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domingo, 2 de outubro de 2022

* PUTNAM: A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA EXTERNALISTA


 

Este é o rascunho do capítulo 8 do livro COGNITIVISMO SEMÂNTICO a ser publicado pela editora APPRIS ainda em 2022. 


 

PUTNAM: A TERRA-GÊMEA E A FALÁCIA EXTERNALISTA

 

 

 

One absurdity having been granted,  the rest follows.

[Uma vez admitido o absurdo o resto se segue.]

Aristóteles

 

A teoria causal dos termos de espécie natural está intimamente associada ao externalismo semântico defendido por Hilary Putnam e outros. Nesse capítulo quero expor criticamente os argumentos externalistas desse autor ao mesmo tempo que, em contraposição, desenvolvo uma explicação descritivista neo-fregeana e basicamente internalista do significado do conceito de água, capaz de melhor responder aos problemas por ele levantados. Para reforçar meu ponto de vista terminarei fazendo duas críticas rápidas; uma à ideia, em meu juízo incorreta, de que o enunciado “Água é H2O” é necessário e a posteriori, outra a um famoso argumento externalista de Tyler Burge.

 

O externalismo semântico de Putnam

Putnam usa como instrumento para demonstrar o seu externalismo semântico sua famosa fantasia da Terra-Gêmea.[12] Considero o argumento que se segue dessa fantasia bastante original, engenhoso, estimulante e indubitavelmente falso. Acho mesmo difícil compreender como ela possa ter se afigurado convincente a várias gerações de estudiosos. A meu ver o argumento de Putnam não deve ser tomado em sua face de valor. Vejo-o como um exemplo de metafísica revisionária, como os que encontramos em uma tradição que vem de Berkeley a Hume, de Bradley a MacTaggart e mesmo a W. V. Quine. Ou seja: o argumento de Putnam pode ser (a) negativamente avaliado como uma falácia enganadora resultante de um entendimento sistematicamente inadequado e, no final das contas, perverso, dos significados que os termos ganham em seus usos ordinários, reclamando uma terapia à la Wittgenstein. Mas ele também pode ser (b) positivamente avaliado, como um desafio dialeticamente importante, posto que (como Wittgenstein também teria admitido) é pela dissolução das tensões resultantes de confusões profundas que costuma advir um avanço em nosso entendimento dos problemas filosóficos. Por ambas as razões vale a pena um exame cuidadoso de seus detalhes.

   Vale lembrar que o suposto entendimento perverso de nuances nos sentidos ordinários das palavras parece aqui em boa medida originado do que podemos chamar (seguindo Susan Haack, John Searle, Peter Strawson e, bem antes deles, Wittgenstein) de cientismo. No caso específico, ele aparece como uma tentativa de mimetizar em filosofia da linguagem o que aconteceu em ciências como a física, nas quais têm sido feitas descobertas desconcertantes, que parecem contradizer frontalmente nossas intuições de senso comum. Como escreveu Putnam logo no início de seu artigo “The Meaning of ‘Meaning’” [13]:

 

De fato, a conclusão de nossa discussão será a de que os significados não existem exatamente como pensamos que existem. Mas elétrons também não existem da maneira que Bohr pensou que existiam.

 

A diferença é que essas ciências produzem descobertas que nos parecem contra-intuitivas em domínios completamente alheios e distantes daqueles de nossa experiência cotidiana, enquanto a filosofia da linguagem pretende analisar conceitos que nos são demasiado familiares, como os de referência, significado, verdade... Tais conceitos estão conosco desde o início dos tempos; eles são quase como os óculos usamos e que temos dificuldade de perceber precisamente porque estão próximos demais de nossos olhos. Daí ser também mais fácil, sob o preço do equívoco, dar-lhes um tratamento espetacular.

 

Desconstruindo o argumento da Terra-Gêmea

No que se segue começarei sempre com uma exposição do argumento de Putnam, seguida de comentários críticos. Tais comentários mostrarão que uma abordagem cognitivista-descritivista neofregeana é capaz de resolver com vantagens os problemas por ele colocados. Depois disso pretendo fazer uma análise neodescritivista mais aprofundada do conceito de ‘água’ envolvido na fantasia de Putnam, explicando em algum detalhe como as coisas realmente acontecem. Essa explicação mostrará que, se tomado em sua face de valor, o externalismo semântico por ele proposto é indefensável, ainda que contenha desafios dialeticamente relevantes.

 

Exposição: Putnam começa considerando duas teses: (I) o significado (intensão, sentido) determina a extensão, (II) os estados psicológicos (de entendimento) fixam o significado. As duas teses devem ser aceites pelo descritivismo tradicional. Mesmo que se acredite, como Frege o fez, que o significado ou sentido (Sinn) seja uma entidade abstrata, é preciso admitir que nós apreendemos psicologicamente o significado, devendo uma diferença no significado corresponder a uma diferença no estado psicológico de quem o apreende. A consequência da aceitação de (I) e (II) é que devemos assumir que estados psicológicos fixam significados, os quais por sua vez determinam as suas referências.

   Para Putnam, a fantasia da Terra-Gêmea demonstra ser possível a um mesmo termo ter extensões diferentes, mesmo sendo os estados psicológicos exatamente os mesmos. Assim, uma das duas teses deve estar errada. A solução de Putnam é rejeitar a tese (II): estados psicológicos não fixam o significado. E isso acontece porque o significado não está, no essencial, em nossas cabeças, mas de algum modo no domínio externo da própria referência. Quanto à tese (I), ela pode ser mantida: o significado determina a extensão, mesmo que de modo não-fregeano, mas, como veremos, pela intermediação da seleção demonstrativa de exemplares, os quais tipicamente satisfazem as propriedades de superfície constitutivas do que ele irá chamar de estereótipo.

   Para chegar a essas conclusões Putnam imagina um planeta que ele chama de Terra-Gêmea, no qual tudo existe e acontece tal como na Terra, exceto pelo fato de que os seus rios, lagos e mares se encontram cheios de um líquido que em condições normais de temperatura e pressão é indistinguível da água, saciando a sede quando bebido, caindo sob a forma de chuva, apagando o fogo, etc. Esse líquido só difere da água pelo fato de que a sua composição química não é H2O, mas algo muito diverso, que pode ser abreviado como XYZ.[14] Ele então imagina que uma nave espacial da Terra visite a Terra-Gêmea. A princípio os astronautas pensarão que ‘água’ tem o mesmo significado (meaning) na Terra e na Terra-Gêmea. Mas, observa Putnam:

 

Se uma espaçonave da Terra visita a Terra-Gêmea, então a suposição inicial será a de que ‘água’ tem o mesmo sentido (meaning) em ambas. Essa suposição será corrigida quando for descoberto que ‘água’ na Terra-Gêmea é XYZ e que a espaçonave da Terra irá reportar algo como “Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ quer dizer (means) XYZ”. (...) Simetricamente (...) a espaçonave da Terra-Gêmea irá reportar: “Na Terra a palavra ‘água’ quer dizer (means) H2O”.[15]

 

O que Putnam está querendo introduzir é a sugestão de que em tais casos a palavra ‘água’ significa ou “quer dizer” (means) duas coisas. Na Terra ela quer dizer (means) água-t, uma vez que diz respeito à extensão do composto H2O, enquanto na Terra-Gêmea ela quer dizer (means) água-g, posto que diz respeito à extensão do composto XYZ. Putnam interpreta a sua fantasia como tendo demonstrado que a palavra ‘água’ tem e de fato sempre teve esses dois significados, independentemente do que possa passar ou ter passado pela cabeça dos habitantes da Terra, ou da Terra-Gêmea, devendo-se essa diferença de significado à constituição essencial do líquido apontado com o nome de ‘água’ em cada planeta. O que a palavra ‘água’ quer dizer independe do que passa pelas cabeças das pessoas que usam o termo, sendo, pois, externamente determinado por sua referência.

 

Comentário: Já agora, ante essas considerações iniciais de Putnam, quero introduzir minha objeção central, fundada na consideração de nossos usos normais das palavras. Parece claro que na base do que Putnam procura fazer há uma sutil confusão entre o nível do sentido/significado-intensão e o nível da referência-extensão.[16] A palavra ‘mean’ usada por Putnam em inglês tem um correspondente aproximado em alemão, que é ‘bedeuten’, mas nas duas línguas possui uma espécie enganadora de ambiguidade entre dois sentidos da palavra. Por questão de clareza chamarei esses dois sentidos ou usos da palavra ‘mean’ de:

 

(i)                uso semântico intralinguístico (o mesmo que ‘significar’)

(ii)            uso referencial intralinguístico (o mesmo que ‘querer dizer’)

 

Em português essa distinção é em parte desambiguada, pois é tornada linguisticamente mais explícita respectivamente pelos verbos significar (sentido (i) de ‘mean’) e querer dizer (sentido (ii) de ‘mean’). Contudo, mesmo nos atendo ao verbo ‘significar’ essa ambiguidade já pode ser deslindada.

   Vejamos primeiro do que trata (i). Normalmente, em seu sentido próprio e relevante, a palavra ‘significado’ tem o que pode ser chamado de um uso semântico intralinguístico, que é o de indicar o “conteúdo semântico de um signo linguístico, acepção, sentido, significação, conceito, noção” (dicionário Houaiss), a saber, indicar o sentido convencionalmente fundado da expressão a que se reporta. Esse sentido intralinguístico, que certamente se aproxima do sentido (Sinn) fregeano (ou, mais precisamente,  dummettiano...), é o sentido central da palavra ‘significado’ na linguagem, estendendo-se essa distinção à expressão ‘querer dizer’. Tal sentido é exemplificado em proferimentos como:

 

     (a-i)   A palavra ‘cadeira’ significa (quer dizer) banco não-veicular com encosto feito para

               uma só pessoa se sentar de cada vez.[17]

    (a-ii)  A frase “O gato foi pro mato” significa (quer dizer) grosso modo o mesmo que a

              frase “O felídeo doméstico enveredou-se pelo matagal”.

 

Contudo, a palavra ‘significa’ e, mais ainda, ‘quer dizer’ (‘mean’) também pode ser usada no sentido do uso referencial intralinguístico, como uma maneira linguística de apontar para a referência. Etimologicamente, a palavra ‘significado’ vem do latim ‘significare’, que quer dizer “dar a entender por sinais, indicar, mostrar, dar a conhecer, fazer compreender” (no inglês ‘mean’ também significa ‘to convey, show or indicate’ e no alemão ‘bedeutet’ também significa ‘heisst’ ou ‘bezeichnet’, respectivamente ‘querer dizer’ e ‘designar’). Nesse uso estendido da palavra, ‘significar’ ou ‘querer dizer’ são sinônimos de ‘indicar’, ‘designar’ e ‘referir’, podendo ser facilmente – ainda que inapropriadamente – extrapolados de modo a designar aquilo mesmo que é indicado, o designatum, a referência. É no uso referencial intralinguístico que os verbos ‘significar’ e ‘querer dizer’ aparecem em proferimentos demonstrativos como

 

(b-i)   A palavra ‘cadeira’ significa ou quer dizer (means) coisas como aquilo que está ali.

(b-ii)  A frase “o gato foi pro mato” significa ou quer dizer (means) que o gato

          foi para o mato (um fato).

 

As frases (b-i) e (b-ii) são aceitáveis. A primeira é aceitável quando usada por um adulto para explicar a uma criança o significado de palavras como ‘cadeira’, enquanto a segunda é aceitável por expor a relação entre uma frase e um fato correspondente.

   A proximidade semântica do verbo ‘significar’ em seu uso referencial intralinguístico com a palavra ‘referência’ está ligada ao que já vimos ser uma concepção referencialista do significado. O erro dessa concepção consiste em transformar proximidade semântica em promiscuidade semântica, confundindo significado com referência ou mesmo extensão.

   Na verdade, a confusão é mais antiga. Há ecos de referencialismo semântico no próprio Frege quando ele decidiu usar a palavra ‘Bedeutung’ (significado) no sentido técnico de ‘referência’ ao substantivar o verbo ‘bedeuten’, usado no sentido de ‘referir’, como ‘Bedeutung’, por ele explicitamente entendido como a referência e não como significado. Contudo, se entendermos a referência em termos de significado teremos a invenção de algo impróprio, que chamarei de:

 

(iii)          uso referencial extralinguistico (o mesmo que ‘aquilo do que se quer dizer’)

 

da palavra ‘significado’. Esse uso referencial extralinguístico é uma extensão indébita do uso referencial intralinguístico. Ele extrapola os significados próprio e estendido da palavra significado, dando a entender que aquilo a que a palavra ‘significado’ realmente designa possa realmente ser algo externo, extralinguístico.

   Reforçando a análise acima, devo notar que a palavra ‘sentido’ (assim como o equivalente inglês ‘sense’ e o equivalente alemão ‘Sinn’), que é semanticamente a mais próxima da palavra ‘significado’, resiste às ambiguidades apontadas com relação ao ‘significar’ e ao ‘querer dizer’. A palavra ‘sentido’ simplesmente não possui usos referenciais (ela resiste ao uso referencial intralinguístico, sendo imune a um prentenso uso referencial extralinguístico). A palavra ‘sentido’ possui apenas um uso semântico intralinguístico, que é o de indicar os sentidos convencionalmente fundados das expressões a que se reporta. Assim, no dicionário Houaiss ‘sentido’ significa simplesmente “cada um dos significados de uma palavra ou locução”. Por isso, ao usarmos as palavras ‘significado’ e ‘querer dizer’ de modo intralinguístico podemos facilmente substituí-las pela palavra ‘sentido’, enquanto o mesmo não é possível quando aquelas palavras ganham usos referenciais. Posso dizer, por exemplo:

 

     (a-i’)   O sentido (significado) da palavra ‘cadeira’ é o de

               ‘banco não-veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez’.

     (a-ii’)  O sentido (significado) da frase ‘O gato foi para o mato’ é grosso modo o mesmo

                que “O felídeo doméstico enveredou-se pelo matagal”.

 

Isso é correto, posto que a palavra ‘sentido’ em (a-i) e (a-ii) tem um uso semântico intralinguístico. Mas soaria muito estranho dizer

 

     (b-i’)   A palavra ‘cadeira’ tem o sentido de (significa) coisas

                como aquilo que está ali.

     (b-ii’)  O sentido (significado) da frase “O gato foi pro mato” é

                que o gato realmente se enfiou no mato.

 

A razão dessa estranheza é que em (b-i’) e (b-ii’) a palavra ‘sentido’ demonstra claramente a sua incapacidade de adquirir um uso referencial extralinguístico. A estranheza na substituição se repete com os equivalentes da palavra ‘sentido’ em outras línguas, como ‘sense’ no inglês, ‘Sinn’ no alemão e ‘sens’ no francês. Podemos resumir nossos resultados no seguinte quadro:

 

 

                                  Uso semântico                           Usos referenciais

                                   intralinguístico          intralinguístico             extralinguístico                   

 


   Sentido                              SIM                          NÃO                    NÃO                  

   (Sinnsense)

 


   Significado                        SIM                          SIM                      SIM (?)

   (Bedeutung,

    meaning)

 

 


Em meu juízo o quadro mostra claramente que o que realmente importa é o uso semântico intralinguístico, pois nele se aplicam tanto a palavra ‘sentido’ quanto ‘significado’. Menos importância tem o uso referencial intralinguístico, no qual a palavra ‘significado’ recebe um uso estendido. Menor importância ainda é o uso referencial extralinguístico, que é uma extrapolação indébita da palavra ‘significado’, na qual ela é usada no sentido de referência, objeto referido, extensão – a espécie de coisa da qual a filosofia facilmente se apropria na construção de um uso metafísico no sentido negativo da palavra.

   Minha conclusão é a de que Putnam estende indebitamente essa ambiguidade da palavra ‘significa’/‘quer dizer’ (means) até produzir seu uso metafísico, para então declará-lo o mais fundamental, invertendo assim os valores. Ele entende o uso semântico intralinguístico (que é central) como um uso secundário do conceito de significado (a ser resgatado pelo que ele chama de estereótipo) e desconsidera o uso referencial intralinguístico – o ‘querer dizer’. O que para ele é fundamental é a extrapolação indébita do uso referencial intralinguístico da palavra ‘significado’; um suposto uso referencial extralinguístico, aquele em que a palavra seria aplicada a algo externo à cognição e à linguagem. Feita essa extrapolação, ele passa à inversão de valores, distinguindo o uso referencial extralinguístico da palavra ‘significado’ como sendo a forma mais apropriada de se usar tal palavra; essa é a “descoberta” de Putnam. Já em nosso entendimento, quando o astronauta diz:

 

(c) Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ significa/quer dizer (means) e sempre significou/quis dizer (meant) XYZ,

 

a palavra ‘significa’ ou ‘quer dizer’ (means), recebendo aqui um uso referencial intralinguístico, isto é, o sentido inócuo de ‘se refere a’; e o que o astronauta quer dizer é simplesmente que na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ denota e sempre denotou XYZ (o que fica mais claro em inglês, onde ‘means’ significa propriamente ‘querer dizer’). Mas isso não é nenhuma descoberta espetacular de um uso ou sentido referencial extralinguístico da palavra ‘significado’, ou ‘querer dizer’ (mean) como dizendo respeito a um significado externo, mas sim mera trivialidade! A palavra ‘água’, obviamente, se refere a XYZ na Terra-Gêmea, posto que nesse planeta o objeto da referência é e sempre foi esse mesmo stoff extralinguístico. E não há nada de especial nisso, posto que por definição a referência ou denotação é coisa extra-linguística, em nada dependendo de estados psicológicos ou cerebrais. Assim, ao desconsiderar ambiguidades das palavras ‘significa’ ou ‘quer dizer’ (mean), Putnam produz um equívoco sutil, que é o de deixar o domínio da significação ser contaminado pelo da referência. Ele quer nos fazer crer que existe algum sentido referencial ou extensional próprio da palavra ‘significado’ (meaning) – um uso referencial extralinguístico – a ser resgatado; mas esse sentido referencial não passa de uma persistente quimera filosófica, a mesma que motivou o referencialismo semântico já há muito criticado por Gilbert Ryle e por outros. Essa impossibilidade demonstra-se quando substituímos em (c) a palavra ‘significa’ pela expressão ‘tem o sentido de’. Nesse caso temos:

 

     (c’) Na Terra-Gêmea a palavra ‘água’ tem e sempre teve o sentido (sensede  XYZ.

