DRAFT
E
COMO
EXPRESSÕES REFERENCIAIS REFEREM?
Uma
introdução crítica à filosofia da linguagem
------------
Problemen kann man
nicht mit derselben Denkweise lösen, durch die sie entstanden sind.
[Problemas não podem ser resolvidos pelo mesmo modo de pensar que os
produziu.]
Albert Einstein
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PARTE I: TERMOS SINGULARES
1. CLASSIFICANDO OS TERMOS
SINGULARES
2. TERMOS INDEXICAIS
3. DESCRIÇÕES DEFINIDAS
4. NOMES PRÓPRIOS (I): DESCRITIVISMO
5. NOMES PRÓPRIOS (II): CAUSALISMO
6. NOMES PRÓPRIOS (III):
METADESCRITIVISMO
PARTE II: TERMOS GERAIS
7. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
8. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
9. IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PRÓLOGO
Meu
primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu há mais
de trinta anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre a
concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein. Como seria de se
esperar de um neófito recém-convertido, a melhor resposta parecia-me ser a teoria
do feixe de descrições definidas, tal como fora comentada pelo próprio
Wittgenstein na seção 79 de suas Investigações
Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção
causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Kripke me deixaram
escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais externas soava-me como
uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade com a
teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma ordem ao
apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe e que isso só poderia
ser feito pelo recurso a alguma regra de ordem superior, capaz de estabelecer o
papel e o valor das descrições a ele pertencentes. Mas logo me esqueci do
assunto.
Só voltei a me interessar pela questão dos
nomes próprios em 2006, por razões meramente acidentais. Lembrei-me então de
meu antigo projeto. Escrevi um breve esboço no qual enfatizava o fato de que as
descrições definidas pertencentes ao feixe deveriam ser interpretadas como
expressões de regras de conexão do nome próprio com o seu objeto de referência.
Mais do que isso, me pareceu que em seu aparato cognitivo qualquer falante
competente deveria possuir de forma implícita uma regra de ordem superior, uma regra
meta-descritiva para nomes próprios, capaz de conferir papel e valor aos
diversos tipos de regra-descrição constitutivos de cada feixe de descrições
associado a um nome próprio. Tal regra meta-descritiva se aplicaria sobretudo a
regras-descrições espaciotemporalmente localizadoras e caracterizadoras da
razão pela qual o portador de um nome próprio é por nós referido.
Apresentei
meu esboço em várias ocasiões, sempre surpreso com a forte reação adversa da
maioria dos ouvintes. Contudo, como ninguém me apontava um erro sério e como um
pouco de reflexão me mostrava que as objeções poderiam ser facilmente respondidas,
prossegui. A teoria metadescritivista dos nomes próprios daí resultante
encontra-se exposta no capítulo 6 do presente livro, sendo o que ele tem de
mais interessante a oferecer. Embora essa teoria não deixe de incorporar intuições
provenientes da concepção causal-histórica, ela as condiciona a ideias de fundo
claramente descritivista, o que faz com que se deixe melhor classificar como
uma elaboração muito mais satisfatória da velha teoria do feixe de descrições.
A teoria metadescritivista dos nomes
próprios tem a sua maior complexidade justificada por sua coerência interna,
além da posse de um poder explicativo claramente superior ao das teorias
anteriores. Entre os bons atributos que a recomendam encontram-se: (i) ser
capaz de explicar adequadamente como e porque o conteúdo cognitivo (sentido) do
nome próprio pode contribuir para a identificação de seu portador (objeto ou referência);
(ii) ser capaz de gerar a ideia de que nomes próprios são designadores rígidos
do próprio interior do descritivismo; (iii) ser capaz de explicar, sob uma
perspectiva descritivista, como e porque se dá o contraste entre a rigidez dos
nomes próprios e a acidentalidade das descrições definidas e, finalmente, (iv)
ser capaz de responder de forma muito mais convincente aos mais importantes exemplos
já levantados contra a teoria do feixe.
A resposta à questão da natureza do nome
próprio é uma pedra angular da filosofia da linguagem. Se ela for alterada,
tudo se altera. A teoria causal-histórica dos nomes próprios, advogada por Saul
Kripke, Keith Donnellan e outros, produziu uma verdadeira revolução na maneira
como entendemos outras expressões referenciais fundamentais, que são as descrições
definidas, os indexicais, os termos gerais e mesmo as sentenças, inaugurando
uma nova ortodoxia causalista e externalista em filosofia da linguagem. Se proponho
uma teoria neodescritivista (metadescritivista) dos nomes próprios que se
revele verdadeiramente convincente, o que estou sugerindo trás em seu cerne uma
contra-revolução de fundo descritivista-cognitivista, que promete responder de
modo mais satisfatório aos problemas que a nova ortodoxia tem gerado desde a
década de 1970. Essa é, creio eu, a explicação última da reação de rejeição de
parte de meus ouvintes diante da proposta de uma teoria metadescritivista dos
nomes próprios: ela demanda uma inversão na perspectiva hoje mais comum.
Isso
também explica as direções que minha pesquisa precisou tomar em seguida. Uma
vez que me encontrava investigando a função dos nomes próprios, meu interesse teve
de se alargar para a história das teorias descritivistas e também para a
necessidade de alcançar um entendimento crítico da concepção causal-histórica
que fizesse justiça ao trabalho exponencial de Kripke.
A investigação do funcionamento dos nomes
próprios inevitavelmente me levou a considerar outras expressões referenciais,
como descrições definidas, termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a
mesma disputa entre a nova ortodoxia do referencialismo causal-externalista e a
velha ortodoxia do cognitivismo descritivista-internalista é mantida. Minha
pergunta foi irreprimível. Se havia obtido tão bons resultados defendendo uma
espécie de cognitivismo metadescritivista essencialmente internalista para o
caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira de ver não seria capaz de
produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada a outras
expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição era boa, de
modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era duplo. De um
lado, queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas-externalistas
aplicadas a outros termos referenciais; de outro, considerando as objeções, queria
desenvolver melhores explicações em essência cognitivistas-internalistas para os
modos como descrições definidas, indexicais e termos gerais referem, mesmo que
ainda insuficientes.
Alguns resultados me parecem mencionáveis.
Entre eles está a compatibilização do descritivismo de “Russell” com o de
“Frege”; uma defesa neofregeana da irrelevância das incongruências não-convencionais
em um resgate descritivista do conteúdo semântico fregeano dos indexicais, por
oposição à tese de John Perry da essencialidade do indexical; a tese da plasticidade
do pensamento; uma crítica linguística detalhada à teoria externalista do
significado de Putnam e, em complemento a isso, a proposta de regras
meta-descritivas parcialmente análogas às dos termos singulares na constituição
de ao menos certas regras de atribuição de termos gerais.
Trata-se, como creio, de algo que nos
aproxima um pouco mais de um conhecimento apto a obter consenso; mais aproximado,
portanto, daquilo que em um linguajar genérico chamamos de ciência. Ainda
assim, boa parte do que aqui se encontra escrito não vai muito além de esboços
rudimentares, que lanço na espectativa de que possam ser melhor desenvolvidos
por outros. Assim deve poder ser, dado que filosofia é work in progress por definição.
Ao trabalhar com essas questões percebi, em
retrospecto, que aquilo que estava tentando fazer poderia ser entendido como a
retomada de um programa especulativamente desenvolvido por Ernst Tugendhat na
década de 1970 em seu clássico livro Vorlesungen
zur einführung in die sprachanalytische Philosophie (Lições introdutórias à
filosofia analítica da linguagem)
– um programa que pode ser considerado o canto de cisne da velha ortodoxia em
filosofia da linguagem. Essa velha ortodoxia teve seus inícios com Frege e
Wittgenstein, tendo sido fortemente influente até a década de 1980, pelo menos.
Contudo, ela acabou perdendo sua força, à sombra do domínio sempre crescente das
concepções externalistas e não-descritivistas do acesso à referência – a nova
ortodoxia comandada por filósofos como Saul Kripke, Hilary Putnam e David
Kaplan.
Retomando
de forma mais clara uma ideia já defendida na interpretação que Michael Dummett
fez de Frege, Tugendhat sugeriu em seu livro que se entendesse o programa da
velha ortodoxia como sendo, para o caso fundamental da frase predicativa
singular, o de analisar o sentido cognitivo (Sinn) do termo singular como sendo a sua regra de identificação (Identifikationsregel),
o sentido cognitivo do termo geral como sendo a sua regra de aplicação (Verwendungsregel),
que prefiro chamar de regra de atribuição, e o sentido cognitivo ou epistêmico
(epistemisches Gehalt) da frase predicativa singular completa como sendo a sua regra de verificação (Verifikationsregel). Essa última regra
seria a resultante da aplicação combinada das duas primeiras (da regra de
identificação seguida da aplicação da regra de atribuição), o que foi concebido
por Tugendhat como uma maneira analiticamente aprofundada de se falar da
verificação em termos de significado e, ultimadamente, da verdade no sentido
tradicional de correspondência. Ora, meu objetivo deixa-se também explicar como
sendo o de justificar e analisar em algum detalhe cada uma dessas regras em sua
natureza, estrutura, subdivisões e relações, além de tentar esclarecer seu
status ontológico, assim como atributos a elas relacionados, como os de
existência e verdade.
Essas são as estações do presente texto, que
foi escrito na intenção de ser entendido por leitores que, apesar de versados
em filosofia, não precisassem possuir conhecimento especializado de filosofia
da linguagem.
Em adição, devo observar que o trabalho com
esse livro foi interrompido em 2011 para que fosse possível escrever dois
livros em inglês: Lines of Thought:
Rethinking philosophical assumptions (2014) e Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy (2018).
Os conteúdos dos três livros são parcialmente inclusivos e complementares. Estou
convencido de que juntos eles oferecem uma chave sistemática mais plausível
para a solução de alguns problemas fundamentais da filosofia
linguístico-analítica contemporânea, baseada em uma variedade de pressupostos
teóricos razoavelmente escolhidos (daí o grande número de referências cruzadas
no presente texto).
Um único exemplo para ilustrar a
complementariedade em questão: foi só no livro Philosophical Semantics que tratei do enunciado completo, que não
deixa de ser um caso especial de expressão referencial. O significado cognitivo
do enunciado foi lá analisado em termos de regras verificacionais, o que foi
feito juntamente com uma crítica a entendimentos formalistas seriamente equivocados
que filósofos do Positivismo Lógico e sua descendência (que vem pelo menos de W.
V. Quine a Saul Kripke, passando por Donald Davidson) tiveram do
verificacionismo semântico originariamente proposto por Wittgenstein. Esses
entendimentos equivocados geraram críticas igualmente equivocadas e, no final
das contas, uma rejeição enganosa, posto que bloqueadora dos caminhos da
investigação concernentes ao modo mais natural e potencialmente frutífero – creio
que na verdade o único – de se analisar significados cognitivos de sentenças
assertivas sem ter de reaplicar o próprio conceito de significado. Finalmente, também
no livro Philosophical Semantics foi esboçada uma versão genuinamente abrangente
da teoria correspondencial da verdade que se demonstrava compatível com o
verificacionismo semântico. Tugendhat, acreditando nessa mesma compatibilidade,
demonstrou-se mais uma vez presciente.
Por fim, devo fazer uma advertência. Esse
livro é como a proposta de solução de um quebra-cabeças no qual as muitas peças
precisam se encaixar perfeitamente umas às outras. Não se pode solucionar um
quebra-cabeças considerando encaixes isolados. Por ser assim, cada capítulo,
especialmente os mais importantes (capítulos 6 e 8), só adquire credibilidade quando
visto como constituindo um argumento complexo, que precisa ser seguido com
atenção, podendo essa consideração ser estendida mesmo para o livro como um
todo. Este é o ponto forte, a chave e a beleza da concepção nele contida. É
desejável, pois, que o leitor suspenda o juízo até ter compreendido como os sub-argumentos
se combinam entre si de modo a constituirem um todo complexo cuja
plausibilidade se deve ao poder explicativo originado de sua coerência interna.
Natal,
2020
AGRADECIMENTOS
Quero
agradecer aos editores da revista Dissertatio pela permissão para
republicar conteúdo inicialmente publicado sob forma de artigos naquela
revista. Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de pós-doutorado na
Universidade de Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no
período de 2008 a 2010 e onde pude desenvolver as primeiras versões do presente
texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial gostaria de
agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo uma versão inicial
de minhas ideias sobre como nomes próprios referem. Também gostaria de
agradecer ao professor João Branquinho pelas discussões sobre nomes próprios nos
colóquios da Universidade de Lisboa, além da professora Anna-Sofia Maurin e a
seus bem preparados alunos da Universidade de Göteborg. Outras pessoas a quem sou
grato são o professor Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar
início a essa pesquisa, assim como aos professores Richard Swinburne, Peter
Stemmer, Marco Antônio Caron Ruffino, Guido Imaguire, Daniel Durante, Ethel
Rocha, Cinara Nahra, André Leclerc e Nelson Gomes, por objeções e estímulos. Sou
também grato a François Recanati pela gentileza de me ter aceito para um
pós-doutorado na École Normale Supérieure
em 2016, quando tive a oportunidade de ter um contato mais próximo com seu
excelente trabalho em filosofia da linguagem. Finalmente, resta manifestar meus
agradecimentos aos professores Raul Landim e Guido Antônio de Almeida, através
dos quais há muitos anos descobri a importância das Vorlesungen de Ernst
Tugendhat.
SUMÁRIO
PRÓLOGO
PARTE I: TERMOS SINGULARES
10. CLASSIFICANDO OS TERMOS
SINGULARES
11. TERMOS INDEXICAIS
12. DESCRIÇÕES DEFINIDAS
13. NOMES PRÓPRIOS (I): DESCRITIVISMO
14. NOMES PRÓPRIOS (II): HIPÓTESE
CAUSAL-HISTÓRICA
15. NOMES PRÓPRIOS (III): METADESCRITIVISMO
PARTE II: TERMOS GERAIS
16. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
17. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
18. IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PARTE I: TERMOS SINGULARES
1
CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
Quero
começar mapeando brevemente o território a ser explorado ao expor a
classificação tradicional dos termos singulares.
Tipos
de termos singulares
Um
termo singular é aquele que é usado para identificar um único objeto
(um particular, um indivíduo), ao distingui-lo de uma multiplicidade de
outros objetos.
Nas línguas européias, o termo singular costuma ser claramente divisível em indexical, descrição definida e nome próprio.
Comecemos
com os assim chamados termos indexicais. Eles
podem ser definidos como sendo aqueles termos singulares cuja referência
costuma variar com o contexto do proferimento, dizendo respeito ao que se
encontra espaciotemporalmente aproximado do falante. Esse é o caso dos pronomes
demonstrativos, como ‘esse’ e ‘aquele’, e pronomes pessoais, como ‘eu’ e ‘ela’.
Podemos distinguir entre indexicais demonstrativos e puros. Os
primeiros são basicamente pronomes demonstrativos e possessivos como ‘esse’,
‘essa’, ‘isso’, ‘aquilo’, ‘ele’, ‘ela’, ‘meu’ ‘seu’, ‘sua’. Eles
precisam vir acompanhados de algo mais para poderem selecionar seus objetos de
referência. Esse algo mais pode ser um gesto de ostensão, quando não algum pressuposto
contextual ou algum elemento descritivo desambiguador capaz de esclarecer o que
o falante intenciona referir, como se dá nas expressões ‘essa bola’ ou ‘aquele
livro de capa azul na estante’. Já os indexicais puros são aqueles cuja
referência é automática, não dependendo nem de ações nem de intenções. Eles se exemplificam
basicamente pelo pronome pessoal ‘eu’ e por advérbios como ‘aqui’, ‘agora’,
‘hoje’, ‘amanhã’...
Há
muitas outras expressões cujo conteúdo, em maior ou menor medida, depende do
contexto. Como John Searle notou, é até mesmo razoável pensar que todos
os nossos enunciados empíricos possuem algum traço de indexicalidade. Considere,
por exemplo, o enunciado singular “Galileu foi o primeiro a expor claramente a
lei da inércia” e o enunciado universal “Todos os corpos materiais tem força
gravitacional”. Parece claro que com o enunciado sobre a descoberta da lei da
inércia estamos nos referindo indexicalmente a um acontecimento no planeta Terra
no século XVII. Se em algum outro planeta habitado de outra galáxia alguém
descobriu a lei da inércia há milhões de anos, isso não afetará a verdade desse
enunciado, uma vez que ele foi indexado à história do desenvolvimento
científico em nosso planeta. Quanto ao enunciado sobre a universalidade da “força”
gravitacional, ele é considerado verdadeiro em relação ao nosso universo. Se existir
um universo paralelo com corpos materiais incapazes de produzir um campo
gravitacional, o enunciado não deixará por isso de ser verdadeiro, posto que a
universalidade em questão é indexada ao nosso universo.
Não obstante, mesmo que a maioria de nossos
enunciados considerados não-indexicais contenha um elemento indexical oculto em
seu pano de fundo contextual, isso não destrói nossa caracterização, pois ao falarmos
de termos indexicais no sentido próprio estamos fazendo um uso muito mais restritivo
da ideia em questão. Nós queremos nos limitar às expressões que, embora
variando a sua referência com a variação do contexto de proferimento, fazem
isso com a função prescípua de designar referentes em sua relação espaciotemporal
interna ao contexto do proferimento (exs.: ‘isso’, ‘aquilo’, ‘eu’, ‘tu’,
‘agora’) ou ao menos próxima a (exs: ‘acolá’, ‘amanhã’, ‘depois-de-amanhã’,
‘ontem’, ‘antes-de-ontem’, ‘na semana passada’...).
Quando
a relação espaciotemporal se encontra muito distante desse “aqui e agora” do
proferimento do falante, deixa de ser intuitivo considerar o proferimento como
indexical. Considere os proferimentos: “A Próxima do Centauro está a 4,243 anos
luz de distância” e “Os estromatólitos viveram há 3,45 bilhões de anos atrás”. Expressões
como ‘a 4,243 anos luz de distância’ e ‘há 3,45 bilhões de anos atrás” não são,
pela caracterização acima, indexicais como ‘lá’ e ‘ontem’, posto que seus
referentes estão respectivamente no espaço e no tempo demasiado distantes do
contexto do proferimento (limites são aqui inevitavelmente vagos).
Passemos
agora às descrições definidas. Elas são complexos nominais geralmente iniciados
com um artigo definido no singular. Exemplos são ‘a dama das camélias’, ‘o
marechal de ferro’, ‘a cidade luz’. O que caracteriza as descrições definidas com
mais propriedade é quando elas são capazes de representar ou conotar, através
de seu sentido, propriedades distintivas do objeto ao qual se referem. Assim, a
descrição ‘o pai de Aristóteles’ é referencial por representar uma propriedade distintiva
de uma pessoa de ser o pai de Aristóteles. Algo assim se aplica a outras
descrições definidas listadas acima, capazes de conotar respectivamente as
propriedades distintivas de gostar de camélias, de ser de uma dureza impiedosa,
de ser uma cidade extraordinariamente bela. Por outro lado, uma expressão como
‘O Sacro Império Romano’ (o qual, como notou Voltaire, não era nem sacro nem
império nem romano) não é uma descrição definida, mas um nome próprio (recebendo
por isso iniciais maiúsculas), posto que não conota propriedades do objeto
referido.
As
descrições definidas fazem contraste com as descrições
indefinidas, que começam com artigo
indefinido, como, por exemplo, ‘uma mulher’, ‘um terno azul’. Essas últimas nos
permitem apenas falar de algum objeto qualquer pertencente a uma classe de
objetos, mas sem demandar sua identificação. Por serem incapazes de identificar
um único objeto específico distinto de todos os outros, elas não são termos
singulares.
Os
nomes próprios, por fim, são expressões geralmente destituídas de complexidade
sintática, ainda assim mantendo a função de designar um particular na
independência do contexto do proferimento.
Diversamente das descrições definidas, nomes próprios não exprimem um sentido único.
Por isso o filósofo J.S. Mill sugeriu que eles não conotam propriedades
específicas do objeto referido; eles apenas o denotam. Mesmo quando eles
possuem alguma complexidade sintática, como é o caso do nome ‘Touro Sentado’, ela
geralmente de nada serve à referência.
Nomes
próprios são classificados nos livros escolares como nomes de pessoas, objetos
ou lugares. Mas essa é uma classificação simplificadora se considerarmos a grande
variedade de objetos particulares que podem ser referidos por eles. Além de
nomes de pessoas e animais, há nomes de construções humanas como cidades, de objetos
geológicos como montanhas e rios, de objetos astronômicos como planetas e
nebulosas, de fenômenos naturais como furacões e vulcões, de regiões
geográficas e de instituições financeiras, além de nomes de objetos abstratos
como números.
Relações
entre os tipos de termos singulares
Faz
parte da concepção essencialmente cognitivista-descritivista a ser defendida
nesse livro a sugestão de que não deve haver uma fronteira nítida a separar os indexicais
de descrições definidas e essas últimas dos nomes próprios. Uma descrição
definida como ‘o homem que está discursando naquele palanque’, por exemplo, é
conotativa, mas contém o demonstrativo ‘naquele’ com função indexical. Nesse
sentido ela não é uma descrição definida tão exclusiva quanto, digamos, ‘o sapo
barbudo’. Considere agora um termo singular como ‘o Cristo Redentor’. Vindo antecedido
de artigo definido, ele conota descritivamente a propriedade identificadora da
estátua, que é a de ser uma homenagem ao Deus cristão. Ele contém, pois,
elementos de descrição definida. Contudo, ele também possui alguns traços de nome
próprio, na medida em que ao usá-lo não costumamos ter em mente apenas a
homenagem ao filho do Deus cristão, mas a própria estátua do Cristo situada no
alto do Corcovado. Assim, a expressão ‘o Cristo Redentor’ parece estar a meio
caminho entre uma descrição definida e um nome próprio. Muito diferente é o
caso de um nome próprio típico como ‘Machado de Assis’, referente ao grande
escritor carioca. Mesmo que ‘machado’ conote uma ferramenta e ‘Assis’ uma
cidade, esses elementos descritivos não tem nenhuma função identificadora, pois
o escritor nem era um machado nem nasceu na cidade de Assis.
