecem satisfazer suficientemente a regra disjuntiva. De um lado, ambos parecem satisfazer a regra de localização espaciotemporal, pois ambos nasceram em 384 a.C. em Estagira, etc. Além disso, ambos os Aristóteles satisfazem a regra de caracterização: ambos escreveram o opus aristotélico até a sua última vírgula. Ora, como basta a satisfação suficiente da condição disjuntiva “(i-a) ˅ (i-b)”, os dois Aristóteles satisfazem a regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’. Mas se é assim, a condição de unicidade deixa de ser satisfeita, disso resultando a conclusão contra-intuitiva de que Aristóteles não existe. Mas certamente ele existe e ele é o nosso Aristóteles e não o da Terra-Gêmea!
   Contra-exemplos com mundos possíveis também podem ser facilmente imaginados. Digamos que em um mundo possível M2 em Estagira em 384 a.C. Nicômano, o médico da corte, tenha sido pai de dois gêmeos, ambos tendo sido batizados com o nome ‘Aristóteles’. O primeiro tornou-se médico como o pai, tendo se alistado no exército de Alexandre e morrido de sede na travessia do deserto ao retornar do oriente. O segundo acabou indo para Atenas, onde conheceu Platão e escreveu todo o opus aristotélico. Como ambos satisfazem suficientemente a regra de localização, ambos satisfazem suficientemente a condição disjuntiva “(i-a) ˅ (i-b)” exigida pela regra de identificação. O resultado disso é que a condição (iii) de unicidade deixa de ser satisfeita, deixando a regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’ insatisfeita e levando à conclusão de que Aristóteles não existe. Mas tal resultado é contra-intuitivo. Não há dúvida que para nós existe um único verdadeiro Aristóteles em M2 e que ele é o segundo Aristóteles e não o primeiro. Só em um mundo possível M3, que diferisse de M2 apenas pelo fato de o segundo Aristóteles não ter chegado a nascer, nós seríamos induzidos a considerar o primeiro deles o nosso Aristóteles “em potência”, mesmo que muito mal-orientado.[13]
   A pergunta a ser feita aqui é: o que nos leva a no primeiro contra-exemplo escolhermos o Aristóteles da Terra ao invés do Aristóteles da Terra-Gêmea e no segundo escolhermos o Aristóteles que escreveu o opus aristotélico ao invés daquele que se tornou médico? A resposta só pode ser uma: a satisfação das regras-descrições identificadoras de certo nome por mais de um objeto elimina da competição pelo direito ao nome o objeto que as satisfaz menos. A solução, portanto, é estabelecer o que poderia ser chamado de condição de predominância: a condição de que no caso de mais de um objeto satisfazer a regra disjuntiva de um nome próprio, o portador do nome deve ser o objeto que mais completamente a satisfaz.
   Quero agora sugerir uma última e mais aprimorada formulação da regra meta-identificadora, que incorpora em si essa última condição. Ei-la:

RMI2:
  Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x
  pertencente a uma classe G
  see
  (i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N
  e/ou
  (i-b) x satisfaz uma regra de atribuição C para N,
  (ii) x satisfaz L e/ou C em medida no todo suficiente e
        (iii) x satisfaz L e/ou C mais do que qualquer outro objeto
   pertencente à classe G.
  (Assumindo-se a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)

Substituímos aqui como condição (iii) a condição de unicidade pela condição de predominância, que é anterior à da unicidade, posto que serve para garanti-la. A condição de predominância é aplicada de modo a selecionar o objeto que satisfaz suficientemente a disjunção inclusiva dos disjuntos mais do que qualquer outro objeto da mesma classe que também a satisfaça, disso resultando a identificação unívoca do objeto de referência do nome próprio.
   Do mesmo modo que no caso anterior, quando a regra de regras RMI2 é aplicada às regras-descrições fundamentais de um nome próprio qualquer (ou quando as suas variáveis formais forem instanciadas), ela produz uma regra de identificação ou regra definicional para o nome próprio. Eis como essa regra se afigura para o nome ‘Aristóteles’:

O nome próprio ‘Aristóteles’ refere-se propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos
see
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a.C.
 e/ou
(i-b) x satisfaz a sua regra de atribuição de ter sido a pessoa que produziu o conteúdo relevante do opus aristotélico e
(ii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) em medida no todo suficiente e
(i)              x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) mais do que qualquer outro ser humano.
 (Assumindo-se junto a isso a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)


A regra de identificação resultante da aplicação de RMI2 às duas descrições fundamentais de Aristóteles nos dá uma resposta intuitiva ao problema do Aristóteles da Terra-Gêmea. Pois segundo ela, embora tanto o Aristóteles da nossa Terra quanto o da Terra-Gêmea satisfaçam a regra disjuntiva em medida suficiente, o Aristóteles da nossa Terra é o único que verdadeiramente satisfaz a regra de localização espaciotemporal; afinal, só ele existe em nossa região espaciotemporal, sendo a essa região que a regra foi feita para se aplicar – a essa região específica do espaço único que inclui ambas as Terras – e não à região espacial análoga situada na distante Terra-Gêmea. Assim, o Aristóteles da nossa Terra satisfaz mais completamente a condição disjuntiva “(i-a) ˅ (i-b)” do que o Aristóteles da Terra gêmea. Ao fazer isso ele preenche a condição de predominância da regra identificadora para Aristóteles resultante da aplicação de RMI2 às regras-descrições fundamentais associadas a esse nome, o que se encontra em pleno acordo com a nossa intuição de que é ao Aristóteles da nossa Terra que estamos a nos referir.
   A aplicação de RI2-‘Aristóteles’ também resolve o problema dos dois Aristóteles gêmeos que em M2 satisfazem a regra disjuntiva. O primeiro (que foi para a Índia com Alexandre) satisfaz apenas em sua infância o suficiente da regra localizadora, nada satisfazendo da regra caracterizadora. Mas o segundo (que foi para Atenas e escreveu o opus aristotélico) satisfaz não só de modo totalmente suficientemente a regra localizadora, mas também completamente a regra caracterizadora. Por isso, pela grande predominância na satisfação da regra disjuntiva, o último Aristóteles passa a ser escolhido por nós como sendo o verdadeiro, o que também se conforma às nossas intuições. Em um mundo no qual o segundo Aristóteles nunca tivesse existido, mas só o primeiro, nos escolheríamos o primeiro como sendo o nosso Aristóteles, infelizmente desviado de seu mais desejado destino.
   Voltando a RMI2, resta uma questão a ser respondida. Imagine que outros nomes para o mesmo objeto, com regras de identificação próprias, viessem a competir com a regra de identificação do nome que estamos considerando. Assim, se feixes de descrições diversos associados aos nomes próprios diversos N1... Nn satisfazem RMI2 para um mesmo objeto, ou seja, se regras de identificação diferentes são satisfeitas, parece que deveria haver uma condição para se saber qual dos nomes próprios verdadeiramente se refere a esse objeto.  Não seria necessária uma condição de predominância de regra exigindo que um objeto, para poder ser referido, devesse satisfazer a regra disjuntiva de identificação para o nome em questão mais do que qualquer outra regra de identificação de outro nome que também se refira a ele?
   Felizmente, não parece que no caso dos nomes próprios essa condição adicional precise ser introduzida, pois a identidade de objeto faz com que essas regras identificadoras se somem ao invés de se excluir, ao menos no que concerne às descrições caracterizadoras, uma vez que não podemos ter duas descrições localizadoras diferentes para um mesmo objeto. Para evidenciá-lo, consideremos um exemplo. Suponha que venha a ser descoberto, como já se pretendeu, que Lord Bacon tenha sido o verdadeiro autor das obras de Shakespeare e que não existiu nenhum Shakespeare com a carreira espaciotemporal que a ele atribuímos. Nesse caso parece que as regras de identificação de Bacon e Shakespeare deveriam competir. Contudo, isso não precisa acontecer. Não nos encontramos realmente forçados a escolher entre Bacon ser Bacon e Bacon ser Shakespeare. Nesse caso nós estenderemos os atributos de uma mesma pessoa de modo a abranger os nomes de Bacon e Shakespeare, dizendo que Bacon, além de ser o cientista, filósofo e diplomata que foi, também escreveu anonimamente as obras de Shakespeare. E quanto ao Shakespeare nascido em Stratford-upon-Avon em 1564, que se casou com Anne Hathaway? Ora, esse é agora outra pessoa, outro objeto, para cuja identificação deve haver uma outra regra. O importante a ser notado é que algo que ninguém nega: que no caso, o mais importante é a satisfação das condições caracterizadoras, além do fato de Bacon ter vivido em Londres nessa mesma época, satisfazendo assim alguma coisa da condição localizadora. Vários enunciados poderiam resumir nossas reações: não só “Bacon foi o verdadeiro Shakespeare” e “Shakespeare não foi Shakespeare”, mas também “Bacon foi o grande dramaturgo; Shakespeare foi apenas um diretor teatral conterrâneo”.

O significado do nome próprio
Vejamos agora a questão do significado do nome próprio. Para chegarmos a uma resposta, basta nos recordarmos do argumento apresentado no capítulo introdutório sugerindo que o significado – entendido aqui como o sentido fregeano (Sinn) do termo singular – se deixa plausivelmente esclarecer em termos de regras ou de combinações de regras que possibilitam a efetiva aplicação das expressões.[14] A razão me parece simples. Regras são a fonte originária do que chamamos de significado, posto que regras são significativas per se. Seguir uma regra é o mesmo que dar um significado ao ato. Se “&%” parece menos significativo que “à$” é porque estamos acostumados a ver uma seta como uma regra indicadora de direção. Onde há regra há significação de algum tipo, mesmo que geralmente não do tipo que possa interessar. Assim, assumindo o dictum wittgensteiniano de que “o significado é aquilo que a explicação do significado explica”,[15] parece claro que quando falamos do significado de uma expressão linguística geralmente estamos considerando mais propriamente as regras que expomos na explicação daquilo que queremos dizer com a expressão. A conclusão inevitável disso é que uma teoria neodescritivista dos nomes próprios, sendo uma teoria das regras semânticas expressas pelas descrições que ele substitui, não é mais nem menos do que uma teoria do significado referencial ou cognitivo dos nomes próprios.
   Esse ponto de vista contrasta fortemente com a opinião daqueles que defenderam que nomes próprios são destituídos de sentido.[16] As razões por eles apresentadas são conhecidas: se nos perguntam pelo significado de um nome próprio, ficamos sem saber o que responder... Além disso, como já notamos, os nomes próprios geralmente não se encontram dicionarizados; e como a finalidade dos dicionários é esclarecer os significados das palavras, tem-se aqui uma razão adicional para se rejeitar que nomes próprios tenham significado.[17]
   Contudo, essa tese não resiste à reflexão. Certamente, o nome próprio tem significado no sentido de ter a função lexical do nome próprio, que é a de identificar um objeto singular como sendo o seu portador. Mas ele também tem significado no sentido mais substantivo de ter um conteúdo semântico. Que nomes próprios devem ter significado nesse último sentido fica logo claro quando consideramos sentenças de identidade entre nomes. A frase “Dr. Jeckill é Mr. Hide”, por exemplo, deveria ser tautológica e não-informativa se os nomes próprios ‘Jeckill’ e ‘Hide’ não quisessem dizer coisas bastante contrastantes, se eles não tivessem conteúdos semânticos diversos. Além disso, se admitirmos o entendimento fregeano do conteúdo semântico, ele se explica como sentido (Sinn), que é um conteúdo informativo (informatives Gehalt), e começa a ficar claro que nesse aspecto os nomes próprios não devem ser carentes, mas, pelo contrário, repletos de significado. Afinal, parece que muitos deles são repositórios de uma massa difusa de conteúdo informacional variadamente acessado. Considere, por exemplo, a imensa carga de conteúdo informacional que podemos associar ao nome do conquistador Napoleão ou do filósofo Bertrand Russell. A extensa autobiografia de Russell está repleta de conteúdo informativo acerca dele mesmo. Sob tal perspectiva, a questão não é tanto que o nome próprio contenha significado de menos, mas demais. E tanto é assim que o lugar reservado para a exposição do significado de certos nomes próprios não é o dicionário, mas a enciclopédia. E em alguns casos, mais do que a enciclopédia, o lugar onde encontramos o significado mais detalhado e completo de um nome próprio é a biografia. Biografias como as de Napoleão, autobiografias como a de Russell, são os lugares nos quais podemos encontrar uma pormenorizada exposição do conteúdo informacional associado a esses nomes próprios, o qual pode ser facilmente transformado em descrições definidas. E as regras de localização e caracterização não são em tal caso apresentadas em uma forma abreviada, como temos feito, mas em forma muito mais detalhada e completa.
   Mas por que então alguns sustentaram que nomes próprios são vazios de significado? Uma resposta emerge do fato de que quando acidentalmente usamos um nome próprio, tudo o que costumamos saber dele são aspectos geralmente vagos e variáveis de seu significado, partes restritas de seu conteúdo informacional, cujo domínio em geral varia de falante para falante. O que (ao menos disposicionalmente) temos em mente ao usar um nome próprio é geralmente alguma parcela do seu significado, não todo ele; e uma parcela que varia de pessoa para pessoa, de ocasião para ocasião, dado que o conteúdo completo de muitos nomes próprios é conhecido por poucos e se tomado estritamente por ninguém em particular. Devido a isso, quando contrastamos esse estado de coisas com o significado permanente, distinto e universalmente compartilhado dos predicados mais simples (como, digamos ‘...é vermelho’, ‘...é redondo’), temos a impressão de que por não serem capazes de significar nada de específico os nomes próprios não são capazes de significar coisa alguma. Nomes próprios tem tanto significado que parecem não ter nenhum.
   Identificando o sentido com regras, consideremos agora a questão do sentido dos nomes próprios tendo em vista as expressões descritivas das regras já consideradas. Quais seriam as de maior valor semântico? Uma primeira regra a ser excluída é a própria regra meta-identificadora do tipo RMI: o núcleo semântico distintivo de um nome próprio não pode ser por ela constituído, pois ela não é mais do que uma simples forma compartilhada pelas regras de identificação dos mais diversos nomes próprios, enquanto o que mais importa para o significado de um termo é aquilo que o distingue de outros termos da mesma espécie. O significado também não deve ser relevantemente constituído pelas regras auxiliares expressas pelas descrições do grupo C, dado que elas são acidentais em relação à aplicação do nome, ainda que delas se espere que em alguma medida contribuam para o seu conteúdo informativo. Restam, pois, as regras fundamentais de localização e/ou caracterização, expressas respectivamente pelas descrições dos grupos A e B. Com efeito, só podem ser essas últimas as que constituem de modo relevante o significado de um nome próprio. Se nos perguntarmos, por exemplo, quais as descrições que expressam o âmago do que se pode querer dizer com o nome próprio ‘Aristóteles’, a resposta mais natural parece vir através das descrições fundamentais concernentes a um filósofo que nasceu em Estagira em 394 a.C., que estudou com Platão em Atenas... e que desenvolveu as idéias que influenciaram profundamente o curso da filosofia ocidental; ideias expostas em obras como a Metafísica, a Ética a Nicômano e o Organon. E quando tudo o que uma pessoa é capaz de dizer de Aristóteles é que ele foi ‘um grande filósofo grego’, ela está dizendo algo que já está sendo implicado pelas descrições fundamentais. As regras-descrições fundamentais exprimem o conteúdo informativo indispensável constitutivo do núcleo central de significação desse nome próprio.
   Afora esse núcleo semântico central, podemos admitir, há um halo de significação secundário em geral expresso pelas regras-descrições auxiliares. Assim, a descrição auxiliar metafórica ‘o mestre dos que sabem’, feita para conotar Aristóteles, também contribui para a massa de conteúdo informativo que constitui o significado total desse nome próprio, da mesma forma que descrições acidentais mais bem conhecidas, como ‘o maior discípulo de Platão’, ‘o tutor de Alexandre’, ‘o fundador do Liceu’... posto que quem as conhece já é capaz de dar um sentido convergente qualquer a esse nome. Nem todas as regras auxiliares, contudo, contribuem para enriquecer o conteúdo informativo do nome próprio. As regras-descrições acidentais ignoradas, como ‘o neto de Achaeon’, certamente não contribuem de modo relevante. E as regras-descrições adventícias, como ‘o filósofo mencionado pelo professor na sala de aula’, por sua natureza circunstancial em nada contribuem para o conteúdo informativo permanente do nome próprio, não sendo por isso encontradas nem em enciclopédias nem em biografias.[18] Apesar disso, pode-se dizer que essas últimas regras ainda expressam um sentido ocasional, que está sendo intencionado pelo usuário do nome, quando este o emprega, e compreendido pelos seus ouvintes.
   Para evitar confusão é sempre indispensável distinguir entre o significado completo e o significado intencionado do nome próprio. Comecemos pelo significado intencionado. Ele é aquele conteúdo variável que diferentes pessoas e inclusive a mesma pessoa em tempos diferentes tem em mente ao empregar o nome próprio. Podemos dizer que ele consiste naquilo que é, se não atualmente, ao menos disposicionalmente intencionado pelo falante quando ele pensa ou profere o nome. Ele é aquilo que Russell chamou de “descrição em nossas mentes”.[19] Digo que este significado é ao menos disposicionalmente intencionado porque aquilo que é intencionado em termos de regras-descrições – que tanto podem ser fundamentais quanto auxiliares – não precisa ser reflexivamente considerado no momento da aplicação do nome, embora determine o uso do nome pelo falante e possa em princípio ser tornada consciente. É comum que conheçamos muito pouco dos significados dos nomes próprios que usamos, de modo que o significado intencionado poucas vezes coincide com o significado completo.
   Quanto ao significado completo, ele é constituído primariamente pelo que podemos chamar de significado próprio: o conjunto formado pelas regras localizadora e caracterizadora (o núcleo semântico primário); já secundariamente ele é formado também pelo que poderíamos chamar de significado auxiliar: as regras auxiliares (o halo semântico).
   O esquema seguinte sumariza as distinções feitas acima com respeito à significação do nome próprio:

                                                                                              Significado próprio
                                               Significado completo             (núcleo semântico)
                                               (eventualmente só
     Significado                         conhecido por usuários        Significado auxiliar
     cognitivo,                           privilegiados do nome)         (halo semântico)
     conteúdo
     informativo ou                   Significado intencionado do nome próprio
     sentido fregeano                (identifica-se com o sentido que o usuário
     do nome próprio                dá ao nome quando o aplica.)

