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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

DAVID HUME

OBS: ISSO É APENAS O PRIMEIRO DRAFT DE UM TEXTO INTRODUTÓRIO

 

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HUME: DESAFIOS CÉTICOS

 

Já foi dito que a filosofia é um método para inventar muitos problemas a partir de algumas poucas soluções. Caso esse método exista, David Hume (1711-1766) exemplificou-o de maneira soberana. A conclusão inaceitável de sua filosofia é a de que não há razões para se acreditar nem na existência de um mundo externo, nem em sujeitos humanos espirituais, nem, obviamente, em Deus. Tudo o que a razão nos permite atestar é a existência de agrupamentos de ideias rapidamente se sucedendo umas às outras.

   O que importa, obviamente, não é essa conclusão absurda, mas o caminho argumentativo que Hume percorreu para chegar até ela. Os desafios filosóficos por ele desenvolvidos possuem a marca da profundidade, posto que ainda hoje nos incitam a procurar respostas.

 

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A maior ambição de Hume era a de tornar-se famoso por sua contribuição para o progresso do conhecimento, como ele mesmo, cândida e honestamente admitiu.[1] Quando jovem ele foi um grande amante da literatura. O caráter imaginativo de sua argumentação na produção de grandes ardis metafísicos que até hoje ocupam as mentes dos filósofos e que fez escola na filosofia de língua inglesa deixa-se explicar por sua paixão literária. Locke, uma pessoa com treinamento científico, preferia deter-se diante de qualquer resultado que lhe parecesse absurdo demais para ser verdadeiro, fazendo exceção apenas para aquilo que de algum modo vindicasse suas crenças religiosas.

   Hume passou a vida estudando. Sua obra principal, planejada desde a adolescência e escrita durante três anos de recolhimento na França, foi o Tratado sobre a natureza humana, publicado quando ele tinha 28 anos e considerado por muitos a maior obra de filosofia escrita em língua inglesa. Para sua decepção, ela não encontrou acolhimento algum, além de três resenhas hostis e desdenhosas. Só anos mais tarde, após a publicação de uma História da Inglaterra em seis volumes, ele se tornou um escritor conhecido e venerado (além de muito repudiado) na Inglaterra e na França. Essa última obra deu-lhe liberdade econômica, possibilitando-lhe viver para escrever.

   As outras obras filosóficas mais importantes de Hume, como a Investigação sobre o Intelecto Humano e a Investigação sobre os princípios da moral, não foram muito mais do que importantes exposições complementares de ideias já lançadas em sua obra principal.

   Hume tentou ser aceito como professor nas Universidades de Edimburgo e Bristol, mas foi rejeitado por suspeita de ateísmo. Nisso seus críticos tinham razão. Em seu livro intitulado Diálogos sobre a religião natural, que teve o cuidado de não publicar em vida, ele expôs argumentos rejeitando a imortalidade da alma e sugerindo que só um Deus cruel poderia ter criado um mundo tão injusto como o nosso. Ele não aceitou a presença de um ministro religioso para consolá-lo no leito de morte. Em sua “oração funeral para si mesmo” escreveu que não se sentia abatido, pois afinal “ao morrer aos sessenta e cinco um homem não faz mais do que abreviar alguns anos de enfermidade”.[2]

   Hume era conhecido como uma pessoa bondosa, com um temperamento brando e agradável, acompanhado de um inexaurível otimismo, o que torna verdadeiras as palavras de seu amigo Adam Smith, que o considerava “um homem perfeitamente sábio e virtuoso, tanto quanto o admite a frágil natureza humana”.[3]

 

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Do mesmo modo que Locke, Hume também queria estabelecer os limites do conhecimento humano de modo a obstar uma metafísica e uma teologia destituídas de sentido. Mas, enquanto a obra de Locke era construtiva, a obra de Hume foi desafiadoramente cética em sua exploração dos pontos fracos das filosofias de Locke e Berkeley. Enquanto Locke tinha a humilde intenção de arrumar a sala, Hume era ambicioso o suficiente para querer construir uma nova ciência da natureza humana com base na experiência reflexiva interna, do mesmo modo que Newton havia construído uma ciência do mundo natural resultante da experiência externa. Mais do que isso, Hume via a ciência que ele estava a construir como ainda mais importante, uma vez que, conhecendo melhor nossa própria natureza teríamos condições mais adequadas para desvendarmos os mistérios do mundo físico...

   Não parece, porém, que precisemos conhecer a nós mesmos para só então podermos investigar o mundo físico ao nosso redor. Além disso Newton se valeu de mensurações experimentais capazes de alcançar consenso universal entre os cientistas. Já as reflexões de Hume, por mais profundas e imaginativas que tenham sido, não foram muito além de especulações filosóficas geralmente incapazes de alcançar consenso quanto a seus resultados.

   Hume começou o Tratado reeditando sumariamente a teoria das ideias de Locke. No lugar das ideias ele colocou o que chamou de percepções. A palavra ‘percepção’ está simplesmente no lugar de qualquer conteúdo da mente humana. As percepções dividem-se em impressões e ideias (I, 1, 1)[4] As impressões caracterizam-se pela vivacidade, força e violência com que atingem nosso pensamento e consciência, como é o caso das sensações, paixões e emoções. Além disso, as impressões possuem uma ordem e sucessão temporal que independe de nós mesmos. As ideias, por sua vez, são imagens evanescentes das impressões, tanto no pensar quanto no raciocinar. Ou seja: todas as nossas ideias de uma forma ou de outra derivam das impressões sensíveis ou emocionais. E assim como em Locke, não existem ideias inatas.

   As impressões podem ser simples ou complexas. As impressões simples são as de coisas como a cor vermelha ou o calor. Mas as impressões também podem ser complexas como, por exemplo, a da árvore ou da casa que se encontra diante de nós. As ideias também podem ser simples e complexas. As primeiras são meras cópias das impressões simples. Ideias simples aparecem depois das impressões simples, como resultado da memória, sendo, portanto, causadas por elas. Já as ideias complexas podem ser decompostas em ideias simples.

   Ideias complexas podem ser recordações ou ideias da imaginação.  As recordações são consideradas por Hume cópias enfraquecidas de impressões complexas. Elas não dependem de nossa vontade e se encontram estreitamente ligadas às impressões originais e à sua ordem e coerência. As ideias da imaginação, porém, dependem de nossa vontade, de modo que podemos construí-las e alterá-las a nosso bel prazer. Se associo a ideia de sensação de um cavalo com a ideia de sensação da parte superior de um corpo humano, eu formo a ideia da imaginação de um centauro, que depende de minha vontade e não possui correspondente em uma ideia complexa de impressão. Enquanto as ideias de recordações são mais fortes, as ideias da imaginação costumam ser mais tênues.

