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domingo, 1 de janeiro de 2023

FOR THE BOOK PROPOSING A NEW THEORY OF PROPER NAMES (1)

 

I am publishing here only a summary. The whole book will be published by in the collection of analytic philosophy of De Gruyter in 2023-24, and cannot be published here.


SUMMARY

For fifty years the philosophy of language has been experiencing a stalemating conflict between the old descriptive and internalist orthodoxy (advocated by philosophers such as Frege, Russell, Wittgenstein, Strawson, and Searle) and the new causal-referential and externalist orthodoxy (mainly endorsed by Kripke, Putnam, and Kaplan). Although the latter is dominant among specialists, the former retains a discomforting intuitive plausibility. The ultimate goal of this book is to overcome the stalemate by means of a non-naïve return to the old descriptivist-internalist orthodoxy. Concerning proper names, this means introducing second-order description-rules capable of systemizing descriptions of the proper name’s cluster to provide us with the right changeable conditions of satisfaction for its application. Such rules can explain how a proper name can become a rigid designator while remaining descriptive, disarming Kripke's and Donnellan’s main objections. In the last chapter, this new perspective is extended to indexicals in a discussion of David Kaplan’s and John Perry’s views, and to general terms, in a discussion of Hilary Putnam’s externalism.

 

 

 

 



CLASSIFICAÇÃO DE TERMOS GERAIS

 

Draft para o livro Cognitivismo semântico 


IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL

 

 

 

Don’t get involved in partial problems, but always take flight to where there is a free view over the whole single great problem, even if this view is still not a clear one.

[Não se deixe envolver por problemas parciais, mas sempre ascenda para onde há uma concepção livre de todo o único grande problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.]

Ludwig Wittgenstein

 

Como ficou claro nos capítulos anteriores, as teorias descritivistas tradicionais dos nomes próprios e termos gerais eram estruturalmente rudimentares. Foi em boa parte devido ao desenvolvimento insuficiente daquelas teorias que a concepção causal da referência dos termos gerais e o externalismo semântico pareceram opções plausíveis, sugerindo que as palavras precisam significar mais do que são convencionadas a significar, posto que em sua dimensão mais relevante, que é a da determinação da referência, os significados seriam externos ao sujeito falante. Já vimos, porém, que em seu sentido próprio o externalismo semântico é insustentável por envolver uma falácia genética. Não quis com isso negar a óbvia indispensabilidade da influência de fatores causais externos para que a referência se tornasse possível. Mas essa influência é elusiva, e no caso dos termos gerais ainda mais elusiva do que no caso dos nomes próprios.

   Meu objetivo deveria ser agora o de esboçar uma mais adequada teoria descritivista dos termos gerais, seguindo um modelo paralelo ao proposto para os termos singulares. Contudo, o terreno que se encontra à frente parece bem mais acidentado. Não temos à disposição uma única classificação coerente para os termos gerais e não possuímos um modelo único constitutivo de suas regras de atribuição. Por isso e porque a questão demanda uma investigação muito mais detalhada, não pretendo fazer mais do que esboçar algumas poucas sugestões.

 

Uma classificação para os termos gerais

Na tentativa de estabelecer uma classificação genérica dos termos gerais, quero começar propondo uma tricotomia análoga àquela que divide os termos singulares em indexicais, descrições definidas e nomes próprios. Correspondentemente, proponho que os termos gerais possam ser divididos em:

 

(a)     Indexicadores (não-analisáveis)

(b)    Descritivadores (possuem forma descritiva)

(c)    Nominadores (são analisáveis sob forma descritiva)

 

Termos gerais indexicadores são os que só se deixam definir em contextos indexicais. Exemplos poderiam ser palavras como ‘vermelho’, ‘redondo’, ‘quente’ e ‘duro’ na linguagem natural. Característico desses termos é que eles não se deixam analisar na forma de descrições, ao menos enquanto forem entendidos como designações de aparências fenomenais (internas ou, mais comumente, suas projeções ou correlatos ditos externos), que é como os entendo aqui. (Obviamente, ‘vermelho’ pode ser definido em uma linguagem fisicalista como um certo comprimento de onda eletromagnética que vai de 630 a 740 mn, assim como ‘redondo’ pode ser definido na linguagem da geometria como o que é limitado por um perímetro circular..., mas não é assim que aprendemos o que essas palavras significam.) Em contextos sensório-perceptuais, esses termos podem ser usados junto a indexicais de modo a determinar a referência sem a intermediação de descrições. Há boas razões para pensarmos que não há como procedermos a uma análise de termos gerais fenomenais em proferimentos como “Vermelho ali”, “Redondo lá”, “Isso duro” ou “Sinto calor” sem aprendermos o significado fenomenal de palavras como ‘vermelho’, ‘redondo’, ‘duro’ ou ‘quente’ por meio de, digamos, familiaridade (acquaintance) sensório-perceptual, ou seja, sem sermos interpessoalmente apresentados a coisas respectivamente apontadas como sendo vermelhas, redondas, duras ou quentes através de proferimentos indexicais. Linguisticamente esses termos são reconhecidos como denotando propriedades-t ao virem associados a termos singulares capazes de identificar objetos materiais. Assim, se digo algo como “Esse sofá é vermelho”, através do indexical ‘esse’ complementado pelo termo sortal ‘sofá’, formo uma unidade que funciona como um termo singular mais completo; com ela eu me refiro a um objeto material, ao qual atribuo a propriedade-t de ser vermelho. Mesmo que eu dissesse apenas “Isso é vermelho”, eu estaria implicitamente me referindo a algo espaciotemporalmente localizado, geralmente um objeto material possuidor da propriedade-t de ser vermelho. Posso, obviamente, abstrair dessas aplicações particulares tendo em mente o que é comum a um paradigma de vermelho escolhido (por exemplo, o desse sofá, ou alguma imagem mental dele que posso atualizar) e a qualquer outra propriedade-t qualitativamente idêntica a ela. Nesse caso estarei falando do vermelho enquanto tal, do universal do vermelho. Mas não se trata aqui nem da classe de todos os tropos de vermelho, como pensou Donald Williams (afinal, tal coisa não cabe em nossas mentes por razões medicinais), nem, obviamente, de alguma entidade idealmente abstrata como o vermelho-em-si-mesmo, como pensavam filósofos realistas. Podemos mesmo dizer que essa abstração nos leva a pensar na classe de todos os tropos de vermelho, mas por não ser isso realmente concebível enganam-se os que pensaram que é a essa classe que nos referimos ao pensarmos no universal do vermelho. O universal transforma-se aqui no efeito de uma habilidade comparativa e sintetizadora que ganhamos pela familiaridade com as propriedades-t. Os termos indexicadores são, aliás, sub-rogados daquilo que Bertrand Russell equivocamente chamou de nomes próprios lógicos: afinal, eles são os melhores candidatos a termos primitivos da linguagem natural, entendidos como aqueles cujas regras de significação só são aprendidas pela familiaridade com os seus designata.