Tendo esse quadro em mente se torna fácil esclarecer o papel semântico das regras auxiliares expressas pelas descrições do grupo C. Muitas vezes começamos a conhecer um nome próprio através de uma regra-descrição auxiliar de conexão com o objeto. Claramente, uma pessoa que só conhece uma regra-descrição auxiliar ainda não possui conhecimento relevante do significado do nome próprio. Mas regras-descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘o maior discípulo de Platão’, ou mesmo ‘o filósofo citado pelo professor’, já podem bastar para permitir ao falante inserir o nome próprio no discurso de maneira comunicacionalmente eficaz, obtendo sucesso referencial em um sentido derivado da palavra. Na verdade, para que o falante entenda essa inserção insuficiente do termo referencial no discurso público é desejável que ele reconheça seu conhecimento insuficiente de seu significado. Afinal, uma pessoa só é capaz de inserir racionalmente o nome próprio em um discurso, usando-o com intenção de referir no sentido derivado, fraco, insuficiente, conquanto ela conte com uma comunidade linguística possuidora de uma adequada divisão do trabalho linguístico que possua intérpretes capazes de completar o significado e a referência do nome próprio. Trata-se aqui de um caso típico daquilo que P. F. Strawson já havia identificado como empréstimo de referência (reference borrowing).

O entendimento descritivista da divisão de trabalho da linguagem
Contra as RMI e as regras de identificação ainda poderia ser oposta a seguinte objeção: não precisamos conhecer as descrições fundamentais associadas a um nome próprio para podermos usá-lo corretamente e com ele denotar o seu portador. Talvez a única coisa que a maioria das pessoas ainda hoje sabe sobre Aristóteles é que ele satisfaz a descrição indefinida ‘um grande filósofo da Grécia antiga’. Uma pessoa que conheça apenas isso só saberá generalidades implicadas pelas descrições caracterizadora e localizadora de Aristóteles. Mesmo assim, costumamos dizer que essa pessoa é capaz de se referir a Aristóteles. Mais ainda, uma pessoa pode ser admitida como se referindo a Aristóteles, mesmo associando a este nome uma única descrição auxiliar como ‘o maior discípulo de Platão’ após ter visto uma foto do famoso afresco de Rafael, ou associar a esse nome apenas a descrição ‘o tutor de Alexandre’ após ter assistido um filme sobre as conquistas de Alexandre, ou até mesmo a uma descrição auxiliar adventícia, como ‘o filósofo mencionado pelo professor na aula de ontem’. Além disso, para Kripke uma pessoa poderia se referir a Aristóteles mesmo associando a ele uma descrição errônea, como ‘um filósofo medieval’ ou ‘um general grego’. Mas como isso é possível?
   A resposta a ser dada a essa última questão vale-se do que poderíamos chamar de um entendimento descritivista da hipótese da divisão de trabalho da linguagem. Essa divisão foi proposta por Hilary Putnam para palavras-conceitos em termos não-descritivistas. Para Putnam, é comum que uma mesma palavra seja usada por diferentes pessoas de diferentes maneiras, podendo cada uma delas ter um conhecimento diverso, maior ou menor, mais ou menos especializado, do que se pode querer dizer com ela. Para ele as palavras não funcionam apenas como diferentes ferramentas, como pensava Wittgenstein. A metáfora usada por Putnam, aplicável a muitas palavras de nossa linguagem, é a de um barco a vapor: diferentes pessoas usam o barco com funções e finalidades diversas; umas o usam como passageiros que nada fazem além de esperar que o barco os leve ao seu destino. Outras, como membros da tripulação, tem papéis mais ativos. Elas podem trabalhar na pilotagem do barco, na casa de máquinas, no serviço de bordo... Putnam, compromissado com o seu externalismo semântico, considera essa divisão de trabalho da linguagem sem recorrer a aspectos cognitivo-descritivos. Contudo, antes dele outros filósofos já haviam admitido como natural entender a divisão de trabalho da linguagem como uma divisão de conteúdos semânticos entre diversos níveis de exigência e capacidades cognitivas descritivamente exprimíveis que os falantes ou grupos de falantes diversos precisam adquirir com relação ao uso da Palavra.[20] Afinal, alusões à divisão de trabalho da linguagem podem ser encontradas na obra de filósofos internalistas bem anteriores a Putnam, começando com o próprio John Locke, que foi o defensor clássico de uma semântica descritivista em que os significados são “idéias” psicológicas, ou em C.S. Peirce[21].
   É, pois, muito fácil e natural interpretar a divisão de trabalho da linguagem em termos das variadas capacidades cognitivas na aplicação de conteúdos semânticos descritivamente exprimíveis que os diversos falantes são capazes de associar à palavra, no caso presente, ao nome próprio. Com isso podemos sugerir que ao atribuirmos referência, estamos falando de sucesso referencial, que por sua vez tem ao menos dois sentidos:

(a)    o de uma referência autosuficiente.
(b)    o de uma referência não-autosuficiente.

Consideremos primeiro o caso da referência autosuficiente. Podemos entendê-lo como sendo o da referência capaz de por si mesma nos oferecer uma garantida identificação do objeto como algo existente no mundo. O critério de sucesso referencial para o caso (a), da referência que chamo de autosuficiente pode ser considerado a aplicação, por parte do falante, da própria regra de identificação no nome próprio, ou seja, a aplicação de suas regras-descrições localizadora e/ou caracterizadora, das quais ele tem amplo domínio. Há muitos nomes próprios, por exemplo, os de nossos familiares, cuja regra de identificação nos é perfeitamente conhecida. Mas há outros nomes cujo sentido, cujo conteúdo informativo relevante só é conhecido por um usuário privilegiado do nome, como, digamos, o especialista, o historiador, a testemunha do batismo... Considere, por exemplo, os nomes próprios ‘Kublai Khan’, ‘Galáxia de Andrômeda’, ‘Batalha de Salamina’. A referência autosuficiente dos portadores desses nomes requer nomeadores que sejam capazes de se referir verdadeiramente aos seus portadores, sendo idealmente os responsáveis por sua instituição e manutenção: os seus nomeadores privilegiados.
   Contudo, é muito frequente atribuirmos referência tendo em mente apenas uma referência deficiente, ou seja, incompleta, esquemática, acessória, ou mesmo errônea, feita por alguém – referências cujo caráter é derivado. Isso acontece geralmente com o nome ‘Aristóteles’. Afinal, é usual dizermos das pessoas que conhecem apenas generalidades ou descrições auxiliares associadas a um nome próprio como ‘Aristóteles’, que elas se referem ao seu portador. Esse é o caso das pessoas que só sabem de Aristóteles que ele é uma figura de um afresco de Rafael ou que ele apareceu no filme sobre Alexandre como o seu tutor. Essas pessoas são capazes de se referir ao filósofo apenas em um sentido estendido da palavra, no sentido de quee são capazes de inserir o nome ‘Aristóteles’ em circunstâncias conversacionais pouco exigentes, de modo que um intérprete que possua maior domínio da regra de identificação desse nome seja capaz de reconhecer nesse uso uma tentativa de identificação do objeto verdadeiramente referido pelo nome. Mais do que isso, como notou Kripke, uma pessoa pode associar um nome próprio a uma descrição indefinida como ‘um grande físico’ para Richard Feynman e mesmo a uma descrição definida errônea como ‘o inventor da bomba atômica’ para Einstein.[22] Geralmente essas  pessoas fazem isso conhecendo a gramática dos nomes próprios (implicitamente conhecendo RMI2) e possuindo certo pano de fundo informacional, que lhes permite ter consciência daquilo que podem – e principalmente daquilo que não podem – fazer com a palavra. Isso acontece, porém, sob o pressuposto de que a comunidade linguística possui nomeadores privilegiados, a saber, pessoas em condições de completar a referência do nome pelo domínio de sua regra de identificação.
   Não obstante, há limites para o erro no uso do nome próprio. Se alguém usa o nome próprio ‘Aristóteles’ pensando que se trata de um número primo, se alguém usa o nome ‘Feynman’ pensando que é uma marca de perfume, ou se alguém usa o nome próprio ‘Einstein’ pensando que se trata de uma pedra preciosa, trata-se de entendimentos demasiado divergentes desses nomes. Trata-se de usos nos quais sequer a classe G (dos seres humanos) é reconhecida. Aqui a pessoa não será mais capaz de inserir corretamente o nome no discurso e nomeadores privilegiados irão dizer que a pessoa foi incapaz de fazer um uso referencial desses nomes, mesmo que em um sentido derivado.
   Tendo em mente o uso referencial do nome sem conhecimento adequado de sua regra de identificação, podemos propor um segundo sentido de sucesso referencial, concernente ao caso (b) das referências que chamei de não-autosuficientes. Para esse sentido enfraquecido de sucesso referencial o critério parece-me ser duplo:

(b-1) Condição de convergência: O uso convergente do nome associado a descrições pertencentes ao feixe ou ao menos que tenham a ver genericamente com as descrições do feixe. Entendo por uso convergente aquele no qual a pessoa ao menos classifica corretamente o objeto referido de modo a torná-lo suficientemente reconhecível para nomeadores privilegiados (algo que se assemelha ao genus proximum).
(b-2) Condição de competência linguística: O conhecimento da parte do falante de RMI2. Isso faz com que a pessoa geralmente saiba que não sabe. (Se tudo o que sei sobre Aristóteles é que ele foi o preceptor de Alexandre e conheço RMI2, então sei que não sei quem foi realmente Aristóteles.)

Assim, uma pessoa é capaz de usar o nome referencialmente, mesmo com conhecimento deficiente, como no caso em que identifica Feynman com um grande físico, e mesmo com conhecimento errôneo, quando identifica Einstein com o inventor da bomba atômica. Importante é o fato de que essas identificações são convergentes, caindo dentro das classificações gerais de físico e de cientista (satisfação de b-1). Isso é assim porque somente pelo fato de que ao inserir o nome na linguagem de maneira convergente a pessoa torna possível a nomeadores privilegiados serem capazes de reconhecer a inserção do nome próprio no discurso como sendo suficientemente correta para não obstar a referência mais completa. Mais ainda, pressupõe-se que a pessoa conheça RMI2, a regra metalinguística para a construção de regras de identificação de nomes próprios ou (satisfação de b-2). Geralmente isso faz com que a pessoa tenha consciência de que para usar o nome de modo propriamente referencial ela precisaria saber muito mais sobre ele.
   Nesse sentido fraco de sucesso referencial emprestado, o que chamamos de “referência” é pouco mais do que um gesto em direção a um verdadeiro ato de referir. O falante realiza seu “ato de referência” em um sentido insuficiente, dependente, apoiado em uma comunidade linguística que ele conta ou que é contada como sendo capaz de completar a referência para ele. É somente pelo auxílio de uma comunidade linguística constituída falantes melhor qualificados que se torna possível completar cognitivamente os sentidos das expressões por ele usadas. Aqui devemos lembrar que embora esse processo seja social, ele não deixa obviamente de ser interno. O significado do nome próprio, mesmo estando apenas de modo muito parcial na cabeça do falante, mesmo encontrando-se diversamente distribuído nas cabeças dos outros falantes – dos potenciais intérpretes de sua referência – é interno em todos os seus momentos. Retornando à metáfora de Putnam: uma pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (b) de êxito referencial concernente a uma referência não-autosuficiente, da mesma maneira que um passageiro diz que toma um barco para ir até um certo lugar, mesmo sabendo que é a tripulação que realmente irá conduzi-lo. Esse é um caso diferente daquele de uma pessoa que é bem sucedida em referir segundo o critério (a) de êxito referencial como, digamos, o capitão da embarcação, que realmente a usa com a função de conduzir o barco até o seu destino. Se quisermos ser rigorosos, devemos admitir que as pessoas que usam um nome próprio sem conhecerem as suas regras-descrições fundamentais não sabem realmente o que estão dizendo com o nome: nós só admitimos que elas são capazes de inserir referencialmente o nome na linguagem porque confiamos na existência de nomeadores privilegiados que sejam realmente capazes de identificar o seu portador. Finalmente, referências insuficientes formam um espectro que vai desde o conhecimento de descrições quase irrelevantes (como ‘um filósofo’, ‘o tutor de Alexandre’...) até o conhecimento de descrições importantes ou mesmo fundamentais (como ‘o maior aluno de Platão’ ou ‘o estagirita’...).
   Para enfatizar a dependência social da referência insuficiente podemos imaginar uma situação na qual, por alguma razão, todos os nomeadores privilegiados desaparecessem. Imagine uma catástrofe como a guerra atômica ocorresse e que apenas umas poucas pessoas quase iletradas e reduzidas a um estado quase selvagem sobrevivessem. Imagine que essas pessoas encontrassem uma descrição auxiliar concernente a Aristóteles, como “o tutor de Alexandre” e nada mais. Elas seriam capazes, suponhamos, de reconhecer que Aristóteles é o nome de uma pessoa. Contudo, nesse caso as pessoas em realidade não seriam capazes de se referir a Aristóteles mesmo no sentido (b) de fazerem uma referência não-autosuficiente, simplesmente pela falta do suporte de uma comunidade linguística que incluísse falantes capazes de garantir a referência e dar-lhe um sentido que fosse. Sem usuários privilegiados capazes de, ao menos em conjunto, dominar a regra de identificação, a possibilidade de um efetivo uso referencial do nome próprio entraria em colapso. É como se os passageiros ocupassem o navio a vapor abandonado pela tripulação sem ter a menor idéia de como fazê-lo funcionar.

Porque nomes próprios costumam ser designadores rígidos
As regras de identificação resultantes da aplicação das RMI mostram o caminho para resolver um problema que tem assombrado o descritivismo. Trata-se da razão pela qual os nomes próprios são designadores rígidos. Para responder à questão precisamos atentar para algumas propriedades semânticas das regras de identificação para nomes próprios. Uma delas é que essas regras podem ser sempre traduzidas na forma de sentenças descritivas a serem lidas como definições ou verdades analítico-conceituais. Podemos tornar isso claro reescrevendo a regra de identificação do nome próprio ‘Aristóteles’ ao modo de uma longa descrição definida como a que se segue:

      DD-‘Aristóteles’:
O nome próprio ‘Aristóteles’ que se refere à pessoa que estiver na origem causal de nossa consciência de que ela satisfaz de modo em seu todo suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C. filho do médico da corte, vivido em Atenas e morrido em Chalkis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das idéias fundamentais do opus aristotélico, satisfazendo essa disjunção mais do que qualquer outra pessoa.