   Ao chamar as ideias recordadas de cópias das impressões Hume recai em uma simplificação comum ao empirismo inglês, que é o de reduzir conceitos a imagens. Intérpretes de Hume notaram que não existem cópias imagéticas de ideias auditivas, táteis e gustativas, posto que elas não possuem formas espaciais, o que parece livrar Hume do imagismo. Mas isso está errado. Mesmo não sendo imagens de impressões, as ideias não visuais são reproduções ou réplicas de impressões sensíveis. Afinal, a memória do som de uma explosão é como sua audição, só que muito enfraquecida, a memória de uma dor é como a dor, mas enfraquecida, e a memória de um certo gosto é também uma forma muito enfraquecida do mesmo. Reduzir conceitos a reproduções ou cópias pode parecer razoável quando consideramos cores e sons, mas se torna problemático quando consideramos ideias mais complexas como as triângulo ou de homem. Aqui precisaremos nos valer de conceitos e, como logo veremos, de regras conceituais.

   Hume também possui um conceito semelhante ao das ideias de reflexão de Locke, embora sua gênese seja diferente (I, 1, 2). Para Locke as ideias de reflexão resultam de uma espécie de introspecção sobre atividades da mente, como a do pensamento, do juízo e da crença, formando as ideias de reflexão de pensamento, de juízo e de crença. Para Hume, primeiro temos as impressões que atingem os sentidos, fazendo-nos perceber coisas como o calor e o frio, a fome e a sede, o prazer e a dor. Depois a mente produz cópias dessas impressões, que são as ideias de calor, frio, fome, prazer e dor. Essas ideias continuam existindo, mesmo depois de cessadas as impressões. Mas quando essas ideias retornam à mente, associamos a elas novas impressões, como as de desejo ou aversão, esperança ou temor, que nada mais são do que impressões de reflexão. Essas impressões, escreve ele, podem ser copiadas sob forma de ideias com base na memória ou imaginação.[5] Cabe notar que os exemplos dados por Locke e Hume são diferentes e pode bem ser que eles estivessem tratando de operações diversas.

   O seguinte esquema resume as diferentes espécies de percepções segundo Hume:

 

                                            Percepção

 

              Impressão                                                     Ideia

                           

de sensação     de reflexão                    da memória           da imaginação     

 

As impressões de sensação simples e complexas, assim como as ideias de reflexão, são fatores causais na produção de mais fracas ideias de memória simples e complexas. E nossa imaginação combina ideias de memória na produção das ideias complexas de imaginação.

 

2

 

Uma importante descoberta de Hume diz respeito à atração que faz nossas mentes se moverem de uma ideia a outra segundo o que ele chamou de princípios de associação. Eles são três: semelhança, contiguidade e causalidade.[6] Uma ideia se associa a outra por semelhança, por exemplo, a lembrança de uma cena de extorsão em um filme faz com que uma pessoa se recorde de um incidente ocorrido em sua infância. Também há associações por contiguidade espaciotemporal, por exemplo, quando alguém se recorda da casa de seu avô e a seguir se recorda da igreja na praça à frente da velha casa, dos sinos que batiam e das cerimônias religiosas nos finais de semana. Há, por fim, associações entre causa e efeito, por exemplo, quando alguém associa a vista de um ferimento à dor (causa para efeito), ou quando uma pessoa associa a fumaça escura que sobe ao céu a um incêndio (efeito para a causa).

   Hume tem ainda algo a dizer sobre as ideias de substância e de modo (acidente).  Elas se resumem a coleções de ideias simples que são unidas pela imaginação e designadas por um nome convencionalmente estabelecido.[7] As coleções de ideias que são substâncias ou são ligadas a algo desconhecido a que são supostamente inerentes, ou estão conectadas por estreitas e inseparáveis relações de contiguidade e causalidade, de modo que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples com a mesma conexão com as restantes, nós a adicionamos enriquecendo o conceito. O exemplo por ele dado é o do ouro como metal amarelo, maleável, com certo peso e fusibilidade ao qual se veio a adicionar a propriedade de solubilidade em uma solução ácida chamada de acqua regia. A substância é entendida aqui como uma espécie natural, algo como a substância segunda de Aristóteles, analisada por Hume como um feixe de qualidades. Hoje, sabendo que o ouro corresponde ao elemento de atômico de número 76 nós somos tentados a dizer que essa propriedade constitui-se na essência dessa espécie natural.[8] Por fim, exemplos de modos (acidentes) são para ele a ideia de dança e a ideia de beleza.[9]

 

3

 

Hume aceitava a sugestão de Berkeley de que embora existam ideias gerais, elas não são abstratas no sentido de serem não empíricas. Berkeley às havia reduzido ao uso de um modelo de imagem única associado a um nome geral de maneira a permitir a identificação de ideias gerais. Por exemplo: a imagem de um certo triângulo equilátero a ser usada como um modelo para a identificação de qualquer triângulo, ou a de um certo homem a ser usada como modelo para a identificação de qualquer homem (no sentido de corpo humano). Hume tem uma explicação mais sofisticada. De acordo com ele, por termos impressões sensíveis de diferentes objetos que se assemelham em algum aspecto, formamos então, por costume, um conjunto de ideias-imagens idênticas, mas enfraquecidas desses objetos, contendo aquilo que nos despertou atenção. Dessa maneira formamos um grupo (um conjunto) de ideias-imagens diferentes, por exemplo as de triângulo equilátero, retângulo, isósceles e escaleno… ao qual associamos o termo geral ‘triângulo’, permanecendo elas em nossas mentes como disposições. Quando somos apresentados a um certo triângulo, por exemplo, a um triângulo escaleno, nós atualizamos a ideia de um triângulo escaleno e assim o reconhecemos como sendo um triângulo. O mesmo pode acontecer com a ideia expressa por uma palavra como ‘homem’ (no mesmo sentido de corpo humano). Nós selecionamos um grupo de ideias-imagens mais fracas, mas idênticas às suas impressões sensíveis, digamos, a de um jovem, de um velho, de uma mulher, de uma criança, de um oriental, de um branco, de um negro… Assim, quando vemos um certo corpo humano, como o de um velho sábio chinês, somos capazes de atualizar uma dessas imagens, digamos, a de um velho oriental, de modo a reconhecê-lo pelas particularidades que nos chamam à atenção. Podemos fazer a mesma coisa com ideias como as de governo, igreja, negociação, conquista. Essas últimas, escreve ele, são ideias muito complexas e pouco distintas, de modo que raramente somos capazes de fazer explícitas as ideias simples que as compõem; mesmo assim somos capazes de atribuir a quem perde uma guerra a ideia de negociação e não, digamos, a de conquista… (I, 1, 7, 14).