 

Essa frase soa claramente falsa, dado ser intuitivo que antes da descoberta da fórmula química a palavra não tinha nada desse sentido (sense). Com efeito, a substituição de (c) por (c’) é um caso similar ao da substituição das expressões do grupo (b) pelas do grupo (b’), as quais sugerem a inexistência de um uso referencial da palavra ‘significado’ que seja capaz de preservar qualquer coisa do sentido próprio dessa palavra – o sentido no qual ela se torna um sinônimo possível da palavra ‘sentido’.

 

Exposição: Na continuação de seu texto, Putnam repete o argumento de um modo mais elaborado e eficaz ao situar a aplicação do termo ‘água’ em 1750, quando a sua estrutura atômica ainda era completamente desconhecida. Imagine que por essa época o Oscar-1 da Terra diga algo como “Isto é água”, referindo-se ao líquido inodoro, insípido e transparente que vê dentro de um copo, o qual realmente contém H2O. Ao mesmo tempo que isso acontece, o seu Doppelgänger na Terra-Gêmea, Oscar-2, também diz “Isso é água” apontando para o conteúdo de um copo contendo XYZ. Os estados psicológicos (e cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 são absolutamente idênticos. Ambos têm as mesmas ideias de que se encontram diante de um mesmo líquido transparente, insípido e inodoro. Mesmo assim, pensa Putnam, Oscar-1 está se referindo a H2O, enquanto Oscar-2 está se referindo a XYZ – afinal, o que causa a experiência perceptual de Oscar-1 na Terra é o H2O, enquanto o que causa a experiência perceptual de Oscar-2 na Terra-Gêmea é o XYZ. Até aqui tudo é perfeitamente razoável! Mas a conclusão que Putnam tira dessas constatações é um surpreendente murro no estômago de nossas intuições semânticas mais elementares:

 

Oscar-1 e Oscar-2 entenderam (understood) o termo ‘água’ diferentemente em 1750, embora eles estivessem no mesmo estado psicológico, e embora, dado o estado de desenvolvimento da ciência da época, a comunidade científica devesse levar ainda cerca de 50 anos para descobrir que eles entenderam (understood) o termo ‘água’ diferentemente. Assim, a extensão (extension) do termo ‘água’ (e, de fato, o seu ‘significado’ (meaning) no uso pré-analítico intuitivo do termo) não é função do estado psicológico do falante. (grifos meus)[18]

 

Em outras palavras: primeiro Putnam constata que a referência e a extensão da palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes, pois o primeiro se referia ao líquido H2O encontrado na Terra, enquanto o segundo se referia ao líquido XYZ da Terra-Gêmea. Ora, se as referências e extensões eram diferentes, pensa ele, então os significados determinadores dessas referências e extensões – também eram diferentes. Mas como os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 eram idênticos, então os significados, sendo diferentes, não poderiam se encontrar em suas cabeças!

   Posteriormente, sob as influências de Tyler Burge e de John McDowell, Putnam ampliou as conclusões de sua surpreendente descoberta: não só significados e entendimentos, mas também estados mentais (pensamentos, crenças, intenções) e mesmo as próprias mentes, em um sentido amplo, encontram-se fora de nossas cabeças, posto que as últimas são os loci da manipulação do significado.[19] Considero essas ampliações um reductio ad absurdum da tese original.

 

Comentário: Quero evidenciar que é possível produzir uma interpretação descritivista ou neofregeana bem mais satisfatória para o que acontece na fantasia putnamiana. Para tornar isso claro, considere a pergunta: qual a referência e a extensão da palavra ‘água’, quando usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750? Duas respostas conflitantes parecem intuitivamente aceitáveis, produzindo um dilema amplamente discutido na literatura:

 

(a)    A primeira resposta intuitivamente aceitável (que costumava ser a escolhida por críticos descritivistas de Putnam como A. J. Ayer) é a de que a referência e a extensão eram, na verdade, as mesmas. Como os Óscares tinham em mente o mesmo líquido transparente e inodoro... a palavra ‘água’ no caso cobriria tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea. Afinal, se os dois Óscares pudessem na época se encontrar, uma vez que não tinham por essa época ganho nenhum conhecimento da estrutura molecular dos compostos apontados, eles certamente concordariam que estavam se referindo à mesma coisa e que a extensão do conceito de água abrange tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea. Mesmo após se ter descoberto a diferença na estrutura química da água da Terra e da água da Terra-Gêmea é possível sugerir que a referência e a extensão eram as mesmas, pois se tratava de uma mesma coisa perceptível que, dependendo do lugar onde é encontrada, é diferentemente constituída. Essa mesma coisa perceptível possuía inclusive as mesmas disposições causais ao produzir os mesmos estados mentais nos Óscares, etc.

 

(b)   A segunda resposta intuitivamente aceitável (a defendida por Putnam e seus seguidores) é a de que os Óscares estavam se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes. Oscar-1 estava se referindo a um líquido aquoso cuja estrutura é H2O e cuja extensão não inclui a água da Terra-Gêmea. Já Oscar-2 estava apontando para um composto cuja estrutura é XYZ e cuja extensão se limita ao líquido aquoso da Terra-Gêmea. Idênticos estados mentais são causados por líquidos de estrutura química muito diferente. Com efeito, se os dois Óscares pudessem ser trazidos pela máquina do tempo até nossa época e aprendessem um pouco de química, eles certamente concordariam com a nossa afirmação de que estavam se referindo a substâncias diferentes com extensões muito diferentes...

 

A interpretação de Putnam dá conta da intuição que conduz à segunda resposta e leva à rejeição da primeira. Já a interpretação descritivista tradicional de Ayer e outros (que reduz o sentido da palavra água à descrição ‘líquido transparente inodoro, etc.’) dá conta da primeira intuição levando à rejeição da segunda. Contudo, quero no que se segue mostrar como uma interpretação neodescritivista mais sofisticada nos possibilita entender a palavra ‘água’ como potencialmente ambígua e, por isso mesmo, capaz de dar conta das duas intuições conflitantes ao fazê-las resultar de dois parâmetros diferentes de avaliação do elemento referencial. Isso é possível porque, sendo a referência e a extensão pertencentes à realidade extra-linguística, elas podem ser determinadas sob diferentes perspectivas que variam na dependência do sujeito epistêmico que as considera e do sentido cognitivo através do qual esse sujeito decide ter acesso a ela.

   Vejamos como uma interpretação neodescritivista minimamente sofisticada explica a resposta (a). Ela segue a intuição de que as referências e extensões consideradas pelos Óscares em 1750 eram as mesmas. Essa primeira intuição se explica quando tomamos como parâmetro de avaliação do elemento referencial a sua determinação pelos sentidos-significados (ou modos de apresentação) dados pelos Óscares à palavra ‘água’ em 1750. Com efeito, se considerarmos que eles tinham em suas cabeças os mesmos estados psicológicos e que, por conseguinte, os sentidos que eles davam à palavra ‘água’ eram os mesmos, a saber, algo como ‘líquido transparente, inodoro e insípido, que sacia a sede e cai sob a forma de chuva...’, e admitindo que sentidos determinam referências, as referências só poderiam ser de um mesmo tipo, sendo a extensão da palavra ‘água’ a mesma, cobrindo tanto o líquido aquoso da Terra quanto o líquido aquoso qualitativamente idêntico da Terra-Gêmea. Obviamente, tudo isso é compatível com a ideia de que os significados estão em nossas cabeças: os estados psicológico-cerebrais de Oscar-1 e Oscar-2 são iguais e por isso os sentidos que eles deram à palavra ‘água’ são iguais; por consequência, o tipo de referência é o mesmo e a extensão uma única, abrangendo tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea.

   Mesmo para nós hoje, se preferirmos considerar o significado da palavra ‘água’ em termos de uma mera descrição de propriedades superficiais, tal sugestão não é contra-intuitiva[20]: é possível afirmar que os dois Óscares estavam se referindo a uma mesma coisa com a mesma extensão, assim como nós mesmos, e que aquilo que eles tinham na cabeça, e mesmo nós agora, era a ideia dessa mesma coisa, desse mesmo líquido transparente, inodoro, etc. Tudo aqui é bem fregeano: o sentido (modo de apresentação) pensado determina referência e extensão.

   Contudo, como interpretar descritivamente a intuição que conduz à resposta (b), segundo a qual em 1750 os Óscares, mesmo tendo os mesmos estados psicológicos (e supostamente os mesmos tipos de estados cerebrais[21]) correspondentes, estavam se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes? Para Putnam isso é impossível. Para mim, ao contrário, há uma boa resposta que se encontra à mão e que é perfeitamente natural, embora pareça ter passado desapercebida mesmo aos críticos de Putnam. Para chegar a ela devemos primeiro notar que não há nada que nos impeça de entender fórmulas como H2O e XYZ em termos de descrições, sentidos, modos de apresentação fregeanos.

   Explicando mais detidamente: de um ponto de vista neofregeano é natural sugerir que o termo ‘água’ entendido como a água da Terra ou ‘água-t’ inclui em seu sentido (modo de apresentação) a descrição ‘volume líquido de estrutura molecular H2O’, enquanto que o mesmo termo entendido como a água da Terra-Gêmea ou ‘água-g’ inclui em seu sentido (modo de apresentação) a descrição ‘volume líquido de estrutura molecular XYZ’. Trata-se, afinal, de um impensado preconceito acreditar que, enquanto descritivistas, devemos restringir os sentidos ou modos de apresentação dos termos gerais a descrições de superfície, a estereótipos que se apresentam diretamente aos sentidos. Descrições podem ser de qualquer coisa. Esse ponto foi comprovado por Stroll por apelo ao que dicionários modernos apresentam como o sentido-significado da palavra ‘água’.[22] Eis um exemplo que retiro do Merriam Webster Dictionary:

 

Água = o líquido que desce das nuvens como chuva, forma correntes, lagos e mares, é um constituinte maior de toda a matéria viva, permanecendo quando puro sem odor nem gosto, sendo muito pouco compressível e formado de óxido de hidrogênio ou H2O, aparecendo azulado quando em grande quantidade, congelando-se a 0o C e fervendo a 100C, tendo sua densidade máxima a 4°C, sendo fracamente ionizado por ions de hidrogênio e hidroxila, um condutor pobre de eletricidade quando em estado puro e um bom solvente.

 

Para nós hoje tudo isso é o que seria permitido a um neofregeano chamar de “modo de apresentação” (Sinn) da água. Contudo, se hoje a microestrutura faz parte do modo de apresentação da água, devemos chamar atenção para o seguinte fato: Suponha que esses elementos microestruturais de referência e extensão se encontram no mundo externo, não tendo nada a ver com o que possa ter passado pelas mentes dos Óscares em 1750. Isso parece intuitivo. Ora, é perfeitamente natural, sob essa assunção, pensar que o seguinte fenômeno aconteça: nós inadvertidamente tomamos como parâmetros de avaliação dos elementos referenciais, não o que possa ter sido intencionado pelos Óscares em 1750, mas o que nós mesmos hoje temos em mente com a palavra ‘água’. Ou seja: nós consideramos a questão da referência e extensão sob nossos próprios critérios de sentido, isto é, sob a perspectiva de sujeitos epistêmicos que (na estória imaginada) já sabem que a água da Terra é descrita como possuindo a estrutura química H2O, enquanto que a água da Terra-Gêmea é descrita como possuindo a estrutura química XYZ. É óbvio que sob tal perspectiva nós diremos que o tipo de referência e extensão da palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes; afinal, Oscar-1 estava apontando para H2O, cuja extensão exclui a XYZ da Terra-Gêmea, o que vale mutatis mutandis para Oscar-2. Para chegarmos a isso, tudo o que precisamos fazer é inadvertidamente projetar os nossos próprios modos de apresentação descritivos da natureza intrínseca da água nas circunstâncias indexicais dos proferimentos dos Óscares em 1750. Melhor dizendo, o que tacitamente fazemos é:

 

usar os proferimentos dos Óscares como instrumentos indexicais para uma determinação da referência, a qual é feita através de nossos já bem conhecidos sentidos descritivos instanciados em nossos próprios estados psicológico-cerebrais, os quais são, como seria de se esperar, diferentes para cada caso, disso resultando a determinação de referências e extensões diferentes.

 

É, pois, por meio de uma projeção inconsciente que, ao considerarmos “Isso é água” ditos por Oscar-1 e por Oscar-2, associamos a palavra ‘água’ a sentidos diferentes na determinação de referências e extensões diferentes. Mas como esses sentidos ou significados diferentes encontram-se em nossas próprias cabeças e não nas cabeças dos Óscares, eles são perfeitamente compatíveis com os diferentes estados psicológicos que realmente temos, posto que eles não têm nada a ver com os estados psicológicos idênticos dos Óscares de 1750. Ao pensarmos no sentido-significado não pensamos realmente no que os Óscares entenderam por ‘água’ em 1750, mas no que nós entendemos por ‘água’ hoje. O que Putnam produz é um elaborado passe de mágica semântico, que uma vez desfeito deixa de nos impelir à ideia de que os significados se encontram fora de nossas cabeças.

   A dupla resposta neofregeana que acabo de sugerir continua sendo baseada na ideia de que estados mentais fixam o sentido ou significado, o qual determina a referência. Essa maneira mais refinada de entender o descritivismo resolve o dilema ao finalmente explicar a duplicidade de nossas próprias intuições sobre a referência e a extensão da palavra ‘água’ dita pelos Óscares, o que nem a explicação descritivista tradicional, nem a explicação de Putnam é capaz de fazer.

   E quanto ao significado (meaning)? Como é possível que em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 possam ter pensado o mesmo, mas entendido coisas diferentes com a palavra ‘água’, como sugere Putnam? Não parece incoerente? A solução consiste simplesmente em recorrer às distinções semânticas já feitas anteriormente de modo a drenar o pântano de confusão linguística criado pelo nosso brilhante metafísico. No mais apropriado uso semântico intralinguístico da palavra ‘significado’ devemos concordar que Oscar-1 e Oscar-2 atribuíam exatamente os mesmos significados – os mesmos sentidos – à palavra ‘água’ em 1750 e que por causa disso eles tinham exatamente os mesmos estados psicológicos (e supostamente os mesmos tipos de estados cerebrais subjacentes) correspondentes. Mas quando fazemos um uso referencial da palavra ‘significado’, ela não indica outra coisa senão o ato de referir, de apontar (uso referencial intralinguístico), ou até mesmo, em uma extrapolação metafórica, aquilo que é referido, apontado, nomeadamente, a própria referência (uso referencial extralinguístico). É com base nisso que Putnam tem algum sucesso em sugerir que Oscar-1 significou ou quis dizer (meant) algo diferente de Oscar-2 com a palavra ‘água’. Mas tudo o que ele seria capaz de dizer significativamente com isso é que a referência e a extensão do que eles estavam apontando será diferente se considerada sob a perspectiva de sujeitos epistêmicos que – como nós mesmos – por conhecerem a diferença de estrutura química entre a água da Terra e a da Terra-Gêmea, dão sentidos-significados diferentes à mesma palavra num e noutro caso de sua aplicação. Tudo aqui é (neo)fregeano: temos em mente sentidos diversos para o que Oscar-1 e Oscar-2 apontam, sendo através disso que determinamos referências e extensões diferentes para aquilo que eles disseram. Como disse antes: os Óscares não passam de inocentes instrumentos indexicais para que nossos próprios sentidos diversos ganhem referência diversa sem que nos apercebamos disso. Por esse meio desfaz-se o mal-estar semântico causado pelo argumento de Putnam.

 

Exposição: No último passo de seu argumento, Putnam começa considerando a objeção de que o termo ‘água’ teria tido em 1750 uma extensão diversa da extensão que ele passou a ter em 2050 (em ambas as Terras). Supondo que em 2050 já se tornou sabido que a água da Terra-Gêmea tem microestrutura XYZ, essa objeção é previsível e a meu ver, correta. Mas Putnam a considera errônea, pois se apontamos para um copo de água e dizemos “Isso é água” estamos apontando para uma identidade-l (sameness-l) do líquido em questão com a maior parte do stuff que nós e nossa comunidade linguística em outras ocasiões chamamos de água, devendo ser a natureza desse stuff determinada por testes de senso comum ou pela ciência. Assim, se apontamos para um copo de gim pensando que é água, alguns poucos testes mostrarão que ele não tem a identidade-l com o restante do stuff que chamamos de água. Além disso, nota ele, a identidade-l é uma relação teorética que pode ser sempre derrotada (defeated) por uma nova concepção do que ela seja, resultante da investigação científica.