   Vejamos agora os termos gerais descritivadores. Eles são análogos às descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de individuadora. Esses termos aparecem na forma de predicados complexos e podem sem muita dificuldade ser traduzidos como descrições indefinidas, como é o caso da descrição ‘...um caçador de dotes’, que pode ser aplicada tanto a David Sebastian quanto a Zsa Zsa Gabor. A grande maioria das predicações se caracteriza de forma descritiva, que é a de serem linguisticamente mais estáveis que os termos indexicadores, na medida em que independem da familiaridade – não precisamos usar indexicais para identificar D. S. como sendo um caçador de dotes.

   Há, finalmente, termos gerais nominadores: nomes gerais cuja expressão simbólica perceptível é não-descritiva, mas que são analisáveis de modo em alguma medida análogo ao dos nomes próprios, posto que abreviam descrições ou conjuntos de descrições. Esses podem ser termos de espécies naturais como ‘tigre’, termos de massa como ‘água’, termos de artefatos como ‘cadeira’, termos sociais como ‘professor’, termos culturais como ‘sinfonia’ e ainda muitos termos utilizados em filosofia e ciência. Eles são abreviações de descrições ou de feixes, ou de grupos de feixes de descrições mais ou menos estruturados.[1] Ao menos em alguns casos, como veremos, eles podem ser entendidos como abreviações de feixes de descrições cujas combinações efetivamente aplicáveis são selecionadas por meio de regras de atribuição de nível superior, analogamente ao caso dos nomes próprios.

   Diante disso é possível propor para os termos gerais uma hipótese genético-estrutural também em alguma medida análoga à que sugerimos no Capítulo 1 para os termos singulares. Os termos gerais indexicadores seriam estruturalmente mais originários, podendo a cognição das propriedades por eles designadas ser tomada como elemento na construção de conceitos mais complexos. Admitindo, como temos feito, uma ontologia dos tropos que por princípio rejeita entidades verdadeiramente abstratas, os termos gerais nominadores deveriam (ao menos tendencialmente, dado que o caminho oposto também é possível) ter sua origem em termos gerais descritivadores que se originariam de combinações de termos indexicadores.   Por fim, por razões de economia e flexibilidade, são instituídas palavras únicas que abreviam predicados descritivadores, em muitos casos ordenados em sua aplicação através de metaregras que em alguma medida podem ser estruturalmente análogas às dos nomes próprios. Isso se dá, como veremos, com termos de espécies naturais e termos de massa. Assim, ao invés de dizer ‘um líquido transparente, insípido e inodoro’ ou ‘uma quantidade de hidróxido de hidrogênio’ em circunstâncias onde tal especificação é desnecessária, ganhamos em flexibilidade no uso de critérios de atribuição se resumimos ambas as descrições na palavrinha ‘água’, cuja regra metadescritiva de atribuição é RA-‘água’ – a regra estudada no capítulo anterior. Finalmente, tanto termos gerais nominadores quanto termos gerais indexicadores podem comparecer outra vez como constituintes de predicações descritivadoras, permitindo a formação de predicados mistos sem limitações de complexidade.

   Essa analogia classificatória entre termos singulares e gerais nos leva a perguntar se não existiriam situações originárias nas quais eles não se tivessem ainda diferenciado. Podemos imaginar a existência de termos referenciais originários que funcionariam indiferenciadamente, tanto como termos singulares indexicais quanto como termos gerais, em um papel que recorda aquilo que Ernst Tugendhat chamou de quasi-predicado.[2] Tratar-se-iam, no caso de predicados indexicalmente usados, de coisas tais como o grito de alerta de certas aves, que designariam propriedades singularizadoras relacionadas a uma região espaciotemporal variável e indicando perigo, ou, digamos, um gemido de dor na linguagem humana. Desses termos referenciais originários surgiriam de um lado, termos singulares indexicais, de outro lado, termos gerais indexicadores. Dos termos singulares indexicais se derivariam descrições definidas, e delas, por fim, nomes próprios. Similarmente, dos termos gerais indexicadores se derivariam termos gerais descritivadores, dos quais se originariam, enfim, termos gerais nominadores. Essas transformações não seriam obviamente forçosas e unidirecionais, mas, como notei, originárias e tendenciais, uma vez que caminhos de derivação inversos e cruzados também parecem concebíveis.

 

Neodescritivismo aplicado a termos gerais

Não faria sentido defender uma teoria descritivista dos termos gerais para os termos gerais indexicadores, posto que eles dizem respeito ao que podemos aqui qualificar como simples relativamente à linguagem ou domínio de linguagem que está sendo considerado. Também não faria muito sentido tentar desenvolver semelhante teoria para o caso dos termos gerais descritivadores, posto que eles mesmos, quando funcionam propriamente, já são descrições não-definidas que exprimem suas próprias regras de atribuição. Contudo, podemos desenvolver explicações descritivistas (ou neodescritivistas) para a aplicação de termos gerais nominadores.

   Os termos de artefatos exemplificam de forma mais simples e transparente o último caso. Considere alguns exemplos de definições de semelhantes termos por intermédio de descrições indefinidas:

 

Cadeira (Df.) = um artefato não-veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez.

Lápis (Df.) = um objeto manuseável, geralmente de madeira, com ponta de material suficientemente sólido e que serve para escrever.

Carro (Df.) = um veículo automotivo que se movimenta normalmente sobre quatro rodas, sendo mais propriamente feito para transportar um pequeno número de pessoas.

Catedral (Df.) = uma igreja que tem um trono de bispo e congrega as outras igrejas da diocese.

 

Podemos dizer que os termos acima abreviam as descrições indefinidas (na indicação de propriedades de particulares) ou não-definidas (na indicação de propriedades ditas universais) correspondentes, as quais exprimem seus significados cognitivos. Essas descrições constituem definições funcionais que exprimem regras criterais de atribuição ou aplicação. Mas, diversamente do que geralmente acontece com espécies naturais, elas não fazem menção a essências subjacentes, posto que artefatos não as possuem. Também diversamente dos termos de espécies naturais considerados no capítulo precedente, cujo significado é expresso por um entrelaçado de descrições de propriedades aparentes e subjacentes, termos de artefatos tem o seu sentido em geral determinado por completo por regras-descrições dos tipos que formam o conjunto <Ds + Dsd>.