Mesmo que essa longa descrição definida contenha uma disjunção inclusiva e assim elementos descritivos que individualmente podem se aplicar ou não ao portador do nome, caso ele exista, como tal ela exprime uma verdade analítico-conceptual necessária, na medida em que é estabelecida por convenção tácita. Afinal, não há mundo possível no qual ela possa ser falsa. Não podemos conceber um mundo possível no qual Aristóteles exista e a descrição acima não se aplique. Ou seja, não podemos conceber um mundo possível em que Aristóteles exista e a regra de identificação que expressa por essa descrição não se aplique, uma vez que é essa regra que define quem para nós é Aristóteles. A aplicabilidade dessa regra-descrição é aquilo mesmo que estabelece a existência de Aristóteles ou quem pode ou não pode se Aristóteles em qualquer mundo possível.
   Isso não nos surpreende, aliás, se admitirmos a identificação fregeana da existência com o cair sob um conceito, ou, como prefiro, como a satisfação ou efetiva aplicabilidade do conceito entendido agora no sentido não-fregeano de regra conceitual. Pois se o conceito associado a um nome próprio for, como parece claro, sua própria regra conceitual de identificação, então a existência, a satisfação do conceito, não parece ser mais é do que a efetiva e contínua aplicabilidade da regra de identificação associada ao nome próprio. Isso pode parecer estranho, mas fica mais razoável se parafrasearmos usando uma linguagem-objeto, ou seja, dizendo que a existência do objeto reduz-se à meta-propriedade que ele tem de sua regra de identificação (caso ela exista) lhe ser efetivamente e continuamente aplicável, enquanto que se o objeto não possui essa meta-propriedade ele não é real, mas meramente imaginário.[23] Assim, aplicar a regra de identificação para Aristóteles em um mundo possível é o mesmo que admitir que Aristóteles existe nesse mundo, não podendo haver nenhuma lacuna entre uma coisa e outra. Por isso, a efetiva aplicabilidade da regra de identificação é, de algum modo, “constituidora” do objeto, que só ganha “ser” como aquilo a que a regra (exista ela ou não) é efetiva e continuamente aplicável.
   Essas reflexões nos permitem explicar porque nomes próprios são designadores rígidos. O designador rígido, no sentido mais razoável desse conceito, se define como aquele que é aplicável em todos os mundos possíveis nos quais a sua referência existe. Ora, o nome próprio é um designador rígido porque a sua regra de identificação é necessariamente aplicável em qualquer mundo possível no qual a sua referência possa ser dada como existente, o que é refletido na verdade convencionalmente necessária da frase que exprime a regra de identificação desse nome.
   Podemos nos perguntar agora: mas não existiriam casos incertos, mundos possíveis nos quais não há como saber se podemos ou não aplicar a regra, mundos nos quais só existe, digamos, “meio” Aristóteles? A resposta é afirmativa. Mas isso não tem a menor importância. A vaguidade é uma característica inexpugnável da linguagem, e uma verdadeira semântica dos mundos possíveis também precisaria ser adequada a isso. Certamente, há mundos possíveis nos quais não existe o suficiente de Aristóteles para sabermos se podemos ou não aplicar a sua regra de identificação. Neles não se há como atribuir nem existência nem inexistência a Aristóteles; e neles (assumindo a plausível ideia de que a vaguidade advenha da própria natureza das coisas) Aristóteles realmente nem existe nem não existe.  Isso não significa que o nome ‘Aristóteles’ não seja um designador rígido, pois fora dessa fronteira de indeterminação esse nome continua a poder ser garantidamente aplicável ou não.
   Há, por conseguinte, uma maneira natural de acomodar o conceito de designador rígido a tais casos. Basta redefinir mais adequadamente tal conceito como designando a propriedade de uma expressão referencial de se aplicar a todos os mundos possíveis nos quais o objeto referido definidamente existe. A rigidez é, em outras palavras, a propriedade da regra semântica de um termo referencial de “constituir” a existência do seu objeto em todos os mundos possíveis nos quais essa regra se revela (via atos verificadores) efetivamente e continuamente aplicável de uma forma definida, ou seja, sem que pairem dúvidas acerca disso.
   Seria ainda possível objetar lembrando o paradoxo sorites. Se há fronteiras de indeterminação, onde elas terminam?  Se não há um limite definido para o seu término, o que nos justifica dizer que já chegamos a uma zona de clareza na aplicação do conceito em que o portador do nome definidamente existe? Contudo, o sorites pode ser gerado para virtualmente qualquer termo vago de nossa linguagem sem que o termo deixe de ser na prática aplicável. Com efeito, mesmo conscientes do sorites, não deixamos de aplicar a palavra ‘calvo’ diante de uma cabeça realmente lisa, nem a palavra ‘monte’ diante de um monte realmente vultuoso. Não precisamos, pois, solucionar o sorites para aplicarmos a maioria de nossos predicados. Igualmente, não precisamos fazer desaparecer os casos indecidíveis para admitirmos que o nome próprio Aristóteles é um designador rígido.
   Uma pergunta interessante pode ser ainda colocada: alterações na regra de identificação são possíveis; mas elas não destruiriam a rigidez do nome próprio? A resposta resumida é: se a alteração da regra destruir a rigidez, ela carregará consigo o nome próprio. Mais detidamente diríamos que como a regra de identificação define o que o nome próprio é capaz de identificar, as alterações na regra precisam ser limitadas. As regras-descrições auxiliares podem sem dúvida ser alteradas, uma vez não são elas que decidem a aplicabilidade do nome próprio: pouco importa se Aristóteles foi ou não tutor de Alexandre. Quanto às regras-descrições fundamentais, podemos certamente aumentar o número de detalhes relativos à localização e caracterização. Isso acontece frequentemente com o aumento das informações obtidas e não altera a referência nem os mundos possíveis aos quais o nome se aplica. Mas não podemos alterar a regra de identificação de modo a alterar os mundos possíveis nos quais o nome próprio se aplica.
   Um exemplo que comprova esse ponto é o caso do nome Madagascar sugerido por Gareth Evans. A primeira regra de identificação localizava e caracterizava Madagascar como uma região na costa leste da África. Marco Polo equivocamente entendeu que Madagascar seria a grande ilha situada próxima da costa leste da África, alterando assim por completo a regra de identificação. Por causa desse erro a prática de chamar essa grande ilha de Madagascar tornou-se corrente tendo como resultado que o nome ‘Madagascar’ passou a ter dois significados correspondentes a duas regras de identificação para dois objetos diferentes: o do nome antigo se referindo a uma região costeira da África, que caiu em desuso, e o do nome dado por Marco Polo, referente à grande ilha.  

Porque descrições definidas não costumam ser designadores rígidos
Já vimos que uma vantagem da teoria causal-histórica estaria no fato de que ela fornece uma explicação aceitável para o fato de as descrições definidas serem designadores acidentais enquanto os nomes próprios são designadores rígidos: por se conectarem diretamente com o objeto, eles identificam-no em qualquer mundo possível onde ele exista; já as descrições, por fazerem isso indiretamente, por intermédio do conteúdo semântico conotado, são capazes de identificar objetos diferentes em diferentes mundos possíveis.
   Essa explicação é insatisfatória, na medida em que deve recorrer a uma misteriosa “conexão direta com o objeto” pretensamente possuida pelos nomes próprios. É uma grande vantagem para a teoria metadescritivista dos nomes próprios que ela possibilite uma explicação muito mais convincente da diferença de comportamento entre descrições e nomes próprios. Para chegarmos a essa explicação podemos começar perguntando: em que casos as descrições definidas se tornam designadores rígidos? Um caso à parte é aquele no qual elas são artificiosamente usadas de modo rigidificado. Para tal basta estipular, por exemplo, que a descrição ‘o último grande filósofo da antiguidade’ se refere necessariamente a Aristóteles, o que excluirá, por exemplo, que em outro mundo possível um mais influente filósofo antigo lhe tenha sucedido. Mas não é isso o que quero considerar aqui. Podemos fazer o que quisermos com a linguagem pela simples estipulação de novas convenções, sem que isso nos leve a lugar algum. O que quero considerar é o caso de descrições atributivas perfeitamente normais, que mesmo assim se deixam naturalmente interpretar como designadores rígidos. Eis alguns exemplos:

                              (A)
(i)              a raiz quadrada de nove,
(ii)            o ponto mais oriental da América Latina,
(iii)          o terceiro regimento de cavalaria de Sintra.
(iv)           o último período glacial,
(v)             o assassinato do arquiduque austríaco Ferdinando em Sarajevo em 1914.

Pela descrição (i) não estou entendendo o número 3, mas o procedimento de radicação que o tem como resultado. Essa descrição seria admitida pelo próprio Kripke como um designador fortemente rígido, posto que o seu caráter formal a torna aplicável em qualquer mundo possível. Mas não é ela que mais nos interessa aqui e sim as descrições (ii)-(v), cujo conteúdo é empírico. Considerá-las designadores rígidos ou não costuma depender da maneira como as interpretamos. Se entendermos a descrição (ii) como indicando um local geográfico no nordeste brasileiro onde se encontra a cidade de João Pessoa, que é onde em nosso mundo se situa o ponto mais oriental da America Latina, então essa descrição será acidental, pois em um mundo possível no qual a Patagônia fosse embicada em direção à África de modo a ficar mais ao leste do que João Pessoa a descrição (ii) se referiria a um local geográfico muito diferente. Comparamos aqui a descrição com a localização da cidade cujo nome é João Pessoa. Contudo, se definirmos (ii) como indicando simplesmente qualquer local que venha a se situar no ponto mais ao leste da América Latina, abstraindo de sua latitude e de qualquer especificação geográfica, então mesmo em um mundo possível no qual esse ponto esteja muito diversamente localizado, ele continuará sendo o mesmo ponto, a saber, o ponto mais oriental da América Latina. Nesse entendimento (ii) será um designador rígido, aplicando-se a qualquer mundo possível no qual exista uma América Latina e, portanto, a qualquer ponto geográfico que lhe seja mais oriental. Assim, se em um mundo possível a Patagônia fosse embicada em direção à África de modo a ficar mais ao leste do que João Pessoa, a descrição (ii) se aplicaria a algum local da Patagônia, sem deixar de designar um mesmo ponto. O interessante, nesse caso, é que essa leitura de (ii) como sendo um designador rígido não é nenhuma imposição estipulativa, mas uma interpretação natural do conteúdo da descrição.
   O ponto em questão fica mais claro quando consideramos outras descrições. Considere (iii): se tivermos em mente somente o terceiro regimento de cavalaria da cidade de Sintra (posto que há outros), na abstração dos soldados e cavalos particulares que o constituem (o que é usual), sua descrição se torna um designador rígido, aplicando-se ao mesmo regimento em qualquer mundo possível no qual esse regimento exista. As regras-descrições localizadora (em Sintra...) e caracterizadora (o terceiro regimento de cavalaria) já se encontram expressas na descrição.
   As descrições (iv) e (v) também podem ser interpretadas como rígidas. A descrição (iv) pode ser entendida como designando um estado de coisas caracterizado pelo último período de esfriamento da Terra. Em nosso mundo ele durou de 110.000 até cerca de 12.000 anos atrás, mas em uma situação contrafactual ele poderia ter ocorrido em um intervalo muito diverso, sem por isso deixar de ser o último período glacial. A descrição (iv) é um designador rígido de um duradouro estado de coisas localizado em nosso planeta. A descrição (v) é de um evento, contendo explicitamente a sua caracterização como sendo o assassinato do arquiduque Ferdinando. Em nosso mundo deveu-se ao tiro desferido por Gavrilo Princip, mas em outro mundo possível ele poderia ter sido causado por envenenamento, por estrangulamento etc. Poderia mesmo não ter sido o estopim da Primeira Guerra Mundial, conquanto circunstâncias outras fossem mantidas. Mas nem por isso deixaria de satisfazer a descrição do assassinato; uma descrição definida rígida, aplicável em todos os mundos possíveis nos quais o arquiduque foi assassinado.
   Vemos, pois, que existem descrições definidas de pontos, objetos, estados de coisas e mesmo eventos, os quais são naturalmente interpretáveis como designadores rígidos. Há alguma característica comum a todos esses casos? Há duas. Uma primeira é que eles constituem descrições expondo regras fundamentadoras de localização e/ou caracterização e não regras auxiliares, como no caso de descrições metafóricas ou acidentais. Essas não são essenciais, pois podemos bem inventar uma descrição metafórica ou acidental substituindo os casos acima e ela poderá ser rígida. A segunda característica, contudo, é indispensável: é a de que não existem nomes próprios correspondentes a nenhuma dessas descrições. Por isso as chamarei de descrições autônomas. Logo veremos ser esta a marca decisiva.
   Para contrastar, consideremos agora exemplos de descrições definidas atributivas, que se comportam como designadores claramente acidentais ou flácidos, capazes de se referir a objetos diferentes em diferentes mundos possíveis. Eis alguns exemplos:

                 (B)
(i)              a águia de Haia,
(ii)            o marechal de ferro,
(iii)          a cidade luz.
(iv)           o fundador do Liceu,
(v)             o primeiro imperador romano.

Essas descrições são designadores tipicamente acidentais. Contrariamente às descrições anteriores, rigidificá-las é possível apenas por estipulação. Considere (i): é natural pensarmos na descrição ‘a águia de Haia’ como uma metáfora laudatória do poder oratório de Rui Barbosa em sua passagem por Haia em 1907. Mas podemos conceber um mundo possível no qual o navio que levava Rui Barbosa ao congresso de Haia tenha naufragado no meio do atlântico e que ele tenha sido substituido por um orador igualmente excelso, o qual tenha sido cognominado pelos seus compatriotas de ‘a águia de Haia’. O mesmo vale para qualquer outra descrição do grupo B.
   A questão que se coloca é: o que torna as descrições do grupo B acidentais, em contraste com as descrições rígidas do grupo A? A resposta não é que as descrições do grupo B são auxiliares, pois poderíamos adicionar a essa última lista descrições como ‘o mais famoso jogador de futebol de todos os tempos’, ‘a cidade de mais de dez milhões de habitantes situada a margem do Sena’, que são fundamentais e mesmo assim acidentais. A resposta a essa altura bastante óbvia é outra. É que as descrições do grupo B, diversamente das pertencentes ao grupo A, encontram-se semanticamente associadas a nomes próprios correspondentes, os quais são, respectivamente, (i) Rui Barbosa, (ii) Floriano Peixoto, (iii) Paris, (iv) Aristóteles e (v) Júlio Cesar. Apesar de toda a força dessas associações, essas descrições não precisam ser verdadeiras para o mesmo objeto referido pelo nome próprio correspondente em todos os mundos possíveis em que esse objeto existe, pois há mundos possíveis nos quais Rui Barbosa desistiu de realizar missões diplomáticas, Floriano Peixoto foi um cândido adepto da monarquia, Paris foi destruída no século XIV antes de se tornar a cidade luz, Aristóteles não fundou nenhum Liceu e Júlio César defendeu tenazmente a república.
   A consideração desse ponto pesa contra explicações millianas-kripkianas da flacidez das descrições, segundo as quais elas são acidentais porque denotam indiretamente, com base em propriedades conotadas, e não diretamente, como é o caso do nome próprio. O que acabamos de evidenciar é que a descrição definida não é acidental em si mesma. Ela é chamada de acidental com respeito à associação que ela possui com um nome próprio. Ela se torna acidental por vir frouxamente, contingentemente, e não necessariamente associada a um certo nome próprio. Essa é uma conclusão que vale não somente para as descrições auxiliares como até mesmo para descrições fundamentais pertencentes a nomes próprios, uma vez que a regra de identificação admite a possibilidade da dissociação entre a aplicação do nome próprio e a aplicação isolada de tais descrições.
   Podemos expor essa mesma idéia dizendo que praticamente qualquer descrição pertencente ao feixe de descrições representado pelo nome próprio possui uma associação semântica contingente com o restante das regras-descrições constitutivas do conteúdo informativo desse nome. Essa associação acontece por ser tal descrição por nós considerada como participando do conjunto das descrições que constituem o conteúdo semântico do nome próprio sem que da aplicação do nome próprio se siga necessariamente a aplicação da descrição, e sem que da aplicação da descrição se siga necessariamente à aplicação do nome próprio. Ou seja, a referida associação semântica é contingente ou acidental no sentido de que ela não é um traço indispensável à aplicação do nome próprio, de modo que a descrição definida e o nome próprio ao qual ela se associa apenas tendem a se referir ao mesmo objeto, não o fazendo necessariamente. Trata-se de uma relação que supomos ser o caso, apesar de sermos capazes de imaginar situações contrafactuais nas quais ela não existe. Assim, a descrição auxiliar ‘o amante de Herphylis’ se aplica a Aristóteles, pelo que sabemos, mas não é impossível que se descubra que os documentos que Aristóteles deixou relativos a sua herança tenham sido falsamente transcritos... Em nosso mundo ‘o autor do opus aristotélico’ é a descrição caracterizadora de Aristóteles. Mas em outro mundo possível, no qual Aristóteles morreu logo depois de chegar a Atenas, nunca tendo escrito o opus aristotélico, essa descrição – para os falantes desse mundo possível – perderá a associação semântica contingente que ela possuia com o conteúdo semântico do nome próprio ‘Aristóteles’, mesmo que ela seja parte fundamental (mas não imprescindível) da nossa regra de identificação para esse nome. Em outras palavras:

Por causa de uma possível desconexão entre referência do nome próprio e a referência das descrições a ele frouxamente associadas, essas descrições se tornam capazes de designar outro ou talvez nenhum referente em outros mundos possíveis nos quais o nome próprio a elas associado continua a se aplicar ou mesmo deixa de se aplicar. É apenas por essa razão que elas são designadores acidentais.