   A solução de Hume é mais sofisticada do que a de Berkeley, mas não é suficiente para resolver o problema. Quando ele se pergunta por que certas ideias-imagens devem ser escolhidas, ele recorre a noções pragmáticas como as de utilidade e adequação ao propósito. Mas não é por sua utilidade ou propósito que reconhecemos um triângulo isósceles como sendo um triângulo. Hume deixa sem explicar aquilo que faz com que sejamos capazes de unir todas as ideias-imagens em um mesmo grupo ou conjunto (I, 1, 7, 15).

   O passo adiante no entendimento das ideias gerais só será dado mais tarde por Kant, que irá prescindir de um discurso meramente imagético e escrever sobre conceitos como habilidades governadas por regras que, sem dúvida, podem incluir a produção de modelos imagéticos, mas não se restringem a eles. Kant nota que o conceito de cão é uma regra através da qual somos capazes de delinear a imagem de um cão. Mas isso não é sempre necessário: ao identificarmos o número 56 como sendo o resultado da multiplicação de 7 por 8, não precisamos recorrer à imagem alguma.

   Ainda no século passado Michael Dummett entendeu o sentido de uma palavra conceitual como uma regra estabelecendo critérios para a sua aplicação.[10] Ernst Tugendhat chamou-a de regra de aplicação do termo geral,[11] a qual também pode ser abstraída da experiência. Por exemplo: o termo geral ‘triângulo’ pode ser definido como uma figura plana fechada, formada por três segmentos de reta que concorrem, dois a dois, em três pontos diferentes do plano euclidiano. Se conhecemos essa definição então possuímos uma regra para a construção de qualquer triângulo, satisfaça ele a ideia-imagem de um triângulo equilátero, retângulo, isósceles ou escaleno. Considerando que sempre que nos for dado um triângulo, seja ele equilátero, isósceles ou escaleno... somos capazes de, com base na definição, produzir uma ideia-imagem correspondente ao que nos for dado, identificando assim os triângulos no plano euclidiano. A regra conceitual nos permite produzir imagens que se correspondem aproximadamente àquilo que a palavra conceitual serve para designar.

   O que Berkeley e Hume demonstraram foi que não somos capazes de construir imagens abstratas, embora possuamos termos gerais, imagens concretas e capacidades ou disposições de aprendizado inatas. Mas eles não demonstraram que não podemos associar a termos gerais conceitos entendidos como regras de aplicação conceituais baseadas em critérios de satisfação em algum sentido imagéticos. Tais regras poderiam, por suposição, ser capazes de reproduzir impressões em nossas mentes, reproduções identificadoras similares às impressões sensíveis realmente percebidas, constituindo-se elas de critérios para o reconhecimento de uma dada imagem sensível como pertencendo a uma classe, digamos, a do termo geral ‘triângulo’.

 

4

 

Uma distinção fundamental é a que Hume faz entre relações de ideias e as questões de fato.[12] As relações entre as ideias são as que encontramos na geometria, na álgebra e na aritmética. Exemplos são enunciados como:

 

- A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano perfaz 1800,

- O quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados.

- A multiplicação de três por cinco é idêntica à divisão de trinta por dois.

- Um círculo não é um quadrado.

 

Relações de ideias são senão intuitivamente ou mesmo demonstrativamente certas. Elas são necessariamente verdadeiras porque a sua verdade não depende de nenhuma circunstância do mundo, que é sempre mutável. A verdade das relações de ideias decorre da estrutura das próprias ideias envolvidas, de modo que uma vez que conheçamos essas ideias saberemos que as relações entre elas são verdadeiras.

   Como os enunciados acima apenas afirmam as relações vigentes entre conceitos mentais, eles também não podem ser falsos, sendo contraditório negá-los. Assim, que a soma dos ângulos internos de um triângulo perfaz 1800 no sistema da geometria euclidiana continuaria sendo verdadeiro mesmo em um mundo no qual não existissem triângulos euclidianos. Note-se que Hume não está falando da aplicação desses enunciados ao mundo real. Sabemos que o espaço físico onde há gravidade é não-euclidiano, e que nele a soma dos ângulos de um triângulo é maior do que 1800. Isso torna falsa a aplicação da geometria euclidiana a esse espaço, mas Hume está considerando apenas o sistema conceitual que constitui uma certa geometria e nisso ele está certo.

   Diversamente do caso das relações de ideias, juízos sobre questões de fato dependem do que existe no universo. Sua negação não conduz à contradição e sua verdade não pode ser estabelecida por demonstração. Tanto sua afirmação quanto sua negação podem ser em princípio verdadeiras. Um exemplo é o enunciado “O sol nascerá amanhã”. Estamos bem certos de que o sol nascerá amanhã, mas não é impossível que algum evento inesperado, digamos, uma catástrofe atômica, impeça isso de acontecer. Negar que o sol nascerá amanhã não resulta em contradição.

   Para Hume as ideias metafisicas resultam da confusão entre relações de ideias e questões de fato. A base da filosofia de Kant consiste na suposta descoberta de juízos sintéticos a priori que não são nem analíticos nem a posteriori. Neles as ideias-conceitos não se encontram logicamente relacionadas, pois esses juízos nos dizem algo sobre o mundo (eles são sintéticos e não analíticos); mas eles são impostos pela mente humana à natureza (ou seja, eles são a priori, isto é, necessários e universais). Para Hume o sintético a priori de Kant seria entendido como uma confusão metafísica. Diante da Crítica da Razão Pura, um livro fundamentado em princípios sintéticos a priori, Hume provavelmente reagiria repetindo a frase do final das Investigações:

 

Esse livro contém algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou existência? Não. Então para o fogo com ele, pois outra coisa ele não pode encerrar senão sofismas e ilusões.