   Definições descritivas dos termos nominadores de artefatos podem admitir e mesmo requerer detalhamentos. Além disso, elas não possuem fronteiras precisas, nem necessariamente imutáveis. Mas isso em nada as deprecia, pois a frequente rejeição de definições por semelhantes razões não passa de mal-entendido. A vaguidade, como temos sempre recordado, é uma característica insuperável da grande maioria dos conceitos, supostamente refletindo uma característica ontológica da própria realidade à qual se aplicam. O mais importante é que de posse (quase sempre tácita) das definições somos capazes de aplicar os conceitos satisfatoriamente à grande maioria dos casos, o que lhes dá uma justificação pragmática. Pode-se tentar objetar contra as definições acima apresentadas apontando para casos limítrofes ou o que parece serem exceções. Uma cadeira feita para acomodar pessoas muito gordas pode ser usada para que duas pessoas magras se sentem lado a lado. Contudo, nem por isso ela deixa de ser um artefato feito para ser usado por uma só pessoa de cada vez. Um tronco de árvore com a forma de uma cadeira, que é trazido para casa e modelado de modo a ser usado como cadeira seria uma cadeira? Ora, esse é um caso limítrofe; conceitos possuem margens de indeterminação indecidíveis, com relação às quais nossos critérios de classificação falham. Para além disso, um lápis eletrônico, desses usados para se desenhar em telas de computador, pode ser parecido com um lápis, mas não é; trata-se já de um uso estendido da palavra, por analogia funcional.

   Como critério para a aplicação de um termo conceitual, psicólogos experimentais falaram de tipicalidade, do uso de um estereótipo do particular como maneira de caracterizá-lo.  Assim, o estereótipo de lápis não é um lápis de cera, mas o velho lápis de madeira com ponta de grafite. O estereótipo de cadeira é um artefato que encontramos na sala de jantar, com quatro pernas, e não a cadeira de balanço ou a de praia, muito menos a cadeira elétrica. O estereótipo de um pássaro pode ser um gavião, mas não será um pinguim. Nós reconhecemos os estereótipos mais prontamente, já que eles apresentam propriedades mais típicas em maior número.[3] Isso torna fácil aos psicólogos serem induzidos à conclusão de que a maneira tradicional pela qual os filósofos trataram conceitos, buscando definições reais com possíveis condições necessárias e suficientes de aplicação, é incorreta e ultrapassada.

   Não obstante, incorreu-se aqui em uma séria confusão categorial. Uma coisa são as variáveis condições de performance que o psicólogo investiga; outra são os critérios derivados da regra de atribuição da expressão conceitual, os quais são elementos definitórios e interessam ao filósofo. As duas coisas são tão diversas quanto compatíveis. As estruturas lógico-conceptuais definitórias que constituem as regras de atribuição de uma palavra-conceito – as que constituem o conteúdo conceitual – podem ser capazes de gerar múltiplas e variadas constelações criteriais, as quais são responsáveis por variações semânticas genericamente determinadas daquilo que temos em mente ao aplicarmos a palavra. Assim, a regra de atribuição para o conceito de pássaro pode gerar constelações criteriais específicas, que são diferentes para passarinhos, águias, abutres, avestruzes, pinguins... Como é muito mais comum encontrarmos as constelações criteriais derivadas, pelas quais reconhecemos um pássaro que encontramos em árvores e que voa, somos bem mais rápidos em aplicá-la. Geneticamente essas constelações devem ter surgido inicialmente na formação de um complexo criterial primário constitutivo da regra conceitual para a identificação de pássaros. O que os psicólogos experimentais descobriram foi apenas essa centralidade geradora da mais fácil perfomance da aplicação do predicado e não a razão originadora de sua aplicação, sem a qual não haveria, nem estereótipo, nem performance.

   Aqui também podemos fazer uma aplicação útil da distinção entre critério e sintoma. Uma cadeira de balanço, por exemplo, não possui a mais frequente condição caracterizadora, que é a de ter quatro pés; mesmo assim, ela continua seguindo a definição conceitual de ser um artefato não-veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez.[4] Ela continua satisfazendo os critérios da regra de atribuição, aos quais a condição usual de ter quatro pés não pertence. E o mesmo vale para a cadeira de praia... Aqui também vemos não ser necessária a contradição entre uma definição filosófica tradicional (possivelmente apresentável em termos de condições necessárias e suficientes) realizada em um nível mais abstrato, que explicita uma regra criterial que pode ser mais ou menos complexa, e a investigação de condições identificadoras frequentemente inessenciais responsáveis pela performance, que não são critérios definitórios, mas meros sintomas probabilizadores. Esses sintomas, ou traduzem maior facilidade e rapidez no reconhecimento (como a cadeira de mesa ou um bem-te-vi), ou maior dificuldade e lentidão no reconhecimento (como a cadeira elétrica ou um pinguim).

   No capítulo anterior vimos que no caso de termos de espécies naturais como ‘água’ e ‘ouro’ precisamos distinguir ao menos dois núcleos descritivos na constituição do sentido do termo: um núcleo popular, derivado de nossa vida cotidiana, e um núcleo científico, derivado de nossa descoberta da suposta estrutura essencial subjacente, ambos os núcleos dependentes de uma regra disjuntiva inclusiva para a identificação do que possa ser chamado de ‘água’ ou ‘ouro’. Mas não parece possível generalizar essa duplicidade sequer para espécies naturais.

   Considere outra vez o termo contável de espécie natural ‘tigre’. Podemos considerar a descrição de superfície (o estereótipo) como sendo Dt = grande e feroz felino carnívoro, um quadrúpede com pelo amarelado, listas escuras transversais e focinho branco. Junto a isso, o importante para a identificação de um tigre é que ele também pertença à espécie panthera tigris, originária da Ásia, o que adicionado a Dt e à ideia de que os membros de uma espécie devem ser intercruzáveis de modo a produzir descendentes férteis resulta em:

 

Dte: Um animal entrecruzável com outros que também pertencem ou ao menos descendem das populações de animais asiáticos que historicamente foram chamados de tigres por satisfazerem suficientemente a descrição de superfície Dt, sem desse entrecruzamento resultarem descendentes estéreis.[5]

 

Como base nisso podemos formular a seguinte regra descritiva[6] para a atribuição do conceito de tigre:

 

RA-‘tigre’:

Usamos o termo geral tigre para nos referirmos (propriamente) a uma propriedade-t do gênero animal de um objeto x

see

(i)                 a propriedade de x satisfaz a regra de caracterização expressa por Dte,

(ii)              em medida suficiente,

 

Como já notei no Capítulo 7, ao menos para a zoologia atual o termo de espécie natural ‘tigre’ tem funcionado de modo diferente do termo ‘água’. Enquanto a descrição da microestrutura é importante para a caracterização de massas de água, o layout genético não é essencial para a identificação de tigres, diversamente da constatação de sua pertinência a uma dada espécie. Pode ser que o conceito de tigre venha a ser alterado de modo que o layout genético passe a ter um papel relevante; pode ser que por alguma nova convenção se deixe de considerar a região onde se originou a população – regras conceituais são geralmente vagas, alteráveis e não precisam excluir algum grau de arbitrariedade.