Um exemplo para esclarecer. Uma descrição como ‘o primeiro imperador romano’ exprime parte da regra-descrição caracterizadora de Júlio Cesar (ele foi o primeiro imperador, embora de modo não-oficial). Como a regra disjuntiva para a identificação de Júlio César é mais completa, permitindo identificar o objeto muito mais especificamente, nós consideramos a descrição ‘o primeiro imperador romano’ como exprimindo uma propriedade contingente, ainda que importante, de Júlio César. É contingente porque segundo a sua regra de identificação, ele poderia ser identificado como tal mesmo no caso em que essa descrição não viesse a lhe pertencer. Só por isso é que essa descrição se torna acidental, havendo mundos possíveis nos quais a propriedade referida por ela pode pertencer a outro objeto, ligando-se a outras descrições fundamentais, como no mundo possível no qual Pompeu foi o primeiro imperador romano, ou mesmo a nenhuma, como no mundo possível no qual Júlio Cesar foi um teimoso defensor da república e no qual essa instituição persistiu até o fim do império.
   Claro que podemos por estipulação abstrair da relação da descrição ‘o primeiro imperador romano’ com certo imperador específico designado pelo nome ‘Júlio César’; nesse caso a descrição se torna um designador rígido, pois ela designará o primeiro imperador romano em qualquer mundo possível no qual ele venha a existir. Esse estratagema pode ser aplicado a qualquer outra descrição de aplicação unívoca. Contudo, no caso das descrições do grupo A a rigidez se demonstra uma característica natural da descrição. Considere A(iii): ‘o terceiro regimento de cavalaria de Cintra’. Por força das convenções tácitas estabelecidas por nossa prática linguística, essa descrição sempre se aplicará ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse regimento exista. A explicação dada acima explica porque isso ocorre. Assim, como as descrições do grupo A não se encontram frouxamente associadas ao conteúdo semântico de nome próprio algum, elas não tem como se referir a objetos diferentes em outros mundos possíveis nos quais esse objeto venha a existir, sendo isso o que as torna nomeadores rígidos. Vemos, pois, que muito diversamente do que Kripke sugeriu, as relações descrição/designador acidental e nome próprio/designador rígido não tem nada a ver com o mecanismo de referência dessas diferentes espécies de termos singulares, mas tão somente com as relações que elas são capazes de possuir uma com a outra.
   Um ponto a se adicionar é que nos casos em que a descrição definida é auxiliar, a regra de conexão com o objeto por ela expressa não é em si mesma suficiente para identificá-lo como o objeto referido pelo nome próprio ao qual se associa. Uma descrição como ‘a águia de Haia’, por exemplo, não é capaz, pelo seu conteúdo explícito, de identificar Rui Barbosa na independência da regra de identificação geralmente associada ao nome ‘Rui Barbosa’, pois essa descrição honorífica não possui conteúdo descritivo suficiente para tal. Por isso em um outro mundo possível uma descrição como ‘a águia de Haia’ pode vir contingentemente associada a um outro nome próprio, digamos, João da Silva, pertencendo então ao halo semântico desse outro nome próprio.
   Finalmente, podemos esclarecer mais qualificadamente o que seja a associação semântica frouxa entre descrição e nome lançando mão da distinção wttgensteiniana entre critérios e sintomas[24]. Critérios (segundo uma interpretação corrente) são propriedades definitórias. Uma vez aceitas como dadas, elas constituem condições que para nós garantem a aplicabilidade de um termo conceitual. Sintomas ou critérios secundários, por sua vez, são propriedades que uma vez aceitas como dadas tornam apenas provável a aplicabilidade do termo conceitual. Assim, o encontro do plasmodium falciparum no sangue de um paciente seria critério de malária, enquanto uma febre intermitente é um mero sintoma. Aplicando essa distinção à relação entre nome próprio e descrição definida vemos que as propriedades demandadas para a aplicabilidade da regra de identificação de um nome próprio valem como critérios para a sua aplicabilidade, enquanto as propriedades demandadas pela regra de uma descrição definida pertencente ao feixe de descrições associadas a um nome próprio são mero sintoma para a aplicação do nome, uma vez que apenas tornam essa aplicação provável.
   As considerações feitas até aqui nos permitem prever que a dependência que a descrição definida tem do contexto semântico do nome próprio correspondente deve ser menor quanto mais irrelevante ela for para a identificação do objeto. Assim, será mais fácil considerar acidental uma descrição definida auxiliar como ‘o tutor de Alexandre’ ou ‘o neto de Achaeon’ ou ‘o amante de Herphylis’, posto que ela desempenha um papel secundário na determinação da referência do nome ‘Aristóteles’. Mas será menos fácil no caso das descrições fundamentais como a do autor da Metafísica. E se a descrição definida contiver da maneira certa tudo aquilo que é essencial ao nome próprio ao qual se encontra subordinada, ela se tornará inevitavelmente rígida. Esse é o caso de DD-‘Aristóteles’, da formulação descritiva da regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’ que, como vimos, é rígida.
   Se a flacidez é proveniente do contraste da descrição com o nome próprio, podemos nos perguntar se ela não ocorre também pelo contraste entre um nome próprio e outro. Esse deveria ser o caso de dois nomes próprios de um mesmo objeto quando um deles inclui contingentemente em seu feixe as descrições que pertencem ao outro. Isso parece ocorrer especialmente no caso de apelidos. Considere o caso do jovem colegial de nome Jacinto, que por custar muito a entender as coisas foi apelidado pelos seus maldosos colegas de Cabeça-de-Bigorna ou, para simplificar, “Bigorna”. Há mundos possíveis nos quais Jacinto não era um aprendiz moroso, ou não teve colegas maldosos, ou em que o seu colega João da Silva é quem recebeu esse apelido. Nesses mundos o apelido ‘Bigorna’ ou não se aplica, ou identifica outra pessoa que não Jacinto. Esse apelido é – se considerado por contraste com o nome próprio mais autorizado – um designador acidental; um nome próprio flácido.
   As explicações recém-apresentadas para a diferença no comportamento semântico entre nomes próprios e descrições definidas não são apenas mais detalhadas do que a obscura sugestão referencialista de Kripke, segundo a qual o nome próprio refere por possuir alguma relação de secreta de indevassável intimidade com o seu objeto. Elas tem mais poder explicativo ao justificarem casos de exceção. Com elas, a rigidez do nome próprio deixa de ser entendida como uma misteriosa propriedade de designar o objeto em si mesmo, sem a intermediação de propriedades, para se tornar a metapropriedade de designar o objeto que possui quaisquer combinações de propriedades que satisfaçam a sua regra de identificação.
   Finalmente, é interessante considerar as regras de identificação de descrições autônomas (não associadas a nomes próprios), uma vez que elas funcionam da mesma maneira que as regras de identificação de nomes próprios. Considere a descrição definida ‘o último período glacial’. Por ser autônoma, essa descrição precisa exprimir a regra de identificação de um nome próprio, contendo uma regra de localização:

Regra-descrição localizadora: o último período glacial ocorrido no planeta terra no máximo até o presente.

Embora ele tenha ocorrido no período pleistoceno, de aproximadamente 110.000 a 12.000 anos antes de nosso tempo em toda a terra e tenha sido precedido de vários outros períodos glaciais semelhantes, ele poderia ter ocorrido em um outro período de tempo mais longo ou curto terminando antes ou depois. Mas há também uma regra de caracterização para o último período glacial. Ei-la:

Regra-descrição caracterizadora: um longo período de diminuição da temperatura da superfície e atmosfera terrestre resultando na expansão dos mantos de gelo continentais e polares, assim como glaciares e alpinos.

Por funcionarem como nomes próprios, as descrições autônomas demandam, para sua aplicação, a complexidade necessária a uma regra de identificação, o que não é exigido de descrições usadas em substituição a nomes, como é o caso de ‘a águia de Haia’.

Respostas aos contra-exemplos de Kripke
Gostaria agora de examinar as objeções usualmente feitas às teorias descritivistas dos nomes próprios por defensores de teorias causais-históricas. Quero demonstrar que a teoria meta-descritivista dos nomes próprios é capaz de oferecer respostas mais detalhadas e convincentes a essas objeções, as quais geralmente falham em distinguir o papel das regras fundamentadoras, quando não falham em considerar o papel descritivamente relevante da história causal e do contexto.

1. Objeção de rigidez
Consideremos primeiro a objeção de rigidez (modal), segundo a qual se o descritivismo fosse correto então os nomes próprios não poderiam ser designadores rígidos, posto que descrições não são designadores rígidos.
   A resposta geral a essa objeção é que embora nenhuma regra-descrição de primeira ordem precise se aplicar em todos os mundos possíveis em que o objeto definidamente existe, a regra-descrição de identificação do nome próprio (resultante da aplicação da regra meta-identificadora às suas específicas regras-descrições localizadora e/ou caracterizadora) se aplica necessariamente em todos os mundos possíveis em que o objeto definidamente existe. (Como já vimos, podemos ter mundos possíveis nos quais não se pode saber se a regra de identificação de um nome próprio se aplica ou não; mas tais mundos coincidem com aqueles nos quais o objeto também não possui uma existência definida, uma vez que a própria existência do objeto se define pela efetiva aplicabilidade dessa regra.)
   Kripke considera casos nos quais nossas descrições definidas fundamentais não se aplicam, como aquele em que Aristóteles morreu muito jovem, nunca tendo escrito os textos filosóficos pelos quais o seu nome é lembrado, ou ainda, um mundo possível (dificilmente imaginável) no qual Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde. Ainda nesses casos, pensa ele, podemos reconhecer Aristóteles, o que o leva à conclusão de que até mesmo a disjunção das descrições do feixe é desnecessária à aplicação do nome.[25] Mas essa conclusão é simplesmente falsa, pois tudo o que Kripke nos oferece como exemplo é o caso de não-aplicação da regra caracterizadora acompanhada de uma aplicação tácita da regra localizadora, ou vice-versa. Contudo, já vimos que esses casos são previstos como plenamente compatíveis com a aplicação da regra de identificação do nome próprio. O que Kripke jamais chega a considerar é um caso no qual o que vimos ser a regra identificadora de um nome próprio não seja aplicável e ainda assim o seu portador exista.  Ele não é capaz de nos fornecer um exemplo concreto em que a disjunção das descrições do feixe seja realmente desnecessária, a saber, no qual nenhuma das descrições se aplique em medida alguma. E isso acontece pela simples razão de que tal exemplo é inconcebível! Como bem notou Searle, não pode ser que Aristóteles seja o nome de um iletrado vendedor de peixes veneziano do Renascimento tardio.
   Um mais ardiloso contra-exemplo de Kripke ao descritivismo diz respeito ao nome próprio ‘Hesperus’.[26] Se Hesperus abreviasse a descrição ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’, diz ele, então isso seria uma verdade necessária. Mas imagine que depois de ter sido cunhado esse nome, um planeta errante do mesmo tamanho tivesse colidido com Hesperus, de modo que ele deixasse de ser visível ao entardecer, ou então (para piorar as coisas) tenha em seu lugar se tornado visível ao entardecer o próprio planeta errante. Nesse caso não parece que com o nome ‘Hesperus’ estamos nos referindo ao corpo celeste que satisfaz a descrição ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’, mesmo que enganosamente acreditemos nisso.
   Esse contra-exemplo deve parte de sua eficácia ao fato de que o nome próprio ‘Hesperus’ pode realmente ser entendido referindo-se a algo como o corpo celeste mais brilhante (regra caracterizadora) que aparece ao anoitecer na direção do sol (regra localizadora). Certamente, era isso o que havia sido entendido com a palavra antes de a astronomia ter sido desenvolvida, quando não se sabia ainda diferir Hesperus, o planeta, de Hesperus, um anjo reluzente. Nesse caso não pode ser que Hesperus não satisfaça a descrição, pois o nome se refere a uma mera aparência perceptual. Mas ninguém mais hoje se atém a esse sentido decíduo da palavra e referindo-se a um planeta Kripke não pode estar tendo em mente esse sentido..[27]
   Para responder ao contra-exemplo, comecemos considerando a questão tendo em mente a concepção meta-descritivista ao invés das simplificações caricaturais do descritivismo sobre as quais Kripke ergue seus argumentos. O caso do nome próprio Hesperus deve ser assimilado ao do planeta Vênus, uma vez que com a palavra ‘Hesperus’, hoje, o que temos em mente é Vênus aparecendo para nós ao anoitecer.[28] Podemos, pois, assimilar a regra caracterizadora do planeta Vênus à regra localizadora de Hesperus, posto que a propriedade que realmente nos importa é a de ser o segundo planeta do sistema solar e não o fato de ele aparecer ao anoitecer (Se Vênus perder a atmosfera que o torna brilhante ou grande parte de sua massa, mas ainda assim não se tornar um mero asteróide, continuando como um planeta, sua regra de identificação continua sendo satisfeita pela satisfação da sub-regra localizadora e diremos que Hesperus deixou de ser visível.) Assim, a descrição localizadora-caracterizadora essencial à identificação de Hesperus, que por mera questão de clareza chamo de (Vênus)-Hesperus  é:

RI-‘(Vênus)-Hesperus’: o segundo planeta do sistema solar, que tem orbitado o sol entre Marte e a Terra por todo esse tempo e que sempre foi visível como a estrela da tarde.

Essa descrição localizadora-caracterizadora pode ser colocada sob a forma standard de uma regra de identificação que, por unificar a regra de identificação de Vênus com a regra de identificação de Hesperus se torna a seguinte regra conjuntiva:

RI-‘(Vênus)-Hesperus’:
O nome próprio ‘(Vênus)-Hesperus’ refere-se propriamente a um objeto x pertencente à classe dos corpos celestes
see
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ser o segundo planeta do sistema solar, que tem orbitado o sol entre Marte e a Terra por todo esse tempo.
 e
(i-b) x satisfaz a sua regra de atribuição de ser o planeta mais brilhante que sempre foi visível como a estrela da tarde (Hesperus).
(ii) x satisfaz a conjunção (i-a) ou (i-b) em medida no todo suficiente e
(ii)             x satisfaz a conjunção (i-a) ou (i-b) mais do que qualquer outro corpo celeste.
 (Assumindo-se junto a isso a satisfação de uma condição causal do tipo Cc.)

Nesse caso, a regra de identificação será de um tipo que exige a necessária satisfação dessa regra-descrição localizadora, tal como no exemplo da regra de identificação do planeta Vênus. Isso demonstra que a satisfação da descrição proposta por Kripke ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’ só é relevante como um possível meio de identificação do planeta tido até hoje. Afinal, se Hesperus perdesse a sua atmosfera e por isso deixasse de brilhar à noite, ele não deixaria de ser Hesperus. Se um planeta errante chocar-se com Vênus(-Hesperus) e o lançar para fora do sistema solar, mesmo lá fora ele continuará sendo o nosso Vênus, pois a regra RI-‘(Vênus)-Hesperus’ continuará sendo aplicável. Ademais, no caso em que um planeta errante vir a tomar o lugar de Hesperus, mesmo que ele satisfaça essa descrição de ser a estrela mais luminosa que aparece “por lá” ao anoitecer, ele não satisfará RI-‘(Vênus)-Hesperus’, pois não era ele que orbitava o sol desde que foi descoberto como sendo Vênus e mesmo antes disso. Por isso, se o que nós virmos “por lá” ao entardecer deixar de satisfazer a regra de identificação – por não ser o planeta que orbitou o sol no tempo de sua denominação, mas, digamos, o planeta errante que acabou de tomar o lugar do verdadeiro Vênus – ele não será mais o Vênus(-Hesperus), mas outra coisa. E isso será assim, não tanto por não ser mais a fonte causal-histórica do batismo, mas por não se conformar mais com nossa descrição localizadora-caracterizadora mais fundamental. O mesmo não seria o caso se fosse no passado, antes da descoberta de (Vênus)-Hesperus. Imagine que um dia se descubra que há milhões de anos um planeta errante tomou o lugar do segundo planeta do sistema solar primitivo. Não deixaremos por isso de chamar esse (Vênus)-Hesperus de Hesperus ou de Vênus. Diremos apenas que se descobriu que nosso (Vênus)-Hesperus é um planeta que não fazia parte do sistema solar primitivo. Em ambos os casos o que determina a existência de Hesperus é a descrição fundamental expressa por RI-‘(Vênus)-Hesperus’.