 

 

 

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O mais famoso argumento de Hume diz respeito à natureza da causalidade e, por extensão, à possibilidade de inferência indutiva. Para ele a causalidade é fundamental pois:

 

Todo raciocínio concernente à matéria de fato parece ser fundado na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação nós vamos além das evidências da memória e dos sentidos. (E 26-7)

 

Por exemplo: sei que meu amigo está na Argentina porque ele me enviou um e-mail dizendo que iria passar os feriados da Páscoa em Buenos Aires. Minha inferência resulta de eu conhecer a relação causal entre o envio do e-mail e sua viagem. Uma pessoa perdida em uma ilha deserta encontra um relógio e conclui que não está só. Essa inferência resulta da conhecida relação causal entre um artefato e a existência de um usuário.[13]

   Hume procede então sua famosa análise da causalidade. De acordo com a tradição racionalista de filósofos como Descartes, Spinoza e Leibniz, a causa é razão suficiente para o seu efeito, ou seja, toda causa logicamente necessita seu efeito, do mesmo modo que 2 + 2 necessita ter como resultado o número 4. Hume discordava. Afinal, a relação de causa e efeito é questão de fato, dependendo da experiência. Adão, escreveu ele, ao ver pela primeira vez a água não poderia saber que esta tinha o poder causal de afogá-lo, nem ao ver pela primeira vez o fogo poderia saber que este tinha o poder causal de queimá-lo. (T 27).

   Não obstante, ao analisar a relação causal Hume encontra três critérios perceptuais para a identificação da relação de causa e efeito. Eles são:

 

1.    Contiguidade espaço-temporal,

2.    A causa vem antes do efeito,

3.    Deve haver união constante entre causa e efeito.

 

Quando uma bola de bilhar se choca contra outra e a faz mover, há uma contiguidade no espaço e no tempo. Além disso, o movimento da primeira bola vem antes do movimento da segunda. Finalmente, a mesma coisa acontece sempre que uma bola de bilhar nas circunstâncias adequadas se choca contra outra. Essa é a análise da causalidade como regularidade. As propriedades (1), (2) e (3) são as que a mente pode retirar de suas impressões sensíveis. Embora existam objeções contra essa análise, ela ainda hoje é bastante defensável.[14] A questão que agora se coloca é: onde está a experiência da necessidade causal? Parece óbvio que a necessidade causal pretendida pelos filósofos racionalistas não tem lugar como objeto de experiência.

   Hume imagina ainda uma maneira de garantir a necessidade causal, que seria assumir um princípio da uniformidade da natureza. Se a natureza é uniforme então o futuro será como o passado. Se o futuro é como o passado, como no passado quando uma bola de bilhar se chocava com outra sempre fazia a outra se mover, então quando uma bola de bilhar se chocar com uma outra no futuro a outra também deverá se mover! Há, contudo, um problema: nada nos garante que a natureza seja uniforme de modo que o futuro seja como o passado. Para chegar a isso teríamos de considerar que no passado as associações futuras sempre se revelaram como haviam sido antes, inferindo daí que também o futuro do presente deve ser como seu passado. Mas esse tipo de raciocínio é idêntico ao que estamos queremos provar, ou seja, que se objetos ou eventos sempre estiveram associados de certo modo no passado então eles deverão continuar a ocorrer associados da mesma forma no futuro. O argumento é circular.[15]

   Se nenhum desses argumentos funciona então como explicar nossa convicção de que existe uma necessidade causal? A solução de Hume foi observar que quando a mente percebe uma união espaço-temporal regular entre dois eventos, um ocorrendo antes do outro, ela forma um costume ou hábito através do qual sempre que experiencia o primeiro evento ela cria a expectativa de que o outro se seguirá. Mas esse hábito nos confunde, fazendo-nos pensar que existe uma relação de necessitação de um evento-causa para um evento-efeito, quando na verdade não temos nenhuma experiência disso. Somos levados a acreditar que se trata de uma necessidade causal quando na verdade tudo o que experienciamos é uma expectativa psicológica de que após a causa virá o efeito. Como nossa expectativa é apenas de ordem psicológica, ela não é racional, mas meramente emocional.

   Sob a suposição de que todo o nosso conhecimento de questões de fato se baseia em relações causais, o resultado ao qual Hume chega é desalentadoramente cético. Como não há necessidade causal, nossa convicção de que no futuro as relações causais permanecerão as mesmas não possui nenhum fundamento racional. Dizemos, por exemplo, que o fogo aquece e que a água apaga o fogo. Essas são relações causais. Mas como não existe uma verdadeira necessidade causal, nada nos garante que no futuro o fogo irá aquecer e a água será capaz de apagá-lo. Na formação de nossas expectativas sobre questões de fato, tanto do senso comum quanto da ciência empírica, somos como insetos voando em direção à luz, determinados apenas pela nossa natureza instintiva. Ou, como Hume terminará por concluir, a razão é serva das paixões e não o contrário.

 

6

 

Essas famosas conclusões céticas podem ser problematizadas. Uma importante dificuldade na análise da causalidade como regularidade feita por Hume é que os critérios por ele propostos não parecem suficientes. Eles não explicam por que as regularidades entre eventos contíguos que se dão por pura coincidência não são causais. Considere, por exemplo, o caso de um ônibus que todos os dias às 12 horas para diante de uma igreja e que logo a seguir os sinos começam a repicar. Há aqui contiguidade espaço-temporal: o ônibus para diante do edifício e logo antes dos sinos acima começarem a bater. Além disso há união constante: isso ocorre todos os dias. Mesmo assim sabemos que não há nenhuma relação causal entre uma coisa e outra. Outro exemplo é o do recorrente nascimento dos cabelos nos bebês antes do crescimento dos dentes de leite. Ninguém estaria disposto a dizer que o crescimento dos cabelos é a causa do nascimento dos dentes. Aparentemente, aquilo que está faltando nesses exemplos é um nexo de necessidade entre causa e efeito. O parar do ônibus não necessita o badalar dos sinos, nem o crescimento dos cabelos necessita o nascimento dos dentes de leite.

   Em uma tentativa de encontrar uma solução para o problema gostaria de apelar para uma relação de necessidade mais fraca do que a relação de necessidade lógica pressuposta por Hume. Tais relações existem. Dizemos que alguém pode achar necessário ir à cidade comprar mantimentos ou pagar suas contas, ou que um diabético precisa tomar injeções de insulina todos os dias...  Uma maneira não lógica de entendermos a necessidade causal seria se a considerássemos a necessidade em questão como sendo equivalente ao bom entrincheiramento (good entrenchment) das regularidades ditas causais.[16] Dizemos que uma regularidade está bem entrincheirada quando ela não é refutada, mas reforçada pela sua imbricação com outros fatores causais e com as pressupostas regularidades do sistema conceitual envolvido no conjunto de fenômenos a ela concernentes. Não há nenhum entrincheiramento conceitual envolvendo o parar do ônibus diante da igreja e o bater dos sinos, muito diversamente do bom entrincheiramento que existe entre o relógio da igreja a marcar 12 horas e o repicar dos sinos logo a seguir. Afinal, o sino se movimenta por causa de um mecanismo ligado ao relógio e no mundo físico sempre vemos correlações entre movimentos de objetos contíguos devidamente ajustados uns aos outros. Quanto ao segundo exemplo, não há nenhum entrincheiramento entre o crescimento dos cabelos e o nascimento dos dentes de uma criança, pois não encontramos nenhuma razão biológica que justifique a relação entre essas duas coisas.