Há uma hipótese vislumbrada por filósofos
como P.F. Strawson,
que ajuda a explicar a ausência de fronteiras nítidas entre indexicais,
descrições definidas e nomes próprios. Queria expô-la como contendo a sugestão
de que deve haver uma progressão genético-estrutural, que vai dos indexicais
para as descrições definidas e delas para os nomes próprios. Os
indexicais parecem ter de algum modo prioridade como fontes originadoras da
referência. Afinal, a maneira pela qual crianças aprendem a identificar objetos
nos estágios iniciais do aprendizado da linguagem é por intermédio de atos de chamar
a atenção e apontar por parte parte dos adultos. Como veremos, é bem razoável
pensar que com base nesse uso indexical da linguagem nós assimilamos regras de
identificação, as quais podem mais tarde ser expressas por meio de descrições
definidas que, diversamente dos indexicais, podem ser usadas para a comunicação
mesmo na ausência dos objetos por elas referidos. Essa é a vantagem da constância presente nas descrições
definidas e ausente nos indexicais. Finalmente, como as maneiras de se
identificar um mesmo objeto, assim como as descrições correspondentes, podem se
diversificar cada vez mais, aprendemos a colocar um nome próprio no lugar de
toda a variedade de descrições definidas que podem ser usadas para designar um
mesmo objeto, usando esse nome indistintamente para significar essa ou aquela
descrição ou conjunção de descrições identificadoras. Com
isso podemos nos comunicar sobre objetos sem precisarmos nos preocupar com o
compartilhamento dos conteúdos de todas as múltiplas descrições específicas. Ganham
assim os nomes próprios, além da vantagem da constância, típica das descrições
definidas, também a vantagem da flexibilidade.
Essa progressão é sugestiva de nossa hipótese de trabalho e indicadora do itinerário
a ser seguido.
2
TERMOS INDEXICAIS
Indexicais
são termos singulares que nos permitem identificar particulares diferentes em
diferentes contextos de proferimento. Eles são epistemologicamente importantes
porque é através deles que a linguagem, por assim dizer, toca na realidade.
Geralmente se admite que um indexical possui minimamente duas espécies de
significado: a função lexical e o conteúdo semântico. Para explicá-los
quero começar considerando cada um deles separadamente.
A função lexical (também chamada de ‘sentido
literal’, ‘significado simbólico’, ‘caráter’, ‘papel’...) é algo que não
varia com a variação do contexto do proferimento. Mas antes, o que é o
contexto do proferimento? A resposta é que se trata de uma composição de
elementos, dos quais os mais proeminentes são:
(a) o falante,
(b) o auditório,
(c) o objeto
(= particular) referido pelo indexical.
(d) o local
e o tempo em que o proferimento
ocorre.
(e) o mundo em que o proferimento ocorre
(geralmente o nosso).
É
aqui importante distinguirmos o contexto de ocorrência do proferimento
de seu contexto de avaliação, que podemos definir como aquele que
determina o seu valor-verdade. Embora eles geralmente se identifiquem, eles
também podem diferir. Assim, se digo “Viajarei amanhã”, o contexto do proferimento é o que está
presente, mas ele difere do contexto de avaliação, que só existirá amanhã, quando
minha viagem se tornar o fazedor-de-verdade (o truth-maker), o
conteúdo externo de meu presente proferimento. Pode haver mesmo mais de um
contexto de avaliação com tempos e locais diferentes relativos a um mesmo
proferimento, como em “Ontem em Natal ela me disse que amanhã viajará para o
Rio”, quando dito sobre uma terceira pessoa não presente.
A lista A expõe algumas regras que constituem
funções lexicais bastante comuns:
A
1. Os demonstrativos ‘esse’ e ‘aquele’ tem a
função de indicar algo que circunda o falante quando ele os profere,
respectivamente, o mais próximo e o mais distante, geralmente com auxílio de
algum gesto indicador (ostensão).
2. O pronome pessoal ‘eu’ tem a função de indicar
quem o está proferindo no momento em que o profere.
3. A palavra ‘nós’ costuma indicar os falantes e
ouvintes presentes em seu proferimento.
4. Os pronomes ‘tu’, ‘vocês’, ‘ele’, ‘ela’,
‘eles’, ‘elas’, indicam componentes do auditório, respectivamente, o ouvinte,
os ouvintes, um terceiro, uma terceira, os terceiros, as terceiras, primariamente
no contexto do proferimento.
5. Os advérbios ‘aqui’ e ‘agora’ têm a função de
indicar respectivamente o lugar e o momento em que são proferidos.
A
função lexical de um indexical é aqui entendida como uma invariante, uma
vez que se traduz em uma única regra capaz de se aplicar a uma ilimitada
diversidade de elementos contextuais do tipo por ela especificado (o pronome
‘eu’, por exemplo, é feito para se referir sempre a quem fala no momento em que
fala, na independência de quem fala). Essas regras já demonstram a
insuficiência da função lexical para o que nos é de interesse semântico, como o
‘eu’ em um proferimento como “Eu estou com dor de cabeça”, que tem um conteúdo
de significação diferente quando dito por pessoas diferentes, pois pode em um
caso tornar o proferimento indexical verdadeiro, noutro falso.
Vejamos agora a segunda espécie de
significado do indexical, a que mais nos interessa. Ela é o que tem sido
chamado de conteúdo semântico.
Diversamente do caso do sentido lexical, o conteúdo semântico do indexical é
uma variante que depende do contexto do proferimento, da situação de fala. Não
é difícil demonstrar essa variação. Os proferimentos indexicais “Eu estou com
dor de cabeça’ ditos por duas pessoas diferentes produz conteúdos semânticos
diferentes. “Aquilo é um golfinho” dito duas vezes apontando para objetos
diferentes (ou mesmo para um mesmo objeto em tempos diferentes) também deve produzir
conteúdos semânticos diferentes. A razão é que a diversidade dos objetos referidos
ou dos contextos espaciotemporais no qual se encontra um objeto já basta para
alterar os conteúdos semânticos do que é dito, que são pelo menos numericamente
diferentes.
Mas não parece vão notar que há, para além do
que foi indicado acima, uma implícita variabilidade na riqueza do conteúdo
semântico ou semântico-cognitivo implícito no contexto de avaliação. Suponha
que um aluno, ao ouvir seu nome lido de forma impessoal em uma lista de
presenças, responda: “Eu estou aqui”. No contexto, é o próprio aluno em carne e
osso que se auto-refere: ele torna pública uma regra para a sua identificação
física. Suponha agora, por comparação, que após uma operação um homem acorde em
um leito de hospital e que, segurando a sua mão, sua esposa lhe diga: “Eu estou
aqui”. Como no caso anterior, o pronome pessoal ‘eu’ trás a público uma regra
identificadora de quem fala. Mas há um grau diverso de penetração no modo de
apresentação intencionado pelo falante. No primeiro caso, o pronome indica para
outros um certo aluno de um certo sexo com um certo aspecto pertencente a uma
certa classe, sem maiores especificações. No segundo caso, o mesmo pronome
indica uma mulher, mas, ao menos para ambos, uma mulher associada a traços
físicos e psicológicos peculiares, além de uma história relacional complexa e
carregada de memórias compartilhadas. Nos dois exemplos o conteúdo semântico do
‘eu’ não só inclui a localização espaciotemporal de quem fala, mas vai além
disso; ele funciona como um instrumento para identificar elementos submersos de
quem está falando de um modo variadamente determinado, os quais são
compartilhados entre falante e ouvinte, mesmo que isso ocorra de modo
restritivo.
Imagine, para tornar o último caso mais
factível, uma comunidade de pessoas que não fizesse uso de nomes próprios nem de
descrições definidas, mas apenas de pronomes: nesse caso, parece claro que o
conteúdo semântico aliado a pronomes pessoais como ‘eu’, ‘ele’, ‘ela’, ‘eles’,
‘elas’ precisaria abranger muito mais. Nesse caso parece que o conteúdo semântico
de ‘ela’ no proferimento “Ela é minha neta” seria abrangente; o ‘ela’ traria
implícitos conceitos como o de criança próxima do falante, com certa aparência
específica, comportamentos, relações de consanguiniedade etc. Imagine agora que
também faltassem a essa comunidade muitos termos conceituais, embora existisse
conhecimento tácito deles. Digamos que falte a eles nomes comuns como ‘cadeira’
ou ‘tigre’. Eles poderão ainda dizer: “Isso... para sentar”, “Aquilo... animal
perigoso”. Mas parece claro que o ‘isso’ e o ‘aquilo’ se encontram carregados
de conteúdos adicionais de significação que não são expressos. (Para
contrastar, compare essas observações com o caso mais simples de um aparelho
que para ser encontrado sempre anuncia a frase digitalizada: “Eu estou aqui”.)
Há duas concepções gerais competitivas sobre
a natureza do conteúdo semântico, que são a da referência direta (ou milliana) e a cognitivista (ou fregeana em um sentido amplo). Segundo a primeira
concepção, o conteúdo semântico do indexical é a própria referência do
indexical: ele é o objeto por ele
referido no mundo. Já de acordo com as teorias cognitivistas, o conteúdo
semântico do indexical é um modo de
apresentação fregeano, ou, em uma leitura dummettiana, uma regra criterial
identificadora do objeto.
Uma possibilidade alternativa – que será
aqui preferida – é a de distinguirmos entre dois tipos de conteúdo análogos: um
conteúdo semântico-cognitivo interno e um conteúdo referencial
externo, embora haja razões para se dar primazia ao primeiro. Se for assim,
um indexical como ‘isso’ deve ter, além de sua função lexical de indicar um
objeto próximo, mais dois elementos, que são o conteúdo semântico,
cognitivamente acessível na independência da existência real do objeto externo,
e um conteúdo referencial externo, cuja existência independe do falante.
Observação
sobre o status ontológico dos fatos empíricos
Segundo Strawson, por serem correlatos
pseudo-materiais, os fatos não são algo no mundo, pois diversamente de eventos
ou coisas, eles não são espaciotemporalmente localizáveis. A principal razão
aventada para isso é que a descrição de um fato usualmente começa com uma cláusula-que
(that-clause). Por exemplo: eu posso dizer ‘o fato de que o livro
está sobre a mesa’, mas não é assim tão usual dizer ‘o fato de o livro estar
sobre a mesa’. Por outro lado, a descrição de um evento tipicamente proíbe o
uso da cláusula-que: eu posso dizer ‘o evento do tsunami no Japão’, mas
não propriamente ‘o evento de que um tsunami no Japão’.
Meu argumento contra a oposição proposta por
Strawson visa suportar a ideia de que fatos empíricos são correlatos de
pensamentos verdadeiros, ou seja, arranjos de elementos no mundo, tal como a
teoria correspondencial da verdade sempre sustentou. Esse argumento começa por
mostrar que a oposição defendida por Strawson entre fatos (estados de coisas,
situações) de um lado e eventos (e objetos) de outro é equivocada. Isso se faz
notar quando percebemos que todo evento pode ser chamado de fato, mas que nem
todo fato pode ser chamado de evento. Por exemplo: eu posso substituir ‘o
evento do naufrágio do Titanic’ por ‘o fato de que o Titanic naufragou’;
mas não posso substituir ‘o fato de que a Casa Branca está em
Washinghton’ por ‘o evento de a Casa Branca estar em Washinghton’. A oposição
não é simétrica. Ora, como os eventos também podem ser chamados de fatos, é
mais razoável considerá-los tipos de fatos do que opor ambas as coisas. Assim,
minha proposta é a de que a palavrinha ‘fato’ seja um termo guarda-chuva que
inclui tanto situações e estados de coisas quanto eventos, ocorrências e
processos. E a razão dessa proposta é que podemos chamar todas essas coisas de
fatos, mas não podemos chamá-las todas de estados de coisas ou de eventos.
Tendo percebido isso, ficamos livres para distinguir duas grandes sub-classes (hipônimos)
de fatos:
1.
FATOS ESTÁTICOS: Podem ser tanto formais quanto
empíricos, os últimos sendo no final das contas espaciotemporalmente
localizados. Fatos estáticos se definem por não mudarem como um todo
enquanto duram. Ou seja, a relação entre os seus componentes não muda como
um todo durante o período de sua existência. Eles são fazedores-de-verdade de
um tipo estático, usualmente chamados (com diferentes nuances) de ‘estados’,
‘situações’, ‘condições’, ‘circunstâncias’, ‘estados de coisas’ etc. Exemplos
de fatos estáticos são o meu estado de boa saúde, a situação de
que estou repousando na cama, a circunstância de o aeroporto estar
fechado, o estado de coisas de a Mona Lisa se encontrar no Louvre.
2.
FATOS DINÂMICOS: Estes são sempre empíricos. Eles se
definem por mudarem como um todo enquanto duram. Eles se modificam nas
relações gerais entre os seus componentes durante suas existências, com adições
e subtrações no todo, de modo que eles tenham um iníciom seguido de alguma
espécie de desenvolvimento, e um fim. Eles são fazedores-de-verdade de um tipo
dinâmico. Usualmente eles são chamados (com diferentes nuances) de ‘eventos’,
‘episódios’, ‘ocorrências, ‘processos’, ‘transformações’ etc. Exemplos de fatos
dinâmicos são o evento da explosão de uma granada, a ocorrência do
desabamento das Torres Gêmeas, e ainda o caso de processos mais
estendidos no tempo, como a Segunda Guerra Mudial, a Revolução Digital e o
término da Idade do Gelo.
Parece
que estamos agora em condição de encontrar a verdadeira razão pela qual usamos
a cláusula-que na descrição dos fatos, mas não na descrição dos eventos. Quando
falamos dos fatos dinâmicos, nós evitamos as cláusulas-que. Podemos, por
exemplo, falar do processo de mudança climática, mas não do processo de
que o clima muda; podemos falar da ocorrência da erupção do Monte Vesúvio,
mas não da ocorrência de que o Monte Vesúvio entrou em erupção. Diversamente,
fatos estáticos são usualmente (mas não sempre) descritos começando com
cláusulas-que. Assim, posso falar do estado de coisas de que meu
livro está sobre a mesa ou de que eu estou deitado na cama, embora
também possa falar do estado de coisa de meu livro estar sobre a mesa e de eu
estar deitado na cama. Posso falar do estado de coisas de que o Monte Vesúvio
fica perto de Nápoles, embora também possa falar do estado de coisas de o Monte
Vesúvio ficar perto de Nápoles. Em contrapartida, tanto posso dizer “É um fato que
o Monte Vesúvio está localizado perto de Nápoles” (referindo-me ao estado
de coisas) quanto ‘É um fato que o Monte Vesúvio sofreu uma erupção”
(referindo-nos a um evento). De considerações como essas se segue que cláusulas-que
parecem ter a função de excluir fatos dinâmicos e enfatizar fatos estáticos.
Finalmente, parece razoável sugerir que, como a palavrinha ‘fato’ pode ser
aplicada em ambos os casos, ela simplesmente herda a propriedade de
poder ser usada indiferentemente, com ou sem a cláusula-que.
A
conclusão relevante disso é a de que, possuindo o mais amplo escopo, a tão frequentemente
vilipendiada palavrinha ‘fato’ continua sendo o melhor candidato para o papel
de fazedor-de-verdade em uma concepção correspondencial da verdade. Fatos são
os fazedores-de-verdade universais.
A
teoria kaplaniana dos indexicais
David
Kaplan foi o inventor da mais original e mais sofisticadamente tecnicista e
escorregadia teoria dos indexicais já apresentada. Embora
dialeticamente relevante, essa teoria se encontra repleta de dificuldades que
não pretendo considerar aqui. Tudo o que farei a seguir será expor seus traços
fundamentais, para então objetar contra alguns pontos específicos que não se
coadunam com as teses por mim defendidas.
O
sentido lexical do indexical é chamado por Kaplan de caráter. Ele também expôs as regras constitutivas dos caráteres já
expostas na lista A em termos de funções matemáticas cujos argumentos são
contextos em mundos possíveis. Simplificando um pouco, essas funções constituem
a lista B:
B
1. O caráter do pronome ‘esse’ é uma função de
contextos cujos valores são objetos apontados.
2. O caráter do pronome ‘eu’ é uma função de
contextos cujos valores são os falantes que o proferem.
3. O caráter do pronome ‘tu’ é uma função cujo
valor, para cada contexto, é a pessoa endereçada pelo falante no contexto.
4. O caráter do advérbio ‘aqui’ é uma função de
contextos cujos valores são os inúmeros locais que podem ser referidos pela
palavra.
5. O caráter do advérbio ‘agora’ é uma função
cujo valor, para cada contexto, é o tempo desse contexto.
Kaplan
trata também assim do caráter das sentenças indexicais. O caráter de uma
sentença como “Eu estou com fome”, proferida por João, é a função de um
contexto cujo valor é o próprio estado de coisas de João estar com fome. Essa é
uma elegante maneira alternativa de exprimir regras similares às que antes
expusemos quando introduzimos a noção de função lexical ou caráter do
indexical. Mas a elegância cobra o preço do obscurescimento de uma aqui indispensável
base intuitiva.
A teoria de Kaplan também deve dar conta do
conteúdo semântico do indexical em sua variabilidade contextual. Para
tal ele advoga uma teoria da referência direta, segundo a qual o
conteúdo semântico de um indexical não é algo que se encontra em nossas mentes,
mas a sua própria referência. Assim,
o conteúdo do demonstrativo ‘isso’ é o objeto
por ele referido em um contexto CO; o conteúdo do demonstrativo
‘aqui’ é a localização CL;
o conteúdo do advérbio ‘agora’ é o tempo
de CT; o conteúdo do pronome ‘eu’ em C é o próprio agente ou CA o conteúdo de um
predicado com respeito a C é a propriedade
ou relação; e o conteúdo de uma
sentença indexical proferida em um contexto C é a proposição estruturada,
que poderíamos entender aqui como um fato no mundo (um estado de coisas ou um
evento).
Esse fato-proposição pode conter não só particulares, mas também propriedades e
relações como constituintes. Assim, se João diz “Eu estou com fome”, o conteúdo
do pronome pessoal ‘Eu’ é, para Kaplan, o próprio João, enquanto o conteúdo do
predicado ‘...estou com fome’ é a própria condição de ele estar faminto. A
proposição estruturada pode ser simbolizada aqui pelo par ordenado <<eu>,
faminto>.
(Por
razões que serão mais tarde expostas, prefiro entender o que Kaplan chama de
proposição estruturada em termos de um conteúdo cognitivo, explicitável
como um conteúdo de crença ou pensamento ou conteúdo proposicional judicado,
que entendo como sendo, no final das contas, uma proposição estruturada cujo status
é em última análise mental, à qual é acrescida a intenção de fazê-la corresponder
ao conteúdo referencial factual capaz de torná-la verdadeira.)
Além disso, para Kaplan o conteúdo semântico
de uma sentença com relação ao contexto tem um valor-verdade que pode variar de
acordo com o mundo possível no qual o contexto se encontra inserido. Assim, “Lá
está um gato” é uma sentença falsa no mundo de C, no qual à noite o falante
está apontando para um gambá; mas a mesma sentença será verdadeira no mundo
possível de C*, no qual o animal apontado é mesmo um gato. Há, pois, sempre um
mundo possível com um contexto no qual a proposição é verdadeira.
Kaplan também defende que os indexicais são designadores rígidos. O termo ‘designador rígido’ foi inventado por Saul Kripke,
tendo em mente especialmente o caso dos nomes próprios. Kripke definiu o designador
rígido de duas maneiras. Primeiro como sendo (i) um termo que designa o mesmo objeto em todos os mundos possíveis nos
quais esse objeto existe, nunca designando outro objeto com respeito a qualquer
mundo, tempo ou contexto, depois como sendo (ii) um termo que designa o mesmo objeto independentemente de qualquer
consideração, ou seja, em todos os mundos possíveis, mesmo naqueles onde ele
não existe.
Fiel ao princípio de que não devemos recusar sem razão suficiente intuições
linguísticas que nos parecem fundamentais, prefiro rejeitar a segunda definição
como carente de significação, posto que ela claramente contradiz aquilo que
intuitivamente entendemos como sendo um ato de referir ou designar; afinal,
como pode um nome próprio se referir em um mundo possível no qual seu objeto de
referência não existe? Avrum Stroll enfatizou esse ponto: que um termo só
seja capaz de se referir no caso de realmente existir um objeto de sua
referência é parte da gramática lógica de nosso conceito de referência. A primeira
definição de designador rígido é, porém, altamente intuitiva. É bastante razoável
e, ao que parece, uma obviedade, pensar que um nome próprio como ‘Aristóteles’
se aplica em todos os mundos possíveis nos quais seu portador, Aristóteles,
existe, não se aplicando em nenhum mundo possível no qual esse portador não
existe. É isso que torna o nome ‘Aristóteles’ um designador rígido.
Há, porém, uma razão sistemática pela qual a
primeira definição de designador rígido não é uma obviedade, pois as descrições
definidas são termos singulares que em geral não satisfazem tal condição. Elas
não são designadores rígidos, mas designadores
acidentais, a saber: aqueles que são
capazes de designar objetos diferentes em diferentes mundos possíveis.
Considere a descrição definida ‘o amante de Herphylis’. Essa descrição é um
designador acidental, pois embora em nosso mundo (muito certamente) ela se
refere a Aristóteles, em um mundo possível no qual o amigo de Aristóteles
chamado Teofrasto é quem foi o verdadeiro amante de Herphylis, ela se refere a
Teofrasto, tenha ou não Aristóteles nele existido.