2. Objeção da necessidade indesejável
Vejamos agora a objeção de necessidade indesejável (epistêmica). Essa objeção parte da constatação de que, sendo os nomes próprios designadores rígidos, eles se aplicam necessariamente aos seus objetos. Como nenhuma descrição se aplica necessariamente ao seu objeto, nomes próprios não podem ser reduzidos a descrições.
   Considerando que essa objeção, como já vimos, se aplica no máximo a uma caricatura do descritivismo, seria ainda mais disparatado querer aplicá-la ao metadescritivismo. O que necessariamente se aplica, caso o objeto definidamente exista, é apenas a regra de identificação (i.e. ao menos uma descrição fundamental deve ser suficientemente e predominantemente aplicável a algo). Assim, como também já vimos, a regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’ pode ser transformada em uma descrição definida necessariamente aplicável, abreviadamente expressa como:

        DD-‘Aristóteles’:
a pessoa que satisfaz suficientemente e predominantemente as descrições de ter nascido em Estagira em 384 a.C., filho do médico da corte, ter vivido em Atenas e falecido em Chalkis em 322 a.C. e/ou a pessoa que foi o autor da filosofia exposta no opus aristotélico.

Ao fazermos tal consideração, não devemos nos esquecer que as descrições constitutivas do significado de um nome próprio são capazes de ser facilmente alteradas (quando auxiliares) e frequentemente mais detalhadas (quando fundamentais) ou mesmo em alguma medida alteradas, conquanto não ponham a perder a unidade do significado ou a rigidez – a capacidade de identificar uma e a mesma coisa em qualquer circunstância na qual ela exista, admitindo que a existência não seja mais do que a própria aplicabilidade efetiva da regra de identificação.
   Suponha que seja descoberto que Aristóteles não escreveu a Ética a Nicômano, ou que ele não nasceu em Estagira, mas na Magna Grécia anos mais tarde. Essas descobertas teriam de ser acompanhadas de muitas outras alterações em nosso conhecimento histórico. Mas isso não nos impedirá de supor que em um certo mundo possível em que ele tenha escrito Ética a Nicômano (além de todas as outras obras) e tenha nascido em Estagira em 284 a.C. filho de Nicômano, o médico da corte de Felipe, ele não seja reconhecido como o nosso Aristóteles até mesmo melhorado (por exemplo: imagine que nesse mundo ele tenha vivido tanto quanto Platão e escrito várias outras obras importantes...). Ou seja, podemos alterar uma regra de identificação na medida em que em circunstâncias muito diversas (outros mundos possíveis) continuamos sendo capazes, através da mesma regra alterada, de identificar exatamente o mesmo objeto. Mas ultrapassados certos limites, o objeto identificado deixará de ser o mesmo, posto que a regra de identificação passará a ser uma considerada outra, identificadora de um outro objeto.
   O caso do impostor de nome ‘Arthur Orton’ pode ser de algum auxílio no esclarecimento desse ponto.[29] Nascido na Inglaterra e tendo ido cedo para o mar, ele foi certamente identificado através de regras de localização e caracterização por todos os que realmente o conheceram. Anos após, quando estava na Austrália, ele leu em um jornal que uma senhora inglesa, lady Tichborne, estava em busca de seu filho Roger Tichborne, que tinha desaparecido em um naufrágio no Atlântico, e que ela se negava a acreditar que ele havia morrido. De volta à Inglaterra, apesar de sua falta de semelhança com Roger Tichborne, Orton apresentou-se a ela como sendo o seu filho, tendo com sido imediatamente “reconhecido” pela velha dama e vivido no lugar de seu filho pelo menos até o falecimento de Lady Tichborne três anos depois. Depois disso Orton foi acusado por familiares de Lady Tichborne e condenado a 14 anos de cadeia. Note que a regra caracterizadora pela qual conhecemos Orton é a de um grande impostor. Mas quase todos hoje acreditam que se trata de uma pessoa que foi falsamente reconhecida como sendo Tichborne pelo compartilhamento muito parcial de uma regra de identificação principalmente pela descrição localizadora, adicionada ao desejo que a senhora inglesa tinha de acreditar. Ou seja: regras de identificação suficientemente distintas para serem consideradas não-rígidas, ou seja, capazes de identificar objetos diferentes algum mundo possível no qual esses objetos existem, ou seja, nos quais tais regras são definidamente aplicáveis, não identificam o mesmo objeto. Ao que tudo indica, há muitos mundos possíveis nos quais Arthur Othon não é Roger Tichborne, especialmente o nosso. Alterar uma regra de identificação não pode ser o mesmo que a criação de uma outra.
   Passemos agora ao mais famoso exemplo de Kripke, concernente à descrição que a maioria das pessoas associa ao lógico Kurt Gödel. Essa descrição é: ‘o homem que descobriu a incompletude da aritmética’. Kripke pede-nos para imaginar que Gödel não descobriu realmente o teorema da incompletude. Suponhamos, diz Kripke, que Gödel tenha tido um amigo, um obscuro lógico chamado Schmidt, que desenvolveu sozinho o teorema de incompletude em um artigo e morreu logo depois em circunstâncias obscuras. Gödel apossou-se então do artigo e o publicou em seu próprio nome. Imagine também que, como muitas outras pessoas, tudo o que uma certa pessoa, que chamarei aqui de Maria, associa ao nome ‘Gödel’ é a descrição ‘o inventor do teorema da incompletude da aritmética’. Nesse caso, pensa Kripke, segundo o descritivismo, quando Maria fica sabendo que foi Schmidt quem descobriu o teorema da incompletude ela deve ser levada à conclusão de que o nome ‘Gödel’ significa o mesmo que ‘Schmidt’, ou seja, de que Gödel é Schmidt. Mas não é isso o que acontece. Pois continua bastante claro, mesmo para a própria Maria, que Gödel é Gödel e que ele não é Schmidt.[30]
   Discordando da análise de Kripke, John Searle notou que uma pessoa dirá que Gödel não é Smith porque ela entende por Gödel “o homem que minha comunidade lingüística, ou pelo menos aqueles através dos quais eu cheguei a esse nome, chamam de Gödel, assumindo que algo mais é requerido”.[31] Com efeito, se tudo o que Maria sabe sobre Gödel é que foi ele quem descobriu a incompletude da aritmética e se ela acha que isso é suficiente para a identificação, então ela não entende a gramática dos nomes próprios, não sabe o que é um nome próprio, não sendo capaz de lhe dar sentido.
   Ora, com base em nossa análise da forma da regra de identificação para nomes próprios podemos explicitar aquele algo mais que segundo Searle a pessoa assume que é requerido. Basta atentarmos para RMI2 e para as condições (i-a) e (i-b). Só isso nos leva a perceber que a conclusão de Kripke é incorreta. Ela é incorreta porque não leva em conta a regra de identificação que a comunidade linguística deve ter para o nome ‘Gödel’, que inclui a assunção feita por Maria, como falante competente da linguagem, de que ela não a conhece o suficiente para concluir que a referência se alterou (Maria certamente domina RMI2, sabendo que não sabe).
   Para analisarmos melhor o caso vejamos primeiro o que seria a regra de identificação do nome ‘Gödel’ para os nomeadores privilegiados da comunidade linguística. Do ponto de vista desses nomeadores há duas razões para Gödel não ser identificado com Schmidt. Em primeiro lugar, a descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’ não é mais do que uma parte da regra-descrição caracterizadora para Gödel. O teorema da incompletude foi apenas a mais importante dentre as variadas contribuições de Gödel. Além disso, mesmo sem ser Schmidt, Gödel foi um lógico suficientemente competente para trabalhar em Princeton e ser amigo de Einstein. Assim, a regra de caracterização para Gödel continua a ser parcialmente satisfeita pelo nome ‘Gödel’ (digamos, 2/3 dela), mesmo que ele não tenha descoberto o teorema em questão. A segunda razão pela qual a comunidade linguística continua a chamar Gödel de ‘Gödel’ é que a regra-descrição localizadora continua sendo plenamente satisfeita por Gödel! Afinal, ela continua sendo a regra de identificação de Gödel, e não a de Schmidt. Resumidamente:

Regra de localização: o homem que nasceu em Brünn em 1906, que estudou na Universidade de Viena e que em 1940 emigrou pela ferrovia transiberiana para os EUA, onde trabalhou na universidade de Princeton até a sua morte em 1978.

Assim, apesar de tudo a regra de identificação para Gödel continua sendo satisfeita para Gödel muito mais do que para Schmidt. Ao menos para quem realmente a conhece.
   Não devemos sobrepor nossa conclusão de que Gödel não pode ser Smith à conclusão de Maria, pois a essa última, por carecer de informação, só resta suspender o juízo (Cf. condição (b-2)). Afinal, seu domínio da gramática dos nomes próprios lhe permite concluir que ela não tem elementos suficientes para afirmar que Gödel é Schmidt. Maria está certamente ciente de que ao associar o nome ‘Gödel’ à descrição ‘o inventor da prova da incompletude da aritmética’ ela certamente conhece apenas uma parte da regra-descrição caracterizadora de Gödel, que deve ser mais completamente dominada por alguns outros membros da comunidade linguística. Mas o ponto crucial é que, como falante competente da linguagem, Maria sabe que sendo Gödel o nome de uma pessoa deve haver também alguma regra de localização espaciotemporal para Gödel, a qual ela desconhece, uma regra que precisa ser diferente da regra de localização espaciotemporal para Smith, posto que as informações que ela tem são de que que Smith é outra pessoa (Gödel não poderia matar-se a si mesmo para então roubar-se o manuscrito). Sabendo disso, e sabendo que desconhece as regras de localização, ela sabe que não se encontra em condições de concluir que Gödel é Schmidt, diversamente de nós, que, como nomeadores privilegiados, sabemos que Gödel não pode ser Schmidt. Maria sabe implicitamente que para que haja referência, mesmo que secundária, ela deve conhecer condições de convergência (inclusão do nome na classe correta de objetos) e possuir competência linguística (que depende do conhecimento de RMI2). Mas por isso mesmo ela sabe que não sabe o suficiente sobre o nome Gödel para ter a pretenção de saber que Gödel é Schmidt.
   Há uma curiosidade a respeito. Como ao menos parte de uma das duas descrições fundamentais identificadoras de Gödel é satisfeita por Schmidt, é possível dizer que este último passa a herdar alguma coisa do significado do nome ‘Gödel’, mesmo que não ganhe a sua referência. E isso realmente acontece. Digamos que um lógico, revoltado pela notícia acerca do roubo do teorema e com pena de Schmidt, lance a exclamação: “Schmidt é quem foi o verdadeiro Gödel!” Essa é uma frase verdadeira se for entendida como uma hipérbole. E a razão pela qual ela é verdadeira é dada pela teoria metadescritivista, a qual prevê que o nome ‘Schmidt’ herda alguma coisa relevante, mesmo que insuficiente, do significado do nome ‘Gödel’.
   Há, por fim, uma maneira de fazer com que Gödel seja realmente Schmidt, mas ela dá a Kripke o bolo sem o direito de comê-lo. Imagine a inverossímil estoria de um jovem chamado Schmidt, que por alguma razão assassinou o adolescente Gödel, conseguido assumir a sua identidade. Contudo, Schmidt era não só um assassino genial, mas também um lógico genial, de modo que ele estudou na Universidade de Viena, descobriu a incompletude da aritmética, casou-se com a dançarina Adele, fugiu do nazismo pela ferrovia transiberiana e tornou-se professor em Princeton, onde faleceu em 1978. Logo, não se deixem iludir pelas aparências: aquele sujeito franzino de calças curtas junto a Einstein na famosa foto de ambos era ele mesmo, o criminoso Schmidt! Nesse caso não há dúvida de que Gödel é Schmidt. E o metadescritivismo explica: ele é Schmidt porque as regras-descrições caracterizadora e localizadora predominantes, com exceção das descrições relativas à infância remota, são as de Schmidt e não as da criança que uma vez foi chamada de Gödel, a qual há muito deixou de existir.

3. Objeção da ignorância e erro: nomes próprios ficcionais
Vejamos agora casos que envolvem ignorância e erro. Eles são importantes por iluminarem o caráter social dos conteúdos representacionais envolvidos na referência.
   Um caso especial de ignorância e erro (além de necessidade indesejável) exposto por Kripke foi o de nomes próprios parcialmente ficcionais, como Jonas, o pregador. Ele distingue tais casos daqueles de nomes próprios puramente ficcionais, como Santa Claus. Mesmo que tenha existido um religioso com o nome de Santa Claus no passado, sabemos que o nosso Santa Claus nada tem a ver com ele e que se trata de meros homônimos casuais, assim como Napoleão como o nome da figura histórica e Napoleão como o nome do cão assim batizado.[32] Mas o mesmo, pensa Kripke, não se dá no caso de Jonas. Segundo a Bíblia, Jonas foi um pregador enviado por Deus à cidade de Nineveth para converter os pagãos e que acabou sendo engolido por um grande peixe... Mas ninguém acredita que essas descrições sejam verdadeiras. Mesmo assim, estudiosos da Bíblia acreditam que realmente existiu uma pessoa que originou a estória.[33] Mas se é assim então o descritivismo está errado, pois não possuímos descrições capazes de identificar univocamente Jonas[34]. E a teoria causal deve estar certa, pois o uso semificcional do nome foi realmente causado por seu portador.
   Um exemplo similar mais adequado é o do justiceiro Robin Hood. Historiadores crêem que a lenda de Robin Hood seja baseada em alguma pessoa real, que viveu no século XIII. Para tal há uma lista de candidatos. Entre eles, porém, encontram-se pessoas que não eram pobres, que não eram foras-da-lei, que não viveram na floresta de Sherwood e que nem sequer se chamavam Robin Hood! Contudo, o referente dessa figura parcialmente ficcional é suposto como sendo um e o mesmo, apesar do fato de não satisfazer propriamente descrição alguma. Para um filósofo como Kripke, a razão pela qual estamos no final das contas tratando de pessoas que realmente existiram é que a cadeia causal começou com o reconhecimento do personagem real. Desse modo a teoria causal-histórica parece possuir uma explicação para algo que a teoria descritivista não é capaz de explicar.
   Antes de respondermos, precisamos lembrar que há coisas que podem ser aceitas como portadoras do nome e outras não. Eis alguns exemplos de possíveis causas das lendas de Jonas e Robin Hood:

1)       Suponha que um antigo escrivão da Bíblia tenha pisado em um ouriço-do-mar, e que no doloroso período de convalescência que se seguiu, as lembranças do acidente o tenham induzido a inventar a história de Jonas.
2)       Ao atravessar uma floresta à noite algum escritor de ficção do final da Idade Média foi agredido pelas costas por um assaltante desconhecido, o que o deixou desacordado. Esse acidente o induziu a imaginar a estória de Robin Hood.
3)       Um bardo medieval tinha um fiel e valente cão que o acompanhava nas caçadas na floresta the Sherwood.  Esse cão havia sido batizado ‘Robin’. No final o cão acabou lhe inspirando a estória de um justiceiro chamado Robin Hood, que vivia na floresta e assaltava os mais ricos para ajudar os pobres.