   Por esse meio Putnam prossegue tentando nos convencer de que a palavra ‘água’ não mudou o seu significado de 1750 para cá, posto que a relação de identidade-l sempre foi a mesma. Para ele o significado da palavra precisa estar atrelado a uma relação de identidade-l com a essência do que é apontado, mesmo que tal essência ainda não tenha sido descoberta. Por isso, não só a extensão e a referência, mas também o que se quer dizer com a palavra, o que chamamos de o seu significado, e mesmo o entendimento da palavra ‘água’ nos proferimentos de Oscar-1 e de Oscar-2 foram para Putnam diferentes, mesmo que eles tenham ocorrido em 1750, quando não era possível ter acesso experiencial às propriedades microestruturais da água. Ora, como os estados psicológicos (e, em meu juízo, tipos de estados cerebrais correspondentes) de Oscar-1 e de Oscar-2 eram exatamente os mesmos, o conteúdo semântico precisa ir além desses estados, sendo mais uma vez forçoso reconhecer que os significados, os entendimentos, etc. de Oscar-1 e de Oscar-2, naquilo que é relevante para a determinação da referência e extensão, não se encontram em suas cabeças, mas no mundo, dado que se deixam determinar por fatores causais diversos que através de diferentes identidades-l, as quais produziram a mesma experiência cognitivo-perceptual. É a própria presença causal externa de substratos diferentes – H2O na Terra e XYZ na Terra-Gêmea – que produz a diferença nos conteúdos semânticos. Ou ainda, na conclusão triunfante de Putnam: “divida-se o bolo como quiser, os significados simplesmente não estão na cabeça”.[23]

 

Comentário: Contra essa resposta podemos objetar que a noção de identidade-l, tal como é usada por Putnam, nada tem a ver com o significado no sentido próprio de uso semântico intralinguístico – o de sentido (Sinn) – o único relevante. A identidade-l tem a ver com a medida da extensão da aplicação de um conceito, que não precisa ser sequer conhecida para que possamos aplicá-lo significativamente. Introduzir essa identidade para esclarecer o significado é um desdobramento arbitrário da mesma esparela que é a de acreditar que o uso referencial extralinguístico de palavras como ‘significar’ e ‘querer dizer’ tem algo ver com o significado em qualquer acepção relevante do termo.

   É verdade que, como Putnam observou, embora em 1750 os Óscares não pudessem conhecer a essência microestrutural subjacente ao que estavam chamando de ‘água’, eles já dispunham (supondo serem pessoas instruídas) da ideia de uma essência subjacente e de uma identidade-l microestrutural ainda desconhecida. Mas teria essa ideia alguma relevância semântica? O que dizer dos Óscares das cavernas, há 20.000 anos atrás? Será que ao dizerem “Vamos procurar água” eles estariam querendo se referir a alguma essência microestrutural subjacente desconhecida? Creio que não. Contudo, Putnam deve admitir que mesmo nos casos de dois Óscares das cavernas, as referências e extensões enquanto tais sempre foram diversas, uma vez que se trata de coisas extralinguísticas: uma era a referência e extensão de H2O, outra a de XYZ.

   Contra essa deveras implausível resposta, a melhor explicação continua sendo a de que essas variações só são determinadas através de diferentes estados psicológicos contemporâneos nossos, os quais instanciam sentidos descritivos diferentes, que determinam, ao modo fregeano, referências e extensões diferentes. Repetindo o que escrevi antes, parece evidente que nada mais fazemos do que projetar nos proferimentos dos Óscares nossas próprias instanciações cognitivas de sentidos diversos, usando esses proferimentos como instrumentos indexicais para a determinação das referências diversas baseadas em nossa própria diversidade de sentidos. De outra forma teremos de sustentar aberrações semânticas, como a de que os Óscares das cavernas teriam de dar diferentes sentidos à palavra água e mesmo compreendê-la de modo diverso, o que conduz a aberrações suplementares, como a de que os pensamentos e as próprias mentes dos Óscares das cavernas não estavam em suas cabeças quando eles realizaram esses proferimentos...

 

Exposição: No final de seu artigo Putnam resume e qualifica mais claramente sua posição. Ele admite que descrições de superfície desempenhem algum papel na constituição do significado de termos como os de espécies naturais. O significado passa a ser constituído por quatro componentes: (i) marcadores sintáticos e (ii) marcadores semânticos, que no caso da palavra ‘água’ são respectivamente o seu uso como um nome de massa concreto e como nome de uma espécie natural (um líquido). Depois há (iii) o que ele chama de estereótipos, que já vimos serem as descrições de superfície (no caso da água, o líquido transparente, insípido, inodoro, etc.). Ele admite que tanto marcadores quanto estereótipos fazem parte da competência do falante e têm instanciação interna, psicológica. Contudo, o componente mais importante do significado, aquele que determina referência e extensão, não é psicológico, mas externo. Ele é o sentido extensional, que no caso da água é determinado pelos volumes líquidos que compartilham da mesma constituição essencial de H2O (identidade-l). Embora possamos descrever esse componente através da linguagem, ele deve ser entendido como “a extensão em si mesma (conjunto), e não como uma descrição da extensão”.[24] O significado como extensão torna-se, ninguém sabe como, aquilo que determina a referência.

   Essa conclusão externalista é mais cautelosamente colocada por Putnam mais tarde em seu livro Representation and Reality, onde ele se limita a dizer que a extensão em grande parte fixa o significado.[25] Contudo, que espécie de fixação é essa? Não seria pela segregação de um hormônio etéreo que chamamos de significado ou pela formação de fogos fátuos semânticos. A questão fica em aberto. Aqui o risco de recairmos outra vez no internalismo é grande, pois ele parece o melhor candidato a uma explicação coerente de como possa vir a acontecer tal “fixação do significado”. Aqui a linha divisória entre o equívoco sutil e o reconhecimento do modo como as coisas realmente são torna-se tão ameaçadoramente tênue que exige vigilância cuidadosa. Uma tentativa de dar sentido à ideia sem recair no internalismo é dizer que essa fixação se constitui ou resulta de cadeias causais externas que devem se formar a partir da identificação do stoff com a microestrutura H2O, terminando por produzir o proferimento da palavra ‘água’ (Searle exprimiu algo semelhante dizendo que para Putnam o significado está na causação externa de nosso proferimento).

 

Comentário: Nada disso altera significativamente nem a posição de Putnam nem minha crítica a seu argumento. Contra minha análise é possível que um defensor de Putnam tente ainda argumentar que o uso referencial extralinguístico da palavra ‘significado’ tem uma valiosa razão de ser, qual seja, a de apontar para a grande descoberta de Putnam, que foi a do “significado referencial”, ou seja, do significado extensional ou causal que está fora da cabeça.

   Contudo, as lacunas explicativas na teoria de Putnam tornam muito mais plausível a admissão da tese alternativa, segundo a qual ele procede uma enganosamente sutil inversão dos valores. Ele quer nos convencer que aquilo que é fundamental é um suposto uso referencial extra-linguístico da palavra ‘significado’, relativo a extensões semânticas, enquanto o uso semântico intralinguístico é que lhe é parasitário, dizendo respeito somente aos estereótipos, etc. Não obstante, pelas razões já aduzidas, penso ter ficado claro que o sentido relevante da palavra ‘significado’ é mesmo o de ‘sentido’, concernente ao uso semântico intralinguístico. Trata-se aqui da função semântica de reportar-se a algum conteúdo cognitivo-informacional convencionalmente fundado (no sentido de ser fundamental ou de ser a resultante de combinações de convenções semânticas fundamentais), enquanto o uso referencial extralinguístico da palavra é apenas uma extensão indébita, posto que na verdade não tem mais nada a ver com o significado, mas apenas com o que muito própriamente chamamos de referência e extensão. Mas sob essa última acepção, dizer que o “significado” está fora da cabeça torna-se inofensivo, pois redunda na trivialidade de se dizer que coisas como a referência e a extensão de um termo conceitual se encontram fora da cabeça. Não precisamos de nenhuma teoria do significado para convencer-nos disso. Ademais, a teoria dos tropos explicaria plausivelmente as moléculas de H2O como arranjos qualitativamente idênticos de micropropriedades externas compresentes (espaciotemporalmente co-localizadas) referidas pelo conteúdo conceitual cognitivamente instanciado do termo ‘óxido de hidrogênio’ (o seu sentido ou significado).

    Trata-se, para sumarizar, de uma falácia genética, ainda que brilhantemente articulada. Pelo fato de que referências e extensões em última análise acabam por nos conduzir causalmente à produção de significados, elas passam a ser consideradas os próprios significados. A falácia reside na identificação da natureza do efeito com a sua gênese causal. O melhor que podemos fazer aqui é dizer que certas referências e extensões são “significativas”, mas em um sentido meramente estendido e analógico da palavra. Dizemos que um evento externo como a queda de Roma foi o episódio mais significativo a marcar a decadência do império, ou que a suposta vinda do messias foi o acontecimento mais significativo da cristandade. Mas nesses casos a palavra ‘significativo’ está apenas substituindo palavras mais apropriadas como ‘marcante’, ‘relevante’, ‘importante’.

 

Análise neodescritivista do significado da palavra ‘água’

Quero agora explicar a maneira como um filósofo descritivista mais refinado, disposto a por algum tempo ignorar todo o maquinário de argumentos externalistas, analisaria a estrutura e o funcionamento do conceito de água. Depois disso irei opor esses resultados ao argumento de Putnam, o que espero servir como golpe de misericórdia.

   O que nosso descritivista mais refinado diria? Primeiro, ele também não consideraria marcadores sintáticos e semânticos como fazendo parte relevante do significado. Que ‘água’, por exemplo, seja um nome de massa, e que esse nome designe uma espécie natural, isso já lhe outorga a função classificatória própria de uma palavra conceitual. Essa regra classificatória, contudo, não é capaz de individuar o uso da palavra. Afinal, ‘ouro’ e ‘oxigênio’ também são termos de massa que designam espécies naturais. E uma determinação semântica incapaz de diferenciar água de ouro ou de oxigênio deve ser bem pouco útil como componente constitutivo do significado da palavra ‘água’. A regra semântica que realmente interessa precisa ser aquela capaz de individuar o uso referencial da palavra, distinguindo-o dos usos de outras palavras da mesma espécie.

   Mas o que nosso descritivista refinado diria das descrições que formam o estereótipo? Penso que ele poderia razoavelmente admitir que o significado do termo geral ‘água’ seja essencialmente dado por um feixe cumulativo de regras-descrições. Mas também aqui, não seria um feixe desorganizado, mas algo constituído de aglomerados descritivos com valores diversos. Além disso, esse aglomerado não precisaria ser estático: se não fosse capaz de tornar-se inteiramente outro (pois mudaria o significado), poderia ao menos ampliar-se.

   Quero mostrar que essas sugestões realmente se aplicam ao conceito de água. Tal como acontece com muitos, o conceito de água sofreu uma evolução histórica expressa pelo gradual acúmulo de descrições que o exprimem. Há, primeiro, um significado originário, expresso pela seguinte descrição de características de superfície geralmente fenomenais:

 

Ds: Líquido transparente, insípido, inodoro, que serve para matar a sede, apagar o fogo, lavar, que enche os rios, lagos e mares, que cai sob forma de chuva, que entra em ebulição quando fervido e que se congela quando faz frio...

 

Ds é o núcleo descritivo do senso comum, certamente conhecido desde o tempo do homem das cavernas, o qual não poderia sequer suspeitar da existência de uma microestrutura subjacente única e mais fundamental – um líquido como a urina não possui tal coisa. Por esses tempos a palavra ‘água’ não significava mais do que Ds, que servia de base para se determinar a referência e a extensão. A própria causa de nossa percepção da presença de água, dentro do sistema de linguagem disponível, só poderia ser identificada com o próprio líquido, que em estado puro é transparente, insípido e inodoro, capaz de matar a sede e apagar o fogo.

   Com o passar de milênios, porém, novas descrições foram sendo adicionadas. Aprendeu-se mais sobre a água. Aprendeu-se que ela é um bom solvente, que ela não se mistura com óleos, que ela pode produzir ferrugem. Podemos chamar essas e outras descrições adicionais de descrições disposicionaisfuncionais ou dinâmicas, formadoras de um sub-núcleo adicional de descrições. Eis algumas delas, já conhecidas cerca de três séculos atrás:

 

Dsd: um líquido que é bom solvente, não se mistura com óleos, produz ferrugem (oxidação) quando em contato com ferro, é mau condutor de eletricidade quando em estado puro...

 

Adicionando-se agora Dsd ao núcleo original, temos um núcleo mais amplo de descrições de superfície. Podemos simbolizar as descrições que exprimem esse primeiro núcleo semântico, o núcleo do senso comum informado, como:

 

<Ds + Dsd>

 

Esse já seria, digamos, o sentido da palavra ‘água’ reconhecido por pessoas bem informadas por volta de 1750, talvez Oscar-1. Podemos chamá-lo de sentido popular da palavra.

   Contudo, algo extraordinário aconteceu no curso da evolução do sentido da palavra ‘água’. Em 1768 Lavoisieur colocou hidrogênio e oxigênio em um balão de vidro e aqueceu a mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água. Através dessa e de outras experiências ele acabou por concluir que a água é composta de duas porções de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781 Cavendish realizou na Inglaterra experiências semelhantes usando faíscas elétricas. Em 1783 Lavoisier realizou o procedimento inverso, decompondo água em oxigênio e hidrogênio. Em 1800 Nicholson and Carlisle conseguiram os mesmos resultados usando a eletricidade de uma “pilha voltaica”, em um processo que ficou conhecido como o da eletrólise. Em 1811, baseado em sua lei dos gazes e na eletrólise, Avogadro estabeleceu a composição atômica da água como sendo HO1/2 , um resultado que foi corrigido em 1821 por Berzelius, que finalmente estabeleceu a fórmula H2O...[26] Chegou-se assim a uma nova descrição, a descrição de profundidade da água como ‘líquido constituído por moléculas de óxido de hidrogênio ou H2O’. Note-se que no sentido que importa essa descrição de profundidade não é em nada menos descritiva do que ‘líquido transparente insípido e inodoro’, posto que a possibilidade de descrição perceptual do último caso não é o critério único e essencial daquilo que podemos chamar de descrever. Afinal, é mero preconceito achar que só é possível descrever o que é diretamente visível e não também o que é inferencialmente conhecido; não há nada de errado, por exemplo, em se dizer que a química orgânica nos permite descrever a verdadeira conformação estrutural do cicloexano. Como já notei, foi Avrum Stroll quem primeiro parece ter percebido isso. Ele percebeu corretamente que Putnam e Kripke produziram uma falsa dicotomia entre propriedades fenomenais e a microestrutura, como se elas fossem alternativas competidoras: “Uma explicação correta do que é a água”, escreveu ele, “não irá mencionar apenas as suas propriedades fenomenais, mas também aquelas que não são imediatamente acessíveis.” [27]

   A isso vale adicionar que as descrições de superfície concernentes às próprias experiências referidas por Lavoisieur, Cavendish, Avogadro, Berzelius e ainda outros formam um grupo à parte de descrições, que por vários caminhos permitem inferir a estrutura essencial subjacente das massas de água. Mais além, o conhecimento da estrutura molecular da água, em adição ao sistema teórico-conceitual da química, leva-nos a fazer inferências teóricas ao nível microestrutural, como a de que 2H2O + O2 = 2H2O2. Finalmente, tal conhecimento da estrutura profunda subjacente nos permite mesmo percorrer o caminho inverso, fazendo inferências de novas descrições de superfície, como as que exprimem propriedades como a da alta tensão superficial e a da ação capilar, que se deixam explicar pela coesão entre os dipolos positivo e negativo das moléculas de H2O, além da boa solvência de açúcares e sais. Está certo, pois, quem pensa que estou defendendo uma forma de inferencialismo.

   O que tudo isso acabou por produzir foi um novo núcleo de significado para a palavra ‘água’. Esse novo núcleo semântico é expresso primariamente pela descrição da microestrutura profunda das massas de água, à qual podem ser adicionadas ainda propriedades e relações químicas:

 

Dp: Volume constituído por moléculas formadas por dois átomos de hidrogênio e por um átomo de oxigênio (e também um composto dipolar que tende a formar cadeias isoméricas, etc.)

 

Mesmo que isso seja central, não creio que esgote o significado científico da palavra ‘água’. Como vimos acima, Dp se encontra ladeada por dois grupos de descrições de superfície a ela inferencialmente ligadas, as quais também são expressivas do novo núcleo semântico. De um lado elas constituem o que chamo de Dsp, o conjunto das descrições de superfície como sendo tudo aquilo de observável que permite ao químico inferir a estrutura química da água, entre elas descrições de experiências como as de Lavoisieur, Cavendish e Avogadro. De outro lado, há ainda as descrições constitutivas do que chamo de Dps, a saber, o conjunto das descrições das propriedades superficiais que se deixam inferir de nosso conhecimento da microestrutura subjacente das massas de água como, por exemplo, a propriedade de, diversamente de outros casos semelhantes, manter-se em estado líquido a temperaturas ambientes, além de possuir alta tensão superficial, o que também só é possível explicar pela forte coesão das moléculas dipolares de H2O).

   Chegamos com isso a um núcleo semântico constituído por três subnúcleos semânticos inferencialmente interligados, um formado por descrições da microestrutura subjacente junto ao que lhe é diretamente relacionado e dois formados por descrições de superfície. Eis como podemos simbolizar esse novo conjunto de descrições:

 

<Dsp + /Dp/ + Dps>

 

Quero sugerir que esse último núcleo de significação constitui o sentido científico da palavra ‘água’, um sentido que os químicos conhecem, mas que só é muito esquematicamente conhecido por quase todos nós. Esse sentido descritivo profundo foi completamente negligenciado pelas teorias descritivistas tradicionais dos termos gerais. Mas ele é perfeitamente legítimo no interior de um descritivismo mais sofisticado, que admite não ser possível descobrir razão qualquer para se ficar restrito a descrições de superfície.