Seriam os indexicais designadores rígidos assim
como nomes próprios? Para considerarmos a questão precisamos primeiro ter em
conta a definição do indexical. A primeira coisa que os indexicais fazem é uma
referência a algo (possivelmente um nada) situado em um certo lugar que
se encontra dentro do espaço egocêntrico do falante, ou seja, em relação
espaciotemporalmente centrada no falante e suficientemente próxima deste. Se o
indexical é um designador rígido ele deve manter a mesma referência em qualquer
situação de mundo possível no qual essa referência, existe. Para termos uma
ideia clara disso devemos entender um mundo possível como o nosso
próprio mundo, só que em maior ou menor medida modificado e, eventualmente,
extremamente modificado (um mundo possível como o nosso, mas com pequenas
modificações, será chamado de mundo possível próximo). Mas
como essa referência é algo que se dá em um lugar espaciotemporal, se esse algo
existe nesse mesmo lugar em um outro mundo possível (uma modificação do nosso)
ele será a referência do indexical. Vejamos um exemplo. Digamos que alguém
aponte para um lugar e diga: “Aquele é Donald Trump”. Se, em um mundo possível M*
muito próximo do nosso, Donald Trump existir, mas no qual ele nunca foi
presidente dos EUA, mas onde mesmo assim pudermos reconhecê-lo e admitir que
ele é o portador da referência desse ‘aquele’ específico, podemos marcar esse
indexical como sendo ‘aquele*’; afinal, temos outros elementos identificadores,
como local de nascimento, filiação, profissão e mesmo aparência física... O
mesmo podemos dizer de “Isso é uma maçã vermelha” em um mundo possível M* próximo
ao nosso, se tivermos condições de identificar essa mesma maçã vermelha com
base, suponhamos, no contexto: ela se encontra na mesma cesta, no mesmo momento,
no mesmo mercado... mesmo que outras coisas sejam algo diversas nesse mundo
possível. Em M* o isso* terá como referência a mesma maçã vermelha. Com
respeito ao pronome pessoal ‘eu’ acontece o mesmo. Se em M* existir uma única pessoa
que seja indistinguível de mim mesmo, ela será o objeto de referência de ‘eu*’.
O mesmo parece se dar com advérbios como ‘aqui’ e ‘agora’, conquanto tenhamos
como encontrar um mesmo aqui* e agora* no outro mundo possível em questão. Essa
é uma maneira razoável de entendermos os indexicais como designadores rígidos,
pois os estamos fazendo funcionar como se fossem nomes próprios se referindo a
algo.
Contudo, o entendimento de Kaplan da rigidez
dos indexicais não é como o recém sugerido. Ele quer que o indexical seja um
designador cujas regras semânticas façam com que em qualquer mundo possível o
seu referente seja o mesmo que no mundo
atual.
Ele entende isso de tal forma que mesmo nos mundos possíveis nos quais a
referência não existe, o indexical se torna capaz de cumprir com a sua função
referencial, posto que ele é indexado pelo nosso próprio mundo atual. Assim, o
indexical se torna um designador rígido no segundo sentido de Kripke, que é o de
um designador rígido dito obstinado.
Mas
será essa sugestão coerente? Alguns exemplos sugerem que não. Imagine que você
esteja em uma sala iluminada e diga “Há luz aqui”. Esse enunciado é verdadeiro.
A palavra ‘aqui’ indica o lugar em que se encontra o falante quando ele fala.
Mas se em um mundo possível muito próximo ao nosso (ou seja, numa circunstância
contrafactual) nesse mesmo instante a mesma sala se encontra às escuras e você
diz “Há luz aqui”, esse seu enunciado se torna falso. Não obstante, se o
indexical ‘aqui’ fosse indexado pelo mundo atual, como Kaplan pretende, parece
que o enunciado deveria continuar sendo verdadeiro, dado que aqui nesse mundo a
sala se encontra iluminada. Considere ainda o proferimento “Eu estou com fome”.
Ele é falso se pensado por mim agora. Mas imagine que em um outro mundo
possível, nas mesmas circunstâncias presentes, eu esteja realmente com fome ao
proferir a frase. Como isso seria possível no caso em que o pronome pessoal se
referisse a mim mesmo no mundo atual, onde eu não estou com fome?
Tais incoerências me parecem fatais pela
seguinte razão: um algo – um local, um objeto – só costuma ser
reconhecivelmente inserido como sendo o mesmo (o nosso mesmo algo, local,
objeto...) em um mundo possível se o for intrinsecamente, por suas
características próprias, e/ou extrinsecamente, através de suas relações
espacio-temporais e causais com elementos contextuais circundantes que
pertençam a esse mundo. Por isso, não é coerente que se fale de um local ou
objeto em outro mundo possível, inserindo-o assim relacionalmente no contexto diverso
desse outro mundo e, ao mesmo tempo, inserindo-o relacionalmente no contexto de
nosso próprio mundo, pois quando isso acontece os critérios pelos quais
identificamos o local ou objeto em cada mundo possível terminam sendo
arbitrariamente confundidos. (Uma maneira de tornarmos a proposta de Kaplan
coerente seria reduzir a aplicação do indexical em outros mundos possíveis às mesmas
relações espacio-temporais e causais que ele possui em nosso mundo atual. Mas
isso tornaria a sua proposta inesperadamente fraca. A referência do indexical
seria feita no interior de um recorte de nosso próprio mundo transplantado em
um outro, o que redundaria em dizer que o indexical não possui a referência
intencionada em nenhum outro mundo possível, à exceção de nosso próprio mundo
atual.)
Devido às dificuldades acarretadas pela noção
de indexação pelo mundo atual, adotarei aqui a ideia intuitivamente mais segura
de admitir que indexicais são designadores rígidos no sentido de identificarem
o mesmo referente em qualquer mundo possível no qual ele exista, o que é
possível, conquanto tenhamos critérios contextuais que nos permitam identificar
tal referente como sendo o mesmo.
Argumentos
a favor da referência direta
Ao
pensar que o conteúdo semântico do indexical deva ser a sua própria referência,
Kaplan se apresenta como um defensor da teoria da referência direta, ou seja,
da ideia de que o que realmente conta como o conteúdo semântico (significado)
do indexical seja o seu próprio objeto de referência. Ele apresenta originais e
elaborados exemplos destinados a demonstrar esse ponto. Quero examinar dois
deles, mostrando que não chegam a ser bem sucedidos.
Começo com um exemplo engenhoso que faz
apelo a substituições questionáveis. Digamos que eu aponte para uma pessoa na
rua que me parece ser João e digo:
(1) Ele mudou-se para Brasília,
Isso
é verdadeiro para João, pois sei que ele se mudou para Brasília. Contudo, quem
está passando na rua não é João, mas Thiago, devidamente disfarçado de maneira
a parecer João. Como Thiago não se mudou para Brasília, a proposição é falsa.
Para Kaplan, se a proposição fosse mero conteúdo cognitivo, ela deveria ser
verdadeira, pois a crença que tenho é a de que a pessoa por mim apontada é João,
sendo verdadeira a minha crença de que
João foi para Brasília. Mas não é o que acontece. Daí a conclusão de Kaplan de
que é o estado de coisas real, e não o conteúdo da crença, que constitui o
conteúdo semântico envolvido.
Não é difícil, porém, encontrar a falha no
argumento. Para dizer (1) eu preciso primeiro identificar a pessoa. Ou seja: só
estou autorizado a afirmar “Ele mudou-se para Brasília” porque pretendo ter
reconhecido a pessoa que vejo na rua como sendo João e não somente por saber
que João mudou-se para Brasília. Melhor dizendo, o proferimento (1) é implicitamente
pensado por mim como a conclusão de um argumento que assume o reconhecimento
correto de João. Esse argumento é o seguinte:
Aquele sujeito lá é
João. F
João mudou-se para
Brasília.
V
Logo: (1) Ele
(aquele sujeito lá) mudou-se para Brasília. F
Torna-se
assim claro que a conclusão (1) não possui como conteúdo semântico a ideia de
que João foi para Brasília. Ela é apenas a conclusão resultante de dois outros
conteúdos judicados meus, que são o conteúdo falso de que aquele sujeito que eu
vejo lá é João
e o conteúdo verdadeiro de que João mudou-se para Brasília. Mesmo que (1) se
deixe explicar como sendo a conclusão de um argumento que contenha as duas
premissas acima, (1) contém um conteúdo semântico independente delas, o qual,
comparado à realidade, ao estado de coisas no mundo, se demonstra falso. É esse
conteúdo semântico-cognitivo aquele que tenho em mente e que é tornado falso
pelo estado de coisas no mundo, o estado de coisas de a pessoa lá (Thiago) não
se ter mudado para Brasília, não precisando tal conteúdo ser confundido com o
estado de coisas real.
Suponhamos agora, para contrastar, que
Thiago também tenha ido para Brasília. Ora, nesse caso o meu enunciado (1) será
apenas coincidentalmente verdadeiro, o que precisará ser admitido, mesmo
que eu o tenha derivado da premissa falsa de que aquele sujeito que vejo lá
seja João. Eu, pelo menos, apenas penso que sei que ela é verdadeira,
pois a minha justificação para sua verdade se baseia na premissa falsa de que
aquele sujeito que estou vendo lá é João, quando ela deveria ser outra. Essas
reflexões demonstram que a crença que tenho de que a pessoa por mim apontada é
João não tem nada a ver com o conteúdo semântico-cognitivo que possa ser lido
no meu proferimento de (1).
Outro argumento de Kaplan, dessa vez inspirado
no externalismo semântico de Putnam, diz respeito a dois gêmeos idênticos,
Castor e Pollux, que são monitorados de modo a terem sempre os mesmos estados
cognitivo-psicológicos. Em um
dado momento ambos dizem:
(1) Meu irmão nasceu antes de
mim.
Como
Pollux nasceu antes, Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso. Para
Kaplan, como os estados cognitivos são idênticos, a diferença no conteúdo de
crença só pode se encontrar no mundo lá fora, na proposição estruturada externa.
Contudo, há algo de errado também com esse
exemplo. Ele só funciona se assumirmos, como Kaplan o fez, que o externalismo
de Putnam é correto. Se for, então é possível dizer ou querer dizer coisas com
valor-verdade diferente mantendo o mesmo estado mental. O argumento de Putnam,
porém, será demonstrado bastante implausível no capítulo 8 desse livro, quando
formos discutir os significados de termos gerais. Contudo, se desconsiderarmos
o externalismo de Putnam, a assunção de que Castor e Pollux estariam tendo
idênticos estados cognitivo-psicológicos e querendo dizer coisas diferentes
torna-se gratuita. Afinal, por meio do proferimento (1) com a expressão ‘meu
irmão’ Castor deve ter em
mente Pollux e Pollux Castor, e com o pronome ‘mim’ Castor
tem em mente Castor
e Pollux Pollux. Mesmo sendo idênticos, os gêmeos possuem nomes diferentes e se
diferenciam pelas posições diferentes que ocupam e sabem que ocupam no espaço.
(Castor pode até não saber onde está Pollux, mas sabe que Pollux não pode estar
onde ele está, mas sempre em algum outro lugar, mutatis mutandis.)
Sob tais assunções é mais natural pensarmos
que só há duas alternativas: ou (a) eles querem dizer coisas diferentes ao custo
de estados cognitivo-psicológicos diversos, ou então (b) eles pronunciam frases
idênticas com os estados cognitivo-psicológicos idênticos, mas então sem serem
sequer capazes de querer dizer com elas algo que vá além de um mero sentido
gramatical, que é inevitavelmente o mesmo. Nesse último caso, a única maneira
de se conceber que Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso é
considerar o que eles dizem sob o ponto de vista de um ouvinte capaz de
entender o conteúdo do proferimento emitido por Castor como sendo
verdadeiro e o conteúdo do preferimento emitido por Pollux como sendo
falso. Mas nesse caso, um proferimento é verdadeiro e o outro é falso porque os
estados cognitivo-psicológicos do ouvinte a considerar a frase “Meu
irmão nasceu antes de mim” dita por cada um dos gêmeos é diferente. Assim, uma
explicação para a impressão de que seja possível que Castor e Pollux tenham
idênticos estados cognitivo-psicológicos e diferentes conteúdos de crença pode
ser facilmente encontrada na falha em perceber o papel dos intérpretes na
atribuição de significados semântico-cognitivos aos proferimentos.
Argumentos contra a referência direta
Há
dois argumentos básicos contra teorias da referência direta dos indexicais como
a de Kaplan. O primeiro é bastante óbvio: existem proferimentos com indexicais
vazios, como no caso de alucinações, como “Lá está um cavalo branco” dito por
uma pessoa com alucinose alcoólica. Tais enunciados possuem conteúdo semântico-cognitivo
sem proposição estruturada. Para sua própria satisfação, teoristas da
referência direta costumam responder que tais proferimentos são irrelevantes
para a semântica.
Mas o mais ilustrativo contra-argumento é o
de proferimentos contendo indexicais co-referentes, mas com diferentes
conteúdos semânticos. Imagine, por exemplo, que em uma loja de roupas Maria
veja uma única mulher à sua frente e, em um dos espelhos ao lado, veja
refletida a mesma mulher de costas.
Confundida, Maria pensa que são duas pessoas distintas. Ela está em condições
de dizer:
(1) Essa
pessoa não é aquela pessoa.
Contudo, se o conteúdo do pensamento de Maria fosse a
proposição estruturada e o objeto fizesse parte dessa proposição, parece que
ela deveria saber que se trata de um mesmo objeto de referência, de uma
mesma mulher. Mas não é isso o que acontece. Maria acredita falsamente na
verdade do seu conteúdo de pensamento exprimível em (1).
Da parte do
defensor da teoria da referência direta, a resposta poderia ser a de que um
mesmo objeto pode ser acessado sob modos diferentes, os quais são
condicionados pelos caráteres dos indexicais envolvidos. Assim, os indexicais
‘essa’ e ‘aquela’ em (1) tem caráteres diversos, que para Kaplan estão no lugar
dos sentidos fregeanos, permitindo o erro na identificação “dessa” ou “daquela”
pessoa. Essa resposta, porém, esbarra em dificuldades óbvias. Afinal, Maria
poderia ter usado o mesmo indexical duas vezes para designar objetos
diferentes, como ao proferir a frase:
(2) Essa
pessoa não é essa pessoa,
e ao fazer isso apontar primeiro para a pessoa à sua
frente e depois para a pessoa refletida no espelho ao seu lado. Seria
possível, é verdade, responder que nesse caso a primeira ocorrência do
demonstrativo ‘essa’ não pode ser substituída pelo demonstrativo ‘aquela’,
enquanto a segunda ocorrência pode, o que mostra que o diferente caráter dos
indexicais se encontrava implícito. Mas podemos imaginar situações nas quais
esse não é o caso, como quando os dois objetos que aparecem à Maria bastante
próximos, digamos, em uma tela de computador.
O que
contra-exemplos como esse sugerem é que existe mais entre o indexical e o
objeto do que nosso vão caráter permite imaginar. Ao
influir na atribuição de verdade, o modo de apresentação do objeto pelo
indexical permite um detalhamento cognitivo da experiência que vai além daquilo
que a função lexical do indexical é capaz de explicitar. Nós experienciamos os
objetos sempre sob perspectivas, sob modos de apresentação, sob sentidos “fregeanos”
com base nos quais os inferimos. Entender o conteúdo semântico em termos da
própria referência, na independência desses modos de apresentação, é deixar sem
explicação o caráter perspectivista ou aspectual da experiência.
Pode ser que haja estratégias concebíveis
contra as objeções acima. Podemos interpretar o objeto, a propriedade e mesmo o
fato de uma maneira aspectual e mesmo assim externa, objetiva. Nesse caso (i) pode
dizer respeito a dois sub-objetos: (i-a) o sub-objeto de algo que aparece à
frente do falante como uma mulher vista de frente (‘a frente da mulher’) e
(i-b) o sub-objeto de algo que aparece ao lado direito do falante como uma
mulher vista de costas (‘as costas da mulher’). Cada um desses sub-objetos é objetivo
(pois poderia ser similarmente acessado por outra pessoa que estivesse no lugar
de Maria) e mesmo diversamente localizável em termos de superfícies do objeto no
mundo externo. Não obstante, se levarmos em conta o que sabemos hoje sobre os
mecanismos de percepção e sobre o possível engano, mesmo em nossa apreensão de
semelhantes modos de apresentação (e.g., alucinação), continua parecendo
bastante certo que também esses sub-objetos nos são, mesmo que de forma irresgatável
para a consciência, primeiramente dados à experiência como modos de
apresentação cognitivos (contendo sense data) e então, sob condições normais, naturalmente
interpretados como pertencentes ao mundo externo.
Alternativas
neofregeanas
As ideias
de Frege sobre os proferimentos indexicais foram muito brevemente esboçadas em
algumas poucas frases de seu clássico ensaio intitulado “O pensamento” (“Der
Gedanke”). Ele percebeu que no caso de proferimentos indexicais o (conteúdo
de) pensamento (o sentido da frase, seu conteúdo cognitivo também
chamado de proposição) vai além do que as palavras dizem. Em um exemplo
seu, se alguém diz:
(1) Essa árvore está florida,
Digamos
que esse pensamento seja verdadeiro. Ele não se tornará falso daqui a oito
meses, quando o inverno tiver feito a árvore secar. E a razão disso, escreveu
Frege, é que nesse caso “o momento da enunciação é parte da expressão do
pensamento”.
Frege dá a entender que os elementos contextuais que cercam o proferimento
indexical são partes não-linguísticas da expressão do pensamento. Para ele, o
tempo do proferimento, o gesto de apontar, o olhar, são capazes de atuar como
meios complementares de expressão do pensamento. Como consequência, o
proferimento “Essa árvore está florida” feito em abril ou maio no hemisfério
norte exprimirá um pensamento diferente de quando é feito em janeiro. Embora
Frege não tenha dito, se nesses casos o pensamento varia com o tempo do
proferimento, parece claro que ele deve variar também com o lugar do
proferimento, no caso, o contexto espacial no qual ele aponta para o objeto.
Note-se, contudo, que pelo fato de
semelhantes elementos contextuais serem para Frege parte da expressão do
pensamento, eles próprios não são parte do pensamento. Frege sustentava, como é
sabido, uma concepção platonista do pensamento como sendo uma entidade não-espaciotemporal
(eterna), que somos capazes de apreender (fassen). Admitindo-se uma
reconstrução cognitivista da concepção platonista que ele mantinha sobre a
natureza do pensamento, devemos concluir que, como estado cognitivo-psicológico
objetivamente concebido, o pensamento
indexical, ou seja, o conteúdo
cognitivo do proferimento indexical, precisa incluir em si mesmo a
representação conceitual dos elementos contextuais acima considerados,
particularmente a localização espaciotemporal. Como notou Michael Luntley, “o
pensamento é conteúdo contextualmente expresso e não o próprio estado de coisas
contextualmente situado; ele não é sequer um amálgama de conteúdo mais
contexto”.
Outro ponto é que se o sentido (Sinn)
fregeano é um modo de apresentação geralmente exprimível por meio de descrições
definidas, parece que os elementos contextuais que ajudam a exprimir o
pensamento indexical deveriam poder ser resgatados em termos descritivos de
modo a formar frases eternas, capazes de expressar o pensamento na
independência do contexto. Por conseguinte, gostaria de sugerir que um
proferimento como (1) possa ser substituído pela seguinte frase eterna,
uma frase capaz de exprimir o pensamento na independência do contexto concreto
de seu proferimento:
(2) O local mais próximo apontado pelo falante F
situado no local L no momento T ao dizer: “Essa árvore está florida”
(ou: que a árvore que ele vê está florida), contém algo que tem as propriedades de ser
uma árvore e de ela estar florida.
Note-se
que se considerarmos o lugar do demonstrativo ‘essa’ na frase eterna (2),
veremos que ele deixou de se referir a algo contextualmente dado no mundo. Ele
aparece no interior de uma frase que se encontra entre aspas ou é elidido pela
frase-que entre parênteses. Como sabemos, tais frases passam a ter o que Frege
chamava de uma referência indireta, que é o seu próprio
sentido, e não mais sua referência direta (que para ele seria o seu
valor-verdade, mas que para muitos é mais plausivelmente considerada o próprio fato
ou estado de coisas de a árvore estar florida). O sentido do demonstrativo
‘essa’ pode ser aqui exprimido pela descrição definida ‘o algo situado no lugar
E que o falante F no tempo T aponta’ – um modo de apresentação que reproduz
cognitivanente os traços distintivos do contexto. Naturalmente, se uma dessas
variáveis for diferente, o pensamento expresso também será alterado. Note-se
também que a pretensão de verdade de (1) não desaparece em (2), uma vez que nesse
último enunciado é afirmado que o local em questão ‘contém algo que tem as
propriedades de ser uma árvore e de ela estar florida”. Concluindo:
contrariamente ao que certos filósofos como John Perry pensam, podemos
perfeitamente parafrasear uma frase indexical por meio de uma frase eterna, relendo
o pensamento indexical como parte de um pensamento eterno. É verdade que a
vivência fenomenal do acontecimento é perdida, mas isso não chega a ser
relevante.
A maneira de ver que proponho contrasta com
o ponto de vista de Kaplan. Para mim, o equivalente central do sentido fregeano (Sinn) do
indexical é o seu conteúdo semântico-cognitivo, enquanto que para ele o equivalente
do sentido fregeano do indexical é o seu caráter, enquanto seu conteúdo
semântico é o objeto por ele referido. A sua correlação <sentido-caráter>
seria mais plausível se expressões outras que não as indexicais não tivessem
algo equivalente ao caráter ou função lexical. Mas não é assim. O nome próprio
tem algo correspondente à função lexical (caráter), que consiste na sua função
geral de nomear , que é a de se referir a um objeto específico e
distingui-lo de todos os outros. Mesmo assim, o sentido fregeano do nome
próprio não se reduz a essa função lexical geral de nomear, mas, como ele mesmo
nos demonstrou, aos ‘modos de apresentação’ constitutivos de seu conteúdo, que
embora deva incluir a função geral de nomear, de modo algum se limita a ela.