Obviamente, ninguém dirá que o ouriço-do-mar é Jonas, que o ladrão desconhecido é Robin Hood ou que o cão batizado com o nome ‘Robin’ era Robin Hood só porque eles podem ser considerados as causas da posterior invenção desses personagens. Alguém poderá nesse ponto objetar que para Kripke a cadeia causal-histórica precisa ser associada a um ato de batismo, o que não é o caso. Mas o cão foi realmente assim batizado e todos sabiam seu nome e conheciam suas nobres qualidades. Além do mais, isso não teria acontecido com o nome ‘Robin Hood’ no caso de a pessoa que originou a lenda ter sido batizada, como alguns sugerem, com um outro nome. Quanto ao nome ‘Jonas’, podemos ainda imaginar que o antigo escrivão da Bíblia tenha guardado o ouriço-do-mar em sua casa e que logo depois de inventar a história de Jonas e contá-la aos seus amigos, ele tivesse tomado o ouriço em suas mãos e dito: “Por isso eu te batizo com o nome Jonas”. Não parece que ele teria sido capaz de por essa maneira originar uma cadeia causal capaz de fazer-nos reportar o nome ‘Jonas’ ao ouriço-do-mar, pois Jonas deveria ter sido uma pessoa enquanto o ouriço não teria nunca passado de um simples ouriço, assim como o cão foi um simples cão. De nossa parte, a subcondição da regra RMI, que exige classificação adequada, proibe seres não humanos de serem eventuais recipientes de nomes próprios como os do Jonas bíblico e do legendário Robin Hood.
   Por que em certos casos reconhecemos a causa como sendo o portador do nome e em outros não? A única resposta plausível é que a causa que reconhecemos como adequada é aquela capaz de satisfazer elementos cognitivos que associamos ao nome. Nos casos de Jonas e Robin Hood, mesmo havendo uma cadeia causal (o que deve ser indubitável), o que confere adequação a essa cadeia causal são representações descritivamente exprimíveis dela resultantes, mesmo que bastante vagas, de quem seriam Jonas e Robin Hood. Com efeito, a partir da história bíblica nós inferimos alguma coisa da descrição localizadora, qual seja, a de que o Jonas real teria sido um ser humano que viveu nos tempos bíblicos (entre 600 a 1.000 anos a.C.), e alguma coisa da descrição caracterizadora, qual seja, a de que ele teria sido uma pessoa envolvida com a religião. E quanto à pessoa que gerou a lenda de Robin Hood, sabemos que ela deve satisfazer alguma coisa da descrição localizadora de ter vivido na Inglaterra por volta do século XIII, além de alguma coisa da descrição caracterizadora, como a propriedade de ter sido alguma espécie de justiceiro. Além disso, em ambos os casos vagas histórias causais podem ser supostas. Segundo RMI2, a regra meta-identificadora para nomes próprios, seria essa provável satisfação genérica de regras-descrições fundamentais aquilo que torna esses nomes semi-ficcionais indicadores de coisas alegadamente reais. É verdade que essas descrições são insuficientes para a identificação unívoca de Jonas e de Robin Hood, mas não é isso o que pretendemos com elas; pois afinal não somos realmente capazes de identificar essas pessoas. O que elas nos permitem fazer é apenas propor hipóteses plausíveis – supor que esses personagens existiram realmente.
   Podemos, pois, distinguir nas descrições associadas aos nomes de personagens semi-ficcionais dois elementos. O primeiro é o elemento meramente ficcional, constituído de descrições geralmente coloridas e fantasiosas, que não foram feitas para se aplicar à realidade, como os sofrimentos de Jonas no interior do peixe ou os feitos heróicos de Robin Hood. O segundo é o elemento não-ficcional; são descrições localizadoras e caracterizadoras muito vagas, que seriam implicadas pelas regras localizadora e caracterizadora que supomos que poderiam ser completadas se dispuséssemos de informações suficientes a respeito do portador do nome. Aquilo que define o que chamamos de caráter semi-ficcional é a adição do elemento imaginativo, decalcado sobre critérios identificadores insuficientes que nos teriam sido originariamente legados, o que é complicado pelo fato de que não temos como dissociar suficientemente o que é mera produção da imaginação daquilo que seriam os traços restantes de critérios identificadores.
   Nada impede, porém, que em certos casos essa distinção possa ser esclarecida. Imagine que estudiosos descubram documentos comprovando que Robin Hood chamava-se na verdade Robart Hude, um fora da lei que realmente viveu na floresta de Sherwood no início do século XIII. Nesse caso, traços das descrições localizadora e caracterizadora que nos restaram demonstram-se verossímeis. Mas se esse não for o caso pode ser que estejamos diante de exemplos idênticos ao de Santa Claus, cuja ligação com um original histórico é meramente acidental. Há, pois, um esperado paralelo entre a incerteza ligada aos nomes semi-ficcionais e a insuficiência das descrições que a eles somos capazes de associar.

4. Objeção da ignorância e erro: descrições elípticas e incorretas
A mais interessante forma de objeção da ignorância e do erro é aquela na qual Kripke demonstra que geralmente as pessoas conseguem fazer com que um nome próprio tenha referência, mesmo quando a ele associam apenas uma descrição indefinida ou uma descrição incorreta. Exemplos do primeiro caso são os nomes ‘Cícero’ e ‘Feynman’, aos quais muitos associam apenas alguma descrição indefinida como ‘um famoso orador romano’ para o primeiro e ‘um grande físico norte-americano’ para o segundo.[35] Apenas uns poucos seriam capazes de explicar os discursos políticos de Cícero ou de dissertar sobre as contribuições de Feynman para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas são capazes de se referir a Feynman através de seu nome. Mais do que isso, as pessoas são capazes de usar um nome próprio referencialmente, mesmo quando associam a ele descrições blatantemente errôneas. Kripke observou que em sua época muitos associavam ao nome ‘Einstein’ à descrição ‘o inventor da bomba atômica’.[36] Com isso as pessoas já conseguiam se referir a Einstein, acreditou ele, apesar de a bomba atômica ter sido elaboração dos cientistas do projeto Manhattan, do qual Einstein nunca participou.
   Podemos retornar aqui à resposta já exposta anteriormente de que a descrição sustentada pelo falante deve estar em convergência com o conteúdo caucionado pela comunidade linguística no sentido de pertencer a uma classe C de nomes próprios. Essa convergência já permite um uso vago, que por isso mesmo não deve ser considerado inapropriado, do nome próprio na linguagem. Ela permite o que já chamamos de uma referência por empréstimo, não-autosuficiente, algo mais que um gesto em direção à verdadeira referência. Associando os nomes ‘Cicero’ e ‘Feynman’ a descrições indefinidas, e mesmo associando o nome ‘Einstein’ a uma descrição errônea mas convergente, as pessoas já se tornam capazes de colocar o nome próprio na órbita da referência, ou seja, de usá-lo em práticas linguísticas nas quais seu papel seja suficientemente vago e adequado para poder ser interpretado por nomeadores privilegiados como denotando de maneira aproximada o seu portador. Afinal, mesmo no caso de uma descrição incorreta, como ‘o inventor da bomba atômica’, a pessoa já sabe que o nome ‘Einstein’ se refere a um cientista e a um ser humano, e não, por exemplo, a uma espécie de pedra preciosa. Assim, se a pessoa disser que Einstein inventou a bomba atômica, outros poderão corrigi-la, admitindo que ela queria se referir à mesma pessoa a qual elas se referem com esse nome. Contudo, se, como já notamos, uma pessoa usasse o nome ‘Einstein’ para designar um diamante, ou usasse o nome ‘Feynman’ para designar uma marca de perfume, esse uso seria claramente inadequado, pois ela não estaria tentando se referir à mesma espécie de coisa a que nós nos referimos com esses nomes, não sendo geralmente capaz de inseri-los corretamente em situações dialógicas. Sequer uma referência não-autosuficiente é aqui alcançada.
   Seria possível opor à resposta descritivista o fato de que uma razão pela qual nos lembramos do físico Robert Oppenheimer é que ele foi o responsável pela criação da bomba atômica. Logo, quem diz que Einstein foi o inventor da bomba atômica está usando a regra caracterizadora do nome Oppenheimer, o que significa que deveria fazer referência a Oppenheimer ao falar de Einstein, o que não é o caso... A resposta a uma objeção como essa é que muito depende do que está sendo enfatizado. Se a frase fosse “O inventor da bomba atômica foi Einstein”, a pessoa seria de fato corrigida com a resposta de que o responsável pela criação da bomba foi Oppenheimer e não Einstein. Contudo, quando o nome próprio ‘Einstein’ está na posição de sujeito, nós enfatizamos a regra associada à descrição auxiliar ‘o portador do nome “Einstein’”. A posição de sujeito só deixa de importar aqui quando a informação é mais detalhada. Se uma pessoa dissesse: “Einstein foi o físico que dirigiu o projeto Manhattan, que produziu a primeira bomba atômica, tendo nascido em Nova York em 1904 e falecido de câncer em 1967”, nós não a corrigiríamos dizendo que Einstein não foi o responsável pela invenção da bomba atômica; nós diríamos que a pessoa está realmente se referindo a Oppenheimer.

5. Circularidade
Um último argumento de Kripke é o que apela à circularidade: o nome Einstein não pode ser explicado pela descrição ‘o criador da teoria da relatividade’, pois o nome ‘teoria da relatividade’ é explicado pela descrição ‘a teoria criada por Einstein’.[37] Uma circularidade semelhante ele aponta na explicação do nome próprio ‘Giuseppe Peano’. Muitos de nós associamos a esse nome a descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’. Trata-se, porém, de um engano. Peano apenas expôs os axiomas, adicionando ao seu texto uma nota na qual atribuía corretamente o seu descobrimento a Dedekind. O erro, de acordo com Kripke, perpetuou-se. Uma solução, escreve ele, seria dizer que Peano é ‘a pessoa que a maioria dos experts referem como sendo Peano’. Mas essa solução seria circular. Como identificar os experts em Peano? Suponhamos que eles sejam os matemáticos. Mas pode ser que a maioria dos matemáticos erroneamente associe ao nome Peano à descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’. Poderíamos então sugerir o recurso à descrição ‘a pessoa a qual a maioria dos Peano-experts refere pelo nome Peano’. Mas essa solução seria também circular, pois para identificar os Peano-experts já precisamos ter identificado Peano, já precisamos saber quem é Peano.[38]
   Essas objeções de circularidade são claramente falaciosas e me pergunto se alguma vez alguém já as levou a sério. Por certo é possível que alguém aprenda a teoria da relatividade na independência de qualquer referência ao nome de Einstein. E quanto a Peano, se tudo o que penso saber dele é que foi o descobridor dos axiomas da aritmética, essa é uma descrição falsa, mas convergente. Basta digitar “o descobridor dos axiomas da aritmética” no Google e acabarei descobrindo que estou enganado. Mas por ser convergente, a descrição já implica coisas verdadeiras, como o fato de que Peano foi um famoso matemático italiano. Assim, percebido o erro eu recomeço orientando-me por elas. Para aprender mais posso procurar em uma enciclopédia ou em um livro sobre a história da matemática. Lá eu encontrarei informações mais detalhadas, feixes de descrições oferecidas pelos matemáticos. De posse dessas informações e da bibliografia dada, eu chegarei a textos específicos sobre Peano, escritos por especialistas em Peano, e mesmo aos textos do próprio Peano. O processo não é circular, mas de ascenção em báscula: com base nas informações preliminares genéricas I1 sobre x somos capazes de procurar e encontrar as informações adicionais I2 sobre x; com base no conjunto das informações {I1, I2} sobre x tornamo-nos capazes de procurar e encontrar as informações I3 sobre x; com base então no conjunto de informações {I1, I2, I3} chegamos a I4 e assim por diante. Claro que cada novo corpo de informações adquirido já contém as informações anteriores e as iniciais, incluindo erros corrigidos, o que pode a um olhar desatento dar impressão de circularidade... Mas isso não é suficiente para tornar o processo realmente circular, uma vez que é o conhecimento adicionado e não o conhecimento preservado aquilo que nos leva a adquirir novo conhecimento.
   Isso também se aplica, certamente, ao procedimento que Kripke tenta exemplificar. É verdade que se para saber quem é o especialista em Peano precisássemos já saber tudo o que o especialista em Peano sabe sobre Peano, precisaríamos saber quem é Peano para saber quem é o especialista em Peano e cairíamos em circularidade. Mas como prcisamos, para saber quem é o especialista em Peano, de no máximo algumas generalidades sobre Peano (um grande matemático italiano do século XIX etc.), e para saber quem é Peano o especialista em Peano precisa saber muito mais coisas sobre ele do que sabemos, nós caímos, não em uma circularidade, mas em um movimento cada vez mais detalhador de informações sobre o objeto referido.

O enigma de Pierre
Em 1979 Kripke apresentou um problema que parecia colocar em questão tanto as respostas descritivistas quanto as respostas causalistas para o problema da referência. Pierre é um francês que quando criança acreditava na verdade da frase “Londres est jolie” (Londres é bonita). Adulto foi para Inglaterra viver em um bairro desagradável de Londres, acreditando então na verdade da frase “London isn’t pretty”. Ele mantém as duas crenças sem perceber a contradição. Mas se a origem causal do uso de ‘Londres’ e ‘London’ é a mesma, então ele deveria perceber que está atribuindo predicados contraditórios à mesma referência, mesmo porque ele é um lógico e um lógico não se contradiz.
   Nossa explicação do mecanismo de referência de nomes próprios explica perfeitamente o enigma de Pierre. Ele de algum modo não sabe que ‘Londres’ é ‘London’. De ‘Londres’ ele guarda apenas a descrição localizadora vaga ‘Londres é uma cidade’ e a descrição auxiliar ‘Londres est jolie’, o que lhe permite uma referência bastante insuficiente à Londres. Já de ‘London’ ele conhece o suficiente da descrição localizadora ‘Uma cidade localizada junto ao rio Tâmisa, na Inglaterra’ e a descrição caracterizadora ‘London é uma cidade grande, capital da Inglaterra’, além do conhecimento de sua descrição auxiliar ‘London não é uma bela cidade’, dominando assim a regra de identificação. Como ele não é capaz de associar os dois conjuntos de descrições que ele possui, uma vez que eles são disjuntos, ele não é capaz de perceber que ambos se referem ao mesmo objeto. Frege, como sabemos, já teria como resolver esse “enigma” em 1918.

Respostas aos contra-exemplos de Donnellan
Além das objeções feitas por Kripke precisam ser lembrados alguns contra-exemplos de Keith Donnellan apresentados em um importante artigo de 1970, onde ele defendeu uma teoria causal-histórica muito semelhante a de Kripke.

1. Tales o cavador de poços
O primeiro e mais interessante contra-exemplo diz respeito ao filósofo Tales, sobre o qual não sabemos muito mais do que a descrição definida ‘o filósofo milesiano antigo que afirmou que tudo é água’.[39] Imagine agora que as nossas fontes, Aristóteles e Herótodo, estivessem mal-informadas, e que Tales tenha sido apenas um sábio cavador poços que, cansado de sua profissão, exclamou: “Quem me dera se tudo fosse água para eu não ter de cavar esses malditos poços!”, e que um viajante com pouco conhecimento do dialeto local tenha por engano entendido essa frase como dizendo respeito à natureza última da realidade como sendo constituida de água, tendo sido esse engano repetido por Herótodo e por Aristóteles, que acabou por legá-lo à tradição filosófica. Afora isso, imagine que em tempos remotos tenha existido um eremita que nunca divulgou suas idéias, mas que realmente sustentou que tudo é água. Nesse caso, escreve Donnellan, nossa tendência seria a de pensar que com o nome ‘Tales’ não estamos nos referindo ao eremita, mas ao cavador de poços, apesar de ele não satisfazer nossa descrição. Nós fazemos essa referência, pensa ele, devido ao tear causal-histórico que se inicia com Tales, mesmo que associado a uma descrição errônea. A favor dessa conclusão está o fato de que não há relação causal alguma entre o nosso uso do nome ‘Tales’ e o eremita. Não é o pensamento desse eremita (talvez nunca transmitido a ninguém) de que tudo é água que foi lembrado por sucessivas gerações de filósofos.
   Vejamos primeiro como seria a resposta do descritivista. Ao examinar esse exemplo, Searle começou por relativizar a conclusão de Donnellan ao conceber uma versão do exemplo que parece contradizer a concepção causal-histórica. Se Herótodo tivesse um poço no qual um sapo coaxasse de modo a emitir sons parecidos com a frase “Tudo é água” e o sapo pertencesse à espécie chamada ‘Tales’, ele poderia ter dito “o Tales disse que tudo é água”, originando ele próprio o equívoco. Mas se a teoria causal-histórica é certa, uma vez esclarecidos sobre esse fato nós deveríamos concluir que com o nome ‘Tales’ estamos nos referindo ao sapo do poço de Herótodo, o que certamente não é o caso.[40] O que concluiríamos, certamente, é que Tales nunca existiu. Parece, pois, que só a origem causal não basta.
   Contudo, o que nos propomos notar aqui é que a teoria metadescritivista é capaz de produzir uma resposta à objeção de Donnellan enriquecedora de sua própria posição. Ela pode responder introduzindo descrições relativas ao que no capítulo anterior chamamos de história causal: a história que somos capazes de derivar de pontos nodais do percurso espaciotemporal delineado por uma cadeia causal. Searle pareceu ter percebido isso ao observar que:

Quando dizemos “Tales foi o filósofo grego que sustentou que tudo é água”, não queremos apenas dizer que qualquer um sustentou que tudo é água, nós queremos dizer a pessoa que era conhecida de outros filósofos gregos como argumentando que tudo é água, que era referida em seu tempo ou subsequentemente por algum predecessor grego pelo nome ‘Tales’, cujos trabalhos e idéias chegaram até nós postumamente através dos escritos de outros autores e assim por diante.[41]
           
Com efeito, mais do que qualquer outro filósofo, a importância de Tales está em seu lugar na história da filosofia ocidental, que é o de sua própria origem. Como resultado da longa história causal daí resultante, o que justifica a aplicação do nome passou a ser em grande parte a crença na aplicabilidade de uma variedade de considerações apresentadas por outros filósofos que demonstram o seu lugar, presença e influência na história da filosofia. Afinal, se hoje algum filósofo sugerisse que tudo é água, essa afirmação seria considerada simplesmente ridícula. Como resultado disso, se descobrirmos que na verdade Tales foi apenas um cavador de poços, tenderemos a oscilar entre a admissão de que ele realmente foi um cavador de poços e (como Searle também observou) a conclusão de que o filósofo ‘Tales’ na verdade nunca existiu.
   Ora, mesmo que não possamos resgatar cognitivamente supostas cadeias causais-históricas, nós podemos resgatar cognitivamente elementos da história causal, a saber, importantes acontecimentos espacio-temporais evidenciadores de pontos nodais de cadeias causais, principalmente através de elos representacionais ocorrentes nas mentes de certas pessoas e capazes de ser linguisticamente manifestados. No caso de Tales há descrições bem conhecidas, como a de que ele foi ‘a pessoa nomeada por Herótodo e Aristóteles na doxografia como sendo o filósofo pré-socrático que afirmou que tudo é água...’. Tais descrições nos permitem resgatar pontos nodais cognitivos da cadeia causal-histórica concernentes a representações que devem ter ocorrido nas mentes de Heródoto, Aristóteles e ainda outros. Afinal, tudo o que sabemos de Tales vem do que filósofos posteriores disseram dele. Nesse caso específico, a importância desses elementos históricos é tão grande que eles passaram a fazer parte de uma exposição mais completa da regra de caracterização de ‘Tales’, o filósofo. Ela pode ser muito resumidamente expressa como:

Regra de caracterização: O primeiro filósofo pré-socrático grego, referido na doxografia por Aristóteles e Herótodo como o filósofo que afirmou que tudo é água etc.