   Há aqui a seguinte objeção a ser considerada: o número de inferências relacionadas à estrutura química H2O é indeterminado, o que torna os limites do significado científico vagos e indefiníveis. Uma primeira reação seria delimitar-se à descrição “Líquido com estrutura química H2O”, como a única capaz de delimitar precisamente o núcleo semântico científico. Embora reconhecendo a centralidade desse núcleo semântico, essa resposta não me parece a mais apropriada, mesmo que sirva como uma simplificação útil.

   A resposta que prefiro (seguindo o pressuposto de que o significado de um conceito é um complexo constituído por uma regra de aplicação) é a de que as fronteiras de significado entre um termo e outro são graduais. As inferências mais proximamente relacionadas à estrutura química da água proporcionam um bom exemplo de como isso funciona. Considere, por exemplo: “2H2O → 2H2 + O2”. Essa é uma inferência interna, no sentido de que os conceitos que a compõem são constitutivos da própria fórmula química. Compreendê-la faz parte do entendimento do conteúdo semântico de ‘H2O’, que, em geral, só os químicos possuem de modo mais completo. Considere, em contraposição, as seguintes fórmulas:

 

          1)  2Na +  2H2O → 2NaOH + H2

          2)  2H2O + 2O→ 2H2O2

          3)  2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2

 

A reação (1) diz respeito à formação de soda cáustica (2NaOH), sendo a sua contribuição semântica muito menos para o conteúdo informativo daquilo que um químico sabe sobre a água e muito mais sobre o conteúdo informativo do que ele sabe sobre a soda cáustica. Mas parece razoável pensar que também essa fórmula ainda tem algo a ver com o esclarecimento semântico do primeiro conceito. A equação (2) concerne à formação de água-oxigenada (H2O2), enquanto a equação (3) concerne à formação de ferrugem (Fe(OH)2). Claro que essas reações não contribuem para o nosso entendimento do que há de essencial ao significado científico de ‘água’ (óxido de hidrogênio). Afinal, elas são respectivamente constitutivas dos significados de água-oxigenada e ferrugem, da mesma forma que “2H2O → 2H2 + O2” é constitutiva do significado de ‘água’. Mas não parece que isso seja tudo. Afinal, não parece irrelevante para o químico saber que o óxido de hidrogênio (água) entra na constituição da água-oxigenada ou que seja capaz de produzir ferrugem. Isso parece ser de alguma relevância para seu entendimento do conceito de água. Daí parecer razoável admitir um certo grau de interpenetração semântica. Ou seja: que essas inferências para o conteúdo informativo do que o químico entende com o conceito de água como óxido de hidrogênio se ampliem de modo cada vez menos relevante, mesmo no interior do que concerne a reações químicas que definem essencialmente outros compostos, como água-oxigenada e ferrugem, o mesmo valendo, certamente, para o caso de outros compostos. Isso nos permite responder à questão inicial: não só o número de inferências constitutivas do conteúdo semântico não é passível de ser precisamente determinado, mas também os limites de sua contribuição para o significado da palavra-conceito em questão é imprecisamente determinado por sobrepor-se à contribuição que as relações inferenciais possam oferecer ao significado de outras palavras-conceito semanticamente contíguas. As contribuições que as relações inferenciais dão para o significado de uma palavra-conceito podem ser aqui internas ou mesmo externas à constituição do óxido de hidrogênio, diminuindo as últimas gradualmente na medida em que aumenta a sua contribuição para o significado de outros conceitos. Com isso evitamos o holismo semântico do qual resulta a disparatada conclusão de que por qualquer coisa significar qualquer outra coisa, tudo significaria tudo, aniquilando o caráter essencialmente informativo  do significado. Entendo a explicação acima sugerida do significado de um conceito como, no final das contas, uma forma de inferencialismo semântico – uma concepção defendida por vários filósofos, com base na ideia wittgensteiniana de que o significado de uma palavra é o seu lugar na gramática.[28]

   Uma alternativa curiosa, mas a meu ver falsa, estaria na adoção de uma posição estritamente fenomenalista: considerar Dp como uma construção, se não supérflua, meramente convencional, ou seja, defender que podemos passar apenas com Dsp e Dps. Aqui prefiro colocar-me ao lado de Kripke e Putnam. Pois é preciso notar que as estruturas químicas são igualmente fundamentais, e que a fórmula H2O presente em Dp é indispensável por duas razões: primeiro, porque pode ser acessada e referida através de uma multiplicidade de descrições de inferências constituitivas de Dsp, que se constitui como um conjunto aberto de descrições. Essa mesma estrutura, por sua vez, permite a inferência de uma diversidade também indeterminada de descrições constitutivas de Dps, as quais também formam um conjunto aberto. A estrutura química é, pois, como um ponto de cruzamento necessário entre uma multiplicidade de caminhos inferenciais, não decorrendo inevitavelmente de nenhum deles, embora todos decorram inevitavelmente dela. É essa centralidade que faz da descrição da estrutura química o que eu ainda preferiria classificar, senão como mais uma “essência nominal”, como uma “essência real”, no sentido de ser uma essência real suposta, mesmo que não absolutamente certa.[29]

   Os dois núcleos semânticos, o núcleo expresso pelas descrições que nos dão o componente ordinário ou popular do sentido da palavra ‘água’, e o núcleo expresso pelas descrições associadas à sua essência subjacente, o qual nos dá o componente científico do sentido da palavra, podem ser simbolizados em conjunto como:

 

 

 

                                     ____Np___             ______Nc______

                                     <Ds + Dsd>    +    <Dsp + /Dp/ + Dps>

 

Temos aqui, sinopticamente apresentado, o completo conjunto de descrições que exprimem as regras semânticas que contribuem para o sentido cognitivo da palavra ‘água’ como um todo. Trata-se do conjunto de descrições inter-relacionadas capaz de exprimir o sentido ou conteúdo significativo mais completo da palavra ‘água’, tal como ela é capaz de ser entendida hoje.

   Ainda uma objeção poderia ser a de que o sentido completo acima apontado está longe de ser em seus detalhes conhecido da maioria dos falantes. Mas isso em nada importa! Em geral sabemos muito pouco do completo conteúdo semântico de termos gerais relevantes hoje usados pelas ciências desenvolvidas, e mesmo esse pouco nós só conhecemos genericamente. Contudo, esse conhecimento genérico e frequentemente parcial (quase todos conhecem em medida razoável o núcleo popular, muito poucos conhecem bem o núcleo científico) já é suficientemente compartilhado pelos interlocutores para permitir a comunicação, sob o suposto da existência daqueles cujo conhecimento é mais completo.

   Finalmente, o elemento causal não deve ser esquecido. Nosso conhecimento da existência de exemplares de massas de água depende de elas próprias o terem causado, ou pelo menos de elas potencialmente o causarem. Contudo, o significado da palavra tem a ver aqui, não propriamente com uma cadeia causal originada de algo como um batismo, mas sim com uma regra conceitual capaz de pressupô-la, daí porque o significado da palavra ‘água’ pode ser em princípio independente da existência real ou atual de massas de água, a saber, da efetiva aplicabilidade da regra conceitual. Só o conhecimento da referência depende da existência real da essência exemplificada por massas de água.

 

A regra de atribuição para o termo geral ‘água’ em seu sentido amplo

Estamos agora preparados para construir uma regra de atribuição que estabeleça um limite mínimo de satisfação das regras-descrições superficiais e profundas até aqui consideradas para que a palavra ‘água’ se torne aplicável. Eis como (assumindo-se a satisfação de alguma condição causal do tipo Cc) a regra de atribuição para o termo geral ‘água’ ou RA-‘água’ em seu sentido mais genérico poderia ser exposta:

 

     RA-‘água’:

O termo geral ‘água’ refere-se à propriedade pertencente ao gênero de uma substância química em algum objeto (identificável por um termo singular)

see

(i)              satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado ao termo e

(ii)            em medida no todo suficiente.[30]

 

Nesse caso particular, a regra conceptual detém certa analogia com a regra de identificação do nome próprio, mas com diferenças fundamentais. Primeiro, a disjunção exclusiva é entre disjuntos de natureza completamente diversa. Depois, não há uma condição (iii) de predominância, posto que, diversamente dos nomes próprios, não precisamos aqui de nenhuma condição individuadora,  dado que o termo geral é feito para poder ser aplicado a um número indefinido de objetos, i.e., propriedades dos mesmos objetos. O termo singular normalmente associado em enunciados como, digamos, “Isto é água”, é o que se encarrega de individuar o objeto portador da propriedade em questão.

   Sugiro que a regra geral de atribuição acima exposta deva constituir o que mais propriamente podemos chamar de o conceito de água. Essa regra requer clarificação. Primeiro há a assunção de que a água é uma substância química, facilitando a escolha ao limitar o domínio da definição (estabelecendo um genus proximum). Um segundo ponto diz respeito ao elemento causal implícito. Aqui um termo geral funciona de modo muito diferente de um nome próprio. No caso do nome próprio há somente um portador do nome, o que explica a importância da função causal do portador em atos de batismo. Contudo, o termo geral não é vinculado a nenhum portador originário, mas sim a qualquer portador que compartilhe da propriedade-t que ele é capaz de designar. Essa é a razão pela qual a importância da relação causal entre objetos e termos gerais tem sido debalde questionada.[31] Ainda outro ponto é que, como vimos, no caso da frase singular o portador precisa ser antes identificado pela regra de identificação do termo singular, para só depois disso ser classificado pela regra de atribuição do termo geral, o que faz com que a regra de atribuição do termo geral deva se aplicar em combinação com a regra de identificação do termo singular. Essa é a razão pela qual insisto em fazer menção a um objeto x, que no caso costuma ser um volume de água ocupando uma região espaciotemporal.

   Consideremos agora em separado cada uma das duas primeiras condições da regra de atribuição que se seguem após o see. A condição (i) pode ser chamada de condição de significação, pois envolve o significado como conteúdo informativo mais próprio da palavra ‘água’, aquele que encontramos em dicionários; de um modo amplo, saber o significado da palavra ‘água’ é conhecer essa regra parcial, que conecta os dois núcleos de significação – popular e científico – por meio de uma disjunção inclusiva (cuja existência apenas coincide com a da disjunção inclusiva que encontramos nas regras de identificação dos nomes próprios). De acordo com essa condição, podemos chamar um líquido de ‘água’ quando ele tem as propriedades fenomenais da água, mesmo que ele não possua a correspondente estrutura subjacente e vice-versa.

   É verdade que à primeira vista essa pode parecer uma maneira excessivamente liberal de se entender o significado da palavra ‘água’. Mas a uma consideração mais detida percebemos que isso pode ser mera impressão, uma vez que, como veremos, a palavra ‘água’ frequentemente é usada em contextos que restringem o seu significado em uma ou em outra direção. A condição (i) tem a virtude de ampliar a aplicabilidade do conceito na medida daquilo que ordinariamente entendemos como sendo a sua extensão máxima, exprimindo assim o único significado que faz juz a toda a diversidade de modos como somos capazes de usar corretamente a palavra. Finalmente, se o conceito de água for a regra RA-‘água’ fica claro que o significado da palavra, sendo restrito à condição (i), se torna mais precisamente delimitado como parte do conceito e não como o seu todo. Talvez isso explique porque a linguagem natural nos permite falar de um conteúdo do conceito (“o sentido/significado de um conceito”), ao invés de identificá-lo diretamente com o conceito, não nos sendo permitido falar, inversamente, do conceito do conteúdo (“o conceito de um significado”).

   A condição (ii) é o que chamamos de condição de suficiência, de acordo com a qual descrições de (i) não precisam ser completamente satisfeitas, mas – se tomadas como um todo (ou seja, na soma de seus valores) – apenas suficientemente satisfeitas. O grau de satisfação das condições necessárias para preencher o requerimento de suficiência fica aqui também inespecificado, como parte da vaguidade do conceito (um líquido composto apenas em sua maior parte por H2O, que não é transparente nem insípido, pode facilmente ser chamado de água).

   A mais importante diferença com relação à regra de identificação de nomes próprios aparece quando refletimos sobre a ausência de uma condição (iii) que seja individuadora de um objeto em comparação com outros. Como estamos lembrados, no caso dos nomes próprios a terceira condição seria individuadora. Daí ser possível que um mesmo objeto seja capaz de satisfazer diferentes regras de identificação, amalgamando diferentes grupos de descrições em um único (exs: Marcial Marciel incluindo Raúl Rivas, Mary Evans incluindo George Eliot...), conquanto a regra considerada certa se aplique mais a um certo objeto do que a qualquer outro, o que o individua. Mas no caso da regra de atribuição de um termo geral, não faz sentido termos uma regra individuadora, pois fica sempre indeterminado o número de objetos capazes de possuírem a propriedade capaz de satisfazê-la, que pode mesmo ser nenhum. Contudo, faz sentido termos uma condição de suficiência para a atribuição predominante de um termo geral sobre outros secundáriamente aplicáveis ao mesmo x, como logo veremos.

 

A forma da água

Quero agora considerar um problema relacionado, aventado por Avrum Stroll: se Putnam está certo e “água = H2O”, escreveu ele, então certamente “gelo = H2O”, e “vapor de água = H2O”. Mas se é assim, pela transitividade da identidade, então  “água = gelo”, e “vapor de água = gelo”. Mas essa é uma conclusão insólita, que se fosse verdadeira me permitiria pedir dois cubos de água no lugar do gelo e dizer que a água (o gelo) flutua na água e que o vapor de água é sólido. Gelo não parece ser o mesmo que água e menos ainda vapor de água, o que leva Stroll a concluir que o ‘é’ de “Água é H2O” é um é de composição e não de identidade.[32] Com efeito, podemos dizer que o gelo é feito de água. Contudo, o mesmo Stroll introduz uma contra-objeção que parece de algum modo limitar o que ele está dizendo: é possível dizer que o gelo é a mesma coisa que “água sob forma sólida” e que vapor de água é a mesma coisa que “água sob a forma de vapor”. Por consequência, gelo e vapor de água parecem ser determinações de uma mesma coisa, qual seja, água em um sentido menos diferenciado da palavra.

   Uma comparação entre as regras de atribuição desses termos gerais com base na RA-‘água’ demonstra que as contradições são aparentes. Os núcleos populares fenomenais dos sentidos das palavras ‘água’, ‘gelo’ e ‘vapor de água’ são bastante diversos: a água é líquida e transparente, o gelo é sólido e opaco, o vapor de água se dissipa no ar... As coisas denotadas por esses termos só são semanticamente similares no que concerne ao núcleo microestrutural científico de sentido, particularmente Dp (ignorando diferenças na organização das moléculas que compõem as amostras). Temos, pois, a derivação de regras de atribuição algo mais específicas, que são RA-‘gelo’ (onde as descrições de superfície indicam algo sólido, esbranquiçado, etc.) e RA-‘vapor de água’ (onde as descrições de superfície indicam um vapor quente, etc.). Como consequência, o que temos aqui são dois temos hipônimos de água no sentido amplo (RA-‘água’), que diferem no que concerne ao sentido popular. Assim, a razão pela qual chamamos um objeto x de “gelo” e não “água” é que é sólido, opaco e frio, satisfazendo mais as descrições do hipônimo RA-‘gelo’ do que do hiperônimo RA-‘água’, satisfazendo por isso a condição de predominância (iii) para o termo geral ‘gelo’ quando a palavra é usada em um enunciado como “Esse cubo de gelo é feito de água”. Algo semelhante acontece quando chamamos um objeto x de vapor de água. Com efeito, como RA-‘gelo’ é algo mais específico do que RA-‘água’, os sentidos das palavras ‘gelo’ e ‘água’ são diferentes. Mesmo assim, esses sentidos são semelhantes, pois a Dp do núcleo de significação científico continua sendo essencialmente a mesma, satisfazendo por isso a disjunção constitutiva de RA-‘água’. Essa é a razão pela qual podemos dizer que o gelo e o vapor de água são constituídos de água, que o gelo é água solidificada e que o vapor de água é água evaporada: pelo fato de a condição essencial de RA-‘água’, que é a disjunção (i), estar sendo em cada caso suficientemente satisfeita, permitindo o emprego da regra de atribuição para a palavra ‘água’ no sentido de ser pelo menos um constituinte da disjunção predominante de propriedades que como tal é a mais propriamente referida.

   Também é possível considerar o ‘é’ de “Água é H2O” como um ‘é’ de identidade: podemos entender essa frase como uma forma elíptica de “Água é (=) [um volume considerável de moléculas de] H2O”. Mas Stroll não deixa de ter razão ao sugerir que o ‘é’ de “Água é H2O” é geralmente um é de composição. Trata-se de um ‘é’ de composição ou constituição, na medida em que a RA-‘água’ contém a regra de atribuição para o óxido de hidrogênio ou RA-‘H2O’ (se essa última regra é empregada, a primeira também o é). E também compreendemos porque ao falarmos de água não estamos querendo dizer propriamente nem gelo, nem vapor de água: é porque o que referimos como sendo água satisfaz melhor RA-‘água’ do que RA-‘gelo’ e RA-‘vapor de água’.

   Stroll também pensa que uma coisa é falar do significado da palavra ‘água’ e que outra coisa é falar daquilo que a água é. Contudo, essas me parecem ser duas faces da mesma moeda, pois aquilo que consideramos em termos de sentido pode ser materialmente parafraseado em termos daquilo que as coisas são. Isso se demonstra no fato de que ao invés de falarmos das regras de atribuição em sua efetiva aplicabilidade a propriedades, enfatizando assim o sentido, podemos falar das propriedades mesmas que satisfazem essa regra, enfatizando assim as próprias coisas ou aspectos delas. Consequentemente, dizer que um certo volume de água é composto de H2O é o mesmo que afirmar que ele possui certas propriedades descritas por RA-‘água’, implicando que enquanto essa regra for efetivamente aplicável ele compõe-se das propriedades microestruturais também descritas por RA-‘H2O’.