   A diferença fica mais clara quando comparamos os casos acima com o bom entrincheiramento que existe entre o raio e o trovão. Como essa relação causal é conhecida desde a antiguidade, quando não havia ciência para explicá-la, podemos começar daí. Que o raio causa o trovão é um bom exemplo, dado que fenômenos atmosféricos são independentes da ação humana possuidora do chamado livre arbítrio, o que o torna menos sujeitos a fatores intervenientes. O bom entrincheiramento se mostra primeiro nos fatores causais acompanhantes. Raios e trovões ocorrem sob um pano de fundo de nuvens tormentosas. Há também correlações: quanto mais longe está o raio, mais tempo levamos para perceber o trovão. Sempre foi conhecida uma diversidade de correlações fenomênicas que em nosso sistema de crenças reforçavam aquela relação de regularidade de modo a lhe conferir uma certa necessidade causal.

   Vejamos agora como é hoje, quando o bom entrincheiramento conceitual desses fenômenos é muito melhor conhecido. Sabemos hoje que os raios resultam de cargas elétricas provenientes do atrito causado pelos ventos entre as partículas de água e gelo que formam as nuvens. As partículas mais pesadas e com carga de gelo positiva se acumulam na parte inferior da nuvem, enquanto as partículas mais leves e com carga negativa se concentram em sua parte superior. Quando a diferença de cargas entre uma nuvem e outra ou entre a nuvem e o solo é grande demais, o ar não é mais capaz de isolá-las e acontece a descarga elétrica chamada de raio. O relâmpago é para nós hoje algo diferente do raio: ele é a luz emitida pelo superaquecimento do ar pelo raio. Quando o ar é superaquecido ele também se expande rapidamente, produzindo uma onda de choque sonora que ouvimos sempre após vermos a luz do relâmpago, uma vez que o som do trovão caminha a 340 metros por segundo enquanto a luz do relâmpago caminha à 300.000 km por segundo. Temos assim melhor explicadas as relações de intensidade entre o relâmpago e o trovão, assim como as correlações temporais. Podemos agora com muito mais razão dizer que o raio causou o relâmpago com base no grande entrincheiramento entre esses dois fatores causais e nosso sistema conceitual da física e da química aplicado a condições meteorológicas específicas.

   A conclusão não se faz esperar. Aqui o que chamamos de necessitação causal nada mais é do que o bom entrincheiramento entre os múltiplos fatores causais envolvidos na relação ente causa e efeito sob o suposto de nosso sistema de crenças. O erro dos filósofos racionalistas estava em confundir uma necessidade empírica, a do bom entrincheiramento, com uma necessidade lógico-convencional. E o erro de Hume está em não se ter dado conta da existência de uma necessitação definida por um bom entrincheiramento conceitual, tanto com os outros fatores envolvidos na relação causal quanto com nosso sistema de crenças.

   Um defensor de Hume poderia não se dar por vencido. Se de um lado é intuitivo que o bom entrincheiramento reforça uma dada conexão entre causa e efeito, de outro parece que o mesmo argumento de Hume poderia ser aplicado a ele. Afinal, se adicionamos uma fileira de zeros a um certo zero não conseguimos produzir nenhum número maior do que nada. Do mesmo modo, se adicionamos a uma regularidade não necessária outras regularidades (as que constituem o bom entrincheiramento) não necessárias, isso não tornará a associação em questão necessária. Isso parece ser tornado evidente quando pensamos que todos os fatores causais e o sistema de crenças que entrincheirava uma certa regularidade podem ser em princípio repentinamente suspensos. Por exemplo: suponha que daqui a cinco minutos o mundo inteiro perca as suas regularidades. Isso parece concebível. Mas se essa suspensão de todo o sistema entrincheirador é concebível, então o sistema como um todo não deve envolver necessitação, a não ser aquela resultante de uma mera expectativa psicológica, o que nos leva de volta ao problema inicial.

   A resposta parece ser que esse desaparecimento de todo o sistema de regularidades não pode ser realmente concebido, o que faz com que o caso de todo o sistema de regularidades não seja como o caso de uma única regularidade causal. Quando nós imaginamos uma suspensão de todas as regularidades em nosso mundo, nós nos imaginamos como se estivéssemos fora do mundo, experienciando a sua completa perda das regularidades. Mas para fazer isso estaremos nos fiando em um sistema de crenças total, que inclui as regularidades e entrincheiramentos de nossas crenças de fora do mundo. Mas como o mundo como um todo deve incluir nós mesmos e o lugar do qual o julgamos, não podemos nunca conceber uma desaparição de todas as regularidades, posto que isso seria inverificável. Parece, pois, que não somos capazes de imaginar o desaparecimento de todo o sistema de regularidades que constitui nosso mundo como um todo, não podendo imaginar o desaparecimento da espécie de necessidade causal produzida pelo bom entrincheiramento.

 

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7

 

Vejamos agora os argumentos pelos quais Hume foi levado a rejeitar tanto o mundo externo independente quanto um eu permanente.

   Comecemos com o tratamento que Hume dá às coisas do mundo externo. Como sabemos que os objetos materiais externos existem separados de nós? A resposta seria que as impressões de figura, extensão, cor e som, advindas do mundo externo são muito mais intensas (“mais fortes e violentas”), além de serem independentes da vontade e coerentes. Mas isso é insuficiente. Afinal, nossas dores e prazeres, assim como nossas paixões, mesmo sendo internas, são igualmente intensas e involuntárias. Mesmo as percepções de máxima intensidade das coisas que observamos com os olhos abertos e que tocamos e ouvimos não passam de percepções idênticas, em sua natureza, às ideias de Locke, tornando impossível para nós transpormos o abismo que separa tais percepções de um suposto mundo externo, nem supor racionalmente a sua continuidade.