É óbvio que assim comprendida a regra de caracterização continua sendo em boa parte satisfeita pelo cavador de poços: Tales foi citado na doxografia por Aristóteles e Heródoto como tendo afirmado que tudo é água, mesmo no caso de ele não ter sido o primeiro filósofo pré-socrático, nem de ele ter dito realmente que tudo é água. Mais além, devemos adicionar a isso a demanda de satisfação da regra de localização espaciotemporal a ser resumida como:

Regra de localização: A pessoa que, segundo a doxografia, viveu provavelmente de 624 a 548-5 a.C., que nasceu e morreu em Mileto e que provavelmente viajou ao Egito etc.

 Podemos, pois, com muita tranquilidade, continuar a dizer que sabemos que mesmo sendo um cavador de poços sem qualquer relação com a filosofia, Tales satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro a sua regra disjuntiva e portanto a sua regra de identificação, continuando a ser o nosso Tales. Como o eremita de Donnellan satisfaz um pouco de A e nada de B, ele não pode ser Tales. Adicionalmente, devemos reconhecer que Tales não poderia ser um sapo que viveu por volta de 580 a.C. em Mileto, pela simples razão de que a regra de identificação demanda que ele pertença à classe G dos seres humanos.
   A assunção de uma história causal como parte da regra de caracterização no caso recém-exposto não deixa de ser de fundamental importância, sendo dessa maneira que a cadeia causal-histórica pode participar do metadescritivismo. Para evidenciarmos sua importância, basta imaginarmos que o eremita considerado por Donnellan, além de ter sustentado que tudo é água, tenha satisfeito a condição localizadora para Tales de ter vivido entre 624 e 548-5 a.C., tendo nascido e morrido em Mileto e viajado ao Egito. Imaginemos também que venhamos a descobrir que Tales, o cavador de poços, tenha vivido na mesma Época em Mileto, embora nunca tenha visitado o Egito nem sido filósofo. Nesse caso poderá ser objetado que o eremita satisfaz a regra localizadora e mesmo a maior parte da regra caracterizadora mais do que Tales. Mesmo assim parece-nos que o eremita não poderia ter sido Tales. E isso é assim porque o Eremita não satisfaz a esperada história causal tão imprescindivelmente incorporada à regra caracterizadora. Se, por outro lado, o nome ‘Tales’ não estivesse tão profundamente vinculado à história causal, não teríamos qualquer dificuldade em identificar Tales como sendo o eremita.

2. O filósofo J. L. Aston-Martin
O segundo contra-exemplo é sobre um estudante que conversou em uma festa com uma pessoa que ele acreditava ser um grande filósofo, J.L. Aston-Martin, o autor de “Outros corpos”.[42] Embora a pessoa coincida em se chamar Aston-Martin, ela apenas se faz passar pelo filósofo. Donellan nota que a frase (a) “Na noite passada eu falei com Aston-Martin”, é falsa, pois associa o nome ‘Aston-Martin’ à descrição

     D1: o filósofo autor de “Outros corpos”,

enquanto as frases (b) “No final da festa Robinson tropeçou nos pés de Aston-Martin e deu com a cara no chão” e (c) “Fui quase o último a sair, só Aston-Martin e Robinson ficaram”, são verdadeiras, pois vêm associadas à descrição

     D2: o homem chamado Aston-Martin que encontrei na festa.

A objeção é a de que a teoria do feixe de descrições não explica essa alteração: tanto em (a) quanto em (b) e (c) o nome Aston-Martin deveria vir associado ao mesmo feixe de descrições que inclui ‘o autor de “Outros corpos”’.
   Essa objeção pode ser eficazmente respondida pela aplicação a nomes próprios de uma distinção similar à introduzida pelo próprio Donnellan entre usos atributivo e referencial de descrições definidas. No caso das descrições definidas, o uso atributivo é aquele mais propriamente vinculado ao conteúdo da descrição, enquanto o uso referencial é vinculado à função indexical da descrição. No caso do nome próprio, o equivalente ao uso atributivo é aquele que se baseia nas descrições que exprimem sua regra de identificação. Isso explica o sentido do nome ‘Aston-Martin’ na frase (a), pois a descrição ‘o filósofo autor de “Outros corpos”’ exprime parte da regra de identificação de um objeto. Já no caso caso similar ao do uso referencial para o nome próprio, o elemento indexical e o contexto têm papel decisivo, de modo que a regra de identificação usual deixa de importar. Isso explica o sentido do nome ‘Aston-Martin’ nos casos (b) e (c). Aqui o que importa é a descrição adventícia D2 no lugar da qual comparece o nome próprio. Como tal ela é provisória e dependente da situação conversacional na qual foi adquirida. O que o falante nesses casos pretende é apenas identificar um certo participante da festa utilizando o nome pelo qual ele foi chamado, deixando de ter qualquer importância se é verdadeiro que esse o nome é o de um filósofo que verdadeiramente lá se encontrava ou não. Quanto à descrição (a) ela faz parte das descrições caracterizadoras do filósofo Aston-Martin, mas não do seu homônimo encontrado na festa e confundido por Robinson com o filósofo.
   Outro contra-exemplo de Donnellan é o de uma pessoa A que, usando óculos especiais, identifica em uma tela dois quadrados idênticos, colocados um em cima do outro. Ao quadrado que está em cima ela chama de Alfa, ao quadrado embaixo ela chama de Beta. A única descrição que ela tem para a identificação de Alfa é

     (a) o quadrado que está em cima.

Acontece que, sem que a pessoa saiba, ela está usando óculos que invertem a posição dos quadrados, de modo que o quadrado Alfa é o que está embaixo. Donnellan pensa ter assim demonstrado que o quadrado ao qual a pessoa se refere é o quadrado Alfa (o de baixo), mesmo associando à palavra a descrição errônea (a).
   Como resposta, sugiro que a pessoa só se refere ao quadrado Alfa porque, embora associando a Alfa uma descrição errônea, trata-se de uma descrição convergente, a ser completada como:

     (b)  ˹O quadrado˺ (que A como o) ˹que está em cima˺.

 Essa correção, por sua vez, é parte da verdadeira descrição identificadora do quadrado Alfa, que é:

(c): ˹o quadrado˺ (que A como o) ˹que está em cima˺... quando na verdade é o que está embaixo, uma vez que A está usando óculos que invertem a posição das imagens.

O observador A desconhece que a sua descrição (a) é parte da descrição identificadora mais completa (c). Mas esse fato e essa última descrição são coisas conhecidas de outros usuários da linguagem, de nomeadores bem informados, que podemos chamar de B. Esses usuários privilegiados dirão que A se refere ao quadrado Alfa que está embaixo por disporem da informação dada pela descrição (c), que expressa o mais completo modo de apresentação do objeto, a mais completa regra identificadora (que o caracteriza como um quadrado e o localiza como o quadrado que está embaixo).
   Como evidência dessa conclusão está o fato de que uma vez de posse das informações oferecidas pelos nomeadores B, que incluem a descrição (c), A concordará em revisar a descrição (a) como sendo parte de (b), referente apenas ao modo como A vê, que por sua vez é parte da descrição (c). Embora literalmente falsa, a descrição (a) é útil à referência porque reinterpretável como parte de uma regra-descrição identificadora correta.

3. “Tom é uma pessoa simpática”
Um último contra-exemplo de Donnellan é o de uma criança que já foi para a cama e que é acordada brevemente pelos pais.[43] Tom, um velho amigo da família, chegou de visita e insistiu em ver o filho mais jovem, que ainda não conhece. A mãe acorda a criança e lhe diz: “Esse é Tom”. Tom diz “Oi jovem” e a criança volta a dormir. No dia seguinte a criança acorda e tudo o que ela sabe dizer de Tom é que ele é ‘uma pessoa simpática’. A criança sequer se recorda de ter sido acordada na noite anterior. Mas ela se refere a Tom sem o auxílio de descrições definidas. Para W.G. Lycan essa é uma prova contundente da teoria causal dos nomes: a criança é capaz de se referir a Tom apenas através de uma transferência causal demonstrativa.[44]
   Examinando melhor esse exemplo, Brian Loar considerou que bem pode ser que a linguagem aqui nos engane, como no caso em que uma pessoa percebe que faltam convidados para o jantar, mas não se recorda quem; somos intitulados a dizer que ela se refere a quem não compareceu, mas a palavra ‘refere’ não parece estar sendo usada aqui no sentido apropriado.[45] Com efeito, se a criança de nada se recorda ao dizer que Tom é simpático, não podemos sequer distinguir o seu proferimento da mera expressão de sua vontade de agradar os pais.
   Podemos ainda admitir – em benefício do exemplo – que a criança possui cognições semânticas não-reflexivas relacionadas ao seu encontro com Tom, que lhe justificam dizer que ele é simpático. Nesse caso há de fato um elemento cognitivo convergente, que nos permite concluir que a criança logra introduzir a palavra na situação dialógica referindo-se a um ser humano, Tom. Mas ainda aqui trata-se do que já foi chamado de um empréstimo de referência, de uma referência incompleta, de um insuficiente gesto em direção à referência. Como todos sabem a quem a criança está se referindo, o exemplo pode produzir a falsa impressão de que a criança é capaz de fazer uma referência identificadora completa a Tom. Mas isso é ilusório. Trata-se de uma referência bastante insuficiente. Ela não sabe quem é Tom e não teria sequer como reconhecê-lo se o encontrasse na rua. Se ela dissesse ‘Tom é uma pessoa simpática’ a estranhos que desconhecessem as circunstâncias, a lembrança do testemunho encontrando-se perdida, ninguém seria capaz de dizer de quem se trata. Por conseguinte, o proferimento se refere efetivamente a Tom, não para o falante, mas para os intérpretes capazes de completar a referência, que no caso são os pais da criança. Afinal, eles não só se recordam que a criança foi introduzida a Tom e pressupõem que é por causa disso que ela agora diz que Tom é simpático, mas são eles que realmente sabem quem é Tom e que são capazes de reidentificar a pessoa a quem as palavras se referem. Com efeito, os pais da criança são os falantes privilegiados que conhecem de um modo auto-suficiente a regra de identificação para o nome ‘Tom’, a qual pode ser descritiva de sua aparência, dos seus traços psicológicos, do que ele faz, de onde ele vive e de onde ele veio. Eles também conhecem descrições auxiliares relevantes, concernentes às relações de Tom com a família. Como o proferimento da criança acontece em um espaço público em que esses intérpretes privilegiados estão presentes, a intenção da criança de se referir a alguma pessoa simpática com a qual esteve em contato é complementada pela identificação referencial dessa pessoa feita pelos outros participantes da situação conversacional, levando à ilusão de que a criança produziu algo mais do que um mero gesto em direção à referência.

Resposta à objeção de magia epistêmica
Há, finalmente, uma objeção genérica levantada por filósofos externalistas como Michael Devitt, segundo a qual existe alguma coisa mágica no descritivismo. Segundo essa objeção, o descritivismo atribui à mente uma propriedade extraordinária, que é a de permitir aos seus conteúdos se relacionarem como que por encanto às coisas fora dela. Como escreve Devitt em sua crítica a Searle:

Como poderia algo dentro da cabeça determinar a referência, que é uma relação com coisas particulares fora da cabeça? ...supor que o pensamento de alguém pode alcançar objetos particulares fora da mente é sustentar teorias mágicas da referência e intencionalidade. [46]
Como pode uma coisa dentro da cabeça se referir a uma coisa fora da cabeça? Searle não vê problema: simplesmente acontece. Essa é a verdadeira mágica.[47]

Certamente, um cognitivista de senso comum irá insistir que a tese de que as palavras se ligam aos objetos devido a idéias ou representações ou regras conceituais que elas veiculam é perfeitamente natural e intuitiva.  Com efeito, enquanto filósofos somos quase inevitavelmente conduzidos ao tradicional e quase intratável problema da percepção, a saber, o problema de saber como podemos ir além do véu da percepção, posto que tudo o que pode ser dado à experiência são impressões sensíveis (sense-data). Aqui há um mistério que parece demandar mágica para ser resolvido. Mas a mágica pela qual, através de impressões sensíveis podemos ter acesso a um mundo físico exterior é, podemos apostar, meramente aparente[48]. Muito mais extrema, porém, parece-me a feitiçaria do referencialismo direto, segundo a qual as próprias palavras, mais do que a forçosa intermediação cognitiva a elas ligada, têm o poder de alcançar os seus objetos de maneira a se referirem a eles. É verdade que Devitt defende uma forma matizada de referencialismo, segundo a qual redes causais parcialmente cognitivas são responsáveis pela referência. Mas ainda assim, se ele não quiser recair no cognitivismo, ele precisará ignorar qualquer força explicativa originada do conteúdo dessas cognições. Contudo, tal admissão faz a objeção retornar com toda sua força: como podem essas cadeias causais, na independência de sua relação com conteúdos cognitivos, serem capazes de explicar nossa referência às coisas particulares que as originaram? Isso nos faz suspeitar que as considerações de Devitt sejam psicologicamente explicáveis como uma projeção inconsciente da negação do próprio problema do referencialismo no campo inimigo do cognitivismo.

Reformulação russelliana
Vale aqui notar que as regras meta-identificadoras permitem uma aplicação sistemática do procedimento da teoria das descrições à teoria metadescritivista dos nomes próprios, o que pode ser útil ao objetivo de exibir a estrutura lógica da regra de identificação. Considere, por exemplo, a sentença (i) “Aristóteles teve de abandonar Atenas”. Tendo em mente a aplicação de RMI1 na formulação da regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’, podemos parafrasear essa regra através do método proposto por Russell em sua teoria das descrições como:

1.     Há ao menos um x que satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido em Atenas e morrido em Chalkis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das grandes doutrinas do opus aristotélico.
2.     Não existe mais de um x para o qual vale o que foi enunciado em 1.
3.     Este x se chama Aristóteles e teve de abandonar Atenas.

A condição 1 inclui a idéia de suficiência, a condição 2 expõe a idéia de unicidade, e a condição 3 associa o que foi univocamente delimitado ao nome ‘Aristóteles’, adicionando a predicação de (i). Para formular a sentença (i) simbolicamente, estabelecemos que N = ‘...é a pessoa de nome ‘Aristóteles’’, A = ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., tendo vivido em Atenas e morrido em Chalkis em 322 a.C.’ (regra localizadora), B = ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter sido o autor das grandes doutrinas do corpus aristotélico’ (regra caracterizadora), e T = ‘...teve de abandonar Atenas’. A frase “Aristóteles teve de abandonar Atenas” pode ser então formalizada como x ((Ax ˅ Bx) & (y) ((Ay ˅ By) → y = x) & Nx & Tx)” e RI-‘Aristóteles’ pode ser formalizada como:

     x ((Ax ˅ Bx) & (y) ((Ay ˅ By) → y = x)

Com isso é requerida a existência, a unicidade e a suficiência, que aqui se associam aos predicados que expressam as propriedades identificadoras, embora essa formulação não capture todas as nuances que a regra de identificação possui. Como quer que seja, o que essas breves considerações sugerem é que o verdadeiro serviço da teoria das descrições seja aqui o de exibir de modo algo simplificado a estrutura formal de regras de identificação de termos singulares.