   Finalmente, cumpre notarmos que o modo de ver que acabamos de expor faz jus a algumas ideias familiares aos semanticistas. Primeiro, o sentido de um termo geral como água é vago. Depois, ele tem se alterado. Como acontece com muitos conceitos, ele cresceu e se ramificou com o tempo. A maioria de nós fica conhecendo apenas uma parte mais ou menos genérica dele, fundamental ou não, mas suficiente para a comunicação. Muitas vezes só os especialistas ou usuários privilegiados da palavra conhecem o significado completo de um termo geral. Há casos em que o especialista só conhece o núcleo científico especializado do significado, ignorando outras coisas por vezes mais importantes. Há casos em que cada especialista conhece completamente apenas parte do significado do termo. Pelo que sei, a teoria das cordas possui tantas alternativas que nem sequer os especialistas as conhecem por completo. E certamente há casos em que somente a memória de computadores ou documentos são capazes de conter todas as informações relevantes. Contudo, é de se supor que essas informações só se tornam significativas, só ganham realidade, na medida em que são suficientemente interpretadas por seres humanos que participam de nossa forma de vida. No entendimento de como os termos gerais referem, assim como de toda a linguagem significativa, parece inextrincável a existência de um elemento biológico-cognitivista irredutível.

 

Comparando as duas análises

No que se segue quero demonstrar que a recém-sugerida análise neodescritivista do conceito de água explica as nossas intuições relativas à fantasia da Terra-Gêmea de forma mais convincente do que a imaginativa, mas artificiosa, teoria de Putnam.  

   Como já vimos, é muito difícil duvidar que o significado de nossas expressões linguísticas seja convencionalmente fundado: é plausível pensar que ele deve constituir-se de regras ou combinações de regras semanticamente relevantes por nós mesmos estabelecidas, ainda que de modo certamente bem fundamentado, ou seja, em maior ou menor medida não-arbitrário. Quando elas constituem os significados dos termos gerais, elas costumam ser exprimíveis por meio de descrições indefinidas. Até mesmo a essência subjacente da água pode ser apresentada por regras de atribuição exprimíveis por meio de descrições, as quais são simbolicamente resumidas por Dp. Além disso, não há como se livrar das descrições de superfície, uma vez que Dp só faz sentido por ter sido inferido de Dsp e por conduzir inferencialmente a Dps. Ou seja: mesmo que estejamos dispostos a conceder que a descrição fundamental seja a da essência subjacente, ela acaba por depender epistemicamente de descrições de propriedades de superfície, nem mais, nem menos fenomenais do que as descrições dadas à água pelo homem das cavernas, embora mais complexas e exigentes pelo seu recurso a fatores disposicionais.

   A questão agora fica sendo: como a recém-exposta explicação do sentido-significado intralinguístico da palavra ‘água’ explica nossas intuições relativas a Oscar-1 e Oscar-2 ao dizerem “Isso é água” em 1750? O resultado será aqui pouco mais do que uma tediosa repetição do que já foi dito e redito em minha resposta neodescritivista a Putnam.

   Consideremos primeiro o significado em seu sentido próprio, o significado intralinguístico, no qual ele se identifica como sendo o mesmo da palavra ‘sentido’. Em 1750, ele era o mesmo para ambos os Óscares: o de um líquido transparente, etc. Ou seja: <Ds + Dsd>. A isso eles podem ter acrescentado no máximo a hipótese da existência de alguma microestrutura fundamental desconhecida x. Mas como não havia sentidos expressos pelas descrições ‘líquido de estrutura molecular H2O’ ou ‘líquido de estrutura molecular XYZ’, não era esse que eles poderiam ter em mente. Assim, se os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 eram os mesmos, isso não importa, posto que os sentidos também eram os mesmos. Tratava-se dos sentidos populares. Instanciados nas cognições ou disposições cognitivas, os sentidos da água como <Ds + Dsd> estavam nas cabeças dos Óscares, na medida em que eles os conheciam.

   Consideremos agora a referência e a extensão. Aqui, como já vimos, a resposta pode variar! Ela depende de quem estamos considerando como o sujeito que através do significado-como-sentido identifica a referência e calcula a extensão. Um primeiro caso é aquele em que os próprios Óscares em 1750 são considerados os sujeitos. Outro caso é o de sujeitos esclarecidos de uma época posterior, como nós mesmos em 2050, reportando-nos aos proferimentos dos Óscares, após nos termos tornado conscientes da diferente estrutura química dos líquidos apontados por eles em 1750...

   Vejamos o primeiro caso. Para Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 fica muito claro que a referência da palavra ‘água’ é apenas o líquido <Ds + Dsd> e, se os Óscares forem também químicos, a suposição de algum x desconhecido que sirva de substrato. Também fica claro que essas referências são do mesmo tipo. Afinal, a referência é determinada pelo sentido, que é o mesmo (não há razão alguma para se complicar a questão pensando que o substrato que estaria no lugar do x na Terra seja diferente daquele que estaria no lugar do x na Terra-Gêmea, posto que não havia nada na experiência disponível que levasse à constatação de uma diferença; afinal, x = x). E a extensão também é a mesma; ela é em 1750 a mesma do líquido transparente, insípido, inodoro, etc. que inclui tanto a água da Terra quanto a da Terra-Gêmea. Assim, se em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 pudessem trocar informações sobre o preenchimento de seus critérios de aplicação do termo geral ‘água’ em ambos os planetas, sem dúvida eles concluiriam que, sendo ambos satisfeitos de modo idêntico (ambos são transparentes, insípidos, inodoros, aplacam a sede, extinguem o fogo, etc.), a extensão da palavra ‘água’ é a mesma, dado que ela estava sendo estabelecida pelas descrições das propriedades de superfície. Eles concordariam inclusive que a própria causa de suas percepções do líquido que ambos chamam ‘água’ é a mesma, pois essa causa é relatada como sendo o mesmo líquido transparente, que aplaca a sede e extingue o fogo, etc. Afinal, isso é tudo o que as pessoas em 1750 eram capazes de identificar como sendo causa eficiente de suas constatações. No máximo eles poderiam identificar a causa com alguma suposta estrutura subjacente x, mas pelo princípio de que ao mesmo efeito geralmente subjaz a mesma causa, eles teriam boas razões para supor que também a suposta estrutura subjacente da água é a mesma tanto na Terra quanto na Terra-Gêmea. Essa igualdade causal é, aliás, particularmente clara quando pensamos nos Óscares Neandertais, vivendo há 30.000 anos atrás: parece que eles diriam que a causa de nossa percepção da água que molha e apaga o fogo é o próprio líquido transparente que cai das nuvens, pois o seu sistema de explicação causal baseado no senso comum seria mais simples que o nosso, recorrendo somente a eventos de superfície como fatores causais. (Pode-se aventar um substrato substancial único, mas mesmo essa hipótese pode ser ilusória, como no caso do ar, que é composto de vários gazes, ou no da poeira, que pode ser muito variadamente composta, ou no da urina ou do óleo.)

   Consideremos agora como sujeitos cognitivos as pessoas que sabem que a água da Terra tem a estrutura química H2O, enquanto a água da Terra-Gêmea tem a estrutura química XYZ. Digamos que nós em 2050 (após viagens espaciais até a Terra-Gêmea, etc.) saibamos bem disso. Nesse caso, ao considerarmos as afirmações de Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, nós poderemos dizer que em seus proferimentos eles estavam se referindo a coisas diferentes com extensões diferentes: Oscar-1 se referia a volumes constituídos de moléculas de H2O e Oscar-2 a volumes constituídos de moléculas de XYZ. Mas, como já notei, ao dizermos isso, o que estaremos fazendo será identificar as referências apontadas por Oscar-1 e Oscar-2 por meio de nossas próprias cognições, a saber, por meio dos sentidos diversos que estaremos dando à palavra ‘água’, como intérpretes do proferimento “Isso é água” aplicado ao líquido da nossa Terra e ao da Terra-Gêmea por cada um dos Óscares.

   Nesse ponto é importante notar que o sentido que Putnam dá à palavra ‘água’ é mais restritivo do que o sentido capturado pela regra geral RA-‘água’, uma vez que essa regra se aplica tanto à água da Terra quanto à água da Terra-Gêmea, posto que ambas satisfazem sua condição disjuntiva. Para Putnam o significado-sentido de nossa água será o de água-t ou óxido de hidrogênio, alguma coisa como (<Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>), enfocando o seu núcleo científico. Já o significado-sentido para a água da Terra-Gêmea por ele considerado também será mais restritivo que RA-‘água’, ou seja, água-g, algo que pode ser resumido como (<Dsp-XYZ + /Dp-XYZ/ + Dps-XYZ>), com o núcleo científico sendo enfocado. Esses são sub-sentidos perfeitamente admissíveis e utilizáveis de RA-‘água’. Mas nesse caso, as referências e extensões terão de ser diversas, pois como também já vimos, elas resultam de algo que fazemos sem nos apercebermos, que é a mera projeção de nossas próprias regras semânticas diversas nas situações indexicais em que os Óscares fizeram as suas referências, de modo que os proferimentos dos Óscares passam a ser inconscientemente interpretados como instrumentos indexicais para a referência de nossos próprios pensamentos. Uma consequência disso é que para nós a extensão da água apontada por Oscar-1 em 1750 é, como água-t ou óxido de hidrogênio, apenas a do líquido de estrutura H2O, restringindo-se à Terra, enquanto a extensão da palavra ‘água’ apontada por Oscar-2 é, como água-g, restringida ao líquido da Terra-Gêmea. Se não nos dermos conta de que estamos apenas projetando nossos próprios pensamentos diversos nos atos dos Óscares, cairemos no rudimentar equívoco de concluirmos, como Putnam, que eram os próprios Óscares que estavam “querendo dizer” ou “entendendo” por ‘água’ microestruturas químicas diferentes.

   O que torna possível a variação do que é apontado como a referência e extensão? Como também já notei, referência e extensão são por definição extramentais e extralinguísticas. Não obstante isso, para serem identificadas elas dependem dos sujeitos cognitivos e dos sentidos fregeanos que esses sujeitos dão à palavra, podendo variar com o contexto indexical no qual esses sujeitos se encontram. A mesma palavra ‘água’ identificada por Oscar-1 e Oscar-2 como tendo uma mesma referência pode ser identificada por nós como tendo uma referência diferente, posto que a ela integramos núcleos semânticos diversos. Assim, se astronautas visitam a Terra-Gêmea e descobrem que o líquido que lá é denominado ‘água’ tem a estrutura XYZ, podemos concluir que os habitantes da Terra-Gêmea sempre se referiram a XYZ e que a extensão da palavra ‘água’ é bem outra. Mas não podemos esquecer que somos nós mesmos que estamos fazendo isso, com base no conhecimento por nós adquirido de essências subjacentes diversas, ou seja, com base em sub-sentidos diversos – um relativo à água-t e outro relativo à água-g – instanciados em nossos próprios estados psicológicos correspondentes.

   Podemos ainda imaginar que Oscar-1 e Oscar-2 sejam trazidos pela máquina do tempo até nós e que ambos façam um curso intensivo de química, aprendendo que a estrutura molecular da água é H2O na Terra e XYZ na Terra-Gêmea. Por conta desses diferentes núcleos científicos de significação da palavra eles chegam então a concordar conosco admitindo, enfim, que em 1750 Oscar-1 estava apontando para água-t e Oscar-2 estava apontando para água-g. Mas esse apontar não é um “querer dizer” (mean); sequer é um “referir”. Esse apontar para coisas diversas teria de envolver estados psicológico-cerebrais diversos na determinação projetiva de referências e extensões diversas, redundando no fato de que eles estariam usando a eles mesmos no passado como seus próprios instrumentos indexicais para identificar diferenças ontológicas. Lembremo-nos que isso só é possível porque referência e extensão são entidades extralinguísticas e extramentais, sendo apenas em sua apreensão determinadas pelo sentido (psicologicamente instanciado) expresso pela palavra, o qual pode variar com a informação acessível ao sujeito epistêmico. Nesse caso, porém, os Óscares estão apenas admitindo que aquilo que eles significavam ou queriam dizer (meant) em 1750, a saber, as referências extralinguísticas, era diferente, e não que os significados (sentidos) que eles haviam dado às palavras era diferente. Eles se fiam em seus estados psicológico-cerebrais atuais, que não são menos diversos do que os sentidos. A conclusão, em qualquer dos casos, é anti-putnamiana: significados são sentidos; sentidos determinam referências; sentidos nunca estão fora das cabeças.

   É possível conceber muitos casos análogos aos dos Óscares, que são facilmente explicáveis por uma adequada aplicação da concepção neodescritivista do significado da palavra ‘água’ recém exposta.

   Suponhamos, começando com um exemplo fantasioso, que Lúcia tem dois gatos. Um gato branco, que é um felino normal e um gato preto que é um ser extra-terrestre que descobriu uma maneira de viver bem adotando a forma de um gato doméstico. Mas Lúcia não sabe disso. Contudo, se isso é um fato e se no futuro ela vier a descobrir que isso é verdade, então ela não concluirá que no passado, ao falar de seu gato preto ela estava entendendo ou querendo dizer (mean) ou mesmo se referindo a um ser extra-terrestre, nem que ela sempre colocou em consideração uma futura relação de identidade-l com as propriedades de um ser alienígena, como a teoria de Putnam nos levaria a concluir. Lúcia dirá que aquilo a que se referia como sendo o seu gato doméstico preto pode ser agora concebido por ela como tendo sido sempre – como o verdadeiro objeto por ela apontado – um ser alienígena, ou até mesmo que ela sempre teria em princípio tido por aceitável colocar em consideração alguma futura relação de identidade-l que ela não tinha como saber, mas que se revelou uma identidade com as propriedades essenciais de um ser extra-terrestre. Em resumo: como no caso com os gatos domésticos, os dois Óscares em 1750 se referiam aos compostos químicos que tinham diante de si tanto quanto, digamos, Chapeuzinho Vermelho se referia ao lobo travestido de avó quando ela lhe fez as famosas perguntas.

   O mesmo ponto pode ser melhor demonstrado com o auxílio de um exemplo mais realista. O ouro branco é uma mistura de 75% de ouro de 24 quilates com 25% de níquel e paládio, o que lhe confere a cor branca. Suponhamos que uma pessoa que não sabe identificar ouro branco aponta para um anel de ouro branco e, ao ser informada do preço, diz “Isso é feito de ouro”, sem saber que está dizendo a verdade. Para Putnam, essa pessoa deveria estar realmente querendo dizer (meaning) que o anel é de ouro, mesmo que não tenha a menor consciência desse fato. Afinal, a relação de identidade-l essencial é com a propriedade intrínseca de conter 75% de ouro, o elemento químico de número 79. Na verdade, o máximo que podemos dizer é que uma pessoa que desconhece o ouro branco ao apontar para ele estava se referindo a algo cuja estrutura subjacente é sistematicamente referida por nós mesmos como contendo o elemento de número atômico 79 em maior proporção, razão pela qual atribuímos verdade ao seu proferimento. Se quisermos ser generosos, poderemos até mesmo dizer que a pessoa potencialmente se referia ao elemento 79 para em seguida usarmos o proferimento dessa pessoa como um instrumento indexical para o que propriamente temos em mente. Podemos até mesmo inventar um conceito extravagante de referência potencial, sugerindo então que a pessoa fez uma referência potencial ao elemento 79, a qual será resgatada por qualquer um que saiba identificar o ouro branco através dessa extensão do sentido da palavra. Mas nada disso resulta no mesmo que dizer que a pessoa enquanto falante de fato se referia à estrutura ou essência subjacente, muito menos que ela “significava”, “queria dizer”, “entendia”, “intencionava” ou “pensava” tal referência.

   Como se deixa entrever, a teoria de Putnam demanda que já sejamos capazes de entender, no sentido amplo, o significado de certas palavras nos sentidos que elas têm para outros, ou até mesmo nos sentidos que elas terão algum dia, muito depois de termos desaparecido, o que é uma consequência deveras absurda. Além disso, já foi notado que sua teoria torna o nosso conhecimento do significado meramente especulativo. Ela nos faz suspeitar que só daqui a muitos anos, ou talvez mesmo nunca, chegaremos a conhecer os significados que damos a termos conceituais que usamos diariamente! Afinal, nunca poderemos saber se realmente chegamos a conhecer o significado, posto que nada nos garante que podemos saber de modo indubitável que a essência subjacente última foi realmente descoberta. A dúvida paira devido à falibilidade do conhecimento humano. Nada nos garante que nosso conhecimento científico seja mais garantido para além de um saber derivado de convenções empiricamente bem fundamentadas.[33]

   Repetindo o que já foi dito: o principal equívoco inerente ao argumento de Putnam é que ele passa sub-repticiamente do extensional para o intensional, da conclusão de que a referência e a extensão eram diferentes daquilo que os Óscares pensavam (o que deveria ser o óbvio) para a conclusão de que o significado ou sentido e o seu entendimento sempre foram diferentes. Mas isso não pode ser verdadeiro, pois a natureza do sentido-significado, bem como a natureza do que entendemos com a palavra ‘água’, depende de convenções intralinguísticas de instanciação intramental, que em 1750 eram iguais para ambos os Óscares. Os nossos sentidos-significados são dependentes de convenções linguísticas mais ou menos bem fundamentadas, sendo epistemicamente constituídos; já nossas referências e extensões dizem respeito ao modo como o mundo é ou foi, ou será, sendo ontologicamente constituídas e podendo ser diversamente acessadas por linguagens ou sistemas de convenções diferentes. Tudo o que Putnam realmente teria o direito de concluir de sua experiência em pensamento é que referência e extensão se encontram fora de nossas cabeças. Mas com essa trivialidade todos concordam.