   Ainda outro caso é o de termos gerais que embora pareçam ser de espécie natural, não possuem nenhuma estrutura subjacente. Considere conceitos geográficos, como os de rio e lagoa. Um rio é um fluxo de água suficientemente grande, que corre sobre um leito naturalmente escavado na Terra em certa direção, partindo de uma nascente, diversamente de córregos, canais, rios de lava, etc. Uma lagoa se distingue tão-somente pela propriedade superficial de ser uma extensão fechada e suficientemente grande de água doce, diversamente de lagos, lagunas, poças de água, etc. Uma alternativa diante desses casos seria a de redefinir o conceito de espécie natural demandando o compartilhamento pelos seus membros de uma essência subjacente, mesmo que descoberta a posteriori, o que com alguma razão excluiria termos como os recém-considerados.

   Diversamente do caso dos nomes próprios, não faz sentido exigir dos termos gerais que eles satisfaçam propriamente descrições do grupo A, de localização e carreira espaciotemporal, posto que eles não se aplicam a um único objeto. Já vimos como isso se dá com um termo de espécie natural como ‘água’. Mas no caso de espécies zoológicas como a dos tigres, é possível que a relação com o grupo historicamente e regionalmente localizado que deu origem ao nome possua alguma importância, o que acaba sendo refletido por RA-‘tigre’.

   Há ainda casos em que, além de serem múltiplos, os critérios caracterizadores do tipo de entidade se encontram muito fracamente conectados entre si. Nesses casos podemos ser levados a recorrer a uma regra meta-caracterizadora para o termo geral capaz de estabelecer o que e o quanto da multiplicidade de condições que precisa ser aproximadamente satisfeito. Assim, podemos eventualmente precisar de

 

(i) um conjunto de regras-descrições indefinidas de primeira ordem que constituem um modelo (um feixe de descrições) e

(ii) uma regra-descrição de ordem superior, RMD – a regra meta-descritiva do termo geral – estabelecendo a medida em que o modelo precisa ser satisfeito para que o termo geral possa ser aplicado.

 

Exemplos explícitos de semelhantes regras criteriais complexas demandadas para a aplicação de um termo conceitual são  frequentes em ciência, como o demonstram o caso de uma doença como a febre reumática[7] ou síndromes como a de Asperger[8].

   Para o diagnóstico de uma crise aguda de febre reumática temos o critério de Jones modificado. O conjunto de regras-descrições indefinidas se divide como se segue:

 

a)      Manifestações maiores:

1.      cardite,

2.      coreia,

3.      eritema marginado,

4.      poliartrite,

5.      nódulos subcutâneos.

 

b)      Manifestações menores:

1.     Poliartralgia,

2.      Velocidade de hemosedimentação ou proteina C-reativa elevada e febre,

3.      Intervalo PR prolongado no ECG.

 

A regra meta-descritiva de atribuição é o próprio critério de Jones modificado:

 

RA-‘febre reumática’: O diagnóstico de febre reumática aguda precisa de duas manifestações maiores ou uma maior e duas menores e evidência de infecção do grupo A de estreptococos, cultura positiva de orofaringe ou teste rápido de antígenos positivos em alguém com manifestações clínicas sugestivas de faringite estreptocócica.[9] É interessante aqui notar o quão aproximados são a regra científica mais precisa constitutiva do critério de Jones e nossa análise de certas regras tacitamente conhecidas e menos precisas que regem a atribuição de termos conceituais.

   Outro caso que, por ser proveniente da ciência, é também explícito, é o dos critérios diagnósticos para a síndrome de Asperger. Eles são ainda mais vagos do que o critério de Jones modificado e variam de acordo com o especialista. Mas a estratégia é semelhante. No critério apresentado pelo Dr. Christopher Gillberg, por exemplo, há seis tipos de critérios (que chamaríamos de tipos de descrições), cada qual geralmente subdividido em vários sub-critérios (as descrições indefinidas), sendo a isso adicionada a exigência (a regra meta-descritiva) de que todos os seis tipos de critérios sejam satisfeitos e de que pelo menos nove sub-critérios sejam satisfeitos.[10] Note-se que tal regra demanda a satisfação de uma variável multiplicidade de condições criteriais para poder cumprir com seu papel caracterizador.

   Casos usuais, porém, costumam ser tácitos. Quero me restringir aqui a um único exemplo de conceito mais vago e aberto, que se ajusta relativamente bem ao que Wittgenstein classificaria como exprimível pelo termo ‘semelhanças de família’ (Familienänhnlichkeit). Trata-se do conceito de religião. O filósofo P. W. Alston analisou o conceito de religião de maneira similar aos casos apresentados acima. Eis os critérios (as regras-descrições criteriais) mais relevantes para a aplicação referencial da palavra ‘religião’ por ele considerados:

 

1.     Crenças em seres sobrenaturais (deuses).

2.     Sentimentos caracteristicamente religiosos (reverência, adoração, senso de mistério, sentimento de culpa, etc. associados ao divino).

3.     Um código moral que se acredita sancionado pelos deuses.

4.     Rezas e outras formas de comunicação com os deuses.

5.     Uma distinção entre entidades sagradas e profanas; atos rituais concentrados em torno de entidades ou objetos sagrados.

6.     Uma ampla organização da vida individual e social baseada em características anteriormente descritas.

7.     Uma cosmovisão, a saber, uma explicação do significado do mundo e do lugar do homem nele.[11]

 

Como o próprio Alston notou, há religiões como o catolicismo, o judaísmo e o islamismo, que satisfazem todas as regras-descrições constitutivas do feixe ou modelo. Elas constituem casos prototípicos, podendo derivar-se a aplicação da palavra para casos que satisfazem apenas partes do modelo.[12]

   Cumpre notar que talvez nenhuma das condições incluídas no modelo seja necessária, disso resultando, ao menos em aparência, a inexistência de uma essência geral única da religião. No protestantismo, nota Alston, os rituais relativos a objetos sagrados são bastante atenuados; e no caso dos Quakers eles são até mesmo repudiados, tornando-se fundamental apenas a experiência mística. Mesmo a crença em seres sobrenaturais pode estar ausente; há religiões como o budismo hinayana, nas quais os seres sobrenaturais são ignorados, incidindo a ênfase no cultivo de uma disciplina moral e meditativa que busque um estado espiritual em que todos os desejos parem de existir. Podemos adicionair ainda que há religiões laicas em que a crença em um Deus pessoal sobrenatural é simplesmente excluída, como é o caso da religião da humanidade fundada por Auguste Comte, que diviniza a sociedade humana além de possuir figuras devocionais (equivalentes a santos) como Shakespeare e Clotilde de Vaux. Parece que, em uma extensão talvez indébita dos critérios sugeridos por Alston, a religião sequer precisa demandar uma prática social, como acontece com religiões pessoais, como a do filósofo Spinoza, que se baseava na calma e jubilosa aceitação de tudo o que acontecia como decorrente das leis impessoais do universo, ou a do físico Albert Einstein, que via nessas leis uma fonte de reverência e de encantamento.