Parece que o mesmo podemos dizer do termo geral: a sua função lexical (seu
caráter) seria a sua função predicativa de ser capaz de dizer o mesmo de
muitos, enquanto que o conteúdo cognitivo de um termo geral específico poderia
ser entendido (embora Frege não tenha pensado assim) como
um modo de apresentação de uma expressão predicativa específica (e.g.
‘...coração’ = ‘...órgão feito para bombear o sangue’). Podemos saber que
‘César’ é um nome sem saber quem é César ou de que César se trata, e podemos
saber que ‘visitar’ é um predicado relacional sem ter como aplicá-lo. A própria
frase tem uma função lexical, que consiste no que tem sido chamado de o seu sentido linguístico; esse sentido literal da frase pode ser caracterizado
como aquilo que podemos entender enquanto não tivermos qualquer informação que
nos auxilie na efetiva identificação da referência. Uma
frase como “César visitou Calpúrnia”, por exemplo, tem um sentido literal, um
caráter, que é anterior ao pensamento fregeano, ao seu sentido ou conteúdo
cognitivo (epistemisches Gehalt), pois sabemos que ela é sintaticamente
correta, mesmo não conhecendo nada da história nem dos sentidos fregeanos dos
nomes ‘César’ e ‘Calpúrnia’ no contexto. Já para entendermos o
sentido-pensamento-conteúdo expresso – o conteúdo cognitivo ou epistêmico – nós
precisamos mais do que isso. Precisamos conhecer, ao menos em suficiente
medida, os sentidos ou modos de apresentação associados aos nomes, a espécie de
visita e o contexto no qual seus portadores existiram, construindo assim aquilo
que doa conteúdo cognitivo ou valor epistêmico (Erkenntniswert) ao que é dito. (Historicamente, Júlio César visitou
sua esposa Calpúrnia Pisônia na noite do dia anterior ao seu assassinato,
quando ela lhe avisou de um sonho que continha um mau presságio, pedindo-lhe
para não ir ao senado...) Ora, se mesmo em frases não-indexicais a tricotomia
<função lexical – conteúdo – referência> se sustenta, por que rejeitá-la
para as frases indexicais? Se ela existe para nomes próprios e aparentemente também
para predicados, por que rejeitá-la para os termos indexicais?
Podemos construir
um esquema próximo ao de Frege, distinguindo níveis semânticos com relação à
frase indexical predicativa singular. Para
tal é preciso distinguir dois subníveis semânticos do sentido cognitivo (Sinn): (i) o subnível do sentido
linguístico (lexical, literal), contextualmente independente, e (ii) o subnível
mais propriamente epistêmico do conteúdo semântico e do pensamento, que é aquilo
que Frege mais propriamente tinha em mente ao falar do sentido. Quanto ao nível
da referência, prefiro admitir a ontologia dos tropos e sugerir que ao falarmos
de propriedades estamos tratando de tropos (propriedades espaciotemporalmente
localizadas) simples ou complexos, enquanto ao falarmos de objetos estamos
tratando de agrupamentos mais ou menos organizados de tropos compresentes
(co-localizados e co-temporais) geralmente pertencentes ao mundo externo, mas
possivelmente à própria mente. Uma
vez feitas essas admissões, temos o esquema:
Indexical predicado frase
Sentido função +
função = sentido
Sentido linguístico lexical predicativa linguístico
cognitivo
Conteúdo conteúdo
+ conteúdo =
conteúdo de
cognitivo semântico conceitual pensamento
Referência objeto +
propriedade = fato
(agrupamentos (simples ou (combinação
de
propriedades) composta) de proprieda-
des
e agrupa-
mentos de pro-
priedades)
Vemos, pois, que a função lexical do indexical também
pode ser entendida como fazendo parte (secundária) do sentido cognitivo, pois a
função lexical consiste na determinação geral de um tipo de entidade a ser
apresentada. Mas ela precisa ser complementada por aquilo que é epistemicamente
relevante, pelo conteúdo semântico-cognitivo, que no caso é o modo de
apresentação de alguma coisa contextualmente dada. O mesmo acontece com a própria
frase indexical. Considere a frase “Aquilo é uma raposa”. A articulação
gramatical da frase não deixa de fazer parte do sentido que ela exprime. Mas
ele só se torna relevante e se completa como pensamento ou proposição se
contiver também um procedimento verificacional, que deve incluir os critérios
específicos de identificação de um certo animal no local e no momento em que
ele é apontado.
Um outro ponto a ser considerado é a ideia
fregeana de que os sentidos determinam as suas referências. Embora isso seja
correto e também no proferimento indexical o sentido determine a referência,
antes disso e simultaneamente a isso aqui é a referência que costuma determinar
o sentido. Ao ser avistada, a árvore florida real determina causalmente
a sua identificação pelo demonstrativo ‘aquela’, o qual, tendo ganho conteúdo
cognitivo, passa a determinar intencionalmente para o falante onde e
como a árvore se encontra. Mas não parece que essa mutualidade requeira alguma modificação
relevante no princípio fregeano de que o sentido determina a referência.
Afinal, é certo que muitas vezes as regras semânticas são estabelecidas tendo
como base causal a própria referência; isso acontece com nomes próprios e
termos gerais, cujas regras semânticas são originadas da experiência que respectivamente
temos de objetos e propriedades. A diferença é que no caso dos nomes próprios e
dos termos gerais essa experiência deu-se geralmente no passado e gerou
convenções semânticas tácitas, mais ou menos compartilhadas entre os falantes.
Essas convenções são os sentidos fregeanos, devidamente reconstruídos sem um
desnecessário apelo ao realismo ontológico, os quais por sua vez são usados
para determinar a referência. A
diferença com relação ao indexical não está, pois, no fato de o conteúdo
cognitivo ser determinado pela referência, mas no fato de ele estar sendo presentemente determinado pela sua referência e pelo fato de que a
regra que o constitui – que não deve se distinguir do próprio conteúdo
semântico-cognitivo do indexical – não ter chegado a se instituir na forma de
uma convenção entre os falantes (embora, como veremos, ela possa se tornar
eventualmente uma convenção, no caso em que partes importantes de seu conteúdo
acabem se tornando explicitáveis através de descrições definidas
suficientemente compartilhadas entre os falantes).
Finalmente, uma concepção neofregeana do
funcionamento dos indexicais como essa que estou sugerindo responde bem ao
problema do conteúdo das frases indexicais falsas. Suponhamos que nossa vítima
de alucinose alcoólica tenha a alucinação perfeita de um cavalo branco. A
pessoa diz “Lá está um cavalo branco” apontando para o espaço vazio. Para a
teoria da referência direta, a crença falsa que a pessoa está tendo precisaria
ter uma natureza semântica intrinsecamente diversa da natureza da crença que
ela tem quando aponta para um cavalo de carne e osso no mundo atual. Afinal, só
no último caso o conteúdo semântico do indexical está sendo dado como uma proposição
estruturada no mundo externo! Contudo, não há qualquer diferença intrínseca
entre um e outro conteúdo fenomenal de crença, posto que na alucinose alcoólica
as alucinações são qualitativa e quantitativamente perfeitas. O que nos
evidencia tratar-se de uma alucinação é na verdade a ausência de um contexto
adequado e, sobretudo, a ausência de intersubjetividade. A ideia de um “modo de
apresentação intencional” capaz de interpretação fenomenal não diferencia
radicalmente as crenças indexicais falsas das crenças indexicais verdadeiras. Para ela, o proferimento “Lá está um cavalo
branco” tem exatamente o mesmo conteúdo semântico-cognitivo, o mesmo modo de
apresentação, seja ele verdadeiro ou falso, o que está em perfeito acordo com
nossas intuições.
O
problema do indexical essencial
Contra
o recém-esboçado entendimento neofregeano do conteúdo semântico dos indexicais
há algumas objeções importantes. Quero agora apresentá-las seguidas de suas
respostas.
A primeira é a de que devem existir
conteúdos de pensamento irredutivelmente indexicais. John Perry introduziu
essa objeção por meio de um bem conhecido exemplo. Encontrando-se uma vez em um
supermercado ele percebeu um rastro de açúcar no chão e pôs-se à procura do responsável.
Após dar uma volta ao redor da estante ele percebeu que o rastro vinha do seu
próprio carrinho! A constatação inicial era:
(1) Alguém
está fazendo uma bagunça.
No
final a sua constatação se tornou:
(2) Eu estou fazendo uma bagunça.
A
constatação (2) não é a mesma que (1), pois acompanhou-se de uma súbita mudança
de comportamento. Ela também não pode ser substituída por (3) “Perry está
fazendo uma bagunça”, pois suponha que Perry estivesse sofrendo de demência,
tendo esquecido o seu próprio nome... A constatação poderia, é certo, ser
substituída por (4): “Perry está fazendo uma bagunça e Perry sou eu”. Mas nesse caso apenas se reconhece
a indispensabilidade do indexical.
O ponto em questão é o seguinte. Se Frege estivesse
certo, então o modo de apresentação do objeto expresso pelo indexical deveria
poder ser sempre parafraseado por uma descrição definida. Mas o exemplo de
Perry demonstra que o pronome pessoal ‘Eu’ em “Eu estou fazendo uma bagunça”
não pode ser substituído por descrição alguma sem que o seu conteúdo se altere.
Ora, isso parece suportar a ideia de que o conteúdo semântico do indexical é o
próprio objeto referido e que a concepção referencialista do conteúdo semântico
dos indexicais é correta.
Uma resposta a essa objeção foi apresentada
por John Searle. Ele admite a conclusão de Perry de que é impossível encontrar
uma paráfrase descritiva que preserve exatamente os mesmos critérios de verdade
da frase indexical (2). Contudo, Searle pensa que essa constatação não basta
para derrubar a ideia de que os indexicais possuem sentidos fregeanos como
conteúdos semânticos, pois mesmo que não possamos substituir o indexical por
uma descrição equivalente, isso não implica que o conteúdo semântico não seja
um sentido fregeano. Afinal,
é perfeitamente possível que o indexical se refira através de um modo de
apresentação sem que este último seja resgatável por descrições, ou pelo menos sem
que ele seja inteiramente resgatável por elas.
Não
creio, porém, que sequer essa concessão seja necessária. Minha resposta já foi inadvertidamente
dada quando parafraseei o proferimento de Frege “Essa árvore está florida” ao
discutir o externalismo semântico de Kaplan. Pretendo mais adiante mostrar que
é fácil aplicar o mesmo procedimento aos exemplos dados por Perry. Antes disso,
porém, quero discutir outras objeções apresentadas por esse autor com
finalidades similares.
Eis um segundo contra-exemplo que adapto de
Perry:
Maria profere o enunciado:
(1) Hoje é 7 de setembro.
no
dia 6 de setembro. Logo, a crença é falsa. Perry supõe que para Frege é preciso
haver alguma descrição que capture o sentido do indexical ‘hoje’. Suponha que
Maria esteja pensando na descrição definida ‘o dia da proclamação da
república’. Nesse caso, ao dizer (1) Maria está querendo dizer:
(2) O dia da proclamação da
república é 7 de setembro.
Nesse
caso, pensa ele, o descritivismo fregeano implica que a palavra ‘hoje’ dita no
dia 6 se refere ao dia 7 de setembro e que o proferimento (1) dito em 6 de
setembro expressa uma crença verdadeira, o que é absurdo. Portanto, a ideia
de Frege não pode estar correta.
Mas há problemas com essa objeção de Perry.
Primeiro: mesmo que Maria tenha em mente em (2), não é obviamente isso o que
ela está querendo dizer com (1). Embora ela também possa estar
implicitamente querendo informar que hoje é o dia em que se comemora a
proclamação da república, explicitamente o que ela está apenas querendo dizer
que hoje, o dia no qual ela está produzindo o proferimento (1), é realmente o
dia 7 de setembro, o que sabemos ser falso. O certo seria desdobrar o enunciado
de maneira a expor por completo o que ela de fato diz e o que ela tem em mente:
(3) O dia de hoje é o dia 7 de setembro e o dia 7
de setembro é o dia da proclamação da república.
A
conjunção (3) é, pois, a que melhor explicita aquilo que Maria tem em mente ao
proferir (1) no entendimento fregeano. Mas essa é uma conjunção obviamente
falsa. Até aqui nada de errado com Frege.
Mas podemos ir além, demonstrando que o
conteúdo do proferimento não precisa ser essencialmente indexical. Ele pode ser
reinscrito em terceira pessoa como:
(4) No dia 6 de setembro de 2011
Maria diz “Hoje é o dia 7 de setembro”.
Ou
ainda, contendo a descrição explicitadora do que Maria supostamente quer
informar, ele pode ser expresso assim:
(5) No dia 6 de setembro de 2011 Maria diz que
hoje é o dia 7 de setembro, assumindo que 7 de setembro é o dia da proclamação
da república.
É
verdade que os enunciados (4) e (5) não são sinônimos de (1): aqui
informações adicionais são acrescentadas. Mesmo assim, os enunciados ainda contém
o indexical ‘hoje’, incluindo o conteúdo de (1). Não obstante, esse o núcleo
indexical foi transformado. Os enunciados (4) e (5) transformaram o indexical
‘hoje’ em uma palavra que possui o que Frege chamaria de referência indireta
dada no contexto de uma frase sobordinada. Nesse caso, pensava ele, a
referência da frase subordinada passa a ser o seu sentido, donde o
indexical ‘hoje’ perde a sua referência indexical originária passando a se
referir ao modo de apresentação interno do dia 7 de setembro (o sentido), o
qual deixa de ser contextualmente relativo. Os enunciados (4) e (5) são
verdadeiros e são frases eternas, que nem por isso deixam de assinalar o
valor-verdade falso do proferimento (1) nelas contido. Essa paráfrase
descritiva salva a explicação fregeana da crítica de Perry ao situá-la em um
contexto enunciativo mais complexo que a inclui inteiramente, suspendendo a dependência
do contextual concreto que havia no proferimento inicial.
Em um outro exemplo de Perry,
elaborado de forma mais enfática por John Searle,
imagina-se que David Hume diga:
(1) Eu sou Hume,
e
que nesse mesmo momento, em um planeta distante chamado Terra-Gêmea – onde
quase tudo acontece exatamente do mesmo modo que aqui na Terra –, o Doppelgänger
de David Hume, que se chama Heimson, mas que não escreveu o Treatise e
os Essays, diga
(2)
Eu sou Hume.
Parece
que o pensamento é o mesmo: ambos acreditam ser o filósofo David Hume. Contudo,
a sentença (1) é verdadeira, enquanto a sentença (2) é falsa. Parece, portanto,
que Frege está errado e que o conteúdo semântico do indexical não se reduz ao
pensamento. Ele deve ser a própria referência, que só no primeiro caso é o
próprio Hume, enquanto no segundo caso é apenas Heimson!
Para responder a essa objeção é preciso em
primeiro lugar considerar que para uma concepção como a de Frege não só o
tempo, mas também o lugar do proferimento podem (e na verdade devem) ser
considerados pertencentes ao
pensamento indexicalmente expresso, na medida em que forem considerados, sendo
essa pertinência estabelecida pelo fato de esses fatores contribuirem para o
valor-verdade do pensamento em
questão. Ora, como o verdadeiro Hume se encontra em um lugar
chamado Terra e não em um outro chamado Terra-Gêmea, (1) é um proferimento
verdadeiro porque o pensamento por ele expresso diz respeito ao Hume da Terra,
enquanto (2) é falso porque o pensamento por ele expresso diz respeito a quem
não é o Hume da Terra. (Mais
adiante veremos que aquilo que Frege chama de pensamento, incluindo o
pensamento indexical, poderia ser mais circunstanciadamente parafraseado em
termos de uma regra verificacional.)
A essa resposta se poderia ainda objetar que
“Eu sou Hume” é verdadeiro para o Hume da Terra e falso para Heimson, mesmo que
eles não saibam de nada acerca da Terra e da Terra-Gêmea; afinal, não
precisamos, para usarmos indexicais corretamente, conhecer muito mais além das
circunstâncias imediatas de sua aplicação. Contudo, essa objeção advém de não
termos percebido que o pensamento indexical implicitamente envolve a
localização no espaço como um todo e não só no espaço que circunda o falante,
posto que até onde sabemos nosso espaço forma (como diria Kant) uma unidade.
Assim, se adicionarmos que Hume disse “Eu sou Hume” em sua casa em Edimburg, na
Escócia, no planeta Terra, que é o terceiro do sistema solar e que se encontra
no braço Órion da via Láctea... essas informações encontram-se pelo menos implicadas
pelo pensamento indexical, uma evidência disso sendo que elas seriam certamente
admitidas pelo próprio Hume como implicações legítimas caso ele fosse devidamente
informado a respeito. Assim, quando Heimson diz (1) “Eu sou Hume”, com a
intenção de identificar-se com David Hume, ele não pode estar dizendo outra
coisa senão:
(2’) Eu sou o Hume histórico do planeta Terra.
Mas com
isso Heimson faz repousar o seu pensamento sobre a assunção contextualmente
falsa de que ele é Hume, escreveu o Treatise e se encontra na Terra e
não na Terra-Gêmea, quem quer que saiba que o Hume histórico do planeta Terra não
é Heimson, saberá que o proferimento (2’) é falso.
Kaplan adiciona às objeções de Perry um
problema modal. Suponha que eu diga:
(1) Se eu existo então eu estou falando.
e
suponha que o indexical ‘eu’ seja substituido pela descrição definida ‘a pessoa
que está falando’. Nesse caso o enunciado passa a significar o mesmo que:
(2) Se a pessoa que está falando existe, então
a pessoa que está falando está falando.
Contudo,
pensa Kaplan, (2) exprime uma verdade necessária, uma proposição verdadeira em
todos os mundos possíveis, diversamente de (1), que é contingente. Logo (2) não
pode querer dizer o mesmo que (1).
Esse argumento nos deixa inicialmente perplexos.
Afinal o enunciado (1) faz tão pouco sentido quanto “Se eu existo então eu
estou correndo” ou “Se eu existo então eu estou espirrando”. Não há
literalmente relação alguma entre antecedente e consequente, a menos que (1)
seja entendido como uma forma abreviada de (1a): “Se enquanto estou falando
isso eu existo então eu estou falando”. Mas (1a) parece ser um proferimento necessário.
Afinal, em qual mundo possível seria verdadeiro que eu, ao dizer o que estou
falando, não existo? Agora,
substituindo ‘eu’ por ‘a pessoa que está falando’ em (1a) o que temos é uma
verdade igualmente necessária:
(5) Se, enquanto estou falando
isso, a pessoa que está falando existe, então ela está falando.
Conclusão:
ou o problema modal de Kaplan não faz sentido ou, se faz, não representa
problema algum.
Não
parece, pois, que indexicais precisem ser preservados em seus contextos de
proferimento para não perderem os seus conteúdos semânticos. Só o compromisso
com teorias da referência direta é que conduziu filósofos a insistirem na
essencialidade do indexical.
Contra
o indexical essencial
A
maneira neofregeana de pensar a distinção entre sentido lexical e conteúdo
semântico tem em meu juízo uma vantagem teórica importante ao permitir-nos uma
tradução suficientemente adequada dos proferimentos indexicais em frases eternas
– uma tradução que dissolve o problema do indexical essencial.
Usando exemplos do próprio Perry, imagine
que em diferentes ocasiões ele diga:
A
1 Eu estou fazendo uma bagunça.
2 Hoje está chovendo.
3 Agora preciso ir à reunião.
4 Hoje é 4 de julho de 1972.
Suponha
também que os proferimentos (1) e (2) sejam verdadeiros, enquanto (3) e (4)
sejam falsos. O proferimento (3) é falso por ter sido cancelada a reunião sem
que o falante tenha sido informado, sendo (4) falso por ter sido proferido em 3
de julho de 1972. Para Perry esses são indexicais essenciais porque não podem
ser substituidos por sentenças não indexicais (“descrições”). Não obstante, os
proferimentos listados em A podem ser correspondentemente parafraseados no
interior das seguintes frases eternas, cuja relação indexical com nosso mundo é
suspensa, como as listadas na coluna B:
B
1 Na seção de adoçantes do supermercado Fleuty em
Berkeley às 8 horas da noite do dia 23/06/1968, vendo que o seu carrinho está
deixando um rastro de açúcar pelo chão, Perry diz que ele está fazendo uma bagunça (ou diz: “Eu estou fazendo uma
bagunça”).
2 No Willard Park, em Berkeley, às nove horas da
manhã do dia 12/05/1972 começa a chover e Perry diz que está chovendo (ou diz: “Está chovendo”).
3 Na entrada da UCLA-Berkeley pouco após o meio
dia de 2/08/1972 Perry consulta seu relógio e conclui que precisa ir à reunião, que é às 13 horas (ou conclui: “preciso
ir à reunião”).
4 No dia 3 de julho de 1972, às 9 da manhã, em
Berkeley, Perry diz que hoje é 4 de julho de 1972 (ou diz: “Hoje é 4 de julho
de 1972”).
Aqui
as mesmas observações se repetem. Primeiro, embora os indexicais compareçam
nessas paráfrases, eles o fazem após cláusulas-que no interior de frases
subordinadas ou no interior de frases apresentadas entre aspas. Ora, para Frege
essas frases, e com isso os indexicais que a elas pertencem, perdem a sua
função referencial usual. As
frases indexicais passam a se referir aos seus sentidos, chamados por ele de
pensamentos, e não mais ao mundo. Quanto aos indexicais que nelas se encontram,
eles devem passar a se referir então, não mais aos seus objetos próprios de
referência no mundo, mas ao modo como eles o apresentam, aos seus sentidos, em
outras palavras, a conteúdos semânticos internos. Esse
procedimento permite que evitemos que as paráfrases sugeridas se tornem frases
propriamente indexicais no sentido próprio, ou que contenham termos indexicais
com funções verdadeiramente indexicais, transformando-as em frases ditas eternas.