   Para Hume só existem três causas possíveis de nossa crença na existência de coisas continuadas e distintas. Elas são os sentidos, a razão e a imaginação. Mas os sentidos não nos podem atestar nem a existência de uma substância entendida como um substrato não-perceptível das ideias, nem a existência continuada das coisas quando não percebidas, pois cessando a sensação os objetos deixariam de estar presentes aos sentidos. A crença na existência continuada dos objetos também não pode ser produzida pela razão porque também as crianças e os rudes tem essa crença, apesar de não possuírem a faculdade da razão. A conclusão de Hume é que a nossa crença na existência de uma substância entendida como substrato incognoscível das ideias, assim como nossa crença na existência continuada dos objetos do mundo externo ao nosso redor, só pode ser resultado da imaginação. Para ele o mesmo hábito psicológico que nos levou a crer na necessidade causal é aquele que nos leva a imaginar que deva existir uma substância incognoscível como se ela fosse observável. Eis seu argumento no Tratado:

 

Depois de nos acostumarmos com a visão do sol e do oceano, por exemplo, se nos reapresenta, depois de um período de ausência ou anulação, com as mesmas partes ou na mesma ordem de antes, não somos mais capazes de considerar essas percepções interrompidas como distintas (como de fato o são), mas como a interrupção de sua existência é contrária a sua perfeita identidade e isso nos faz julgar que a primeira impressão foi anulada e que a segunda foi criada de novo, vemo-nos em uma situação difícil, envolvidos em uma espécie de contradição. Para nos livrarmos dessa dificuldade procuramos passar por cima da interrupção, ou melhor, fazemos tudo para eliminá-la, supondo que essas percepções interrompidas sejam mantidas uma ao lado da outra por uma existência real desconhecida para nós. (ver T 189-195)

 

Ou seja, nossa crença na existência continuada dos objetos externos não resulta da razão, mas da imaginação. Nós cobrimos os vazios entre nossas percepções imaginando que ele seja preenchido como se existisse um sujeito percipiente acompanhando os objetos quando não os percebemos. Assim, repetindo um exemplo de Barry Stroud, suponha que eu esteja com os olhos abertos vendo essa mesa com tudo o que está sobre ela, depois eu fecho os olhos por uns três segundos, depois eu os abro de novo e, mais adiante, eu os feche outra vez e assim por diante. Chamando de A à percepção que tenho com os olhos abertos e F a percepção com os olhos fechados, o resultado no curso do tempo será:

 

 AAAAAAFFFAAAAAAFFFFFAAA...

 

Ora, minha imaginação é levada, por um irresistível impulso, a cobrir os tempos vazios, disso resultando a ideia de uma continuidade da existência do objeto percebido, como se a percepção tivesse a forma de:

 

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA...[17]

 

A conclusão à qual Hume chega é que nosso acesso objetivo é apenas às percepções e nunca a um mundo real externo.

 

8

 

Que dizer dos argumentos de Hume contra nosso conhecimento de um mundo externo que permanece na independência de nossa percepção? Em minha opinião não há nada nela de tão convincente que não possa ser virado do avesso. Consideremos o caso da existência de um mundo externo. Primeiro, não parece necessário que deva existir uma substância incognoscível suportando as percepções sensíveis (impressões) para que elas sejam consideradas objetivas. Hume considera os critérios de realidade que ele mesmo expõe, como o da máxima intensidade perceptual e coerência, como sendo insuficientes. Eles são de fato insuficientes quando considerados isoladamente. Mas suponhamos que as impressões humianas satisfaçam conjuntamente todos os critérios de realidade externa apontados não só por Hume, mas também por outros filósofos modernos, como:

 

1.    Máxima intensidade perceptual: a intensidade perceptual de uma percepção táctil ou auditiva ou visual é incomparavelmente mais intensa do que a sua repetição pela memória ou pela imaginação. Hume dá o exemplo de uma dor extrema, como algo interno tão intenso quanto a percepção táctil ou visual. Mas esse é um exemplo enganoso, pois a dor nada mais é do que uma percepção externa, dado que localizada no corpo humano físico. O mesmo pode acontecer com o desejo.

2.     Co-sensorialidade. Não precisa estar presente, mas acontece com o que Locke chamava de qualidades primárias.

3.    Intersubjetividade possível do que é descrito como percepção. As percepções do que é objetivamente real são passíveis de acesso intersubjetivo ou interpessoal.

4.    Coerência com o contexto espacial e temporal. Se acordo todas as manhãs em meu aposento e vou para o trabalho tudo acontece ao meu redor de forma coerente com as minhas expectativas. Os próprios objetos externos são reconhecíveis por suas propriedades e pelas relações entre elas e outros objetos. Se, como em uma estória contada em Il Milione[18] uma pessoa tomasse uma droga e fosse levada para um jardim cheio de maravilhas, lá fosse acordada por uma meia hora, devendo então beber um vinho que lhe fizesse dormir outra vez, sendo então retornado para onde estava antes, essa pessoa poderia encontrar dificuldade em saber se estava sonhando ou se foi presa de um delírio ou se aquilo que vivenciou foi realidade; a razão é a falta de coerência com toda a sua história passada com o qual está acostumada.

5.    Seguimento de leis naturais. Quando sonhamos coisas incríveis podem acontecer. Mas quando soltamos um objeto pesado no ar ele certamente cairá.

6.    Seguimento de regularidades perceptuais. Por exemplo, quando movimento meus olhos ocorrem mudanças bem determináveis em meu campo perceptual. O mesmo ocorre com a audição e com o tato.

 

Claro que se tomarmos um ou dois desses critérios isoladamente isso não será suficiente para considerarmos o que percebemos como pertencente a um mundo externo. Quanto a (1), podemos conceber uma alucinação que pareça ao indivíduo absolutamente real, como acontece em casos de alucinose alcoólica. O critério (2) é encontrado facilmente nos sonhos. Quanto a (3), alucinações coletivas são possíveis, por exemplo, quando várias pessoas tomam um mesmo alucinógeno, por força da sugestão. Elas são possíveis. Podemos até imaginar uma alucinação coletiva coerente, que segue as leis da natureza. (4) Podemos ainda imaginar um sonho tedioso, mas perfeitamente coerente... Eis um exemplo real. Uma pessoa precisava acordar cedo, seu despertador tocou, mas ela dormiu outra vez. Então ela sonhou que tinha se levantado, que entrou no banheiro e escovou seus dentes. Quando conversava com sua esposa ela acordou e percebeu que se tratava apenas de um sonho.