   Podemos aprimorar ainda mais o exemplo de Alston, estabelecendo uma regra de regras, uma metaregra aplicável às regras-descrições constitutivas do modelo formador do sentido do termo geral ‘religião’. Podemos chamá-la simplesmente de regra de atribuição constitutiva do conceito de religião ou:

 

      RA-‘religião’:

Usamos a palavra ‘religião’ para referir-nos (propriamente) a uma propriedade-t do gênero de uma prática sócio-cultural de um objeto x

      see

(i)                 x satisfaz ao menos uma ou duas das regras-descrições constitutitivas do modelo para o termo geral ‘religião’,

(ii)              em medida suficiente.

(iii)           Mais do que qualquer outra regra de atribuição do mesmo gênero.

 

Essa regra nos permite chamar de religião não só o catolicismo e o judaísmo, que exemplificam por completo o modelo, mas também o budismo hinayana e a religião da humanidade. Uma característica dessa regra de atribuição é que ela é propositadamente vaga. Ela é vaga de maneira a fazer corresponder à vaguidade de nosso próprio conceito de religião, que por sua vez deveria corresponder à vaguidade intrínseca ao fenômeno considerado. Casos como o da religião da humanidade satisfazem a metaregra (condições 1, 5 e 6, pelo menos). Há casos de religiões pessoais (como as de Spinoza e Einstein), que são fronteiriços no sentido de que quase não mais sabemos se o conceito realmente se aplica (satisfazem a condição 2). E há ainda casos que eventualmente se aproximam de satisfazer alguma condição da regra de atribuição, embora não a satisfaçam suficientemente. Considere, por exemplo, organizações secretas como a dos Rosacruzes, grupos políticos radicais como o dos comunistas ortodoxos, ou ainda, o misticismo matemático dos filósofos pitagóricos. Seriam religiões? Não propriamente, pois como as regras de classificação dos conceitos de organização secreta, de grupos políticos radicais e de filosofia se aplicam a essas coisas mais propriamente, o conceito de religião passa a aplicar-se a elas apenas em um sentido estendido.

 

Termos gerais e designação rígida

Diante dessa variedade de regras de atribuição podemos retornar à questão de saber se os termos gerais são designadores rígidos. Tanto Kripke quanto Putnam responderiam afirmativamente a essa pergunta, ao menos no que concerne aos termos de espécie natural, pois eles assumem que tais termos se referem a uma mesma essência microestrutural, pelo menos em qualquer mundo possível no qual essa essência exista.[13]

   Contudo, a rigidez dos termos gerais é diferente do caso relativamente não-problemático da rigidez dos nomes próprios. Enquanto o nome próprio designa apenas um único objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto existe, precisando apenas identificá-lo, o termo geral designa uma propriedade instanciável em objetos em um número que pode diferir em cada mundo possível (um mundo possível pode não conter tigre algum, outro como o nosso pode ser populado por alguns milhares e ainda outro pode ser superpopulado por bilhões de tigres). Por isso mesmo, para quem defende a rigidez dos termos de espécie natural, a sua referência não deve ser confundida com a sua extensão. Também é problemático pensarmos que o termo geral é rígido por ter como referência uma espécie.[14] Pois se fizermos isso parece que, ou recaímos em problemas como o recém-exposto, ou então nós o circundamos concebendo a espécie como uma propriedade abstrata, mas ao preço de termos de aceitar um problemático realismo de propriedades.

   Quero aqui coerentemente optar pela alternativa já escolhida, segundo a qual termos gerais designam primariamente propriedades-t. Sob esse ponto de vista, um termo geral é rígido na medida em que ele designa uma mesma propriedade-t (tropo ou agrupamento de tropos) em qualquer mundo possível no qual essa propriedade-t exista. Mas como cada mundo possível pode ter uma diversidade de propriedades particularizadas, precisamos de um critério de identidade para a propriedade a ser escolhida como sendo a mesma em cada mundo possível! Seria possível obter tal critério? Aparentemente não; afinal, só os termos singulares parecem capazes disso, pois só eles são feitos para singularizar uma mesma coisa em qualquer mundo possível no qual ela exista. Minha sugestão é a de que nossos termos conceituais são rígidos porque se aplicam em todos os mundos possíveis nos quais ao menos uma propriedade-t a ser por eles designada existe. Mas como sob a perspectiva da linguagem só podemos encontrar tal critério para os termos gerais com auxílio da aplicação do critério de singularização oferecido por termos singulares, na prática será necessário vincularmos o termo geral a um termo singular e perguntarmo-nos se uma propriedade-t idêntica à do objeto referido pelo termo singular em nosso mundo existe ou, se não existe, se é pelo menos concebível. Em tais casos verificaremos que o termo geral que a designa é rígido, pois em qualquer mundo possível no qual for identificado um objeto com uma propriedade-t qualitativamente idêntica a ela, essa propriedade será objeto de aplicação da regra de atribuição do termo conceitual correspondente. Trata-se aqui, ademais, de uma rigidez secundária no sentido de que ela é dependente da rigidez dos termos singulares aos quais o termo geral vem associado em frases predicativas ou relacionais singulares. Considere, para exemplificar, o termo geral indexicador ‘branco’. Quando usamos enunciados predicativos singulares como “A Lua (da terra) é branca” ou “Isso é branco”, estamos nos referindo a propriedades-t da brancura da Lua ou disso, de modo que o termo geral indexicador ‘branco’ pode ser considerado rígido por aplicar-se à mesma propriedade de brancura em qualquer mundo possível no qual, mesmo não existindo a Lua, existe algum outro objeto qualquer com a propriedade de ser branco. A rigidez do predicado ‘...é branca’ é, pois, secundária à rigidez de um nome próprio como ‘Lua’, o qual é rígido na independência de seu comparecimento em frases predicativas.[15] Não é preciso, contudo, que em um outro mundo possível, para se predicar um branco qualitativamente idêntico seja preciso encontrar uma lua;  bastará encontrarmos qualquer objeto de referência do qual possa se predicar que é branco. Suponhamos que a regra de atribuição para o que chamamos de ‘ouro’ fosse expressa pela descrição “metal raro de cor propriamente amarelada, solúvel em água áurea, com número atômico 76...”. Nesse caso, parece aceitável que através do proferimento indexical “Esse anel é de ouro” feito por mim agora para me referir ao material de um anel, eu esteja usando o predicado como designador rígido, aplicando-se ele um conjunto de propriedades qualitativamente idênticas em qualquer mundo possível no qual tal conjunto de propriedades seja individuado pelo mesmo termo geral singularizador. Finalmente, para o caso dos termos gerais descritivadores isolados, considere a expressão predicativa “...tem senso de humor”. O predicado ‘ter senso de humor’ também parece ser um designador rígido secundário porque a propriedade em questão de ter senso de humor é singularizada em qualquer mundo possível no qual algum indivíduo compareça possuindo senso de humor.