Além disso, esse mesmo procedimento é capaz de capturar a propriedade de
reflexividade-token das frases-que
subordinadas ou entre aspas que expressam proferimentos indexicais, uma vez que
as relações contextuais que participam na expressão do pensamento são explicitadas
no interior das próprias paráfrases.
É indispensável perceber que não estou
tentando defender que todos os aspectos do sentido realmente pensados pelos
falantes das respectivas sentenças do primeiro e do segundo grupo são exatamente
os mesmos. No que concerne à relação entre B1 e A1, por exemplo, é possível que
Perry tenha esquecido o próprio nome e que ele não saiba o nome do supermercado
onde se encontra. Mas isso não tem a menor importância para o que pretendo
demonstrar, pois nós percebemos que um número indeterminado de detalhes pode
ser adicionado na complementação das frases eternas da coluna B. Posso, por
exemplo, dizer que o supermercado Fleuty está ao norte da cidade de
Connecticut, nos EUA, que o Willard Park é uma praça em Berkeley, que a manhã
de 12/05/1971 é estabelecida pelo calendário gregoriano baseado no tempo
histórico do planeta Terra etc. Essa possibilidade de complementação da
determinação espaciotemporal tem a ver, certamente, com o elemento indexical pervasivo
de todo o discurso empírico. O que quero fazer notar, porém, é que Perry pode ter
maior ou menor consciência dos conteúdos A1, A2, A3 e A4, mas que aquilo que
Perry tem consciência ou que é capaz de aprender se encontra ao menos implicado
respectivamente por B1, B2, B3 e B4, a saber, está sendo de algum modo pressuposto
nesses pensamentos, mesmo que a eles não pertença. Em outras palavras, o que
faço ao traduzir uma sentença indexical da coluna A em uma sentença eterna da
coluna B é adicionar implicações que o falante possivelmente desconhece, ainda
assim capturando o máximo daquilo que o proferimento do falante é capaz de
expor. O que as paráfrases da coluna B fazem é uma reprodução do mesmo conteúdo
sob a adição de elementos factuais novos, não pensados ou até mesmo não sabidos
pelo falante, embora o falante seja em geral capaz de aceitá-los prontamente
como complementos verídicos, o que vale também para os ouvintes.
Mas se é assim, então por que o indexical ainda
parece possuir algo essencial e insubstituível? Receio que a resposta a
semelhante questão seja muito mais trivial do que se possa imaginar. Ela reside
no simples fato de que os elementos fenomenalmente dados à percepção não podem
ser linguisticamente reproduzidos por descrições. Não posso reproduzir através
de descrições linguísticas o perfume da água de colônia, o calor do sol, a
beleza de uma paisagem, a não ser por intermédio de paráfrases indiretas, que
só serão compreendidas por quem já possui experiências fenomenais semelhantes. Reconheço
que quanto a isso os conteúdos semânticos dos indexicais permanecem
intraduzíveis em termos descritivos. Ninguém pode reproduzir linguisticamente
as impressões visuais de quem contempla uma catedral gótica nem as impressões
auditivas de quem ouve uma sinfonia. Contudo, não é esse elemento fenomenal o
que nos importa aqui, pois ele não satisfaz a função primordial da linguagem de
comunicar com base em convenções. Considere, por exemplo, o proferimento “Eu
estou fazendo uma bagunça”. Só quem participa da situação indexical como
falante ou ouvinte pode ter acesso aos sentimentos de surpreza, perturbação e
vergonha do falante. Mas do ponto de vista do conteúdo semântico-cognitivo isso
é irrelevante.
Com efeito, os conteúdos dos proferimentos
do grupo A só são relevantes para a comunicação na medida em que se tornam resgatáveis
pelas frases eternas do grupo B, mesmo que essas últimas não conservem nada do conteúdo
fenomenal vivenciado no proferimento. Mais ainda, essas substituições são
frequentes e realmente úteis quando reportamos conteúdos de proferimentos
indexicais a terceiros. Assim, o que há de realmente único (essencial) no
indexical são apenas os aspectos fenomenais de seus sentidos, que respondemos
através de colorações (Färbungen) emocionais, as quais podem ser
episódicas e irrepetíveis. Contudo, por serem esses elementos escassamente comunicáveis
a quem não compartilha da situação de fala, eles deixam de importar à
linguagem. Assim, embora no que concerne ao elemento fenomenal o episódio
identificador e verificacional no qual se dá o pensamento (proposição) indexical
seja único e insubstituível a tal ponto que o próprio falante não seria capaz
de reproduzi-lo, o mesmo não acontece com o pensamento indexical. Esse
pensamento, entendido como um modo de apresentação fregeano, ou, tal como prefiro
interpretá-lo, como uma combinação episódica de regras relacionando o falante
ao contexto, pode ser descritivamente registrado e reproduzido. A regra
constitutiva do conteúdo semântico do indexical é episódica, tal como o
elemento fenomenal, mas diversamente da última, ela se deixa ser linguisticamente
reproduzivel no ouvinte e comunicável através dele. Como a função da linguagem
comunicacional não é a de preservar o elemento fenomenal, mas a de selecionar o
que pode ser comunicado, o essencial do proferimento indexical é preservado nas
paráfrases da classe B. Em suma: o assim chamado “indexical essencial” de Perry
não é mais do que um mito filosófico entre tantos outros.
A favor de minhas paráfrases está ainda o fato
de que o próprio Perry seria facilmente capaz de reconhecer as substituições
B1, B2, B3 e B4 como sendo válidas. Ele poderia ser informado, por exemplo, que
ao dizer que estava fazendo uma bagunça isso aconteceu no dia 23/06/1968 e que
ele estava no supermercado Fleuty, ao norte de Connecticut etc., estendendo
assim o seu saber em torno daquilo que ele mesmo experienciou. Ou seja: os
sentidos dos substitutos não-indexicais dos proferimentos indexicais podem ser
considerados complementos adequados, uma vez que aquilo que eles perdem são
elementos fenomenais subjetivos e episódicos, enquanto o que eles adicionam são
extensões não-próprias, mas inferencialmente legitimáveis, do conteúdo
semântico dos indexicais por eles capturados.
O que foi dito acima pode ser melhor
esclarecido quando percebemos que a tensão entre esse “sentido episódico” do
proferimento indexical e o sentido da sua paráfrase não-indexical só vem a acontecer
enquanto o conteúdo do proferimento é acessível ao falante e ao ouvinte, mas
não à comunidade linguística em
geral. Se o avaliador do conteúdo dos proferimentos da coluna
A não for o próprio Perry, mas uma terceira pessoa que os reporta, nós
implicitamente admitiremos que os seus conteúdos são descritivamente
explicitáveis. Por exemplo: Mary ouviu Perry dizer que está chovendo. Mas Perry
ingeriu uma droga que o tornou provisoriamente delirante e, como resultado
disso, além de acreditar que é outra pessoa, está alucinando que se encontra
exposto a uma tempestade. Mais tarde, ao contar o episódio a alguém, Mary diz
algo como “Quando estávamos no Willard Park em Berkeley, no diz 12, Perry disse
que estava chovendo quando na verdade não estava...”. Aqui, para o propósito de
comunicação, A2 já foi completamente substituída por ao menos parte de B2. Ora, como o proferimento com indexicais só
ganha interesse em termos informativos para a comunidade linguística na medida
em que ele for substituível por proferimentos em terceira pessoa, proferimentos
cujo conteúdo é interpessoalmente acessível através de descrições independentes
do contexto e nos quais o elemento fenomenal se perde por ser limitado ao episódio
em que o indexical tiver sido inicialmente usado, sua irrelevância
comunicacional fica demonstrada.
Em resumo:
constatamos ser possível a substituição do proferimento indexical por uma frase
descritiva eterna que o contém de modo a preservar o que mais interessa: o
conteúdo semântico, entendido como o sentido cognitivo ou epistêmico convencionalmente
fundado da frase indexical É verdade que
ao fazermos isso adicionamos elementos que não foram pensados pelo falante. Contudo,
eles são geralmente capazes de ser reconhecidos por ele mesmo e pelos outros
falantes como assunções complementadoras do proferimento. Por ser comunicável
na independência do contexto, tal paráfrase descritiva é a que realmente
importa. Ela pode ser mesmo desejável como um filtro que exclui aspectos fenomenais
não-convencionalmente fundados e comunicacionalmente irrelevantes.
A
plasticidade do pensamento
Considere
agora os seguintes pares de proferimentos e pergunte-se se eles têm ou não têm
o mesmo sentido:
1a Hoje
é um belo dia em Natal (dito hoje) e
1b Ontem foi um belo dia em Natal (dito amanhã).
2a Eu estou com fome (dito por João) e
2b Você está com fome (dito por Maria para
João).
A
resposta de Frege para casos como esses não parece ser muito coerente. Explicitamente,
ao analisar um caso do tipo (1), ele sugeriu que se trata do mesmo
pensamento-proposição (Gedanke), que para ele é o sentido da frase, o
que parece razoável. Mas essa sugestão não parece estar de acordo com o
critério para a identidade do pensamento por ele sugerido, segundo o qual,
dados dois pensamentos P1 e P2, eles serão idênticos quando não for possível
atribuir um valor-verdade a P1 sem atribuir o mesmo valor a P2. Ora, é possível
a atribuição de verdade a (1a) sem que se seja capaz de atribuir verdade a (1b);
é possível a atribuição de verdade a (2a) na independência da atribuição de
verdade a (2b).
A consideração acima levanta a questão de se
saber se pares de sentenças como os acima mencionados não seriam em certas
condições capazes de exprimir pensamentos (proposições, significados de
sentenças declarativas, conteúdos cognitivos...) que não são idênticos. Afinal,
se entendermos os pensamentos como intrinsecamente fundados sobre os critérios
utilizados para a determinação da verdade, eles podem diferir. Maria pode ter
razões para pensar que João está faminto, afinal ela não o viu comer nada o dia
inteiro; mas ela pode estar enganada (2b). João, porém, muito dificilmente se
enganará acerca de sua fome, uma vez que o modo de acesso que ele possui é mais
direto (2a). Além disso, hoje alguém pode se enganar acreditando que ontem foi
um belo dia em Natal simplesmente por não ter estado ontem em Natal e ter sido
confundido por falsas informações (1b). Mas é bem mais difícil alguém estar
sendo enganado pelo belo dia que está atualmente presenciando em Natal (1a). Se
admitirmos essas conclusões encontramo-nos diante de um dilema: qual das
alternativas devemos aceitar como identificadora do pensamento?
Para chegar a uma resposta, minha primeira
sugestão é a de que é preciso identificar o pensamento ou o sentido cognitivo da
frase com a sua regra de verificação, tal como fez Ernst Tugendhat para o caso
do enunciado predicativo singular e tal como muito antes dele de forma muito
própria sugerido por Wittgenstein. A mainstream contemporânea diria que
essa é uma ideia que há muito foi demonstrada inadmissível. Eu respondo que
não: o que testemunhamos aqui é na verdade um dos maiores blunders da
filosofia analítica contemporânea, que foi capaz de produzir uma uma falsa e
vastamente empobrecedora sabedoria herdada. Explico: muitos acreditam que o
princípio da verificação foi ideado pelos membros do positivismo lógico (como Moritz
Schlick, A. J. Ayer e Rudolph Carnap...) e que mais tarde ele foi problematizado
e rejeitado por eles mesmos e pelos filósofos por eles influenciados (de Carl
Hempel a W. V. Quine, tendo isso sido tomado como dogma pelos que os seguiram,
de Davidson a Kripke). Ao se pensar assim, porém, se esqueceu que esse
princípio foi originariamente proposto para os membros do Círculo de Viena pelo
próprio Wittgenstein em 1929, que foi a primeira pessoa a identificar o
significado de uma frase com o método pelo qual ela é verificada. Se voltarmos às origens do princípio, ou seja,
aos textos de Wittgenstein, descobriremos que o “princípio da verificação”
construido pelos filósofos do Círculo de Viena era na verdade um homem de palha
com objetivos precisionistas e anti-metafísicos alheios aos de Wittgenstein, e
que aquilo que eles posteriormente destruiram não foi o verdadeiro princípio da
verificação, mas o homem de palha que eles mesmos construiram e depois se
apressaram a destruir. Se nós voltarmos a Wittgenstein, ficaremos surpreendidos
em perceber que na forma germinal como ele aparece em seus escritos, o
princípio da verificação indicava um caminho muito diverso. Ele seria o de uma variada
e complexa análise pragmática de tipos de enunciados em sua relação com o
mundo, a qual, pelo que me consta, jamais foi sistematicamente desenvolvida. Aqui
eu posso exemplificar a ideia apenas muito resumidamente, pela citação de um de
seus textos:
Ler que Cambridge venceu a corrida de barcos, o que
confirma que ‘Cambridge venceu’, não é obviamente o significado, mas é
conectado com ele. ‘Cambridge venceu’ não é a disjunção: ‘eu vi a corrida ou eu
li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se você excluir quaisquer meios de
checar a sentença, você muda o seu significado. Seria uma violação das regras
gramaticais se você desconsiderasse algo que sempre acompanhou o significado. E
se você excluir todos os meios de verificação, você destruirá o significado.
Claro, nem toda a espécie de checagem é presentemente usada para verificar
‘Cambridge venceu’, nem qualquer modo de verificação tem a ver com o
significado. As diferentes checagens do ato de vencer a corrida de botes tem
diferentes lugares na gramática de ‘vencer a corrida de botes’.
Ou
seja, o que poderíamos chamar de regra geral de verificação formando o
significado cognitivo de uma sentença declarativa é nesse exemplo algo como uma
árvore cheia de ramificações, cujo tronco é a observação oficial da equipe de Cambridge
ultrapassando a linha de chegada. Ela deve incluir um entremeado mais ou menos amplo
de sub-regras criteriais que possuem
diferentes valores: ver Cambridge vencer e ouvir a decisão do juiz tem
certamente muito maior valor do que condições dependentes como a de ler em um
jornal, ouvir o testemunho de alguém ou encontrar uma taça com inscrições no
clube.
Podemos entender o caso acima como o de uma
regra geral que se desdobra em sub-regras. Ao modo de Tugendhat nós
entenderíamos a regra geral de verificação (Verifikationsregel) da
sentença “Cambridge venceu a corrida de botes” como sendo constituida de uma
regra de identificação (Identifikationsregel) do bote da equipe de
Cambridge que, uma vez aplicada, permite a subsequente aplicação da regra de atribuição
(Aplikationsregel) da predicação de que essa equipe venceu a corrida de
botes. Mas essas regras são, por sua vez, o que poderíamos chamar de regras criteriais,
regras que possuem critérios de aplicação, os quais podem ser múltiplos. Há,
porém, como também notou Wittgenstein, critérios primários e secundários,
mais tarde respectivamente chamados por ele de critérios e sintomas. Ele
oferece um exemplo com respeito à frase “Está chovendo”:
Podemos distinguir entre critérios primários e
secundários para o estar chovendo. Se alguém pergunta: “O que é chuva?”, você pode
apontar para a chuva caindo ou derramar água de uma caneca d’água. Esses
constituem critérios primários. Pavimentos molhados constituem um critério secundário
e determinam o significado de “Chove” de um modo menos importante.
Critérios
primários para a regra de identificação do vencedor no primeiro exemplo são os
de se identificar visualmente o bote da equipe de Cambridge e o de vê-lo cruzar
a linha de chegada antes dos outros, além de ouvir a informação dos juízes de
que a equipe venceu a corrida, para a regra de atribuição. Esses são
fundamentais. Há, também, as múltiplas ramificações possíveis da árvore: os
critérios secundários, como o de ter sido informado por testemunho que a equipe
de Cambridge venceu, o de ter lido em um jornal etc. Obviamente, os critérios
secundários dependem dos critérios primários, mesmo assim trazendo, para Wittgenstein,
alguma contribuição para o significado da sentença.
Finalmente, o conceito de critério possui uma
ambiguidade subjetivo-objetiva. Ele pode ser visto como uma condição interna à
regra, mas pode também ser visto como a condição externa que a satisfaz. Por
isso, dizer que o conteúdo de pensamento de uma sentença declarativa é
verificado por um fato é o mesmo que assumir alguma forma de teoria
correspondencial da verdade: trata-se de uma outra maneira de se dizer que
esse conteúdo corresponde ao fato, dado que os criterios verificacionais, sejam
eles quais forem, devem possuir uma estrutura subjetiva isomórfica à estrutura
objetiva do fato ou aspecto sub-factual que os satisfaz, o que constitui a
essência daquilo que chamamos de correspondência.
Como
vemos, não se trata de algo que possa ser generalizado através de um única formulação
lógica universalmente válida, como pensaram os filósofos do Círculo de Viena.
Mais do que isso, as objeções dos positivistas lógicos e de sua prole contra as
suas próprias versões do verificacionismo não afetam o que Wittgenstein queria
dizer. Me limitarei aqui a um único exemplo. Considere a conhecida objeção holista
de W. V. Quine à identificação do significado do enunciado com a sua regra
verificacional, segundo a qual “...nossos enunciados sobre o mundo externo
fazem frente ao tribunal da experiência sensível não individualmente, mas como
um corpo corporativo.” Ao escrever isso Quine confundiu
a regra verificacional de uma frase declarativa, que lhe doa significado, com o
background verificacional, que sem dúvida contribui para sustentar a sua
verdade, mas cuja verificação já está sendo pressuposta por ela. Esse backgound,
por sua vez, constitui-se de enunciados cujos significados entram na conta de
outros procedimentos verificacionais, os quais são muito diferentes dos que
podem verificar e dar significado ao primeiro enunciado. Essa simples
consideração, pareando significados de sentenças com suas respectivas regras de
verificação, confirma a identificação do significado cognitivo com a assim
chamada regra de verificação, ao menos contra Quine. Não é aqui o lugar de me
estender sobre esse ponto; irei apenas assumir sem mais um verificacionismo semântico
de um tipo “wittgensteiniano”.
Volto agora à sugestão inicial
de que nosso
conceito de pensamento-proposição ou sentido cognitivo da sentença enunciativa
ou regra verificacional, dependendo da formulação e contexto, possui a propriedade de ter diferentes critérios de
aplicação efetivamente satisfeitos em sua verificação, o que conduziria a uma
diferença naquilo que é semanticamente considerado, a uma diferente ênfase
semântica. Se esse for o caso poderemos admitir que é possível usar a
expressão ‘o mesmo pensamento’ de maneira mais ou menos exigente, atentando
para os diversamente valorizados critérios de uma mesma regra verificacional a
ser compartilhada entre os falantes, uma condição geral que estabeleça de
antemão se estamos falando da regra geral como um todo ou do critério efetivamente
aplicado. Sob essa leitura, frases dos tipos (a1-a2) e (b1-b2) sob uma
perspectiva mais tolerante exprimem pensamentos iguais, enquanto sob uma
perspectiva mais exigente passam a exprimir pensamentos mais ou menos diferentes.
Esse
ponto pode ser melhor explicado. Quando digo que você e eu tivemos “o mesmo”
pensamento estamos falando de similaridade entre dois conteúdos de pensamento.
Mas o grau de congruência exigido poderá incluir ou não os critérios
verificacionais diretamente envolvidos no contexto do que é pensado no proferimento.
Consideremos outra vez os exemplos. Os pensamentos (2a) e (2b) são similares,
pois compartilham de alguns critérios de verificação, mas não de outros. Maria
sabe que João está com fome porque tem evidências de que ele ficou sem comer por
muitas horas; João sabe que ele próprio está com fome porque sente a barriga
roncando. Os dois critérios são inferencialmente interligados, a satisfação do
primeiro usualmente gerando a do segundo, a própria fome de João – a condição última
de verdade, o critério primário, o fato verificador fundamental. Por isso,
embora grosso modo os proferimentos (2a) e (2b) exprimam um mesmo núcleo de pensamento,
que atribui a João a sensação de fome, um exame mais exigente mostra que é
possível encontrar diferenças em detalhes semânticos – naquilo que Wittgenstein
justificadamente enfatizou como sendo o uso ou aplicação – pois tais
pensamentos envolvem a consideração frequentemente pública de modos de
apresentação algo diversos de um mesmo estado de coisas, melhor dizendo, de critérios
verificacionais (no caso, fazedores-de-verdade) algo diversos, o de (2a),
baseado em um critério verificacional primário, e o de (2b), consistindo em uma
ramificação verificacional limitada a um critério verificacional secundário. O
mesmo se aplica a (1a) versus (1b). O
proferimento “Hoje é um belo dia em Natal” geralmente se verifica diretamente
pela percepção, que é o critério verificacional primário, enquanto “Ontem foi
um belo dia em Natal” se verifica por meio de critérios secundários, digamos, por
intermédio da memória da percepção de algo que foi diretamente verificado, ou
por testemunho... Em tais casos, o mesmo estado de coisas é apresentado por intermédio
de caminhos verificacionais mais indiretos, que pressupõem o primeiro. Contudo,
o critério mais próprio está no que muitas vezes é chamado de a ‘condição de
verdade’: no fazedor-de-verdade que podemos chamar de o fato verificador. Sumarizando:
de um ponto de vista genérico, que envolve somente a regra geral de verificação,
os pensamentos (2a) e (2b) são os mesmos, o mesmo se dando com (1a) e (1b). Por
outro lado, se tomarmos como base a diferença no modo de apresentação do estado
de coisas geralmente refletida na diversidade do indexical empregado, os
critérios usados deixam de ser os mesmos, resultando disso uma diferença no
sentido cognitivo, uma vez que estamos assumindo que o sentido cognitivo contextualmente
relevante enfatizado pelo enunciado é o mesmo que a sub-regra verificacional
que estabelece o critério pelo qual ele é efetivamente verificado.