   Note-se que a conjunção dos critérios é compatível com a ideia de que todos os nossos perceptos são na verdade sense-data que ocorrem no cérebro. Experimentos como os de reconstrução de imagens cerebrais usando fMRI e modelos computacionais não deixam dúvidas com relação a isso.[19] Contudo, a satisfação conjunta de todos esses critérios de realidade externa por tempo suficiente (digamos, o tempo de nossas vidas) é o que basta para definir o conteúdo percebido como pertencente ao mundo externo real. O conteúdo mental, os conteúdos sensíveis (sense-data), são aqui como que interpretados projetivamente como componentes do que chamamos de realidade externa, sendo então definidos como a parte percebida dela na medida em que satisfizerem os critérios de realidade externa.

   A objeção seria que os dados sensíveis, mesmo que interpretados projetivamente como propriedades das coisas externas, continuarão sendo fenômenos psicológicos internos, o que facilmente nos conduz ao fenomenalismo e ao idealismo. Não me parece que isso seja inevitável. Podemos, usando analogias, comparar os dados sensíveis com a pequena imagem projetada pela ocular de uma luneta de duas lentes convexas. Se por um lado o que é projetado na retina é uma pequena imagem de Marte, por outro o que vemos é o próprio Marte como um disco avermelhado, sendo o disco e o vermelho propriedades constitutivas do próprio planeta. Do mesmo modo, quando olhamos para uma imagem em um espelho e a vemos como simples imagem, ela se encontra lá no fundo do espelho; mas quando nós a interpretamos projetivamente como aquilo que vemos, ela é vista como um conjunto de propriedades físicas que se encontram de frente ao espelho, o qual não possui nada de imagético. Não diremos nunca que Vênus é uma imagem projetada por uma lente ocular, nem que as propriedades do que é espelhado não passam de imagens de espelho. Ora, por que então nos recusamos a fazer uma distinção similar com relação aos dados sensíveis que nos são dados em nossos cérebros e os mesmos dados sensíveis agora projetivamente interpretados como propriedades que estão sendo observadas?

 

9

 

   O que acabei de dizer não é imune às assim chamadas hipóteses céticas, como a de que a pessoa está sonhando, de que ela está sendo enganada por um gênio maligno, ou de que ela não passa de um cérebro na cuba ao qual é aplicado um programa encenando a vida em um planeta inexistente chamado Terra. Hipóteses céticas podem parecer extremamente implausíveis, mas continuam sendo ao menos logicamente possíveis. Assim, é possível que certa noite eu acorde em um lugar estranho, rodeado por pessoas com um especto estranho com o qual não estou acostumado, meu próprio corpo tendo um aspecto estranho, parecido com o delas. Elas me explicam em bom português que eu havia sido até aqui um cérebro na cuba, no qual corria um programa intitulado “Professor de filosofia no planeta terra”. Eles me informam que esse é um experimento comum no planeta Ômega, feito para estimular diversidade mental entre seus habitantes, mas que de agora em diante eu poderei viver entre eles com tudo o que aprendi em minha vida no suposto planeta Terra. Afinal, meu cérebro foi implantado em um saudável corpo de cidadão da cidade de Eufêmia. Embora precisando de algumas seções de psicoterapia eu acabo me acostumando com a nova realidade, simplesmente pelo fato de ela satisfazer todos os critérios de realidade externa acima explicitados, especialmente o de coerência. Aqui em minhas duas vidas, antes e depois do implante do meu cérebro em um corpo, os critérios de realidade externa estavam sendo totalmente satisfeitos! Mas está claro para nós que a única realidade externa realmente real é a do cidadão da cidade de Eufêmia no planeta Ômega, enquanto a realidade externa anterior era puramente ficcional. Conclusão: em contextos céticos os critérios de realidade externa falham!

   A solução do problema não é difícil de ser encontrada. Devemos distinguir entre dois conceitos de realidade externa, que chamo de conceitos inerente e aderente de realidade.[20] Os critérios de realidade até agora expostos dizem respeito ao conceito de realidade inerente. Nesse sentido, tanto a realidade de minha vida anterior como cérebro na cuba quanto a realidade de minha vida atual como habitante do planeta Ômega são perfeitamente reais, posto que satisfazem os critérios de realidade. Mas no sentido aderente do conceito de realidade externa o mundo no qual eu era um cérebro na cuba não era real, pois real é meu mundo de Ômega. Posso dizer isso porque o conceito de realidade só é aplicado quando precisamos comparar duas realidades inerentes. Nesse caso preferimos chamar de aderentemente real ao mundo que inclui o outro como um produto ficcional de si mesmo. No caso em questão o mundo no qual vivi como cérebro na cuba era um produto ficcional do mundo no qual vivo agora. Como consequência, o mundo no qual vivo agora é não só aderentemente real, mas também inerentemente real, enquanto o mundo no qual eu pensava estar vivendo como professor de filosofia no planeta terra era aderentemente irreal, embora inerentemente real. O critério de realidade aderente é a coerência do mundo com a hipótese cética. Se em uma noite dessas eu acordar em um mundo sádico do planeta Zeta, no qual seres monstruosos me dizem que eles haviam feito apenas uma brincadeira e que o mundo do planeta Ômega não existe e que na verdade eu sou apenas um pobre citadino do planeta Zeta... Nesse caso talvez eu acredite que sim, ou então terei dúvidas, suspenderei o juízo ou (mais provavelmente) perderei de vez a razão.

 

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Também não é difícil desenvolver uma estratégia de raciocínio contra a ideia humiana de que nós preenchemos os vazios entre as percepções imaginando que os objetos do mundo externo permanecem existindo quando não os estamos observando. Aqui o problema é com a ideia de permanência. A gramática lógica do conceito de permanência dos objetos externos não é precisamente aquela sugerida por Hume. Quando o homem de neandertal pela primeira vez disse que a sua caverna, sua mulher e seus filhos, permaneceram onde eram para serem encontrados quando ele voltou da caça, ele não queria de modo algum dizer que eles estavam lá por recurso à imaginação tal como Hume entende. Ele queria dizer apenas que ele esperava encontrá-los no mesmo lugar. Se ele for mais refinado ele dirá que se ele ou qualquer outra pessoa qualquer fossem postados nas circunstâncias adequadas, ou seja, de frente à caverna, eles a veriam e poderiam entrar nela, e que esse experimento poderia em princípio ser feito em qualquer tempo enquanto ele estava caçando. Ele poderia dizer que se alguém que se alguém estivesse o tempo todo presente essa pessoa observaria o tempo todo as pessoas na caverna e nada além disso. A objetividade empírica e permanência daquilo que não está sendo observado não significa nada mais do que a garantida possibilidade de observação sob condições adequadas. Trata-se aqui também de uma definição. Eis como podemos definir o conceito de permanência aqui usado:

 

Um objeto permanece no tempo (Df.) = sempre que condições adequadas para a sua percepção por algum sujeito perceptual são dadas ele é percebido.