   O que foi dito acima também explica porque termos gerais nominadores podem ser rígidos, enquanto as descrições constitutivas desses termos podem não ser rígidas. Assim, ‘água’ é um termo rígido por contraste com a descrição ‘algo que serve para beber’, pois se aponto para esse copo de água e digo ‘Essa água serve para beber” no mundo atual, isso é verdadeiro, mas pode ser que em alguma circunstância contrafactual esteja eu apontando para esse mesmo copo de água e esteja dizendo algo falso, pois embora sendo água, ela contém alguns miligramas de arsênico e realmente não sirva para beber. A explicação é aqui análoga a que usamos para explicar a acidentalidade relativa das descrições definidas com relação aos nomes próprios no Capítulo 6: o termo geral descritivador é, no caso, semanticamente dependente da aplicação do termo geral nominador, o que explica a sua relativa acidentalidade.

   De modo similar, termos descritivadores devem aparecer como acidentais ou flácidos se comparados com termos conceituais nominadores aos quais estiverem usualmente, mas não necessariamente, associados. Considere o termo conceitual nominador ‘coala’. Aos ursinhos coalas aplicamos o termo descritivador ‘comedor de folhas de eucalípto’. Mas imagine um mundo possível no qual a seleção natural torne os coalas animais comedores de grama. Nesse mundo, o termo geral descritivador ‘comedor de folhas de eucalipto’ se demonstrará não aplicável aos coalas, ou então aplicável a um animal de outra espécie, o que demonstra que ele é acidental relativamente ao termo conceitual ‘coala’ ao qual vem geralmente associado.

   Essas respostas podem ser vistas como trivializadoras da pretensão original da noção de designador rígido, como sendo algo cujo mecanismo de referência aparentava apontar para a descoberta de alguma coisa nova, intrigante, misteriosa. Com efeito. Mas essa trivialização já estava presente em nossa análise da rigidez no caso paradigmático dos nomes próprios, sendo a trivialidade do presente caso mera consequência. Dizer que um termo deve manter a mesma referência, caso essa referência exista, ainda que as circunstâncias envolvidas – os mundos possíveis – sejam diversas, não parece ser no final das contas muito mais do que um lugar-comum, a menos que a distinção entre rígido e acidental fosse categorial, o que já demonstramos não ser o caso.

 

A velha questão da essência

Chegamos com isso à velha questão da essência: aplicamos termos gerais com base em essências que são comuns a suas instâncias? Pelo que vimos, a questão não pode ser respondida com um simples sim ou não. O próprio conceito de essência não é muito claro. Se entendermos por essência a reunião das características definitórias da natureza intrínseca de um ser (Aristóteles), parece que podemos linguisticamente entender uma propriedade essencial como uma reunião de características que são necessárias e suficientes para a aplicação de um termo geral. Nesse caso a essência expressa pelos termos gerais consiste em suas regras de atribuição, posto que são elas que constituem as condições necessárias e suficientes para a atribuição dos termos.

   Comparativamente, é possível sugerir que possamos classificar a variedade de termos gerais de acordo com o grau de necessidade com o qual certas propriedades precisam satisfazer as condições para a sua aplicação. Quero esclarecer esse ponto através de casos que vão desde o mais alto grau de necessidade ao mais baixo, como se segue:

 

(a) Considere o caso de termos indexicadores como ‘vermelho’ e ‘redondo’. Considere também o caso de termos propriamente descritivadores como ‘um terno branco’ e ‘uma bola de fogo’, que demandam a satisfação de um conteúdo descritivo específico. Nos primeiros dois casos, ao menos, parece que podemos  assumir essências que por suposição são reais, entendidas como indefiníveis condições necessárias e suficientes para a aplicabilidade dos termos entendidas como como constitutivas das coisas. Os últimos dois casos dependerão de definições mais ou menos flexíveis.

(b) Há o caso dos termos nominadores de espécie natural que possuem propriedade microestrutural essencial, como ‘ouro’. Pode ser convencionalmente estabelecido que se não se tratar do elemento de número atômico 76, ele não será propriamente ouro, caso em que também poderíamos assumir uma essência que é por suposição real.[16]

(c) Termos nominadores de espécie natural como ‘tigre’, cuja propriedade essencial se encontra por convenção no nível superficial de pertinência a uma dada espécie geograficamente originada. Aqui parece que se assumirmos uma essência, ela será mais do tipo chamado por Locke de nominal por sua dependência de convenções, por melhor que as fundamentemos, sendo assim mesmo passíveis de alteração.

(d) Termos nominadores de espécie natural como ‘água’ que, como vimos, possuem propriedades fundamentadoras nucleares que podem ser suficientes, mas que não são necessárias, não podendo nesse sentido serem consideradas essenciais. Contudo, uma essência (também supostamente) real como H2O pode ser assumida com respeito aos designata do subconceito expresso pelo termo ‘óxido de hidrogênio’, por exemplo. (A regra atributiva para o conceito geral de água, por sua vez, pode ser considerada uma essência nominal, estabelecendo condições necessárias e suficientes para sua aplicação.)

 (e) Termos gerais nominadores como ‘religião’, ‘jogo’, ‘número’, ‘arte’, ‘conhecimento’, ‘consciência’... Em graus diversos esses termos correspondem ao que Wittgenstein (em meu juízo de forma equivocada) analisou como possuindo o que ele chamava de “semelhanças de família” entre suas aplicações.[17] Nesses casos não há, ao que parece, uma essência comum, mas aglomerados diversos de propriedades (o que não implica que elas não possam ser associadas de modo a formar descrições definicionais). Seja como for, tais conceitos podem ser frequentemente analisados em subconceitos que por sua vez possuem alguma clara essência comum. Assim, pode bem ser possível encontrarmos uma essência comum ao catolicismo, ao jogo de xadrez (e mesmo ao jogo em geral), ao número natural, à arte própria ou ao conhecimento proposicional.