Diante de tais considerações pode ser argumentado
que do ponto de vista da condição última para a identidade do pensamento no
proferimento indexical, a alternativa mais coerente poderia ser a de elevar as
exigências ao máximo, demandando que qualquer diferença criterial capaz de
produzir alguma variação na avaliação do valor-verdade da frase nos permita
identificar uma diferença ao nível do pensamento, ou seja, no conteúdo de
significação do enunciado. Quero apresentar dois exemplos que parecem mostrar
que essa sugestão corresponde à nossa práxis linguística até o ponto de sua
impraticabilidade. O primeiro é espacial e diz respeito a uma visita que fiz ao
museu egípcio em Berlim, quando pude contemplar o busto de Nefertitis. Ao entrar
no salão repleto de gente, divisei o busto ao longe, me aproximei e, já perto,
o rodeei lentamente, admirando a qualidade da escultura. Há uma série de
crenças indexicais espaciais que posso ter tido nessa ocasião. Algumas delas seriam
formuláveis como:
A
1 Lá está Nefertitis (quando a distingo de
longe),
2 Ali está Nefertitis (quando me aproximo dela),
3 Aqui está Nefertitis (quando a examino de
perto),
4 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de lado),
5 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de trás)...
Outro
exemplo, agora temporal, diz respeito à informação sobre o terremoto no Haiti. Alguém
pode dizer:
B
1 Acaba de haver um terremoto no Haiti (dito
minutos após).
2 Acaba
de haver um terremoto no Haiti (dito horas depois).
3 Hoje
houve um terremoto no Haiti.
4 Ontem
houve um terremoto no Haiti.
5 Há um
ano houve um terremoto no Haiti.
A
questão é: em que medida e sob que critérios podemos dizer que os pensamentos
de cada grupo são os mesmos? Se mantivermos a tese da plasticidade semântica do
pensamento temos uma resposta.
Primeiro, se decidirmos ignorar as
diferenças entre os componentes linguísticos e contextuais da expressão do
pensamento, considerando apenas a condição de verdade, entendida como o fato
verificador fundamental demandado pela regra geral de verificação sugerida
pelos proferimentos, podemos dizer que há um único pensamento expresso pelos
cinco proferimentos de cada grupo, qual seja, o de que eu no dia tal e tal vi o
busto de Nefertitis, no primeiro, e o dizer de que ocorreu um terremoto no
Haiti, no segundo. Escolhemos aqui os dois núcleos de pensamento contidos nas
variantes de cada grupo. O primeiro núcleo de pensamento possui como condição
de verdade última o fato fundamentador que é o busto de Nefertitis no museu de
Berlim. Esse núcleo é implicado por cada variante do grupo A. O segundo núcleo
de pensamento tem como fato fundamentador último o fato-evento de ter havido um
terremoto no Haiti, sendo esse núcleo implicado por cada variante do grupo B.
Se
decidirmos ser menos exigentes, fazendo apelo às diferenças linguísticas, então
podemos encontrar para o grupo A três pensamentos diferentes, distinguidos
pelos sentidos lexicais dos indexicais ‘lá’, ‘ali’ e ‘aqui’, que são A1, A2 e (A3,
A4 e A5). Além das diferenças no sentido lexical, as regras criteriais
aplicadas são sub-regras de algum modo geradas pela regra geral de verificação,
demandando a satisfação de sub-fatos como o da face esquerda de Nefertitis e
correspondentes modos de apresentação constituidos pelos critérios das regras
de identificação aplicadas. Já para o grupo B há quatro pensamentos diferentes,
distinguidos pelos sentidos lexicais dos indexicais ‘acaba de haver’, ‘hoje
houve’, ‘ontem houve’, ‘há um ano houve’, que são respectivamente (B1, B2), B3,
B4 e B5. Há aqui também ao menos quatro sub-regras criteriais (que podem ser
entendidas como ramificações da regra verificacional geral dependentes de
critérios secundários) que demandam, para serem satisfeitas, a existência de
sub-fatos como o de o terremoto ter ocorrido um ano antes do tempo do
proferimento.
Pode-se
aqui objetar que essas diferenças não são realmente semânticas, pois se o
significado dos pensamentos expressos pelos grupos A e B de sentenças são
capazes de incluir todas as ramificações verificacionais, pouco importa qual
ramificação verificacional deve ter verificado o pensamento, se aquela expressa
por A1 ou uma outra expressa, digamos, por A4. Mas também podemos responder
diversamente. Podemos dizer que se for A1 então uma ramificação verificacional será
enfatizada, realçada para além das outras, e mesmo que há um sub-fato
verificador, que é a apresentação de Nefertitis sob a perspectiva da entrada da
sala do museu, enquanto A4 realça uma outra ramificação verificacional, que é devida
à apresentação de um lado da face de Nefertitis, uma perspectiva fundamentada
pelo sub-fato que é a Nefertitis de perfil. Seriam essas diferenças semânticas?
É possível dizer que se trata de diferenças no realce, na ênfase, no aspecto
semântico.
Finalmente,
se quisermos elevar o nível de exigência ao extremo, demandando que a condição
de identidade do pensamento seja dependente de qualquer coisa que efetivamente
tenha influido na avaliação de seu valor-verdade, deveremos considerar o
contexto espaciotemporal que pode envolver perspectiva e distância da
experiência sensorial que tenho do objeto em A (explicitadas entre parênteses) como
constituintes da expressão de um certo pensamento. Nesse caso poderíamos dizer
que em A há aqui cinco pensamentos (ou sub-pensamentos) diferentes em cada
grupo, um para cada proferimento, pois as perspectivas e distâncias diferentes no
espaço e no tempo contam, posto que dão ao falante diferentes modos factuais de
apresentação do objeto (sub-fatos verificacionais), produzindo diferentes
caminhos referenciais ou sentidos capazes de contribuir diversamente para o
valor-verdade do pensamento. (Se o busto de Nefertitis estivesse no interior de
uma câmara incrustada na parede, de modo que não se pudesse vê-lo por-de-trás, eu
estaria sob a perpectiva de A5 impedido de atribuir verdade ao pensamento;
quanto ao terremoto do Haiti, se a pessoa se encontrasse em um lugar muito distante
e sem condições de receber informações atuais sobre o terremoto, intervalos de
tempo muito curtos logo após o acontecimento teriam de ser descartados).
As considerações acima nos conduzem a uma questão
embaraçosa: o que devemos levar em conta como uma diferença semanticamente relevante
de perspectiva? Será que eu teria um pensamento diverso a cada 90 graus? Ou a
cada 10 graus? Ou a cada mudança perceptível de perspectiva? E o que contaria
para uma alteração significativa da distância? Deveríamos então aceitar que
qualquer alteração perceptível na
distância ou na perspectiva é suficiente para produzir alguma alteração no
conteúdo do pensamento, produzindo assim um limite mínimo racionalmente compreensível,
mesmo que ocioso? Deveríamos aceitar essa mesma conclusão com respeito aos intervalos
de tempo entre os relatos do grupo B? De um lado parece que sim, pois uma
pessoa pode conhecer uma ramificação de um pensamento, que ela sabe estar sendo
satisfeita, e ignorar ou desconhecer outras. Pode ser então que o nível em que
um sujeito epistêmico aplica a regra verificacional àquilo que ele sabe das
ramificações dessa regra seja importante. Mas a um nível mais geral parece que isso
não é válido, pois afora uma diferença no realce semântico, naquilo que está
sendo enfatizado por ser a ramificação efetivamente satisfeita da regra verificacional,
o que realmente conta como o sentido ou significado cognitivo ou pensamento é
uma única coisa nas variantes de A e uma única coisa nas variantes de B. Parece
então mais razoável limitarmos o que está sendo pensado ao que está sendo
indexicalmente expresso, caso no qual teremos três pensamentos (ou
sub-pensamentos), três ramificações criteriais verificacionais e três sub-fatos
para o caso A e quatro para o caso B, uma vez que A3, A4 e A5 são
linguisticamente idênticos, o mesmo acontecendo com B1 e B2. Afinal, por serem
linguisticamente idênticos as diferenças entre eles permanecem de certo modo
avessas à comunicação interpessoal. Mesmo assim, não deixa de haver diferenças contextuais
entre A3, A4 e A5 de um lado e B1 e B2 de outro. São diferenças sub-factuais e
de perspectiva com algum importe semântico e comunicacionalmente explicitáveis,
como o demonstram os complementos de A3, A4 e A5 e de B1 e B2 que comparecem
entre parênteses.
Minha conclusão é a de que partindo-se do
menos para o mais precisamente determinado podemos claramente divisar três
possibilidades:
1 O critério do fato fundamentador referido –
dado pela condição de verdade (o fato fundamentador fazedor-de-verdade) e pela
regra verificacional geral sugerida pelo proferimento, constituindo o núcleo
comum de pensamento.
2 O critério linguístico dado pela função
lexical do indexical, que é respaldado por algum sub-fato e permite a aplicação
de uma ramificação criterial secundária da regra verificacional, resultando em
um pensamento aspectual.
3 O critério da proximidade e perspectiva espacial
e/ou proximidade temporal, também respaldado por algum sub-fato, nesse caso
sendo dado por alterações contextualmente indicadas no proferimento, ainda que
não por um termo indexical, pois isso também permite o realce semântico de uma
ramificação criterial secundária da regra verificacional.
Creio
que podemos agora responder ao que no início se apresentou como um dilema. A
oscilação acerca do critério de identidade do pensamento inicialmente observada
resulta de uma alternância implícita entre a aceitação do critério (2)
(diferenças nos indexicais) ou mesmo (3) (diferenças contextuais) e a aceitação
do critério (1) (o pensamento entendido em termos genéricos como representação
do fato). Se atentarmos para nossa possibilidade de escolha, o dilema
desaparece. A oscilação entre o que podemos chamar de pensamento é função da plasticidade
daquilo que podemos entender como sendo o pensamento, que depende da
variabilidade dos critérios verificacionais e do elemento factual que estivermos
levando em conta.
Indexicais,
descrições, regras de identificação
Arthur
Burks foi quem propôs que o sentido completo do indexical depende de sua função
de localização espaciotemporal, de “direções” (geralmente dadas por gestos de
ostensão ou pelo contexto) e de descrições. Como ele notou “a menos que
(uma descrição do objeto indicado) esteja presente, explícita ou
implicitamente, o signo não pode indicar um objeto definido” Para
ele a forma lógica usual do proferimento indexical é “Esse A é B”, onde A está
para um elemento descritivo, que pode ser uma qualidade simples como em “Esse
vermelho é belo” ou um sortal como em “Esse livro é vermelho”.
Não
pretendo considerar aqui os questionamentos que podem ser feitos a essa ideia,
como é o caso de sua suposta inaplicabilidade a indexicais puros. Pretendo
apenas mostrar como proferimentos indexicais podem ser explicitados por
enunciados contendo descrições definidas, uma vez que considero parte da função
comunicacional das descrições definidas proverem substitutos de proferimentos
indexicais que se tornem comunicacionalmente independentes do contexto.
Posso
esclarecer o que quero dizer através de um exemplo. Digamos que na preparação
de um jantar, a anfitriã entre em um quartinho contíguo, onde há várias
cadeiras, aponte para a que está no canto e diga ao seu ajudante: “Leve essa cadeira para junto da mesa quando for
para servir o jantar”, ou mesmo “Leve isso
para junto da mesa quando for para servir o jantar”. Dessa maneira, ela cria
uma regra de identificação para uma cadeira específica. Isso fica claro quando,
passado algum tempo o auxiliar vai ao quarto, pega a mesma cadeira e a leva
para junto à mesa. Ele reidentifica o objeto corretamente. A regra de
identificação foi aqui criada tendo como critério duas coisas: Primeiro, a
indicação de um local no espaço egocêntrico (digamos, a anfitriã apontou para o
canto direito no fundo do quartinho ao lado da cozinha do velho casarão). Esse
critério constitui o conteúdo semântico, o sentido fregeano do demonstrativo
‘isso’ junto ao gesto de ostensão. Depois disso foi adicionada a especificação
do tipo de coisa que preenche o local indicado, o que aqui pode ser
feito pelo sortal ‘cadeira’, ao que se adicionam as propriedades perceptíveis
da cadeira em questão. A estrutura da regra nos é resumida nas palavras ‘essa
cadeira’, que forma aquilo que
Wittgenstein chamaria de uma expressão de
regra (Regelausdruck), a
saber, o símbolo linguístico de uma regra, que no caso é uma regra de
identificação. Essa regra, cujo domínio se deixa compartilhar entre falante e
ouvinte, permite que o objeto em questão seja interpessoalmente reidentificável.
Ao menos parcialmente, os critérios de identificação inclusos na regra podem
ser resgatados por uma descrição definida mais elaborada como, digamos, ‘o
objeto com forma de cadeira antiga, feito de madeira, com estofado de pano
vermelho, que uma hora antes do jantar se encontrava no canto direito do fundo do
quartinho que fica ao lado da cozinha da casa...’, ou
ainda, sob a forma de uma descrição russelliana como “Existe no mínimo um x e no máximo um x, tal que antes do jantar x
se encontrava no canto direito do quartinho ao lado da cozinha e x tem a forma de cadeira antiga com
estofado vermelho”. Tais
paráfrases são apenas expressões mais completas da regra cognitivo-criterial de
identificação do objeto a ser levado para junto da mesa. O que a regra apresenta
é:
(a) uma
localização e carreira espaciotemporal do objeto (a cadeira se encontra no velho
casarão, foi vista no canto direito do quartinho ao lado da cozinha antes de ir
para a mesa de jantar etc.)
(b) uma
regra de caracterização daquilo que é relevante no objeto (uma cadeira antiga
com estofado vermelho etc.)
Que
essa regra foi firmada torna-se claro, pois se o ajudante tiver esquecido dela,
a anfitriã poderá lembrá-lo de que se trata da cadeira de estofado
vermelho que está no canto direito do quartinho ao lado da cozinha, recorrendo
assim a uma descrição. A vantagem da regra ser explicitada na forma de uma descrição
definida reside no fato de ela possibilitar a referência interpessoal mesmo na
ausência do objeto.
Os indexicais são os termos capazes de
codificar informacionalmente nosso acesso perceptual ao mundo através de alguma
perspectiva contextualmente dada, cada qual traduzindo não só uma função
lexical, como um conteúdo semântico-cognitivo cuja forma é a de um modo de
apresentação, de um sentido “fregeano”, de uma regra de identificação a ser
criterialmente satisfeita por meio de correspondência com sub-objetos
pertencentes a sub-fatos de um fato fundamentador. Essa regra pode ser tornada comunicável
na independência do contexto quando resgatada através de descrições definidas,
adquirindo então a vantagem da permanência.
3
DESCRIÇÕES DEFINIDAS
Quero
nesse capítulo passar às descrições definidas, considerando-as primeiro sob a
perspectiva da celebrada teoria das descrições de Russell, para
então comparar os resultados com os da teoria alternativa que pode ser de algum
modo extraída da obra de Frege. Geralmente somos tentados a pensar que uma
dessas teorias deva ser correta enquanto a outra deva ser falsa, mesmo que
ambas pareçam conter alguma verdade. Minha suspeita é a de que se ambas parecem
conter alguma verdade então é porque ambas realmente contém alguma verdade. Por
isso sugiro o caminho da conciliação como o mais apropriado, procurando demonstrar
que ambas as teorias são compatíveis no que possuem de verdadeiro, mas não no
que possuem de falso. Melhor dizendo, quero demonstrar que se ambas as teorias
forem suficientemente revisadas – ou seja, depuradas de seus comprometimentos
metafísicos dubiosos e dispensáveis – e se algumas premissas bastante razoáveis
lhes forem adicionadas, elas deixarão de se mostrar competitivas, revelando-se tão
somente maneiras diferentes de se tentar dizer o mesmo. Quero, porém, começar
didaticamente com uma breve introdução à teoria das descrições.
A
teoria das descrições de Russell
Considere
uma sentença como “O autor de Waverley é Scott”, que começa com uma descrição
definida. Aparentemente, a sua forma lógica é a mesma que a gramatical:
trata-se de uma sentença do tipo sujeito-predicado, com a descrição definida ‘o
autor de Waverley’ no lugar do sujeito. Mas para Russell a forma gramatical é
enganadora. Ela oculta uma forma lógica mais complexa, quantificada. Para ele a
sentença “O autor de Waverley é Scott” é na verdade constituída por uma
conjunção de três sentenças:
1. Há no mínimo uma pessoa que foi o autor de
Waverley
2. Há no máximo uma pessoa que foi o autor de
Waverley.
3. Se alguém foi o autor de Waverley, esse alguém
foi Scott.
Representando o quantificador existencial por ∃, o predicado ‘...autor de
Waverley’ por W e ‘Scott’ por s, essa conjunção de sentenças se deixa
simbolizar como:
∃x (Wx & (y) (Wy → y = x)
& s = x)
Com
isso o valor-verdade de “O autor de Waverley é Scott” passa a depender da
conjunção das três sentenças sob o escopo do quantificador existencial, só
sendo esse valor verdadeiro no caso em que todas as três forem verdadeiras.
Na análise russelliana, ao serem
parafraseadas por predicados quantificados, as descrições definidas desaparecem
da posição de sujeitos, revelando-se símbolos incompletos. Para Russell, isso evidencia
duas teses:
(a) Descrições
definidas não nomeiam coisa alguma.
(b)
Descrições definindas nunca têm significado em si mesmas.
Para
Russell o significado é o objeto. Como as descrições definidas não são expressões
referenciais porque em sua forma analisada não contém nomes, reduzindo-se a
conjunções de predicados quantificados, elas não podem ter significados. Além
do mais, como as descrições definidas enquanto tais não nomeiam nada, não podendo
ter qualquer sentido por conta própria, elas tem sentido apenas como parte da
sentença. Como ele escreveu:
A expressão (descrição definida) per se não tem nenhum significado porque em qualquer proposição na
qual ela ocorre, a proposição, inteiramente expressa, não contém a expressão, a
qual foi desmembrada.
A razão
pela qual Russell pensou assim deve ter sido a de que ele assumia uma concepção
referencialista do significado de qualquer termo efetivamente referencial, uma
concepção segundo a qual esse significado seria a sua própria referência. Como
ele mais tarde sugeriu, isso só aconteceria efetivamente no caso de nomes
próprios lógicos como o demonstrativo “isso”, ditos diante de sua referência,
seja ela um sense datum ou um
universal... Como descrições definidas não tem nada a ver com verdadeiras
expressões referenciais – o que fica claro após a sua análise lógica – elas não
deveriam ter significado por si mesmas, já que enquanto tais não apontam para
nada. Todavia, há muito boas razões para se pensar que a concepção
referencialista do significado mais tarde defendida por Russell seja completamente
insustentável.
Como veremos mais tarde, admissões como essa acabam por tornar as teses (a) e
(b) insustentáveis.
Russell estendeu sua análise das descrições
definidas aos nomes próprios usuais, que para ele são descrições truncadas ou
abreviadas. Assim, um nome próprio como ‘Bismark’ poderia abreviar ao menos uma
descrição como ‘o primeiro chanceler do império Germânico’. E um nome próprio
sem referente, como ‘Pégaso’, poderia abreviar uma descrição como ‘o cavalo
alado de Belerofonte’. Uma sentença como “Pégaso é rápido” significa então o
mesmo que “O cavalo alado de Belerofonte é rápido”, a ser analisada como “Há no
mínimo um e no máximo um cavalo alado de Belerofonte e ele é rápido”. Chamando
o predicado ‘cavalo alado de Belerofonte’ de B e o predicado ‘é rápido’ de R,
essa última sentença pode ser simbolizada como:
(1) ∃x (Bx & (y) (By → y = x)
& Rx).
Essa
sentença é falsa, pois “(Ex) (Bx)” é uma sentença falsa.
Russell
defrontou-se então com o seguinte problema. Considere a negação de (1):
(2) O cavalo alado de Belerofonte não é rápido.
Pela
teoria das descrições, a análise dessa sentença parece ser: “Há no mínimo um e
no máximo um cavalo alado de Belerofonte, e ele não é rápido”. Mas essa também é uma sentença falsa, dado que a
primeira sentença da conjunção permanece a mesma e que ela é falsa. Assim,
tanto a sentença analisada (1) quanto a sua negação (2) são falsas. Mas essa
conclusão infringe o princípio lógico da bivalência, do qual se segue que a
negação de uma sentença verdadeira é sempre falsa e vice-versa.
A solução encontrada por Russell para o
problema consiste em entender sentenças similares a (2) como sendo ambíguas, admitindo
duas leituras. Na primeira, a descrição definida não é constituinte de uma
expressão mais complexa, tendo escopo amplo (ocorrência primária). Nesse caso
temos
(3) ∃x (Bx & (y) (By → y
= x) & ~Rx),
que
é uma sentença também falsa, posto que “(Ex)
(Bx)” é falso. Mas (3) não é a
negação de (1) e sim o seu contrário.
A negação de (1) é aquela na qual a descrição definida se torna constituinte de
uma expressão mais complexa, passando a ter escopo estreito em relação a ela
(ocorrência secundária). Nesse caso ela será:
(4) ~(∃x) (Bx & (y) (By → y
= x) & Rx).
Ora,
segundo essa interpretação a negação da sentença “Pégaso é rápido” é a sua contraditória, ou seja, “Não é o caso
que: Pégaso é rápido”. Essa sentença, diversamente da anterior, deixa-se
analisar como uma sentença verdadeira, demonstrando que a infração do
princípio da bivalência era apenas aparente.
Objeções
de Strawson
Quero
agora considerar algumas objeções mais importantes feitas à teoria das
descrições, apenas para mostrar que nenhuma delas chega a ser muito convincente.
Entre as objeções mais influentes
destacam-se as de P.F. Strawson. Uma
primeira e mais geral objeção é a de que Russell analisa sentenças (sentences), enquanto o que precisa ser
analisado são sentenças enquanto estão sendo usadas por seres humanos na
conversação, a saber: enunciados (statements) – pois é aí que se dá o ato
de referir.
Essa objeção só se aplica propriamente a
sentenças que contém indexicais, como é o caso da sentença escolhida por
Strawson, que é
(i)
O presente rei da França é sábio,
cujo
sentido cognitivo é completado pelo contexto. Outras sentenças, como “O autor
de Waverley é Scott”, ficam imunes a essa objeção. Além disso, como já vimos,
mesmo no caso de a sentença conter um elemento indexical, ele pode ser suficientemente
explicitado em palavras no interior de sentenças, como acontece na sentença
(i’) “O Rei da França em 2020 é sábio”.