 

Revendo o conceito de identidade-l   

O que dizer da explicação do assim chamado significado extensional do termo por meio da relação teorética a ser descoberta pela ciência de uma identidade-l entre a estrutura essencial do exemplar apontado e a dos outros exemplares encontrados? Um problema é que uma identidade-l que seja resultado final da pesquisa científica parece ser em última análise incoerente, posto que nunca poderemos ter absoluta certeza de que qualquer identidade que venhamos a alcançar seja realmente o resultado final da pesquisa científica. A alternativa razoável é a de restringirmos a noção de identidade-l, entendendo-a de um modo puramente extensional, extralinguístico e extramental: trata-se simplesmente do que consideramos como sendo a identidade qualitativa da essência supostamente real que os exemplares da extensão de um termo devem manter entre si para constituírem a sua extensão. A identidade-l dos exemplares de quantidades de água hoje, por exemplo, é estabelecida pelo compartilhamento da mesma estrutura química H2O de suas moléculas. Com base nisso, quando consideramos os exemplares de água apontados por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, diremos que a identidade-l apontada por Oscar-1 era a existente entre volumes de H2O, enquanto a identidade-l apontada por Oscar-2 era a existente entre volumes de XYZ, disso resultando extensões diversas. Mas é preciso lembrar que usamos nossas próprias cabeças para estabelecer essas extensões e não as cabeças de Oscar-1 e Oscar-2, irrelevantes para o caso.

   Podemos agora comparar a concepção da relação de identidade-l de Putnam com a nossa. Eis como seria o esquema proposto por Putnam da evolução do significado da palavra ‘água’ na Terra, limitando-o a estereótipos e à relação de identidade-l:

 

                                                Significado:

1.     30.000 a.C.: água = (<Ds>...) + identidade-l com referências de Dp.

2.     1750:           água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.

3.     1850:           água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.

 

     Enquanto o nosso esquema é:

 

                                                 Significado:

1.     30.000 a.C.: água = <Ds>.

2.     1750:           água = <Ds + Dsd> + x>.

3.     1850:           água = <Ds + Dsd> + <Dsp + /Dp/ + Dps/>.

 

Temos aqui o contraste entre um primeiro esquema, altamente implausível, e um segundo esquema intuitivamente convincente e razoável. Só o último esquema permite explicar satisfatoriamente a duplicidade de nossas intuições semânticas sobre a referência e a extensão daquilo que foi apontado pelos Óscares em 1750. Só ele explica nossa intuição de que sempre tivemos conhecimento do que queremos dizer com a palavra ‘água’ e que esse significado se desenvolveu com o tempo, que ele foi e é real, que não é mera hipótese, que acreditamos firmemente que a ciência já o tenha resgatado, mas que talvez não, e que talvez mesmo permaneça, como o significado último, para todo o sempre inalcançável.

   O resultado para o qual nossas considerações apontam é, por conseguinte, o de que o esclarecimento do significado dos termos de espécie natural de nosso descritivista refinado se ajusta bem melhor aos fatos linguísticos do que aquele que Putnam tem a oferecer, devendo por isso ser preferido.

 

Descritivismo e o dilema de aplicação do conceito de água

A explicação basicamente neodescritivista do significado de termos de espécie natural recém-sugerida também nos permite resolver um conhecido dilema concernente à aplicação do conceito de água – um conflito conceitual que nem a teoria descritivista tradicional, nem as concepções causais-essencialistas de Putnam/Kripke têm condições de resolver.

   A questão que gera o dilema nasce de uma separação entre propriedades superficiais e estrutura subjacente, envolvendo duas suposições:

 

(a) Imagine que em algum lugar do mundo se descubra um líquido inodoro, transparente, etc. que possui todas as propriedades superficiais da água (serve para beber, apaga o fogo, etc.), mas cuja estrutura subjacente é completamente diferente, digamos, XYZ. Podemos ou não dizer que esse líquido é água?

(b) Imagine agora que em algum outro lugar do mundo sejam encontradas rochas sólidas, escuras como carvão, que não possuem nenhuma propriedade superficial da água (não servem para beber, não apagam o fogo...), mas que, acreditem ou não, são constituídas de H2O. Podemos dizer que essas rochas são feitas de água?

 

Descritivistas e causalistas responderão opostamente a essas questões.

   Vejamos primeiro a resposta de filósofos defensores da concepção causal da referência de termos de espécie natural, como Kripke e Putnam.[34] Para esses filósofos, a microestrutura essencial da água descrita por Dp tem predominância sobre todo o resto. Por isso eles responderiam negativamente à questão (a): se encontrarmos um líquido com todas as propriedades superficiais da água, mas que não possui a estrutura molecular H2O, esse líquido não pode ser água. E quanto à questão (b), a resposta seria afirmativa: mesmo que a substância não apresente nenhuma das propriedades superficiais da água, como essa substância é feita de H2O, ela precisa ser feita de água.

   Filósofos descritivistas como A.J. Ayer e outros críticos de Putnam, privilegiaram as estruturas de superfície e se apegaram às intuições opostas: o que vale são as propriedades fenomenais e não a estrutura química subjacente.[35] Por isso eles responderiam afirmativamente à questão (a): se em algum lugar da Terra encontrarmos um líquido com a estrutura superficial da água, mas com estrutura química XYZ, nós não deixaremos de classificá-lo como sendo água; nós diremos apenas que é água de um outro tipo. Quanto à questão (b), eles a responderiam negativamente, dizendo que mesmo que as rochas tenham a estrutura molecular H2O, elas não podem ser água, pois em nada se aparentam com o líquido transparente, insípido e inodoro com o qual estamos acostumados.

   Quem estará certo? O causalista ou o descritivista? Há aqui um conflito de intuições. Se pensarmos como o causalista, a resposta será não para (a) e sim para (b). Se pensarmos como o descritivista, a resposta será sim para (a) e não para (b).

   Ora, a versão mais complexa de descritivismo que propomos permite desfazer o conflito de intuições, revelando-o como mera aparência. Ela nos permite dizer que esse choque resulta tão-somente do fato de a palavra ‘água’ ter dois núcleos diferentes de significado, parcialmente distinguíveis entre si, que são <Ds + Dsd>, o núcleo popular, e <Dsp + /Dp/ + Dps>, o núcleo científico. A disjunção de condições da regra de atribuição geral RA-‘água’ da palavra conceitual é inclusiva (e/ou), o que significa que a palavra ‘água’ pode ser predicada tanto no caso (a) quanto no caso (b). Mesmo que outros termos gerais possam ser aplicados às entidades designadas pela palavra ‘água’ nesses casos, por exemplo, ‘algo com estrutura XYZ’ no caso (a) e ‘algo parecido com carvão’ no caso (b), isso não faz diferença, uma vez que uma mesma coisa pode ser objeto de uma multiplicidade de termos predicativos.

   Essa é uma possibilidade. Mas, na prática, não precisa ser assim. Parece claro que o peso de cada núcleo semântico é capaz de sofrer variações de acordo com o que poderíamos chamar de contexto de interesses associado ao proferimento, que defino como se segue:

 

O contexto de interesses de um termo ou expressão (Df) = o contexto que eleva o valor de aspectos do significado que são de importância pragmática para as pessoas que estão a usá-lo.

 

De posse do conceito de contexto de interesses, imagine então que nos encontramos diante de um contexto científico envolvendo falantes versados em química, que se encontram em um laboratório e objetivam fazer experimentos separando os gases que compõem amostras de água. Nesse caso, o contexto de interesse é científico e o núcleo semântico científico é privilegiado. A palavra ‘água’ está sendo usada no mesmo sentido de expressões como ‘óxido de hidrogênio’ ou ‘monóxido de dihidrogênio’, termos científicos que têm como função semântica exclusiva exprimir o núcleo semântico <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O> na referência a amostras de líquidos com estrutura química H2O. Nesse caso se preferirá dizer que o líquido transparente, etc. de estrutura química XYZ decididamente não é água e, no esforço de tirar água (H2O) das pedras, os químicos dirão que as rochas com aparência de carvão são rochas de água.

   Considere agora, para contrastar, um contexto de interesses da vida cotidiana. Digamos que o falante pertença a uma remota comunidade de pescadores que tem como objetivo cavar um poço para obter água para beber, lavar, tomar banho. Para esse grupo, tanto faz se a estrutura química efetiva do composto é H2O ou XYZ, conquanto saibam que ele não faz nenhum mal à saúde e igualmente sirva aos devidos fins[36]. Nesse caso, o velho núcleo semântico da linguagem popular pode ser considerado o mais importante, pois mesmo que informados de que a estrutura química do que eles estão usando não é H2O (embora os efeitos sejam exatamente os mesmos), eles não encontrarão nenhuma razão para deixarem de aplicar o termo no sentido considerado.[37] Já se as propriedades fenomenais se alterassem, deixando a substância de cumprir com as suas funções usuais, como no caso das pedras com estrutura química H2O, a tendência será concluir que elas não têm nada a ver com água por não terem nada a ver com o que eles esperam obter: não servem para beber, nem lavar, nem tomar banho.

   O mesmo se daria com uma ‘água’ como a encontrada na Terra-Gêmea. Se o contexto de interesses for o de uma discussão entre cientistas sobre a natureza do composto, pode ser vantajoso que se privilegie <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>, entendendo-se por ‘água’ o mesmo que óxido de hidrogênio e concluindo-se que XYZ não é água, tal como Putnam sugeriu. Já no contexto de interesses ordinários de quem precisa de água para beber e lavar pode valer mais a pena privilegiar <Ds + Dsd>, concluindo daí que se trata apenas de uma outra espécie de água, tal como sugeriram os críticos de Putnam. A melhor resposta para o dilema é que a semântica da palavra ‘água’ é suficientemente flexível para nos permitir escolher o corno do dilema que preferirmos segurar; e o corno preferido é o disjunto da regra de atribuição que as condições práticas do contexto de interesses nos levam a mais valorizar.

 

Externalismo putnamiano versus internalismo sensato

Quero agora resumir o resultado de minhas considerações. O equívoco semântico produzido pela fantasia da Terra-Gêmea, como o externalismo, em geral, envolve uma falácia genética, que confunde a natureza do significado com a sua origem causal. Parece óbvio que se o mundo externo não possuísse elementos quaisquer que nos permitissem, pela interação com eles, chegar ao conceito de água, não teríamos acesso ao sentido do termo. Assim, nesse sentido trivial, o significado se encontra na dependência da constituição de coisas externas a nós, sendo causalmente determinado por elas. O mundo funciona como um ambiente causal externo, que de formas frequentemente muito indiretas acaba por determinar a formação de nossas convenções semânticas em instanciações mentais que podem ser entendidas em termos de significados. Não obstante, nem por isso o significado ou o entendimento ou a mente devem se situar no mundo externo ou ‘fora da cabeça’, pois isso seria falacioso. Essa é a forma minimalista de “externalismo”, com a qual qualquer internalista sensato haverá de concordar.[38]

   Em oposição ao externalismo minimalista que acabei de resumir, o externalismo no sentido próprio, o externalismo semântico de Putnam, é o que se alimenta do que chamei de uma falácia genética. Essa falácia consiste em confundir as causas últimas de nossas intuições semânticas, quando essas são externas, com os seus efeitos, que são estados mentais, representacionais, os quais são internos, instanciadores de um conteúdo semântico-psicológico que por essência é repetível e que pode se encontrar diversamente distribuído nas mentes dos falantes[39]. Se o efeito é uma representação, essa representação não depende necessariamente, para a sua existência, da existência daquilo que representa. Afinal, a representação pode resultar de uma combinação de fatores causais os mais diversos, como sobejamente o demonstra a enorme variedade de produções ficcionais que nossa imaginação é capaz de promover. Devido à imensa flexibilidade dos mecanismos representacionais linguisticamente refletidos, nossas representações podem apresentar uma relação muito mais remota com as suas causas do que Putnam acreditava possuírem.

 

Como o termo geral ‘água’ pode se tornar um designador rígido

Devemos notar que também aqui podemos utilizar instrumentos lógicos derivados da teoria das descrições para formalizar regras de atribuição do termo geral. Tendo em mente RA-‘água’, uma maneira de fazermos isso é introduzindo os seguintes predicados: F = ‘...substância química que satisfaz suficientemente (no todo com G) as regras de caracterização expressas pelas <Ds + Dsd> para o conceito de água’, G = ‘...substância química que satisfaz suficientemente (no todo com F) as regras de caracterização expressas pelas <Dps + /Dp/ + Dsp> para o conceito de água’ e A = ‘...é água’. A regra de atribuição para a palavra ‘água’ em seu sentido amplo pode ser então imperfeitamente formulada como:

 

x(Ax) ↔ (Fx ˅ Gx)

 

Considerando essa equivalência podemos também explicar como o termo geral ‘água’ pode ser entendido como um designador rígido. Assumindo que os designata próprios do termo geral sejam propriedades-t (tropos ou agrupamentos de tropos) podemos dizer que o termo geral ‘água’ é um designador rígido secundariamente à rigidez de quaisquer termos singulares a ele associados. Ele é rígido no sentido de que em qualquer mundo possível no qual algum objeto referido por um termo singular existe, se podemos usar o termo geral ‘água’ predicando-o desse objeto, então RA-‘água’ se aplica a esse mesmo objeto, permitindo-nos dizer que x(Ax) ↔ (Fx ˅ Gx). Ou seja: o termo geral ‘água’ é um designador rígido porque sua regra geral de atribuição RA-‘água’ se deixa aplicar a amostras de água em todos os mundos possíveis nos quais elas existem.

   Isso se verifica também na observação de que RA-‘água’ nos permite formar uma sentença analítico-conceitual necessária mais precisa, posto que verdadeira em todos os mundos possíveis, qual seja:

 

Um termo geral ‘água’ se refere a qualquer composto químico dado que estiver na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que ele satisfaz de modo em seu todo suficiente e mais do que outros as condições <Ds + Dsp> e/ou <Dps + /Dp/ + Dsp> para a sua aplicação.

 

Como no caso dos nomes próprios, o termo geral é rígido em contraste com termos gerais mais descritivos ou entendidos como tais. Considere, por exemplo, o termo geral ‘água’ no sentido genérico associado a RA-‘água’. Ele é rígido por oposição a descrições indefinidas como, digamos, ‘um líquido que se congela a 0o C e que ferve a 100º C ao nível do mar’, posto que há mundos possíveis[40] nos quais existe água e a descrição não é satisfeita, ou mesmo descrições indefinidas fundamentais como ‘uma substância com composição H2O’, posto que em isolamento essa descrição não garante a satisfação da condição da regra (em um contexto de interesse de senso comum uma água de pedra com composição H2O não será chamada de água). Tais descrições indefinidas não se aplicam em todos os mundos possíveis nos quais predicamos o termo geral ‘água’ no sentido genérico de um mesmo objeto, sendo por comparação flácidas. E a razão é análoga a do caso dos nomes próprios. As descrições indefinidas em questão, quando aparecem isoladas, são meros sintomas, encontrando-se apenas frouxamente associadas à regra de atribuição do termo geral.

 

Identidade de espécies naturais

Uma questão que pode agora ser colocada é sobre o comportamento epistêmico de enunciados sobre espécies naturais do tipo “Água é H2O” ou “Ouro é o elemento de número atômico 79”. Consideremos o primeiro enunciado. Para os descritivistas tradicionais ele exprimiria uma proposição de identidade a posteriori (posto que sua verdade é derivada da experiência) e também contingente (posto que a água, descrita como ‘líquido transparente, inodoro, etc. poderia não ter a composição química H2O, mas alguma outra). Já para causalistas-essencialistas como Kripke e Putnam devemos antes ter em conta que os termos ‘água’ e ‘H2O’ são designadores rígidos. Eles se referem ao mesmo tipo de coisa em qualquer mundo possível, daí resultando que embora o enunciado “Água é (=) H2O” seja a posteriori (posto que a sua verdade é derivada da experiência), ele é necessário (pois ambos os termos designam a mesma essência microestrutural em qualquer mundo possível). Trata-se para eles de uma necessidade metafísica.

   Abro aqui um parêntese para relembrar que Avrum Stroll havia sugerido que “Água é H2O” não é realmente uma sentença de identidade, pois o ‘é’ não é o da identidade, mas o de constituição, querendo dizer:  “A água é feita de H2O”. Mesmo que esse resultado seja suportado tanto intuitivamente quanto pelas nossas análises da regra de atribuição das palavras ‘água’ e ‘H2O’, a flexibilidade da linguagem nos permite também dizer que “(Um volume de) Água = (uma grande quantidade de moléculas de) H2O”, interpretando “Água é H2O” realmente como a frase de identidade: “Água = H2O”. Contudo, em qualquer das interpretações a oposição de opiniões persiste, pois enquanto descritivistas dirão que “A água é constituída de H2O”  é uma descoberta contingente e a posteriori, causalistas-essencialistas insistirão que esse enunciado é necessário e a posteriori, pois H2O é a essência constitutiva da água em qualquer mundo possível.

   Quem estaria certo? Embora a posição causal-histórica tenha suas razões, contra ela pesa uma objeção básica feita por filósofos[41] contra o conceito de necessário a posteriori: como é possível que uma proposição seja verdadeira em todos os mundos possíveis sem que ela seja conhecida priori?