 

A permanência é aqui definida como perceptibilidade. Assim, não precisamos pensar que o objeto precise estar presente para ser atestado com permanente, uma vez que o que entendemos por permanência é a sua perceptibilidade interpessoal sob condições adequadas de percepção. Dessa definição deduzimos que se existisse um observador em condições adequadas disposto a observar o objeto por todo o tempo de sua existência ele seria por todo o tempo de sua existência observado. Mas isso não nos faz exigir que a permanência do objeto dependa de este estar sendo sempre observado, como Hume sugere. Ela é proveniente do fato de que nós imaginamos um observador que está sempre acompanhando a existência do objeto e confundimos a ideia da permanência com a ideia desse acompanhamento.

   A permanência das coisas quando não observadas, entendida como a garantida possibilidade de observação por quaisquer sujeitos cognitivos é algo aprendido por inúmeras e variadas inferências indutivas anteriores acerca das regularidades do mundo em que vivemos. Não precisamos, como Hume, imaginar algo parecido com um olho mágico e invisível que está permanentemente percebendo as coisas enquanto não as percebemos.

 

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A maneira como Hume se liberta do eu dos racionalistas, entendido como uma substância contínua, sempre idêntica a si mesma e simples, segue a mesma linha. Para ele, quando voltamos para nós mesmos, tudo o que percebemos é:

 

...um feixe ou coleção de percepções diferentes, que se sucedem com rapidez inconcebível e se encontram em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem rodar em nossas órbitas sem variar nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão; e todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança. E todos os nossos sentidos e faculdades contribuem para essa mudança; nem há na alma uma única potência que permaneça invariavelmente a mesma, sequer por um instante. A mente é uma espécie de teatro onde diferentes percepções aparecem em sucessão; passam, repassam, deslisam, combinando-se em uma infinita variedade de posturas e situações. Não há propriamente nenhuma simplicidade em um dado tempo, nem identidade em tempos diferentes, qualquer que seja nossa propensão natural em imaginar essa simplicidade e identidade. A comparação com o teatro não deve confundir-nos. As percepções sucessivas são as únicas que constituem a mente... (T 252-3) ver T 251-2)

 

Aqui também é a imaginação que produz a ideia de que deva haver um sujeito contínuo e simples, identificável com a alma.

   Hume também rejeita a sugestão de Locke, segundo a qual a identidade do eu depende da memória. Ao contrário, a memória deve pressupor o eu de modo a poder identificá-lo como sendo o mesmo, sem falar no fato de que não podemos ter memória de cada instante vivido (T 261-2). (Pense, por exemplo, na ausência de memória que temos de nós mesmos enquanto estávamos dormindo).

   Note-se que Hume está querendo refutar o eu tradicional de Descartes e da maioria dos filósofos de fé religiosa, ou seja, uma alma simples, imutável e eterna, mostrando que não temos acesso perceptual a essa espécie de sujeito. Contudo, ele admite a existência de um eu comparável a uma coletividade que se modifica com o tempo, e da qual entram e saem pessoas, mas que mesmo assim permanece reconhecível como uma mesma coletividade. Consideraremos essa última possibilidade com alguma atenção quando formos discutir Kant.

   Essa última ideia parece bastante razoável. A sugestão de que o eu possa ser comparado com uma comunidade pode ser interpretada como sendo a do eu como a nossa autoimagem, a ideia que fazemos de nós mesmos. Não podemos ter acesso ao todo daquilo que somos, mas temos experiências de nossos atos mentais em comparação com os de outras pessoas, o que nos permite encontrar estados mentais e disposições comportamentais que se repetem e saber de nossas características identificadoras pessoais. Pela comparação entre nosso comportamento e o de outras pessoas podemos aos poucos formar ideias mais ou menos precisas de nós mesmos e a esse conjunto de ideias dar o nome de eu psicológico. Outras pessoas podem, analisando nosso comportamento, chegar a conclusões semelhantes sobre quem somos. Por fim, que acreditamos ser este eu psicológico o mesmo que o eu cuja existência inferimos por contraste com a objetividade do mundo externo.

 

 

 

 

 



[1] Ver a autobiografia de cinco páginas que ele escreveu em seu leito de morte intitulada “My Own Life”.

[2] David Hume: My own Life (1766) Econlib. Internet.

[3] Apud A. J. Ayer: Ibid. p. 25.

[4] Sigo aqui a numeração por parágrafos da tradução portuguesa de Déborah Danovski. O algarismo romano indica o livro, o primeiro número a parte, o segundo a seção e o terceiro o parágrafo.

[5]  Treatise, p. 8 (citações só para checar!!!!!)

[6] Ibid I, 1, 4.

[7] Ibid. I, 1, 6.

[8] Saul Kripke: Naming and Necessity

[9] Ibid., I, 1, 6, 3.

[10] Frege: Philosophy of Language (Harvard: Harvard University Press) 1993.

[11]  Ernst Tugendhat: Aulas introdutórias à filosofia analítica da linguagem. Ijuí 1998 (trad. port.).

[12]   Investigação sobre o intelecto humano, 4, 1, 1.

[13]  Essa generalização é excessiva: sei que um pêssego que tenho diante de mim é doce, mas essa associação não é causal.

[14] Ver Claudio Costa, Arquiteturas Conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2023), cap. .

[15] Esse é o fulcro do que foi mais tarde interpretado como o argumento de Hume contra a indução. Ensaiei uma resposta a esse argumento em “Como resolver o problema da indução”, capítulo 5 do livro intitulado Textos Esparsos (Belo Horizonte: Dialética 2023).

[16] A noção de entrenchment ver cfr

[17] Exemplo baseado em Barry Stroud, Hume (London: Routledge 1988), p. 101.

[18] Embora pouco verossímil como um fato, essa estoria contada por Marco Polo é facilmente concebível.

[19] Ver Yasmin Anwar, “Scientists use brain imaging to reveal the movies in our mind”, in Berkeley News, 9. 22. 2011.

[20] Qualquer semelhança com os conceitos de realidade interna e externa de Rudolf Carnap não é causal. Esses conceitos resultam de uma elaboração ao meu ver mais adequada da distinção de Carnap. Ver Claudio Costa: “  “ em…