A
segunda e mais famosa objeção é
a de que enunciados sobre objetos inexistentes não são falsos, como a teoria
das descrições exige, mas destituídos de valor-verdade. Considere outra vez o
exemplo (i). Se perguntarmos a alguém se o presente rei da França é sábio, a
pessoa não responderá que isso é falso. Ela dirá: “Mas como assim? A França não
tem rei!” Em outras palavras, o enunciado em questão, embora possuidor de
sentido, é falho, não chegando a possuir valor-verdade. Strawson tinha suas razões
para pensar assim. Para ele o enunciado “O presente rei da França é calvo” não
implica no enunciado “Existe um atual rei da França”, como pensa Russell, mas o pressupõe. Para Strawson um enunciado
B pressupõe um enunciado A quando B só pode ser verdadeiro ou falso no caso de
A ser verdadeiro. Ora, como o enunciado “O presente rei da França existe” é
falso, o enunciado “O presente rei da França é calvo”, que o pressupõe, não
pode ser nem verdadeiro nem falso. Contudo,
resta saber se a falsidade da pressuposição realmente desfaz o valor-verdade do
enunciado, pois contra isso há a intuição de que a posse de um valor-verdade é
função própria dos enunciados, posto que quando isso não pode acontecer eles
nada enunciam, perdendo a sua própria função cognitiva.
Outro ponto, notado pelo próprio Russell em
sua resposta a Strawson, é que a linguagem natural não é suficientemente
perspícua para forçar-nos a concordar com Strawson: se ela não nos fornece a
intuição de que “O presente rei da França é sábio” é uma sentença falsa, ela
também não nos diz que a sentença não possui valor-verdade.
De minha parte, não tenho dúvidas de que a
resposta mais acertada é a de Russell. Primeiro, considere a seguinte negação:
“O presente rei da França não é sábio porque não há um atual rei da França”.
Essa é uma sentença verdadeira, mesmo que o pressuposto seja falso. Contudo,
o ponto mais fundamental foi elaborado por defensores da teoria das descrições
na forma da seguinte explicação. Embora
não nos pareça intuitivamene claro qual possa ser o valor-verdade do enunciado
“O presente rei da França é sábio”, ou mesmo que ele tenha um valor-verdade, ele
é de fato falso. E a razão disso fica clara quando o comparamos com enunciados falsos
usuais como, digamos, “A presente rainha da Inglaterra tem cabelos ruivos”
(dito em 2020). É que na imensa maioria dos casos, quando predicamos falsamente
alguma coisa, nós já estamos assumindo a existência do objeto referido pela
sentença, para só então constatarmos que o predicado não se aplica a este
objeto. Como no enunciado selecionado por Strawson isso não acontece, nós o
achamos estranho e confusivo, posto que ele é inútil no contexto de nossas
práticas conversacionais. Só por isso hesitamos em chamá-lo de falso. No
entanto, também nesse enunciado ocorre de o predicado não se aplicar, se
não pela razão usual, que seria a de não ser satisfeito por propriedades do
objeto referido pelo termo singular, ao menos pela razão não-usual de que não
há nenhum objeto sendo referido pelo termo singular. Seja como for, o que é
semanticamente decisivo é se o predicado se aplica ou não. E como ele não se
aplica é logicamente mais razoável dizer que é falso.
Essa explicação fica mais convincente quando
percebemos que o enunciado escolhido por Strawson é na verdade um caso isolado,
e que muitos outros enunciados destituídos de referência são intuitivamente
vistos como sendo falsos. Considere os seguintes:
(ii)
O presente rei da França decidiu proibir os
turistas de visitar o palácio de Versalhes.
(iii)
O presente rei da França está namorando a
minha mãe.
(iv)
Encontrei o presente rei da França fazendo
exercícios na praia essa manhã.
(v)
O presente rei da França está sentado
naquela cadeira.
Apesar
de não possuírem referência, os enunciados de (ii) a (v) nos parecem claramente
falsos. Mas
por que eles contrastam com o exemplo de Strawson? A razão parece-me ser a
seguinte: por ser o termo geral ‘sábio’ mera qualificação desprovida de
articulação sintática, o enunciado “O presente rei da França é sábio” enfatiza a
descrição definida ‘o atual rei da França’, voltando-nos a atenção para o fato
de que essa descrição não se refere a coisa alguma. Mas nesse caso, por que
predicar? Por que atribuir uma qualidade ao que não existe? Já nos exemplos de (ii)
a (v) os predicados possuem maior densidade semântica, revelada na capacidade
de nos chamar a atenção, quer pela mais complexa articulação sintática (ii-iv),
quer pela relevância que damos ao elemento indexical em um enunciado como (v),
o que torna o enunciado relacional. Os predicados de (i) a (iv) e o indexical
em (v) nos chamam então mais a atenção do que a descrição definida, fazendo-nos
atentar para o fato de eles não se aplicarem, o que já nos inclina a atribuir
falsidade aos enunciados correspondentes. Eles nos desviam do fato perturbador
da inutilidade conversacional de enunciados predicativos referencialmente
vazios. Mas, como a estrutura dos enunciados de (ii) a (iv) é idêntica à do
exemplo escolhido por Strawson, é mais natural e coerente estender a atribuição
de falsidade também àquele exemplo ao invés de recorrer ao artifício da
pressuposição.
Uma terceira objeção diz respeito à ideia de
unicidade. A sentença
(1)
A mesa redonda está
coberta de livros.
começa
com uma descrição definida. À primeira vista a paráfrase russelliana dessa
sentença seria:
(2) Existe
no mínimo uma mesa redonda, no máximo uma mesa redonda, e ela está coberta de
livros.
Mas
isso é absurdo, pois implica que só existe uma mesa redonda no universo.
Há duas estratégias mais conhecidas para se
responder a essa objeção. A primeira consiste em sugerir que um enunciado como
(1) é elíptico, vindo no lugar de uma
descrição mais complexa como
(3) A mesa
redonda localizada no meio da sala de estar do apartamento 403 do edifício Villagio
da rua... está coberta de livros.
A
análise russelliana disso não nos comprometeria mais com a afirmação de que só
existe uma mesa redonda no mundo.
Uma objeção contra essa espécie de solução é
que não existe uma regra que nos permita identificar qual é a descrição
completa. Considere a descrição definida em
(4) A mesa
redonda que foi comprada por Ana Lúcia no ano passado está coberta de livros.
Sendo
verdadeira e se referindo à mesma mesa que (1), a descrição em (4) tem o mesmo direito
de figurar como a descrição completa que a descrição em (3), pois a descrição
em (2) pode ser considerada uma forma elíptica tanto de (3) quanto de (4). Como
em geral não somos capazes de dizer qual descrição completa tínhamos em mente
ao usar a suposta descrição elíptica, a solução parece ser arbitrária.
Uma estratégia alternativa consiste em limitarmos contextualmente o domínio dos
quantificadores. Assim, na sentença resultante da análise de (1) o domínio
dos quantificadores deve ficar contextualmente restringido, digamos, ao
conjunto dos objetos que se encontram no apartamento 403 do edifício Villagio.
Chamando um domínio qualquer de D, chamando a predicação inclusa na
descrição definida de F (como “...é mesa redonda”) e a predicação
adicional de G (como “...está coberta de livros”) podemos generalizar
analisando descrições definidas do tipo (1) como possuindo a forma:
(5) Existe
somente um x pertencente ao domínio D,
tal que x é F e para todo y pertencente ao domínio D, se y é F, y = x, e x é G.
Uma objeção feita a essa solução seria que
ela mostra que a descrição analisada tem uma extensão maior do que a descrição
original, não podendo ser ambas equivalentes. Mas uma
objeção baseada apenas no comprimento da sentença é frágil demais. Afinal, é
intuitivo que através de (1) queremos dizer elipticamente a mesa dessa
sala ou desse apartamento e não de qualquer outro lugar ou de nenhum
lugar específico, pois em tais casos o proferimento perderia o sentido.
Considere que em sua formulação analisada a sentença (1) quer dizer apenas (6):
“Existe uma única mesa redonda nesse apartamento que está coberta de livros”. Contudo,
com (1) queremos dizer intuitivamente o mesmo que (7) “A mesa redonda desse
apartamento está coberta de livros”. O ponto é que não parece haver uma
diferença real entre (6) e (7). É perfeitamente razoável pensarmos em (7) como
sendo uma sentença implicitamente quantificada, cujo domínio é estabelecido
pelo contexto conversacional como sendo o espaço do apartamento em questão,
dizendo por isso a mesma coisa que (6).
Ainda
uma objeção seria a de que a resposta baseada na limitação do domínio quantificacional
não se aplicaria no caso de haver mais de uma mesa redonda no apartamento.
Nesse caso, a análise não se aplicaria. Mas nesse mesmo caso o enunciado “A
mesa redonda está coberta de livro” seria ambíguo. Ele só seria desambiguado se
estivesse no lugar de “Aquela mesa redonda está coberta de livros” ou,
digamos, “Dentre as mesas redondas da sala, uma delas está coberta de livros”.
Tanto quanto vimos até agora, parece razoável pensarmos que no caso de
descrições definidas russellianas a unicidade da predicação pode ser garantida
por uma restrição no domínio da quantificação, o qual varia com a prática linguística
na qual o proferimento é feito.
Keith
Donnellan: usos atributivo e referencial
Outra
objeção influente foi feita por Keith Donnellan. Esse
filósofo partiu de uma distinção que foi interessantemente desenvolvida por ele
entre dois usos da descrição definida, por ele chamados de uso atributivo e uso referencial.
Vejamos primeiro o uso atributivo, tipicamente
considerado na teoria das descrições de Russell. Nele a descrição vale pelas
propriedades que ela atribui a algo. Assim, se é mostrado a alguém o cadáver de
Mário, que foi brutalmente assassinado, a pessoa pode ser levada a proferir a
frase “O assassino de Mário é insano”. Mesmo que desconheça o assassino de Mário,
a pessoa atribui as propriedades de ser o assassino de Mário e de ser
insano a uma única pessoa em seu uso da descrição definida ‘o assassino de
Mário’.
Vejamos agora o uso referencial identificado
por Donnellan. Digamos que alguém esteja em um tribunal e que o réu acusado de
ter assassinado Mário se comporte de forma insana. Querendo comentar o seu
comportamento, a pessoa pode ser levada a proferir a frase “O assassino de Mário
é insano”. Mas aqui não importa se o réu é realmente o assassino de Mário. Pode
até ser que Mário não tenha sido realmente assassinado. Mesmo assim, todos entendem
a quem a pessoa está se referindo. No uso referencial as propriedades conotadas
pela descrição não têm importância; o que importa é a intenção demonstrada pelo
falante de se referir a uma certa pessoa.
Na opinião de Donnellan, a teoria de Russell
não se aplica nem ao uso referencial nem ao uso atributivo. Não se aplica ao
uso referencial porque ao afirmar que o assassino de Mário é insano dentro do
contexto em questão, não se está querendo dizer que existe exatamente um
assassino de Mário, como a análise de Russell sugere, pois, como já notei, o
enunciado pode ser verdadeiro mesmo que o réu não seja o assassino,
diversamente do que a análise russelliana prevê. Está-se aqui apenas usando a
descrição como uma ferramenta para a referência. Além disso, como Donnellan
aceita a teoria pressuposicional de Strawson, para ele a teoria de Russell
também não dá conta do uso atributivo.
Contra a opinião de Donnellan pode ser observado
que no que concerne ao uso atributivo não há razões suficientes para crermos
que a análise russelliana não se aplica, dado que exames mais cuidadosos
acabaram por revelar que a crítica de Strawson nada tem de muito convincente.
Mas que dizer do uso referencial? Antes de responder, vale expor a importante
análise do uso referencial sugerida por Saul Kripke.
Segundo Kripke há no uso referencial duas
espécies de referência: a referência
semântica (semantic reference) e
a referência do falante (speaker reference). A referência
semântica diz respeito ao sentido literal das palavras na descrição, o qual
pode ser analisado pela aplicação da teoria das descrições. Para explicá-la,
considere outra vez o proferimento “O assassino de Mário é insano” em seu uso
referencial. Considerado pelo seu sentido literal, ele será um proferimento
falso no caso do réu em questão não ser o assassino de Mário. Mas esse sentido
literal não é o que está sendo tematizado
no uso referencial. O que importa no uso referencial é a referência do falante,
que é o sentido não-literal da referência mediado pelo contexto. Ao tematizar a
referência do falante, a descrição definida passa a funcionar indexicalmente, como
uma espécie de demonstrativo. A descrição ‘O assassino de Mário’ tem o sentido
de, digamos, ‘aquele réu que nós
vimos hoje no tribunal’; eis porque o proferimento é verdadeiro mesmo que o réu
seja inocente e não tenha sido o assassino de Mário. (No presente exemplo a
descrição não identifica algo que se encontra no campo perceptual do falante,
mas isso não invalida a tese de que ela funciona como um indexical, posto que
demonstrativos não tem por necessário que o objeto referido pertença ao campo
perceptual próximo do falante.)
No uso
referencial, a referência semântica é apenas um veículo para a referência do falante. Esse ponto essencial é
facilmente obscurecido pelo fato de haver entre o uso atributivo e o uso
referencial uma variedade indefinida de graus intermediários, em que a
referência semântica ainda mantém uma maior ou menor importância. Se desconsiderarmos
essa gradualidade veremos que a tematização da referência do falante torna a
análise russelliana irrelevante para o caso do uso tipicamente referencial.
Seja como for, o que a distinção kripkiana
sugere é que o uso atributivo é característico das descrições definidas, o
referencial lhes sendo secundário. Essa suspeita é reforçada quando percebemos
que o fenômeno da indexicalização do termo singular não se restringe às
descrições definidas. Ele também pode acontecer com nomes próprios. Digamos que
no final de uma festa alguém diga: “A Joana está soltando a franga”, referindo-se
ao comportamento estravagante de uma mulher que na verdade tem outro nome. Nesse
caso ‘a Joana’ está no lugar de um demonstrativo como ‘aquela moça
loira...’ Isso apenas reforça a ideia de que o uso referencial é secundário,
não-literal, adventício. Aqui o termo singular é usado como um indexical capaz
de conotar apenas um tipo genérico de
coisa, tal como ‘ele’ (‘o assassino de Mário’) ou ‘ela’ (‘a Joana’). A análise
russelliana não se aplica a esses casos simplesmente porque ela não foi
concebida para ser aplicada a indexicais camuflados na forma de descrições
definidas.
Por fim, parece-me possível argumentar no
sentido de mostrar que a análise russelliana se aplica até mesmo à própria referência
do falante no uso referencial. Afinal, se o indexical também envolve um
conteúdo semântico suficientemente resgatável em termos descritivos, como já
foi sugerido no capítulo anterior, então uma análise russelliana também deve se
aplicar ao indexical e, por conseguinte, ao próprio uso referencial. Ao invés
de “O assassino de Mário é insano” podemos dizer “Aquele sujeito que vimos hoje
lá no tribunal é insano”, ressaltando o que Kripke chamou de referência do
falante. Mas esse enunciado pode ser substituido por “Existe no mínimo um x e no máximo um x que vimos hoje
lá no tribunal, e x é um sujeito insano”.
Ao invés de “A Joana está soltando a franga” podemos dizer “Aquela moça loira
dançando no final da festa está soltando a franga”, ou ainda “Existe no mínimo
um x e no máximo um x que é uma moça loira dançando no final
da festa, e x está soltando a
franga”.
Enigmas
da referência: soluções russellianas
A
teoria das descrições foi criada para resolver os chamados enigmas da
referência, concernentes a descrições definidas e a nomes próprios. Quero agora
expor esses enigmas seguidos das soluções de Russell.
(i) Referência
a inexistentes. Considere outra vez uma sentença cujo sujeito gramatical
não se refere a nada, como “O presente rei da França é calvo”. Como é possível
predicar calvície de algo que não existe? A resposta de Russell é que esse
problema só existiria se a descrição ‘o presente rei da França’ fosse uma
expressão referencial funcionando como um nome próprio. Mas esse não é o caso.
Chamando os predicados ‘...presente rei da França’ de F e ‘...é calvo’ de C, a
teoria das descrições nos permite simbolizar “O presente rei da França é calvo”
como: “(Ex) (Fx & (y) (Fy → y
= x) & Cx)”. Ou então, para usar uma formulação mais intuitiva na qual
parafraseamos ‘no mínimo um e no máximo um’ por ‘exatamente um’ temos a
seguinte sentença:
Existe exatamente um x, tal que x é o presente
rei da França e x é calvo.
Em
qualquer das formulações, uma coisa fica clara: não estamos predicando calvície
do presente rei da França! Eis porque podemos dar sentido a essa sentença falsa
sem sermos obrigados a assumir a existência do presente rei da França.
(ii) Existenciais
negativos. O segundo enigma, uma variante do primeiro, diz respeito à
aparente impossibilidade de se negar a existência de um objeto quando o
enunciado que nega a existência é sobre esse mesmo objeto. Para esclarecê-lo,
considere as seguintes frases:
(1) O presente rei da França não existe.
(2) (1) é sobre o presente rei da França.
Ambas
parecem ser verdadeiras. Mas elas são inconsistentes entre si. Se a frase (2) é
verdadeira e (1) é sobre o presente rei da França, então a frase (1) precisa
ser falsa e vice-versa.
Russell resolve o enigma sugerindo que (2) é
uma sentença falsa. Para tal, ele interpreta a negação em (1) como possuindo um
escopo amplo em relação à descrição definida. A forma analisada da sentença (1)
fica sendo ~(∃x) (Fx & (y) (Fy
→ y = x)), ou ainda, em uma formulação mais intuitiva:
Não é o caso que existe exatamente um x, tal que x é o presente rei da França.
Essa
é uma sentença verdadeira, pois é a negação de uma conjunção falsa. Mas com ela
não nos comprometemos com a existência do presente rei da França para podermos negar
que ele existe. Nos comprometemos apenas com a negação da existência de algo
que tenha a propriedade de ser o presente rei da França.
(iii) Sentenças
de identidade. O terceiro enigma é o paradoxo fregeano da identidade.
Considere o enunciado: (1) “O autor de Waverley é Scott”. Ele contém duas
expressões referenciais, ambas denotando a mesma pessoa. Mas se é assim, então
a sentença (1) deveria ser tautológica, dizendo o mesmo que (2) “Scott é
Scott”. Contudo, sabemos que (1) é uma sentença informativa e contingente. Por
quê?
A solução de Russell consiste outra vez em
fazer desaparecer a descrição definida. Chamando Scott de s, podemos
parafrasear a identidade como “∃x (Wx & (y) (Wy
→ y = x) & (x = s))”. Ou, mais intuitivamente:
Existe exatamente um autor de Waverley e
ele é Scott.
Através
dessas formulações fica claro que (1) é uma sentença informativa, pois o que
dizemos deixa de parecer uma identidade tautológica para se mostrar como uma
afirmação substantiva.
(iv) Opacidade.
Um quarto enigma que a teoria das descrições é chamada a resolver é o da
intersubstitutividade em sentenças que exprimem atitudes proposicionais,
que são estados relacionais conectando uma atitude mental a uma proposição ou
pensamento. Considere, por exemplo, a sentença “George IV acredita que Scott é
Scott”. Para acreditar nisso de forma indubitável, uma pessoa precisa apenas
saber aplicar o princípio da identidade, posto que “Scott é Scott” é uma
verdade necessária. Como o nome ‘Scott’ e a descrição ‘o autor de Waverley’ se
referem reconhecidamente a uma mesma pessoa, parece que podemos substituir a
primeira ocorrência da palavra Scott na primeira sentença por essa descrição,
disso resultando “George IV acredita que o autor de Waverley é Scott” sem que a
sentença se torne falsa. Mas não é isso o que acontece: pode muito bem ser que
essa última sentença seja falsa, apesar de a primeira ser verdadeira. Por que é
assim?
Para responder a essa objeção, podemos usar
a teoria das descrições para parafrasear a descrição que vem após ‘George IV
acredita’ como:
George IV acredita que existe
somente um autor de Waverley e que ele é Scott.
Certamente,
essa é uma crença informativa, claramente distinta da crença tautológica de que
Scott é Scott. Por isso ela pode ser falsa.
Soluções
fregeanas para os enigmas da referência
Frege
tem uma solução explícita para os dois últimos enigmas da referência. Quanto
aos dois primeiros, a solução pode ser reconstrutivamente buscada segundo o
modelo da semântica fregeana.
(i) Referência a inexistentes. Frege sugeriu
que na linguagem ideal o termo singular sem referência deva se referir ao
conjunto vazio. Aplicando essa sugestão à linguagem natural, podemos sugerir
que uma frase (Satz) como
(1) O presente rei da França é sábio,
é
falsa, posto que o conjunto vazio não pode ser sábio. Contudo, além de ser
artificiosa, essa sugestão conduz a conclusões absurdas, como a de que a frase
“Pégaso é o presente rei da França” é verdadeira, posto que tanto ‘Pégaso’
quanto ‘o presente rei da França’ se referem à mesma coisa, a saber, ao
conjunto vazio.
Uma
alternativa consiste em sugerir que os termos singulares sem referência adquirem
em sentenças referência indireta,
passando o predicado a eles ligado a aplicar-se ao seu sentido e não mais ao seu
objeto. Assim, o predicado ‘...é sábio’ na frase ‘O presente rei da França é sábio’
passa a se referir ao sentido da descrição ‘o presente rei da França’. Como não
faz sentido se perguntar se esse sentido é ou não é sábio, não entra em questão
a verdade do pensamento, mas apenas a complementação do sentido do termo
singular pelo sentido do predicado na constituição do pensamento. Contudo, isso
não nos ajudaria a explicar a evidente falsidade de frases como “O presente rei
da França jantou comigo na semana passada”.