 

A admissão das variadas possibilidades mostradas nos casos que vão de (a) a (e) nos oferece uma possível chave para abordar a disputa entre essencialismo e anti-essencialismo, pois sugere uma gradação entre ambos os casos. Estou admitindo aqui um conceito de essência que ou é nominal (e nesse sentido de dicto) ou é apenas bem fundada e assim assumida como real, embora não seja descoberta como algo “apoditicamente” real (sendo nesse sentido enfraquecido um de re que pertence ao de dicto). Não se trata do realismo essencialista no qual seríamos capazes de nos deparar com necessidades transcendentalmente metafísicas, posto que o falibilismo intrínseco as nossas pretensões de conhecimento frustra a admissão de um essencialismo metafisicamente de re, do essencialismo último, ainda hoje aspirado por muitos essencialistas. (Talvez possa ser o caso; o problema é que, parafraseando Karl Popper, mesmo que encontrássemos tal essência metafisicamente de re, não teríamos qualquer meio de nos certificarmos de a termos encontrado).

 

Sobre a colonização da filosofia pela ciência

Quero terminar retornando às considerações metafilosóficas genéricas com as quais iniciei esse estudo. “Tudo é um”, pensavam os pré-socráticos. A abrangência de escopo tem sido um traço constitutivo da filosofia em toda a sua história, de Aristóteles a Hegel, de Wittgenstein a Jürgen Habermas. Mas essa abrangência tem sido desafiada pela filosofia analítica em sua forma contemporânea, que se encontra dividida em áreas de investigação no interior das quais se subdividide em grupos competitivos de teorias cada vez mais especializadas, geralmente incapazes de dialogar entre si. Em meu juízo a perda de abrangência pode ser tanto justificada quanto exagerada. Ela está associada ao desenvolvimento exponencial da ciência, tanto formal quanto empírica, que se reflete no modo como funciona a própria instituição universitária, em um movimento de excessiva, insuficientemente fundada desmagificação do mundo (Entzauberung der Welt) que torna o método científico objeto de uma crença substitutiva quase religiosa, podendo incluir aspectos positivos e/ou negativos. Como aspecto filosoficamente negativo eu escolheria a tendência de boa parte da filosofia acadêmica anglo-americana de reduzir como espúrio o que não se adequa ao uso de parâmetros de produção e de avaliação que podem servir bem para as ciências duras e seu valor pragmático, mas que em filosofia tendem a produzir como resultado um cientificismo positivista e reducionista, que varre pra debaixo do tapete questões legítimas (e.g., as teses destrutivas de W. V. Quine, como a da indeterminação do significado, da inescrutabilidade da referência e da indeterminação da tradução... que, a um exame cuidadoso, revelam-se como sofisticados sofismas radicados em um fundo de preconceituoso reducionismo cientificista e pragmatista que pode ser bloqueador dos caminhos de uma investigação filosófica mais ampla e promissora; um outro exemplo é a defesa formalista de Kripke por Scott Soames, que só convence os já convertidos[18]). Posso exemplificar melhor o que tenho em mente contrastando duas posições opostas; as de Scott Soames e Susan Haack.

   Para Soames a filosofia encontra-se na era da especialização: a filosofia contemporânea tem produzido teorias cada vez mais especializadas, que se desdobram em novas sub-teorias, e assim sucessivamente, sem expectativa de síntese.[19] Um resultado disso é que, no imenso tear da filosofia contemporânea as visões compreensivas, que objetivam “esclarecer associações entre conceitos constitutivos de nosso entendimento do mundo como um todo”, como pensava Ernst Tugendhat[20], parecem tornar-se praticamente impossíveis e, na opinião de alguns mesmo desnecessárias.

   Susan Haack[21] alertou-nos sobre os riscos desse modo de pensar. Ela observa que o atual desenvolvimento da ciência e da tecnologia tem absorvido no pensamento acadêmico o lugar próprio da filosofia, produzindo uma inaudita erupção de cientismo no sentido de uma imitação de procedimentos científicos pela comunidade filosófica. Esse cientismo se evidencia para ela particularmente pela especialização precoce, fragmentadora do campo de investigação. A especialização, escreve ela, é boa para a ciência, uma vez que suas ramificações se erigem sobre bases suficientemente sólidas. Mas a especialização pode ser prejudicial no campo da filosofia, cujas bases teóricas são elas mesmas especulativas e incertas, podendo ser profundamente enganosas se tratadas como se fossem fundamentos sólidos e confiáveis. O resultado dessa especialização precoce pode bem ser o que ela chamou de “uma desastrosa fragmentação da filosofia”. Seu mal maior é impedir a visão dos eventuais vínculos de coerência entre as diversas ideias e teorizações filosóficas, retirando da filosofia a propriedade de consiliência – entendida por ela como a assunção heurística de que diferentes sub-domínios de nossas investigações devem ser heuristicamente complementares entre si, derivando sua força da unidade suposta do que se tem por objeto do conhecimento (considere, como exemplo em ciência, o suporte mútuo entre evolucionismo darwiniano, genética mendeliana e genética molecular). Em filosofia, o alcançar de consiliência é pelo menos indicativo de maior plausibilidade, sendo isso o que dá à confluência de ideias apresentadas no presente livro, por exemplo, um maior grau de plausibilidade. Em contraposição, quando falta qualquer possibilidade de comparação com uma ordenação mais geral de ideias, nossos procedimentos especializados de fundo especulativo se tornam eles mesmos inavaliáveis. Caímos assim facilmente em uma espécie fútil de argumentação, na qual perdemos os meios externos de apreciar a relevância daquilo mesmo que estamos discutindo.

   Tanto o diagnóstico inadvertidamente otimista de Soames quanto o diagnóstico razoavelmente pessimista de Haack são, creio eu, susceptíveis de um certo grau de relativização. Em favor de Soames devemos notar que é inegável a necessidade de especulações que requeiram conhecimento especializado. As ciências se desenvolvem e se ramificam rapidamente. Há, sem dúvida, muita coisa que só especialistas trabalhando em algum campo específico são capazes de realizar, sendo inegável a existência de inovações enriquecedoras – mesmo que especulativas e questionáveis – em questões específicas. Um exemplo dentre muitos outros tem sido a prolífica discussão sobre a natureza da consciência por filósofos como D. M. Armstrong, David Rosenthal, Daniel Dennett, Ned Block, Bernard Baars, Giulio Tononi e vários outros, feita em íntima conexão com a ciência[22]. Não há nada de errado nessa espécie de investigação, nem em investigações pontuais de questões secundárias[23]. E também não há em si mesmo nada de filosoficamente impróprio no expansionismo reducionista (i.e., generalizador e capaz de simplificar distorcivamente o modo como as coisas realmente são) a ser encontrado em filósofos formalmente motivados, que é comum às teorias causais criticadas no presente livro, conquanto elas não sejam vistas dogmaticamente, mas como desafios filosóficos de inegável originalidade e força dialética.[24] Afinal, foi só como resposta a esses desafios que se tornou possível o desenvolvimento das teorias neodescritivistas esboçadas nesse livro.