   Ao menos no caso da sentença “Água é H2O” (e receio que também em outros) a resposta neodescritivista me parece a mais adequada. O neodescritivista dirá que a sugestão kripkiana de que o enunciado “Água é H2O” é metafisicamente necessário por refletir uma descoberta a posteriori de algo necessário é uma confusão resultante de uma ambiguidade que já foi constatada pelas semânticas bidimensionalistas e que pode ser aqui apontada de modo mais intuitivo. O que podemos querer dizer com a palavra ‘água’ varia de acordo com o contexto, havendo ao menos três possibilidades à disposição:

 

(i) Em um contexto suficientemente vago inclinamo-nos a considerar o significado mais amplo ou genérico da palavra ‘água’. Nesse contexto amplo o ‘é’ de “Água é H2O” costuma ser o da constituição e a proposição é contingente e a posteriori. Para evidenciá-lo, basta comparar as regras de atribuição constitutivas dos conceitos de água e H2O. A regra de atribuição para ‘água’ no sentido amplo, RA-‘água’, pode ser explicitada pela seguinte frase definitória:

 

RA-‘Água’: Usamos o termo geral ‘água’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see ela pode nos fazer conscientes de que (i) ela satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra, (ii) em medida no todo suficiente.

 

Enquanto a regra de atribuição para o termo geral ‘H2O’ (óxido de hidrogênio), RA-‘H2O’, é mais restrita:

 

RA-‘H2O’: Usamos o termo geral ‘H2O’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see isso pode nos fazer conscientes de que (i) satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra e (ii) em medida no suficiente.

 

A frase “Água é H2O” quer dizer que se acredita que a tudo a que aplicamos à segunda regra aplicamos também à primeira. A experiência nos mostra que de fato tem sido assim... Mas o fato é que nem a tudo a que aplicamos a primeira regra precisamos aplicar a segunda! Afinal, RA-‘água’ contém uma disjunção inclusiva cujo primeiro termo permite que em mundos possíveis a água seja identificada como sendo água apenas com base em suas características de superfície, não demandando que a microestrutura seja H2O (pode ser XYZ, QRS, etc.). Por isso, no sentido mais geral de água, “Água é H2O” é uma verdade contingente, baseada na experiência (i.e., a posteriori) e em princípio falseável através dela. Isso vale tanto para a interpretação de “Água é H2O” como sentença de constituição (Stroll) quanto como sentença de identidade (Kripke).

   Mas o que queremos dizer com a palavra ‘água’ pode mudar com o contexto. Daí que há outras duas interpretações alternativas de “Água é H2O”, nas quais o entendimento do termo ‘água’ sofre alterações devidas a contextos de interesses diversos, como veremos a seguir:

 

(ii) Se o contexto de interesses nos restringir às necessidades cotidianas, o que se sobressai é o sentido mais popular da palavra ‘água’. Nesse caso a palavra ‘água’ passa a significar RA-‘líquido aquoso’:

 

RA-‘líquido aquoso’: Usamos o termo geral ‘água’ no contexto cotidiano para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see isso pode nos fazer conscientes de que (i) satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> associado à palavra e (ii) em medida suficiente.

 

Tratamos aqui tão-somente do líquido transparente, insípido e inodoro, que aplaca a sede e apaga o fogo. Nesse caso, a frase “Água é (constituída de) H2O” e mesmo a frase “(Quantidade de) Água = (quantidade de) H2O” serão verdadeiras, mas contingentes e a posteriori, pois o líquido aquoso poderia não ser composto de H2O mas, digamos, de XYZ.

 

(iii) Uma terceira possibilidade é a de que o contexto seja o do interesse científico estabelecido a partir da primeira metade do século XIX. Nesse caso teremos o que foi realmente enfatizado por Kripke e por Putnam, exemplos em que o termo ‘água’ passa a significar o mesmo que quantidades de H2O. ‘Água’ significa aqui o mesmo que as expressões ‘óxido de hidrogênio’ ou ‘monóxido de di-hidrogênio’. Nesse caso a regra RA-‘água’ será entendida como sendo a mesma que RA-‘H2O’, donde resulta que “Água é H2O” (interpretando-se o ‘é’ como podendo ser tanto de identidade como de constituição) se torna uma frase necessária e obviamente a priori, posto que a sua verdade pode ser sabida independentemente da experiência, devendo ser verdadeira em todos os mundos possíveis. Essa conclusão torna-se mais clara quando substituímos a palavra ‘água’ por óxido de hidrogênio, que é o que essa palavra significa nesse contexto restritivo, daí resultando a frase “óxido de hidrogênio é H2O”, que é necessária e a priori, pois a regra de atribuição de ambas é a mesma. É, pois, com pesar que sou levado a informar que nenhum traço do necessário a posteriori foi encontrado por essas paragens.

   Podemos agora expor a razão do que me parece a mescla de insight e ilusão contida na sugestão de Kripke ao sugerir que “Água é H2O” é uma proposição necessária a posteriori. Ele confundiu os dois últimos sentidos da palavra ‘água’ ao analisar a frase “Água é H2O”, usando o entendimento popular da palavra ‘água’ para dizer que essa é uma verdade a posteriori e usando o entendimento científico da mesma palavra para dizer que essa é uma verdade necessária. Mas “Água é H2O” é uma frase ambígua. Ela pode ser entendida como contingente e a posteriori ou como necessária a priori, de acordo com o contexto de interesses envolvido. O que não é possível é que ela seja entendida como sendo metafisicamente necessária e a posteriori. Nosso conhecimento de necessidades metafísicas é suspeito, posto que se trata de necessidades inverificáveis, diversamente do caso de necessidades convencionadas e auto-verificáveis.

 

O elemento social do externalismo de Putnam

Antes de terminarmos, precisamos ainda considerar rapidamente dois outros exemplos de Putnam.

   No primeiro ele supõe que alumínio e molibdênio só sejam distinguíveis entre si por metalúrgicos e que a Terra-Gêmea esteja cheia de molibdênio, metal raro na Terra. Além disso, ele imagina que os habitantes da Terra-Gêmea chamem o molibdênio de alumínio e o alumínio de molibdênio. Nesse caso, certamente, a palavra ‘alumínio’ dita por Oscar-1 terá uma extensão diferente da palavra ‘alumínio’ dita por Oscar-2, de modo que eles querem dizer (mean) coisas diferentes com a mesma palavra. Mas como eles não são metalúrgicos, eles têm os mesmos estados psicológicos. Logo, o significado é externo ao que acontece em suas cabeças.

   No segundo exemplo Putnam considera a diferença entre olmos e faias. A maioria de nós não sabe distinguir olmos de faias em uma floresta. Contudo, mesmo assim somos capazes de usar essas palavras sem que as suas extensões deixem de ser diferentes: olmos são olmos e faias são faias. Assim, o que queremos dizer com essas palavras, os significados que a elas atribuímos, são diferentes, mesmo que essa diferença não esteja em nossas cabeças.

   Putnam tira uma conclusão surpreendente desses casos imaginários: assim como no caso da água da Terra-Gêmea o significado está no mundo externo, nos casos recém-expostos ele se encontra também na sociedade. Para esclarecer essa tese, ele introduz a importante ideia da divisão de trabalho da linguagem. As palavras requerem a atividade cooperativa de um número de pessoas para poderem ser efetivamente usadas. Não sabemos distinguir alumínio de molibdênio, nem olmos de faias. Mas isso não importa, pois o meio social é capaz de distingui-los por nós. Há, em nossa comunidade linguística, especialistas e outros falantes com a habilidade de reconhecer por nós as espécies naturais pelas suas características essenciais. Pelo simples fato de pertencermos a essa comunidade, mesmo não sabendo quais são as propriedades distintivas da maioria das espécies naturais, mesmo não reconhecendo as suas essências causais, somos capazes de usar palavras como ‘alumínio’ e ‘molibdênio’, ‘olmo’ e ‘faia’, no sentido que elas têm e referir-nos às suas extensões. Como Putnam corretamente conclui:

 

O estado psicológico do indivíduo não fixa a extensão; somente o estado sociolinguístico do corpo linguístico coletivo ao qual o falante pertence é que fixa a extensão.[42]

 

Essa sugestão é importante. Incorreta é apenas a interpretação externalista que a tese de Putnam forçosamente lhe impinge. Já consideramos algo assim ao discutirmos a divisão de trabalho da linguagem com respeito ao nosso conhecimento do conteúdo de nomes próprios. Putnam, aliás, não foi o primeiro a apontar para a existência de uma divisão de trabalho da linguagem. Isso há havia sido feito por outros filósofos antes dele, como é o caso de Locke, que o fez dentro do contexto de sua teoria descritivista e internalista do significado como ideia mental, ou mesmo de C.S. Peirce, sem apelo ao externalismo. E a razão de ter sido assim é que a hipótese da divisão do trabalho linguístico é perfeitamente compatível com a perspectiva cognitivista-descritivista neofregeana por mim defendida.[43] É verdade que podemos usar palavras como ‘molibdênio, ‘olmo’ e ‘faia’, sem quase saber o que elas significam, sem a habilidade de reconhecer as suas referências. E também é verdade que nos fiamos nos especialistas (metalúrgicos, botânicos...), a saber, no que chamei de usuários privilegiados dessas palavras na comunidade linguística, como garantia de uma identificação efetiva. Mas o fato é que sempre sabemos alguma coisa mais ou menos genérica sobre os significados dessas palavras, por exemplo, quando conhecemos somente os seus marcadores sintáticos ou semânticos. Por isso precisamos distinguir entre o conhecimento suficiente e o conhecimento insuficiente do significado de um termo, ainda que possa não haver uma separação rigorosa entre as duas coisas. O conhecimento suficiente é o que faz possível a referência identificadora no seu sentido próprio, podendo ser expresso por descrições de regras atributivas constituidoras dos critérios de aplicação, no caso do termo geral. Já o conhecimento insuficiente é o que apenas possibilita uma inserção adequada da palavra em um dado contexto discursivo, como é o caso do conhecimento do gênero ao qual pertence o termo, ou do que Putnam chamou de marcadores sintáticos e semânticos. Com exceção das palavras mais usuais, nosso conhecimento do significado tende a ser insuficiente. Há muitas palavras com relação às quais todos nós temos conhecimento suficiente do que elas querem dizer. Por exemplo: todos sabemos, mesmo que tacitamente, que a palavra ‘cadeira’ significa ‘banco não-veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez’. Mas esse não costuma ser o caso de termos científicos e técnicos. Temos em geral conhecimento insuficiente do significado das palavras ‘molibdênio’ e ‘olmo’ – às quais sou capaz apenas de associar respectivamente as descrições ‘um metal’ e ‘um tipo de árvore’. Putnam nota corretamente que a representação mental que nos fazemos ao pensar em olmos e em faias não difere, pois tudo o que pensamos do olmo é que ele é uma árvore (supostamente) diferente da faia e tudo o que sabemos da faia que ela é uma árvore (supostamente) diferente do olmo, mas que, sendo simétricas, essas representações não se distinguem entre si (a diferença em questão seria do tipo x ≠ y, logo y ≠ x tout court).[44] Mas na verdade as palavras ‘olmo’ e ‘faia’ nos dizem mais. Sabemos que a descrição “uma árvore de nome ‘faia’” só se aplica a faias e não a olmos, sob a suposição bem plausível de que não são sinônimos, suposição esta baseada apenas na diversidade morfológica das palavras e, em português, de gênero. Eis porque não ficaríamos sequer demasiado surpreendidos se fossemos informados de que olmos são a mesma coisa que faias. Afora isso, quando alguém se pergunta pela diferença entre olmos e faias, a informação de que realmente há uma diferença conceitual assimétrica, complexa e desconhecida, vem pressuposta na própria pergunta. Assim, meu conhecimento insuficiente da referência já me permite, por exemplo, saber outras coisas, como que olmos e faias não são coisas feitas de molibdênio e que uma panela de alumínio não pertence à classe dos olmos e mesmo – se alguém me perguntar – que não devem ser nomes diferentes para a mesma espécie de árvore. Com isso já posso entender proferimentos com essas palavras e mesmo empregá-las corretamente no discurso em contextos bem pouco exigentes. Posso fazer isso porque tenho consciência da insuficiência de meu conhecimento e porque usualmente os ouvintes precisam e esperam apenas a informação vaga e incompleta e porque eu me fio na existência do conhecimento suficiente das diferenças de sentido entre essas palavras a ser encontrado nas mentes dos seus usuários privilegiados, como é o caso do botânico ou do metalúrgico.

   O que Putnam falha em considerar aqui (movido pelo seu compromisso externalista) é apenas o fato de que uma sociedade linguística não seria capaz de fazer referência às espécies naturais de coisas se em algum momento não emergisse um elemento cognitivo capaz de permitir aos seus membros aplicarem os critérios de identificação necessários. Assim, embora o que determina a referência não precise ser um adequado estado psicológico do falante, para que a referência seja determinada ela precisará depender de estados psicológicos de membros autorizados do corpo linguístico coletivo; e tais estados psicológicos instanciam sentidos descritivos que por sua vez determinam as extensões.[45] Mesmo que o conteúdo informativo esteja diversamente dividido entre os usuários privilegiados da linguagem, esses conteúdos são de ordem mental e se complementarão permitindo a caracterização. Podemos até imaginar que certos termos tenham grande parte de seu conteúdo (talvez tudo o que nele é relevante) armazenado em computadores, ou que autômatos sejam capazes de aplicá-los para nós e que as regras de atribuição sejam automaticamente geradas por eles, de modo que nenhum ser humano precise conhecê-las. Mas em tais casos já admitimos que essas regras, ao virem inscritas em computadores e autômatos identificadores, são passíveis de serem resgatadas cognitivamente, senão no todo, ao menos em seus princípios formadores. Uma palavra conceitual cuja regra de atribuição tenha sido gerada em seu conteúdo expressivo por um computador, ou que seja aplicável por um autômato identificador, teria sua significatividade e referencialidade sempre dependente, em última análise, de intérpretes humanos, os únicos realmente capazes de lhes doar significado, sendo nesse sentido apenas potencialmente significativas. Ou seja: mesmo em tais casos extremos, a significação e o ato de referir são fenômenos antropomórficos, dependentes de uma forma de vida que em algum momento demandam ou pressupõem cognição.

   Do mesmo modo que fizemos no capítulo sobre nomes próprios, imagine, por exemplo, que a colisão de um grande asteroide com a terra fizesse desaparecerem todos os cientistas e todos os meios de acesso à ciência, restando apenas uma pequena comunidade isolada de pessoas sem qualquer conhecimento científico. Nesse caso, termos da física como ‘quark’, ‘neutrino’, ‘força forte’ e ‘supercorda’ não seriam mais capazes de denotar coisa alguma, mesmo que eles ainda pudessem ser lidos em algum lugar. Afinal, dizer que leigos – sem a possível orientação de especialistas – se referem a algo com essas palavras é pouco mais do que um simples modo de falar. Com efeito, dizer que pessoas sem conhecimento profundo de física sabem o que essas palavras significam (no sentido fregeano de conteúdo informativo) não passa de um imenso exagero. O conhecimento que a maioria de nós tem dos sentidos dessas palavras é por demais genérico e insuficiente quando reduzido a si mesmo.

   O problema é que Putnam hipostasia o uso correto que fazemos das palavras, mesmo sem conhecimento suficiente do significado e da referência, como se através dele já significássemos e referíssemos plenamente, como se isso se devesse a um efeito mágico de cadeias causais externas que se combinam na divisão de trabalho da linguagem. O falante que conhece insuficientemente o significado de uma palavra não a usa referencialmente sozinho; as suas palavras têm na melhor das hipóteses o que já chamamos de uma “referência potencial”, na medida em que ele (sob a condição e ser consciente de sua própria falta de domínio das regras) for ao menos capaz de inseri-las corretamente no discurso. Pois ao fazer isso ele comunica as esperadas vaguidades semânticas que permeiam nossa compreensão cotidiana das palavras sob o suposto de que existem falantes mais competentes, capazes de lhes atribuir os sentidos adequados e torná-las referencialmente eficazes. Tais palavras são usadas como notas promissórias de seus significados e referências; elas como que os “tomam de empréstimo”, repetindo aqui a terminologia de P. F. Strawson. Nós apenas confiamos na existência de usuários com conhecimento suficiente dos seus sentidos para serem capazes de resgatá-los.

   O significado só existe enquanto se encontra na mente das pessoas, pois mesmo que a regra ou a combinação de regras que o constitui esteja, digamos, inscrita nos caracteres de um livro, ou guardada na memória de computadores, mesmo que ela seja aplicada por um autômato, ela não é enquanto tal significativa no sentido próprio da palavra. Ela só se torna verdadeiramente uma regra semântica enquanto interpretada por um agente humano. Uma expressão de regra só será apta a alcançar consenso se emergir de uma forma de vida construída sobre aquilo que há de homogêneo na natureza humana.

   A conclusão de toda essa discussão é que em momento algum o significado existe fora das cabeças, mesmo que ele possa vir muito diversamente distribuído nas cabeças dos membros da comunidade linguística. Divida-se o bolo como se quiser, o significado não está nem na natureza externa, nem no corpo linguístico coletivo externamente observável; nem para a sua existência é demandada a existência de uma entidade abstrata que se instancie em atos de doação de significado[46]; o significado há de estar sempre, como disposição ou atualidade, em mentes particulares, sejam elas a do falante ou a do intérprete, a do leigo ou a do especialista, mesmo que desigualmente dividido entre os componentes formadores da comunidade linguística e mesmo que apto a ser conservado na memória artificial de documentos ou computadores, na medida em que formos capazes de interpretá-lo.[47]

 

Tyler Burge e o externalismo do pensamento

Há uma experiência em pensamento complementar à de Putnam, que foi imaginada por Tyler Burge com respeito ao conceito de artrite. O que Burge pretendeu foi, para além de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser entendido de maneira extensional, mas que as crenças, ou seja, os próprios conteúdos de pensamento, estão fora da cabeça. Quero resumir o argumento de Burge e em seguida mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível para o que acontece.[48]

   Embora Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação contrafactual, podemos, seguindo John Searle, torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome Oscar sinta dor na coxa e procure um médico dizendo:

 

   Acho que tenho artrite na coxa.