Identidades entre nomes próprios e o “necessário a posteriori”
As considerações que acabamos de fazer nos conduzem a uma última questão, concernente ao status epistêmico das identidades entre nomes próprios. De acordo com Kripke, como os nomes próprios são designadores rígidos, dois nomes próprios com a mesma referência precisam se aplicar a um único objeto em qualquer mundo possível no qual ele exista. Por conseguinte, embora as sentenças de identidade entre nomes próprios possam ser a posteriori, ou seja, aprendidas a partir da experiência sensível, elas são necessárias. Daí que uma frase como “Hesperus é Phosphorus” exprime para Kripke uma proposição necessária a posteriori. Contudo, essa conclusão de que existem proposições necessárias a posteriori tem sido considerada controversa por vários filósofos. Como é possível, afinal, que uma proposição verdadeira em todos os mundos possíveis possa depender da experiência para ser verdadeira?
Considere, para começar, a frase “Cicero é Tulio”. A regra-descrição de identificação para o nome próprio ‘Marco Tulio Cicero’ é (abreviadamente):

       RI-‘Marco Tulio Cicero’
 O nome próprio ‘Marco Tulio Cicero’ – tal como, por consequência, também suas partes ‘Marco’, ‘Tulio’ e ‘Cicero’ – se refere a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos see suficientemente e mais do que qualquer outro candidato, x nasceu em Arpino em 106 a.C., viveu em Roma e faleceu em Fórmia em 43 a.C. e/ou que foi um filósofo, orador, advogado e político romano, o senador que escreveu as Catilinas...

Considerada com esse sentido intencionado a frase “Tulio é Cicero” é obviamente necessária e a priori, pois ela é analítica no sentido de ser definitória daquilo que se entende pelo nome ‘Marco Tulio Cicero’. Supondo que não exista diferença de sentido entre as diferentes denominações, uma pessoa que não sabe que Tulio é Cicero é como uma pessoa que não sabe que “ß é ss”, uma ignorância de identidades convencionais.
   Outros exemplos são mais complexos. Podemos ter uma regra geral do tipo:

      RI-‘Mary Ann Evans’
O nome próprio ‘Mary Ann Evans’, tal com o seu pseudônimo ‘George Eliot’, se refere a um objeto x pertencente à classe dos seres humanos see x estiver suficientemente e mais do que qualquer outro candidato na origem de nossa consciência de que x é a mulher que nasceu em Nuneaton, em 1819, tendo vivido boa parte de sua vida em Londres e falecido em Chelsea em 1880 na Inglaterra e/ou talvez a maior novelista inglesa, autora de clássicos como Middlemarch, possuindo tais e tais traços pessoais...

Podemos considerar aqui três grupos de falantes: (i) o grupo dos que conheceram Mary Evans, como os seus parentes e amigos de infância; (ii) o grupo dos que conheceram somente George Eliot, que são as pessoas que leram Adam Bede pouco depois de sua publicação; (iii) os que sabem ou souberam que George Eliot é um pseudônimo de Mary Ann Evans. Os últimos conhecem a regra geral RI-‘Mary Ann Evans’. Nesse sentido intencional, bem conhecido pelos dois maridos de Mary Evans e por ela mesma “George Eliot é (o mesmo que) Mary Evans” pode ser considerada uma frase de identidade necessária e a priori. Mas não precisa ser assim. O que as pessoas do grupo (ii) tem em mente como a regra de identificação para George pode ser: ‘o autor de Adam Bede, Middlelmarch e de alguns outros clássicos da literatura inglesa’, tendo vagas indicações acerca do tempo e lugar em que esse autor viveu. Já as pessoas do grupo (i) tem como sentido intencional a regra de identificação de Mary Evans como ‘a mulher com tais e tais traços pessoais, filha de Robert Evans, nascida em Nuneaton em 1819...’ As regras de localização não podem aqui se contradizer, uma vez que são partes de uma mesma regra geral. Mas para as pessoas dos grupos (i) e (ii) aprendam que as regras de identificação parciais que elas usam são partes de uma regra maior de identificação é algo informativo. E por isso mesmo a frase de identidade “George Eliot é Mary Evans” é para elas contingente e a posteriori. É a posteriori enquanto depende de informações de subfatos contingentes para o seu aprendizado, como foi o caso da decisão de Mary Evans de usar um certo pseudônimo literário.
     Note-se que os componentes do grupo (iii) podem pensar a identidade de George Eliot com Mary Evans também da segunda maneira, em termos dos modos de apresentação da pessoa, por exemplo, quando explicam a alguém a identidade. Nesse caso elas estão considerando as regras parciais para cada nome, querendo mostrar que elas são partes constitutivas da regra de identificação completa de Mary Ann Evans. Sem a consideração do contexto, a frase “George Eliot é Mary Evans” é ambígua, podendo querer dizer uma coisa ou outra ou ambas as coisas.
   Algo similar se pode dizer, finalmente, da frase “Hesperus é Phosphorus”. A regra de identificação para Vênus é hoje algo como:

     RI-‘Vênus*’
O nome próprio ‘Vênus’ – tal como os nomes ‘Phosphorus’ (enfatizando a “estrela matutina”) e ‘Hesperus’ (enfatizando a “estrela verpertina”) – se refere ao planeta que satisfaz suficientemente e mais do que qualqure outro a condição localizadora de ser o segundo planeta do sistema solar, descoberto como estando situado entre a terra e Mercúrio e/ou a regra caracterizadora de ser um planeta do sistema solar etc.

Se tivermos em mente essa regra de identificação não há diferença entre Hesperus e Phosphorus, o que torna “Hesperus é Phosphorus” um enunciado necessário e a priori, pois se deriva da regra.
   Mas também podemos considerar a identidade em questão, tal como Frege o fez, como uma descoberta astronômica. Nesse caso, o que estamos fazendo é associar ao nome ‘Hesperus’ à descrição auxiliar ‘o corpo celeste mais brilhante visto ao anoitecer na direção do sol’ e associar a ‘Phosphorus’ a descrição auxiliar ‘o corpo celeste mais brilhante visto ao amanhecer na direção do sol’. Cada uma dessas descrições tem como referente simplesmente a estrela que vemos no céu em certo tempo e lugar e nada mais. O que a frase de identidade faz é afirmar que além disso esses dois modos de apresentação são modos de apresentação de um mesmo objeto, ou seja, que cada uma dessas regras de identificação é parte das regras auxiliares pertencentes à regra de identificação geral para Vênus. Também aqui foi empiricamente descoberto pelos astrônomos babilônicos que essas duas regras de identificação para objetos dados diferentes poderiam ser entendidas como partes de uma única regra de identificação mais geral para um único objeto, de modo que sob tal perspectiva “Herperus é Phosphorus” expressa uma verdade a posteriori e contingente (que contém a ideia de que o modo de apresentação de Hesperus não é o mesmo que o de Phosphorus), posto que poderia não ter sido assim.
   Se não houver um contexto desambiguador, a frase “Hesperus é Phosphorus” retém a sua ambiguidade semântica, podendo ser interpretada tanto como querendo dizer “(Hesperus)-Vênus = (≠ ) (Phosphorus)-Vênus”) quanto “Hesperus-(Vênus) ≠ (=) Phosphorus-(Vênus)”, respectivamente enfatizando a identidade ou a diferença. Temos, pois, dois pensamentos imbricados um no outro: um sobre a diferença, outro sobre uma identidade. O que um filósofo como Kripke fez foi confundir as duas maneiras de entender as frases de identidade entre nomes próprios recém-apresentadas, ignorando as flutuações contextuais capazes de desambiguá-las. Ele confundiu as formas de entendimento juntando a necessidade do pensamento da identidade a ser convencionalmente entendido como analítico, i.e., necessário e a priori, constituido por uma regra que verifica a identidade, com o caráter a posteriori do pensamento de uma diferença, entendido como sintético, i.e., contingente e a posteriori, que visa expor modos de apresentação de objetos (aparências) diferentes para nos informar que esses objetos são eles próprios modos de apresentação de um mesmo objeto mais fundamental.
   Finalmente, é interessante observar a curiosa coincidência entre esses resultados, derivados de nossa análise das regras de identificação dos nomes próprios, e os resultados da análise das frases de identidade sob a perspectiva metodologicamente diversa do bidimensionalismo semântico. Essa coincidência não parece ter nada de casual.[49]

Conclusão
Como é comum em filosofia, sempre que acreditamos ter resolvido um problema há outros a nossa espera na próxima curva. Contudo, um pouco de reflexão sobre a maneira de ver aqui proposta sugere que o caminho em proposto é de longe o mais viável. Suponha, por exemplo, que RMI2 seja implementada em um programa de computador, e que sejam nele introduzidos nomes próprios junto com as informações necessárias sobre as suas descrições fundamentais, histórias causais etc. Nesse caso parece prima facie concebível que o computador seja capaz de nos dizer com boa margem de segurança se o nome próprio é ou não é aplicável, dadas as informações exigidas. Mas o mesmo não me parece sequer concebível quando pensamos nas teorias descritivistas tradicionais e ainda menos no que concerne às vagas sugestões histórico-causais.
   É certo que a teoria proposta, embora possuindo maior poder explicativo, é inevitavelmente mais complexa. Mas esse é o preço de ser a ser pago pela maior adequação. Assim como acontece na ciência, diversamente da virtude que se constitui na maior simplicidade quanto aos princípios, a simplicidade de conteúdo é o que menos podemos esperar de teorias mais maduras. Não é culpa nossa que a natureza seja mais intrincada do que possa aparentar.

























[1] 1987, pp. 129-130.
[2] A expressão ‘descritivismo causal’ foi cunhada por David Lewis para designar teorias mistas dos nomes próprios em seu artigo de 1984. Ver também Lewis 1997 e Kroon 1987.  
[3] O fato de que as regras espaciotemporalmente localizadoras tem um papel privilegiado não passou completamente desapercebido. Paul Ziff, por exemplo, defendeu que as descrições localizadoras ou que implicam em localização formam uma parte central do mecanismo de referência do nome próprio (1960).
[4] Escolho a Wikipedia pelo acesso fácil; mas qualquer outra enciclopédia irá realçar dados similares em ordem similar.
[5] Kripke tem assim razão em pensar que mesmo a sentença “Aristóteles é o indivíduo chamado ‘Aristóteles’” não é a priori (1982 p. 68 ss).
[6] Uma razão pela qual a filosofia da linguagem se distingue da linguística é não só pela amplitude de escopo, que vai além das línguas particulars, mas pela presença de implicações epistemológicas e mesmo metafísicas em seu desiderato.
[7] Kripke chega a uma conclusão parecida ao recomendar que consideremos homônimos como sendo nomes diferentes, posto que diferentes referentes devem ser suficientes para determinar nomes diferentes, mesmo que suas marcas sensíveis sejam idênticas. (1980 p. 8).
[8] Compare as descrições:
 1. ‘o portador do nome ‘Tom Jobim’,
 2. ‘o portador do nome ‘Antônio Carlos Jobim’ e
 3. ‘o portador do nome ‘Ismael Silva’.
 Em uma teoria do sentido lexical do nome próprio – chamada de teoria metalinguística – parece que devemos distinguir aqui três sentidos lexicais diversos, posto que cada descrição trás consigo uma marca sensível diversa. Intuitivamente, porém, é bastante claro que o sentido do nome próprio em 3 é muito distinto dos sentidos assemelhados dos nomes próprios em 1 e 2. A diferença só se torna explicável porque ela diz respeito ao conteúdo semântico desses nomes, às regras através das quais os seus portadores são identificados. Se entendermos o sentido do nome próprio em abstração de suas marcas sensíveis, então 1 e 2 contém nomes semanticamente idênticos, por sua vez muito distintos do nome contido em 3. Mas como a expressão simbólica do nome é a expressão de seu conteúdo semântico, podemos dizer que em 1 e 2 temos um mesmo nome próprio com diferentes expressões simbólicas, enquanto em 3 temos um outro nome próprio simbolicamente expresso.
[9] Monk 1990, p. 138.
[10] Suponho aqui que ele nada saiba sobre quem foi Achaeon e sobre quando e onde ele viveu, pois isso já implica que ele associa ao nome descrições como ‘um filósofo macedôneo do século III a.C’.
[11] 1967, p. 490.
[12] Deus também não poderia ter localização por estar em todos os lugares. Mas esse é um caso problemático, pois sua existência ou é inverificável ou é falseada. Como para nosso conforto escreveu Baudelaire: “Deus é o único ser que para reinar não precisa sequer existir” (1867, 75-76).
[13] Note-se que a teoria kripkiana do batismo também encontraria dificuldades em explicar a nossa preferência pelo segundo Aristóteles em M1. Ela não teria como distinguir o verdadeiro Aristóteles, pois não teria à disposição o recurso de se valer de descrições para privilegiá-lo. Além disso, ela não teria como explicar porque o verdadeiro Aristóteles passa a ser o primeiro em M2. Contudo, como as descrições são causalmente determinadas, é sempre possível desenvolver uma solução causal-histórica para tais casos como, também, para qualquer outro. Tal solução seria, porém, sempre em última instância dependente da identificação consciente das descrições relevantes geralmente implicadas na intenção de preservar a mesma referência.
[14]  O sentido cognitivo, epistêmico ou informativo (Sinn ou Erkenntniswert) é, como vimos, bem mais do que o sentido literal; ele é uma espécie de intenção (com ç) que, com base em convenções, devemos associar à expressão. Essa posição opõe-se ao externalismo semântico de Putnam e outros, cuja implausibilidade será evidenciada no capítulo 8.
[15] Wittgenstein 1984b, sec. 560.
[16] Ziff 1960, pp. 93-94. Desde Stuart Mill essa ideia foi muitas vezes considerada.
[17] A bem da verdade deve ser notado que existem dicionários específicos para nomes próprios, como os que explicam os sentidos etimológicos dos nomes próprios de pessoas e fornecem informações genéricas sobre os seus portadores mais conhecidos.
[18] Nem sempre, como atesta a maldosa observação de um crítico londrino sobre James Joyce e sua esposa semi-analfabeta: “Fui apresentado a um velho doente acompanhado de uma vaca”. (O’Brien, 2011)
[19] Russell 1980, p. 30
[20] Dummett 1981b pp. 138-139; Mellor 1977, p. 115.
[21] Ver Locke 1975: 2.31.4-5, 2.32.12, 2.29.7, 3.10.22, 3.11.24. Esse compromisso de Locke e de outros filósofos com a divisão de trabalho da linguagem foi lembrado por A.D. Smith (1975, pp 70-73).

[22] 1980, pp. 81-85.
[23] Não há aqui nenhum compromisso antropomórfico. Um objeto pode ter sua regra de identificação efetivamente e continuamente aplicável a si mesmo (não sendo assim meramente imaginário), mesmo que essa regra nunca tenha sido pensada nem aplicada por nenhum sujeito cognitivo.
[24] 1958, p. 24; 2001, p. 28.
[25] Kripke 1980, pp. 62-63.
[26] Kripke 1980, pp. 57-58.
[27] Não há, por isso, qualquer razão para se tentar contornar o argumento modal tornando o nome próprio equivalente a uma descrição rigidificada, ou seja, indexada ao mundo atual, com todos os problemas que isso envolve (Cf. Stanley 1997).
[28] O exemplo foi inicialmente sugerido por Ruth Barcan Marcus usando o nome ‘Venus’ em uma conferência assistida por Kripke. Ver Marcus 1993, p. 11.
[29] J.L. Borges reescreveu ficcionalmente essa história no conto “El inverosímil impostor Tom Castro”, em sua Historia universal de la infâmia.
[30] Kripke 1980, pp. 83-84.
[31] Searle 1983, p. 251.
[32] Kripke 1980, pp. 93, 97.
[33] Admito essa afirmação de Kripke em benefício do exemplo, dado que a maioria dos estudiosos realmente acredita que esse personagem bíblico seja inteiramente ficcional.
[34] Kripke 1980, p. 67-68.
[35]  Kripke 1980, pp. 81-82.
[36]  Kripke 1980, p. 85.
[37] Kripke 1980, p. 82.
[38] Kripke 1980, pp. 84-5, 88-9. O exemplo é elaborado por Scott Soames, 2003 vol. 2, p. 361.

[39] Donnellan 1972, pp. 373-375.
[40] Searle 1983, pp. 252-253.
[41] Searle 1983, p. 253. Devido a passagens como essa Searle já foi interpretado como sendo um descritivista causal, o que não é bem o caso.
[42] Donellan 1972, p. 364.

[43] 1972, p. 364.
[44] 1999, pp. 46-7.
[45] 1976, p. 367.
[46] Devitt 1990, p. 83.
[47] Devitt 1990, p. 91.
[48] Costa 2018, cap. VI.
[49] Segundo a semântica bidimensionalista, um enunciado de identidade como “Hesperus é Phosphorus” expressa ambiguamente duas proposições. A primeira é a proposição de intenção primária, cujos termos se referem cognitivamente, variando a sua referência em mundos possiveis, o que torna a proposição contingente a posteriori. Já segunda é a proposição de intenção secundária, cujos termos são designadores rígidos referindo-se invariavelmente à mesma coisa nos mais diversos mundos possíveis, o que a torna necessária e a priori. Ver M. Garcia-Carpintero & J. Macia (2006).