   Podemos, por mera analogia, comparar a diferença entre filosofia abrangente, com propósitos sistematizadores, e muito da filosofia especializada, com a diferença que existe entre física teórica e a física experimental. A física experimental objetiva avaliar teorias através da observação empírica; a física teórica examina os resultados daqueles experimentos com o objetivo de produzir ou corrigir generalizações nomológicas. Sob uma perspectiva algo similar podemos conceber a distinção entre filosofia especializada e filosofia abrangente. A filosofia teórica abrangente deveria então, idealmente, ser capaz de utilizar os resultados interessantes de teorias mais especializadas, combinando-os na produção de sínteses mais amplas, justificando-se então pela coerência intrínseca entre as últimas. A síntese ampla possível (penso em Ernst Tugendhat ou Jürgen Habermas) teria, em contraposição, poder confirmatório com relação às teorias especializadas de que faz uso, avaliando-as e esclarecendo melhor o seu papel. Sob essa perspectiva, as duas espécies de trabalho filosófico poderiam ser, no final das contas, complementares.

   Em todo o presente ensaio visei, através de um exame de teorias variadas, seguir o caminho da abrangência e reintegração, ainda que restrita à problemática da referência. Meu intento foi o de proceder de modo sistematizador e não-reducionista, procurando, sempre que fosse o caso, sustentar uma espécie de equilíbrio reflexivo entre (i) intuições do senso comum e da linguagem natural, (ii) as razões que a análise lógica nos permite encontrar, e ainda (iii) possíveis resultados da ciência. Tomo isso como um procedimento anti-reducionista par excellence.[25]

   Como também tentei demonstrar, a aproximação das questões que enfatiza (criticamente) intuições de senso comum e da linguagem natural, não nos força a permanecer em um estágio pré-teorético superficial. O que se inicia como uma vaga apresentação panorâmica da gramática conceitual pode ser capaz de ser detalhado em direção a um tratamento inevitavelmente mais sistemático e rigoroso, que ao final torne o consenso entre especialistas geralmente possível, podendo por essa razão ser chamado de ciência (e.g., a teoria dos atos de fala fundada por J. L. Austin).

   Creio que um resultado flagrante da sistematização aqui esboçada é o de tornar possível uma reconfiguração mais consistente e plausível de nossas ideias acerca dos mecanismos de referência. Dela emerge um quadro mais complexo, no qual uma maneira de ver aparentemente ultrapassada volta ao centro do palco, embora transfigurada, enquanto a outra maneira de ver, para alguns talvez insofismável, acaba por ter seu seu papel reescrito como provedora de métodos e desafios profundamente originais e dialeticamente instigantes, senão imprescindíveis ao desenvolvimento das teses aqui defendidas, ainda que isso não seja suficiente para torná-la verdadeira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Em certos casos, como ‘arte’ e ‘conhecimento’ eles são polissêmicos, subdividindo-se em sub-conceitos mais ou menos inter-relacionados, os quais podem ser analisados em termos de descrições indefinidas: ‘arte’ poderia ser analisado como ‘arte entretenimento’, ‘arte sacra’ e ‘arte própria’ (Collinghood) e ‘conhecimento’ poderia ser analisado como ‘saber fazer’, ‘conhecer o/a’ e ‘saber que p’ (Feldman).

[2] Para Tugendhat (1976, p. 380) o quasi-predicado é um predicado cuja regra de atribuição só lhe permite o emprego em situações de percepção apropriadas. 

[3] Cf. Rosh 1973.

[4] Se fosse veicular seria chamada de ‘assento’ (de carro, ônibus, avião...), se não tivesse encosto seria um banco, se tivesse sido feita para mais de uma pessoa se sentar poderia ser um sofá, um banco de jardim... (Cf. Costa 2018, II, 7)

[5] Cf. cap. 7.

[6] É importante notar que não se trata de uma regra metadescritiva, como no caso dos nomes próprios. Não há aqui características próprias deste ou daquele particular ao qual se aplica a regra de atribuição, pois este, quando se dá, já é objeto de aplicação de algum termo singular identificador.

[7] Cf. critérios de Jones atualizados.

[8] E.g. Gillberg 2002, cap. 2.

[9] Cf. Critérios de Jones atualizados.

[10] Cf. Gillberg 2002, pp. 6-7.

[11]  Ver Alston 1964, cap. 6.

[12] Não se trata, porém, de uma derivação genética capaz de dar razão à teoria da tipicalidade. As religiões mais primitivas e originárias em nada satisfaziam as condições de (1) a (5) conjuntamente.

[13] Kripke 1980, p. 134 ss. e Putnam 1975, sec. 6.

[14] LaPorte 2000. Ver também Schwartz 2002.

[15] Esse ponto decorre da sugestão de Ernst Tugendhat de que para usarmos um termo geral em um enunciado predicativo singular precisamos primeiro identificar o objeto referido pelo termo singular. Com isso suponho estar melhor parafraseando o que é possível da proposta de  Devitt e Sterelny de que termos gerais são “aplicadores rígidos”: eles se aplicam a objetos no mundo atual, e se tais objetos existem em um mundo possível, então eles se aplicam a objetos nesse mundo possível. Devitt & Sterelny 1999, p. 85.

[16] Digo ‘por suposição real’ para evitar o confusivo termo ‘de re’. Se for de re trata-se aqui de algo entendido como uma subclasse dos de dicto que se refere a objetos que são tidos como realmente dados. Ver a esclarecedora análise de Searle em 1983, pp. 208-217.

[17] Ver Wittgenstein 1984b sec. 68. O problema com o conceito de semelhanças de família é que ele só exige que entre diferentes aplicações de um predicado seja preservada alguma semelhança, sem estabelecer seus limites. O resultado é que, como qualquer coisa tem semelhança com qualquer outra coisa sob algum ponto de vista, não há como estabelecer os limites de aplicação de um termo com semelhanças de família. Isso nos poria diante de uma dificuldade insuperável. Só o recurso a um paradigma de condições e a uma regra meta-descritiva que vige sobre as condições constitutivas do paradigma (como no exemplo da religião) permite-nos superar essa dificuldade.

[18] 2004. Essa disposição anti-cientificista já estava presente na rejeição do positivismo lógico por Wittgenstein (ver Wittgenstein 1986, p. 18). Pode ser que certas tendência atuais sejam um fator motivador na relação com domínios emergentes da ciência, mas perde em interesse quando as comparamos com os valores legados pela tradição filosófica.

[19] Ver Soames 2002, vol. 2, epílogo.

[20] Tugendhat 1992.

[21] 2016.

[22] Cf. Velmans & Schneider 2007.

[23] E.g., Maurin 2013.

[24] Kripke foi ainda adolescente um admirador de David Hume, um filósofo que desafiou como ninguém o senso comum ao ser levado à conclusão de que a única coisa realmente existente no mundo seriam agrupamentos transitórios de ideias.

[25] Cf. Costa 2018, cap. II; ver ainda Searle 2008, pp. 15-17.