 

Como artrite é entendida como uma inflamação dolorosa e deformante das juntas, o médico lhe explica que a sua crença é falsa, que ele não pode ter artrite na coxa.

   Imagine agora que Oscar viaje para uma região do país na qual seja costume usar a palavra ‘artrite’ de um modo muito mais amplo, para se referir a toda e qualquer inflamação. Chamemos a comunidade linguística dessa última região de B e chamemos a comunidade linguística da primeira região de A. Suponha que, uma vez tendo chegado à região da comunidade linguística B, o desmemoriado Oscar procure um médico com a mesma queixa “Acho que tenho artrite na coxa”. Nesse lugar, como seria de se esperar, o médico irá confirmar a suspeita, concordando com a verdade de sua crença.

   Com base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida, os estados psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na primeira e na segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu comportamento. Mas as crenças, os pensamentos expressos nos proferimentos, precisam ser diferentes, posto que o pensamento expresso pelo primeiro proferimento é falso, enquanto o pensamento expresso pelo segundo proferimento é verdadeiro, e um mesmo pensamento não pode ser falso e verdadeiro. Podemos até marcar o significado diverso da palavra ‘artrite’ no segundo proferimento com uma nova palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A surpreendente conclusão do argumento é que o conteúdo de pensamento não pode ser algo meramente psicológico. Esse conteúdo deve pertencer também ao mundo externo, às relações sociais da comunidade que envolve o falante...

   Contra essa conclusão é possível encontrar uma explicação internalista e descritivista para o que acontece. Para o internalismo a palavra ‘artrite’ deve exprimir um complexo de regras-descrições constitutivas de seu significado. Uma delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’, faz parte do sentido da palavra para a comunidade linguística da região B, mas não para a comunidade linguística da região A. Assim, embora o conteúdo de pensamento expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar nas regiões A e B possa ser considerado exatamente o mesmo, há uma diferença que foi bem lembrada por Searle em uma objeção que vai ao cerne da questão:

 

É uma pressuposição do pano-de-fundo (background) por traz do nosso uso social das palavras que nós compartilhamos significados comuns com outras pessoas em nossa comunidade.[49]

 

Ou seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na coxa”, ele está pressupondo que a regra de atribuição do predicado ‘artrite na coxa’ pertence à língua que ele está usando, ou seja, que os outros falantes competentes da língua a consideram convencionalmente aplicável. O que ele tem em mente ao proferir sua frase diante do primeiro médico poderia ser mais completamente apresentado como:

 

(a)    Tenho artrite na coxa... e assumo que a regra de atribuição do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade linguística A, à qual pertence meu interlocutor.

 

Essa é uma frase falsa porque a assunção complementar ao que é dito é falsa. Vejamos agora como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente quando diz ao segundo médico que acha que está com artrite na coxa:

 

(b)    Tenho artrite na coxa... e assumo que a regra de atribuição do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade linguística B, a qual pertence meu interlocutor.

 

   A frase (b) é verdadeira porque a assunção complementar ao que é dito é verdadeira. E a diferença de sentido entre os significados das sentenças (a) e (b) é evidente, pois enquanto (a) está indexicalmente associada à comunidade linguística A, que a torna falsa, (b) está indexicalmente associada à comunidade linguística B, que a torna verdadeira.

    Pode ser verdade que se nos restringirmos ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a mesma frase nas regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles efetivamente tem em mente com os proferimentos – o conteúdo completo de seus pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional que envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade pode variar com a comunidade linguística envolvida e é diferente para cada proferimento. Trata-se, como Searle notou, de uma assunção discursiva indispensável: a de que as regras verificacionais constitutivas do pensamento devam se encontrar em conformidade com as convenções da comunidade linguística na qual ele é expresso. Essa assunção é transgredida por Oscar quando ele fala com o médico da comunidade A, mas ela não é transgredida quando ele fala com o médico da comunidade B. É isso o que explica porque o pensamento de Oscar em A é falso, enquanto o pensamento de Oscar em B é verdadeiro. O pressuposto de que o pensamento expresso deve estar em conformidade com as regras da linguagem em que o proferimento ocorre não é, porém, externo ao falante. Ele é um elemento psicológico de ordem disposicional, que completa o conteúdo de pensamento e que pode ser explicitado por Oscar sempre que isso for requerido.

   Apesar de tudo Burge chamou-nos atenção para uma coisa importante: que a verdade ou a falsidade do pensamento completo pode depender da comunidade linguística que envolve a pessoa que o profere. Contudo, diversamente do que ele pensou, essa dependência não é externa no sentido de o pensamento não ser psicológico, encontrando-se como que disperso nos interstícios do meio social. A dependência social pode residir exclusivamente em uma comunidade linguística ser capaz de satisfazer ou não uma condição de verdade interna ao pensamento no sentido amplo e, como no caso considerado, a condição de que a regra de atribuição do termo ‘artrite’ usada pelo falante seja uma regra fundamentada nas convenções linguísticas mentalmente compartilhadas entre os membros da comunidade linguística no interior da qual ele se comunica.

   Finalmente, a explicação dada nos permite parafrasear em termos internalistas a distinção que tem sido feita entre conteúdo estreito (narrow content) e conteúdo amplo (wide content). Para o externalista, o conteúdo estreito é aquele que está na mente do falante, enquanto o conteúdo amplo é aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade. A análise internalista do exemplo de Burge nos permite sugerir que o conteúdo estreito de pensamento seja a própria ocorrência cognitivo-linguística do pensamento (expressa pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”). Já o conteúdo amplo do pensamento é aquele que inclui o que está sendo assumido pelo que é conscientemente pensado, estando contido na mente do falante ao menos como uma disposição indispensável, dado que uma vez posta em consideração ela será indiscutivelmente acordada por todos os membros de sua comunidade linguística.

 

 

 



[1] Ver, por exemplo, Lewis 1979 e Smith 2005.

[2] È curioso notar que nesse exemplo a necessidade da identidade de extensão não implica em uma identidade de sentido ou intensão, diversamente do que seria desejável para um filósofo como Rudolf Carnap (1947).

[3] Podemos dizer que (1a) e (2a) são autoverificadoras, enquanto (1b) exige procedimentos verificadores externos e (2b) exige ao menos a imediata atualização da imagem de um triângulo equilátero para a sua verificação.

[4] Ver Hempel 1967, cap. 7.

[5]  Não há, aliás, uma definição única de espécie, reinando confusão entre zoólogos e principalmente entre botânicos (Dupré 1993). Imagine um animal idêntico ao tigre que tivesse vindo de uma outra galáxia, mas que fosse intercruzável com os nossos tigres e tivesse o mesmo layout genético. Ele não caberia na definição acima por não ter origem asiática. Deveríamos então alterá-la? Embora seja possível que em circunstâncias específicas a resposta seja afirmativa, irei manter a definição convencional a título de exemplo.

[6] Essa teoria também possui uma variedade de versões. As versões standard são, porém, as de Kripke (1980, cap. III) e de Putnam (1975). Uma versão posterior, que apela para a fundamentação múltipla e reconhece a necessidade do apelo a descrições tipificadoras foi proposta por Kim Sterelny (1983).

[7] Ver Keith Donnellan 1983. A espécie de coisa, por sua vez, não precisa ser entendida como uma entidade abstrata, mas como um ou outro indivíduo concreto qualquer que exemplifique a aplicação de uma mesma regra na identificação de propriedades constitutivas.

[8] Schwartz 2006. Compare essa sua exposição com a esperançosa introdução de Naming, Necessity and Natural Kinds, livro editado pelo mesmo autor trinta anos antes.

[9] Ver Schwartz 1978.

[10] Cf. Costa 2018, pp. 62-65.

[11] Devitt & Sterelny 1999, p. 92.

 

 

[12] Putnam 1975. O artigo é uma elaboração de “Meaning and Reference”, publicado dois anos antes. Outro famoso argumento de Putnam que favorece o externalismo é o do cérebro na cuba (ver 1981, cap. 1). Esse último argumento objetiva demonstrar a impossibilidade da hipótese cética de que talvez sejamos cérebros imersos em cubas, com nossos feixes neuronais aferentes e eferentes ligados a um supercomputador capaz de produzir em nós uma permanente alucinação de interação com o mundo externo. Segundo Putnam, cérebros em cubas não podem pensar que são cérebros em cubas; mas como podemos pensar que somos cérebros em cubas, não podemos ser cérebros em cubas. Ele sustenta esse argumento através da ideia de que cérebros em cubas não podem ter pensamentos sobre coisas reais como água, cuba, cérebro, simplesmente porque não podem ter qualquer contato causal com essas coisas reais ou com os seus componentes.

   Devo notar, porém, que o argumento de Putnam é controverso. A ideia subjacente ao argumento é a de que cérebros na cuba não podem ter pensamentos sobre coisas reais como árvore, água, cuba, cérebro... porque eles não têm nenhum contato causal com essas coisas ou com os seus componentes. Contra essa ideia pode ser observado que podemos imaginar que os programas dos computadores que interagem com o cérebro na cuba foram feitos por quem tenha tido contato com árvores, água, cuba, cérebro, ou o que for que os constitua, refletindo assim, mesmo que muito indiretamente, de forma causal, essa experiência. Essa possibilidade pode ser contornada imaginando, como ele faz, um cérebro na cuba que tenha sido gerado por mera coincidência cósmica, sem a existência sequer de programadores que pudessem ter tido contato causal com água, cuba, cérebro ou seja lá o que for, de modo a passarem informação para o programa. Putnam tem em mente um caso no qual as referências do cérebro na cuba seriam tão ilusórias quanto a palavra ‘Churchill’ casualmente escrita por uma formiga ao andar de forma errante na areia... Conclusão: como nós temos pensamentos sobre árvores, água, cérebros, cubas... nós não podemos ser sequer cérebros em cubas resultantes de um acaso cósmico!

   Uma objeção genérica que já foi feita ao argumento é que nele Putnam ignora a flexibilidade da linguagem. Posso enfatizá-la aqui considerando a questão: por que em um cérebro na cuba, mesmo naquele gerado por mero acaso cósmico, as representações de árvores, água, cérebros não podem ser de fato causadas por estímulos que sejam, digamos, meras imagens eletrônicas de árvores, água, cérebros, acessadas pelo cérebro na cuba em meio a uma práxis linguística intersubjetiva, também ela meramente ficcional, também ela constituída de meras imagens eletrônicas de pessoas, de vozes, de gestos, etc.? Por que não seria aqui possível uma geração causal de representações a partir dessas imagens, a qual seja apenas coincidentalmente igual à geração de representações causadas a partir das próprias coisas realmente pertencentes ao mundo real? Por que o mero acaso cósmico não poderia produzir tais imagens? Por que essa escolha seletiva de improbabilidades? Sob tal perspectiva não me parece haver nada de muito convincente no argumento. Creio que Putnam responderia que essa objeção ignora o seu externalismo semântico. Mas, como esse último será rigorosamente devastado no curso desse Capítulo, sinto-me no direito de mantê-la.

[13]  p. 3.

[14] Vários filósofos notaram que não parece nomologicamente possível que um líquido com as mesmas propriedades da água tenha uma fórmula química muito diversa. Mas não é necessário à fantasia de Putnam que todas as propriedades superficiais de H2O e XYZ sejam idênticas. Mais do que isso, podemos substituir a palavra ‘água’ pelo nome de pedras preciosas como topázio e citrino, que são aparentemente iguais, mas que de fato possuem fórmula química muito diversa. Cf. Segal 2000, pp. 25-26.

[15] Putnam 1975, p. 223.

[16] Putnam chega a divisar a dificuldade quando, em um longo parêntese, tenta explicar porque a palavra ‘mean’ não pode ser substituída por ‘the meaning of’ nas frases citadas.

[17] Digo não-veicular porque assentos de carros, ônibus, aviões, não são chamados de cadeiras. Ver justificação mais detalhada em Costa 2018, pp. 62-65.

[18] Hilary Putnam 1975, in H. Putnam 1971, p. 224.

[19] Ver introdução de Putnam em Pessin & Goldberg 1996, p. xviii. Ver também Burge 1979 e McDowell 1992.

[20] Ver, por exemplo, Stroll 2.000, p. 241

[21] Qualifico como um mesmo tipo de estado para contornar a razoável objeção da existência de uma múltipla realizabilidade do mesmo estado psicológico em estados cerebrais diversos. Uma vez pertencentes a um mesmo tipo, eles devem se tornar de algum modo equivalentes.

[22] 1996, p. 71.

[23] John Searle rejeitou essa conclusão sugerindo que mesmo sendo os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 idênticos, eles determinam diferentes condições de satisfação e diferentes conteúdos intencionais, os quais são internos e intrínsecos aos estados psicológicos. Mas como é implausível a ideia de que um mesmo estado psicológico possa ter conteúdos diferentes, essa resposta acaba adicionando mais lenha à fogueira do externalismo. Cf. Searle 1983, pp. 206-7. Ver a resposta de Putnam na introdução de Pessin & Goldberg (eds.) 1996. 

[24]  Putnam 1975, p. 270.

[25]  Putnam 1989, p. 320.

[26]  Ball, cap. 5.

[27] Stroll 1.996, pp. 56-57. Não obstante, por razões sistemáticas Stroll preferiu não considerar a última um aspecto do significado.

[28]  Ver, por exemplo, Robert Brandom 2000, cap. 1. Ver também Block, 1981.

[29]  Muitos, creio que o próprio Locke, a classificariam como uma essência real, no sentido de ser a essência subjacente última descoberta pela ciência. Talvez! Mas quando falo de uma essência real suposta entendo uma essência que demandaria um critério absoluto que não parecemos ser capazes de possuir, devido ao falibilismo aparentemente incontornável de nosso conhecimento empírico.

[30]  Também aqui e em outros casos de termos gerais podemos formular a regra de atribuição de modo a satisfazer a condição Cc demandada pelo que chamamos de referência causal. Basta para tal demandarmos que a propriedade-t de x esteja atualmente ou potencialmente na origem causal de nossa consciência de que as condições (i) e (ii) estejam sendo satisfeitas.

[31] Essa é também a razão pela qual a questão de saber se os termos gerais são designadores rígidos é hoje em dia geralmente considerada um problema irresolvido pela maioria dos defensores do externalismo causal.

[32]  Stroll 2000, pp. 233-234.

[33] Para considerações semelhantes, ver Zemach 1996, p. 66.

[34]  Kripke 1980, pp. 128-9.

[35] Ayer 1982, p. 270. Ver Dupré 2000, p. 318. Ver também Eddy Zemach 1986, pp. 61-62 e Mellor 1977, p. 72.

[36] Façamos de conta que XYZ seja um hidratante com efeitos idênticos aos de H2O, de modo que se possa dizer que a composição do corpo de um habitante da Terra-Gêmea seja 90% de água-g, etc.

[37] Algo semelhante realmente ocorreu na China com a palavra ‘jade’. O jade antigo (nefrite) acabou sendo em sua maior parte substituído por uma pedra aparentemente idêntica, mas com estrutura química muito diferente (jadeíte). Ainda assim, o mesmo nome permaneceu sendo aplicado também à segunda pedra. Ver LaPorte 2004, p. 96.

[38] Em geral me refiro a externalismos semânticos em um sentido inevitavelmente forte e próprio da expressão. Se enfraquecermos o externalismo dizendo que para termos significado precisamos de “alguma determinação externa”, trata-se de algo que qualquer internalista de bom senso deve aceitar. Afinal, é óbvio que se nossos termos são sobre o mundo externo, então algum input qualquer do mundo externo deve estar sendo subsumido. Mais recentemente a estratégia externalista tem sido a de elevar a vaguidade do termo de modo a deixar em aberto esses limites (e.g., Kallestrup 2012).

[39] Não há contradição em se considerar o conteúdo semântico como algo psicológico se ele for classificável em termos de tropos, ou seja, como entidades cuja universalidade seria passível de ser entendida em termos de classes de propriedades qualitativamente idênticas.

[40] Suponho mundos logicamente e não quimicamente possíveis.

[41] See Stalnaker 1976.

[42] Putnam 1975, p. 14.

[43] Dummett 1981b, pp. 138-9. Mellor 1977, p. 73.

[44]  Putnam 1989, p. 29, em resposta a Searle.

[45] De resto, como notou Searle, “a tese de que o sentido determina a referência dificilmente pode ser refutada pela consideração de casos de falantes que sequer conhecem o significado ou que o conhecem só imperfeitamente” (1983, p. 201).

[46] Husserl 1900, vol. II.

[47] Note-se que para tal não é preciso recair em contingências psicologistas, como tanto se temeu no passado. Tudo o que precisamos é de regras semânticas que só existem enquanto são ou disposicionalmente podem ser instanciadas (efetivamente ou só na imaginação) e de nossa capacidade de considerar alguma dessas instanciações como um modelo qualitativamente idêntico a outras instanciações reconhecíveis em nós mesmos ou em outras pessoas. Podemos em princípio recorrer à teoria dos tropos para dar uma fundamentação ontológica adequada à natureza do significado sem precisarmos considerar regras de significação nem como contingentemente psicológicas nem como entidades abstratas (Cf. Costa 2018, pp. 154-177).

[48] Burge 1979.

[49] Searle 2004, p. 184.