Parece-me que uma menos comprometedora
resposta neofregeana consistiria tão somente em admitir que, como os termos de
frases sem referência já possuem sentidos, modos de apresentação, isso já nos
torna capazes de compreender de que maneira o sentido incompleto do predicado
pode ser completado pelo sentido completo do termo singular de modo a constituir
um conteúdo de pensamento, posto que podemos em medida suficiente conceber
como seria a aplicação combinada das regras conceptuais que constituem esses
sentidos ou modos de apresentação em casos supostos. Só isso já basta para
tornar a predicação ‘...é sábio’ em “O presente rei da França é sábio”
inteligível, mas, diversamente do que Frege teria pensado, falsa, uma vez que
se o sujeito não se aplica o predicado também não. Isso fica mais claro na
frase “O presente rei da França jantou comigo na semana passada”, que é
claramente falsa, considerando o quão clara fica a inaplicabilidade do seu
predicado.
(ii)
Existenciais negativos. O enigma dos
existenciais negativos pode receber uma explicação similar. Considere, por
exemplo, a frase:
(1) O presente rei da França não existe.
Como
a descrição definida está no lugar do termo singular, a melhor solução do ponto
de vista da semântica fregeana seria entender que a descrição também possui um sentido, um modo de apresentação, que se
traduz por uma regra de identificação do objeto que podemos conceber como algo que
está sendo aplicado (podemos imaginar um presente rei da França sendo procurado
no palácio de Versalhes, participando de uma comemoração etc.). Quando dizemos
que o presente rei da França não existe, o que estamos querendo dizer é apenas
que semelhante regra não se aplica, e que nenhum objeto a satisfaz. Afora isso,
se nomes próprios, como Frege implicitamente sugeriu, são abreviações de feixes
de descrições definidas, então
uma estratégia semelhante seria aplicável a existenciais negativos com nomes próprios
vazios, como “Pégaso não existe”. O que se quer dizer com essa frase é que o sentido, o modo de apresentação de alguma
maneira expresso pelo feixe de descrições definidas abreviado pelo nome
‘Pégaso’ é concebível como aplicável, mas não determina nenhum objeto. Ou seja:
a regra de identificação de ‘Pégaso’ como o cavalo alado de Belerofonte é em
alguma medida concebível, sendo inclusive aplicável no domínio da mitologia,
mas não é aplicável ao mundo real. A aplicação de tais regras ao mundo real é apenas
um produto fantasioso da imaginação.
(iii)
Sentenças de identidade. O enigma da
identidade entre descrições pode ser exemplificado pela frase mais discutida da
filosofia analítica: “A estrela da manhã é a estrela da tarde”. Para Frege tal
frase de identidade é informativa porque as descrições ‘a estrela da manhã’ e
‘a estrela da tarde’ têm sentidos ou modos de apresentação do objeto que são
diferentes, apesar de ambas terem a mesma referência: o planeta Vênus. Ora, é
informativo dizer que esses dois sentidos diversos determinam um mesmo objeto,
que eles são regras de identificação diferentes a serem satisfeitas pelo mesmo
objeto.
(iv)
Opacidade. Quanto ao enigma dos
contextos opacos, Frege sugere que em proferimentos de atitudes proposicionais
a frase subordinada não tem a referência habitual, mas uma referência indireta,
que é o seu próprio sentido. Assim, no proferimento “George IV acredita que o
autor de Waverley é Scott”, a referência da frase subordinada “o autor de
Waverley é Scott” não é nem o seu valor-verdade nem um fato no mundo; ela é o
pensamento por ela expresso. Como “o autor de Waverley é Scott” exprime um
pensamento (proposição) diferente de “Scott é Scott”, a substituição salva-veritate entre eles deixa de ser possível.
Não pretendo discutir aqui as objeções de
detalhe que poderiam ser feitas a cada uma dessas soluções. Quero responder
apenas à objeção geral feita às soluções fregeanas dos enigmas da referência, segundo
a qual elas nos comprometem com um realismo platonista de sentidos, pensamentos
e conceitos fregeanos, diversamente da solução ontologicamente mais econômica
de Russell.
Não creio que o compromisso com entidades
abstratas seja forçoso. Afinal, os sentidos fregeanos podem ser facilmente identificados
com regras ou combinações de regras semântico-cognitivas, as quais determinam
usos referenciais das expressões. Sob
esse entendimento, o sentido da descrição definida deve ser uma regra capaz de
identificar o objeto a ela associado. E o mesmo pode ser suposto com respeito a
outras expressões categoremáticas, disso resultando uma paráfrase do discurso
sobre sentidos através de um discurso sobre regras cognitivas, o qual pode ser
visto como ontologicamente inócuo.
Aqui também poderá ser feita a objeção de que
estamos apenas substituindo a palavra ‘sentido’ pela palavra ‘regra’, e que
essa é uma solução meramente verbal, pois se os sentidos são entidades
abstratas, as regras (entendidas como regras-type) também parecem sê-lo.
Não obstante, também aqui é possível responder alegando que as regras de que
estamos falando não existem fora de suas instanciações como eventos
cognitivo-psicológicos capazes de se evidenciar publicamente pelas
manifestações comportamentais de suas aplicações, nada mais existindo além de
tais eventos. Regras-eventos podem ser identificadas e reidentificadas como iguais umas às outras, não por serem
instanciações de algum objeto abstrato a ser chamado de “A Regra”, mas por
serem percebidas como qualitativamente idênticas. Ou seja: tudo o que realmente
precisamos é sermos capazes de perceber uma identidade qualitativa (ou similaridade
precisa) entre um atos de aplicação da regra (efetivo ou apenas concebido) que
nos possa servir de modelo e outras instanciações. (Nesse sentido, as
regras podem ser entendidas em termos de tropos de aplicações de regras,
sem nos compromissar com universais platônicos ou aristotélicos nem com
qualquer forma de nominalismo.)
Revisando
os pressupostos fregeanos
Quem
estaria certo? Russell ou Frege? Muita tinta já foi derramada na disputa sobre a
resposta adequada. Como já observei logo no início, minha sugestão é que não se
trata de uma questão de escolha entre uma e outra teoria, uma vez que se ambas fossem
revisadas de maneira suficientemente radical, elas poderiam ser demonstradas como
sendo maneiras diversas de se dizer praticamente o mesmo. Afinal, é razoável
supor que a incompatibilidade entre as duas teorias resulta dos pressupostos
metafísicos implausíveis que seus autores lhes adicionaram na crença de que
fossem complementos necessários. Assim, minha proposta é reapresentar essas
teorias retirando-lhes a gordura metafísica e preenchendo as lacunas com novos
pressupostos, o principal deles sendo a interpretação dos sentidos fregeanos (Sinne) como regras semântico-cognitivas. É isso o que farei a seguir.
Comecemos com Frege. Já vimos que é preciso
eliminar o anacrônico realismo ontológico dos sentidos fregeanos, que devem ser
vistos como simples instanciações psicológicas de conteúdos ou regras
semânticas – basicamente, tropos mentais usados como modelos e acrescidos à
disposição para reconhecer identidades qualitativas com outros. Devemos muito
desse nosso entendimento de Frege a Michael Dummett, que influenciado
pelo último Wittgenstein revisou a semântica fregeana. Ernst Tugendhat, por sua
vez, a clarificou em seu detalhado estudo do enunciado predicativo singular –
um clássico da filosofia da linguagem influenciado pelo seu longo estudo
anterior da filosofia de Edmund Husserl. Fazendo uma leitura pessoal da análise
feita por Tugendhat do enunciado predicativo singular, sugiro que:
(i)
o
sentido da termo singular (modo de apresentação do objeto) é o mesmo que a regra de identificação (Identifikationsregel) do termo singular,
cujos critérios de aplicação são propriedades identificadoras do objeto;
(ii)
o
sentido do termo geral (seu conteúdo conceitual) é o mesmo que a regra de aplicação (Verwendungsregel) da expressão predicativa, que prefiro chamar de regra
de atribuição do predicado (ou conceitual), cujos critérios
de aplicação deveriam ser propriedades particularizadas (tropos) associadas ao
objeto;
(iii)
o
sentido do enunciado (diríamos, o pensamento-proposição expresso
pela frase ou Satz) é o mesmo que a regra de verificação do enunciado
predicativo singular, cujos critérios de aplicação seriam os fazedores-da-verdade
(truth-makers), que prefiro chamar
aqui de fatos.
Para
Tugendhat a regra de atribuição do predicado se aplica com base na aplicação da
regra de identificação do objeto, ambas em combinação constituindo a regra de
verificação do enunciado predicativo singular, que, se demonstrada aplicável, o
torna verdadeiro no sentido de corresponder aos fatos.
Outra coisa que podemos fazer é parafrasear
a noção de existência. Sabemos que para Frege a existência é a propriedade que
um conceito tem de sob ele cair pelo menos um objeto. A
ideia fregeana de conceito (Begriff) como a referência do termo
geral é implausível e desnecessária. O conceito deveria ser, como a palavra sugere,
o próprio sentido fregeano da expressão predicativa, não nos surpreendendo,
pois, que Frege não tenha encontrado nada a dizer sobre tal sentido. Minha
sugestão alternativa é considerar a referência do termo geral em enuciados
predicativos singulares como sendo a propriedade espaciotemporalmente
particularizada ou tropo do objeto ao
qual a expressão predicativa se aplica. Se temos ao menos um objeto com a
propriedade particularizada esperada, então essa propriedade existe,
satisfazendo o termo geral ou expressão predicativa. Se a regra de atribuição
do termo geral tem a propriedade de aplicar-se de modo efetivo (e não meramente suposto, como resultado de um ato de
imaginação) à correspondente propriedade particularizada do objeto durante um
certo período de tempo (no qual essa propriedade é dita existente) então
dizemos que o objeto de fato possui essa metapropriedade de aplicabilidade da
regra-conceitual de atribuição durante esse período – digo metapropriedade
porque é uma propriedade disposicionalmente
manifesta da regra de atribuição. Como objetos (assumindo a teoria dos
tropos) são como novelos mais ou menos estruturados de propriedades espaciotemporalmente
localizadas, podemos aplicar um argumento similar para falar da existência de
objetos (o que pode ser logicamente demonstrado quando transformamos termos
singulares em predicados, e.g., “Isso
é uma mesa verde” no lugar de “Essa mesa é verde”). Se dizemos saber que um
objeto existe, o que queremos dizer é que sabemos que a sua regra conceitual é
efetivamente e continuamente aplicável enquanto o objeto puder ser dito
existente. Admitindo que conteúdos conceituais são sentidos e que sentidos são
regras, então o que chamamos de a existência desse objeto passa a ser a
propriedade de uma regra de atribuição conceitual de se aplicar efetiva e
continuadamente a ele. Mais ainda, devemos notar que isso não retira da
existência a sua objetividade. Pois se ela é a efetiva aplicabilidade de uma
regra de atribuição conceitual, então o seu objeto de referência pode ser dito
existente (e não meramente imaginário ou suposto) na medida em que ele possui a
metapropriedade disposicional de satisfazer a regra, ou seja, de ter essa regra
efetiva e continuamente aplicável a si mesmo. Note-se também que essa exigência
não é antropomórfica. Ela não demanda nem a existência da regra e nem mesmo a
existência de um sujeito cognitivo capaz de aplicar a regra, uma vez que se
trata de uma exigência meramente modal. Podemos imaginar um mundo possível sem seres
cognitivos nem regras cognitivas no qual existam objetos-propriedades entendidos
como entidades que possuem a disposição de terem suas regras conceptuais
de identificação efetivamente aplicáveis a si mesmos, diversamente de como
seria se fossem entidades meramente concebidas.
A conclusão acima pode ser admitida para
cada uma das regras consideradas: (i) a existência de um objeto é a efetiva
aplicabilidade da regra de identificação do seu termo singular (a propriedade
de um suposto objeto de ter a sua regra de identificação efetivamente aplicável
a si mesmo), (ii) a existência de uma propriedade particularizada (tropo) é a efetiva
aplicabilidade da regra de atribuição de seu predicado (a propriedade de um
suposto tropo de ter a sua regra de atribuição efetivamente aplicável a si
mesmo), e (iii) a existência de um fato é a efetiva aplicabilidade da regra de
verificação de seu enunciado (a propriedade de um suposto fato de ter a sua
regra de verificação efetivamente aplicável a si mesmo) – o que para nós só pode
ser constatado através de comprovações experienciais (e não imaginárias) de sua
aplicação.
Ora, se as existências do objeto e da
propriedade que lhe predicamos são, respectivamente, a efetiva aplicabilidade
da regra de identificação de seu nome e a efetiva aplicabilidade da regra de
atribuição do seu predicado, então a existência do fato deve ser a propriedade
da regra de verificação da frase de ser efetivamente aplicável ao que a frase
descreve. E como a regra de verificação – seu conteúdo cognitivo – é o mesmo
que o pensamento ou proposição, a existência do fato deve ser também o mesmo
que a efetiva aplicabilidade do pensamento expresso pela frase, ou ainda, a
existência do fato é a efetiva aplicabilidade do pensamento do fato ao próprio
fato real, o que confere a esse pensamento a propriedade de ser verdadeiro ou adequado
ou correspondente ao fato.
Com isso passamos à relação entre existência
e verdade. Se a existência da referência do pensamento ou proposição, ou seja, do
fato, como vimos no capítulo anterior, é a propriedade desse pensamento ou
regra de verificação de ser efetivamente aplicável, melhor dizendo, a
propriedade de um fato suposto (imaginado, concebido) de ter a sua regra de
verificação efetivamente aplicável a si mesmo, fazendo dele um fato real, e se,
como também sugerimos, a verdade do pensamento, da regra de verificação da
frase, é também a sua efetiva aplicabilidade, então a atribuição de existência ao
fato deve ser algo análogo à atribuição de verdade ao seu pensamento. Melhor
dizendo: a atribuição de existência ao fato redunda no mesmo que a atribuição
de verdade ao seu pensamento. Em um exemplo: dizer que “Cambridge venceu a
corrida de botes” exprime um pensamento verdadeiro é o mesmo que dizer que o
pensamento – a regra verificacional expressa por essa frase – é efetivamente aplicável
ao fato, e, mais aproximadamente, dizer que as configurações criteriais cuja
satisfação é exigida pela regra correspondem (são isomórficas) às configurações
criteriais constitutivas do fato que as satisfaz, ou ainda, que é um fato real que
Cambridge venceu a corrida de botes, que esse fato existe. Conversamente,
atribuir existência a um fato é a mesma coisa que atribuir efetiva aplicabilidade
à regra verificacional constitutiva de seu pensamento, o que é o mesmo que
atribuir verdade ao pensamento expresso pela frase que o exprime: a existência
do fato implica na verdade de seu pensamento, quer ele exista ou não. Mesmo
assim, a existência do fato não é a mesma coisa que a verdade de seu
pensamento, pois o fato pode existir sem ser pensado, ainda que a eventual
existência de seu pensamento o faça necessariamente verdadeiro.
E o que tem isso a ver com a concepção
correspondencial da verdade? Ora, identificar verdade com a efetiva
aplicabilidade da regra verificacional que constitui o pensamento tem diretamente
a ver com a concepção correspondencial da verdade, na medida em que uma regra
verificacional é uma regra criterial, ou seja, uma regra dependente da
satisfação de configurações criteriais (geralmente aspectuais e múltiplas). A
condição de satisfação da regra verificacional, por sua vez, é a de que as
configurações criteriais por ela demandadas possuam isomorfismo estrutural
com as configurações criteriais que a satisfazem, relacionadas ou constitutivas
do fato. Esse é um ponto importante, mas para muitos problemático, e complexo
em seus detalhes, não sendo possível discuti-lo aqui.
Finalmente, quero tratar as frases sem
referentes como sendo no final das contas falsas
e não como sendo destituídas de valor-verdade, como Frege sugeriu em alguns
exemplos. Afinal, a razão pela qual Frege pensava que frases com componentes
sem referência são destituídas de valor-verdade está em sua insistência na ideia
artificial de que a referência da frase deva ser o seu valor-verdade. Mas como,
contrariamente a Frege, estou plenamente disposto a admitir que a referência do
enunciado seja um fato no mundo, a ausência desse fato – devida à falta de
referência do termo singular – conduz apenas à falsidade do enunciado. Ora,
isso já aproxima esse nosso Frege já bastante retificado da posição de Russell,
que via sentenças contendo descrições definidas vazias como sendo falsas.
Revisando
os pressupostos russellianos
Passemos
agora à revisão dos pressupostos da teoria das descrições de Russell. Um
primeiro passo consiste em descartarmos a tese (a) de Russell, segundo a qual
descrições definidas e nomes próprios usuais (que para ele são descrições) não nomeiam,
não sendo sequer expressões referenciais no sentido próprio.
O ponto a ser objetado à tese (a) é que sob o
ponto de vista da própria definição do que deva ser uma expressão referencial,
descrições definidas precisam sê-lo. Afinal, o que entendemos intuitivamente
como sendo um ato de referir, designar, nomear? Tugendhat expôs essa intuição
muito claramente: a referência no sentido de nomeação nada mais é do que a
singularização de um objeto indicando qual ele é dentre todos os objetos de um
certo domínio. Isso é o que distingue termos singulares como nomes
próprios, indexicais e, obviamente, descrições definidas. Descrições definidas
são, pois, termos singulares unicamente referenciais, precisamente por
obedecerem a definição de serem capazes de singularizar um objeto e separá-lo
de todos os outros, em um certo domínio. Trata-se daquilo que é modelar em
nosso entendimento do que seja a nomeação.
Descrições e nomes próprios usuais só podem
deixar de ser termos singulares quando se pretende reformar a linguagem. Esse é
o caso da moldura peculiar do referencialismo semântico sustentado pelo
atomismo lógico de Russell, segundo o qual somente demonstrativos como ‘esse’ (that),
funcionando como ‘nomes próprios lógicos’, seriam verdadeiramente capazes de
nomear alguma coisa, não podendo falhar, posto que seu significado é a própria
coisa.
Certamente, dentro dessa moldura de pensamento, descrições definidas atributivas
e nomes próprios não são termos capazes de funcionar como os supostos nomes
próprios lógicos, pois a técnica da teoria das descrições mostrou que eles são
parafraseáveis em termos de funções predicativas quantificadas. Contudo, a
doutrina dos nomes próprios lógicos defendida por Russell é claramente incoerente
e seu referencialismo implausível. O seu nome próprio lógico só teria
significado para o próprio sujeito no momento da nomeação, posto que o seu
significado é o próprio objeto. Mas essa é uma posição reconhecidamente solipsista,
na qual o significado do nome não teria permanência fora da presença do objeto,
não sendo possível criar acordo sobre ele, ou seja, inseri-lo na linguagem
convencional de maneira a torná-lo compartilhável.
Ora,
uma vez que rejeitamos a existência dos nomes próprios lógicos e não
encontramos razões suficientes para reformar a linguagem, a função referencial
das descrições definidas torna-se indiferenciável da sua função de nomear, o
que faz com que elas sejam nomeadoras no sentido próprio da expressão, no mesmo
sentido dos termos singulares. Pois se o termo singular é o que nomeia, sendo a
nomeação definitoriamente entendida como a função de singularizar um objeto ao
indicar qual ele é dentre todos, e se a descrição definida e o nome próprio usual
são termos singulares (que mesmo quando russellianamente analisada continua a
nos informar da existência de exatamente um único objeto com propriedades que,
devidamente contextualizadas, se tornam identificadoras de objetos particulares),
então esses termos continuam a preservar sua função unicamente referencial. Que
isso possa ser feito através de funções predicativas quantificadas é
indiferente. Em conclusão: se abandonarmos a incoerente doutrina dos nomes
próprios lógicos, devemos abandonar também a distorciva metafísica russelliana que
os hipostasia, disso resultando que as descrições definidas russellianamente
analisadas, tanto quanto os nomes próprios usuais, voltam a se afigurar como expressões
autenticamente capazes de nomear alguma coisa.
Em segundo lugar, devemos rejeitar também a
tese (b) de Russell: a sua confusa sugestão de que as descrições definidas não
possuem qualquer sentido em si mesmas. Confesso
que não sei ao certo de onde Russell tirou essa ideia. Talvez ela seja
proveniente de um amálgama escassamente inteligível do princípio fregeano do
contexto e da noção de incompletude da predicação: se o significado é algo como
o objeto e a descrição definida deixa de nomeá-lo para designar propriedades,
ela não pode ter significado fora do contexto de um algo mais que só pode ser
oferecido pela referência da sentença completa. Contudo, uma vez que rejeitamos
a doutrina de que os sentidos dos supostos nomes próprios lógicos são os seus
referentes e admitirmos que o sentido é sempre dado por regras semânticas e
suas combinações, fica claro que a exigência da aplicação do predicado a um
único objeto com tais e tais propriedades feita pela análise russelliana da
descrição já constitui uma regra de identificação constitutiva de um sentido
completo. Uma descrição definida deve funcionar como um termo singular
unicamente referencial com pleno significado cognitivo, o qual deve ser dado
pela regra identificadora por ela expressa.
Compatibilizando
as soluções corrigidas
Uma
vez de posse das análises de Frege e Russell despojadas de seus implausíveis
invólucros especulativos, o essencial de nossa estratégia passa a ser usar a identificação
dos sentidos com regras semânticas e a identificação da existência com as
efetivas aplicabilidades dessas regras para construir uma ponte capaz de nos
permitir trafegar dos sentidos “fregeanos” para as definições contextuais “russellianas”
e vice-versa. Esse estratagema deve demonstrar que ao menos formas revisadas
das respostas fregeanas e russellianas aos enigmas da referência são intertraduzíveis.
Eis como isso pode ser feito com respeito às soluções dos enigmas fregeanos da
referência:
Referência a inexistentes. Como já vimos, a resposta
fregeana mais razoável para o problema de como podemos predicar coisas de
objetos inexistentes consiste em notar que como os termos de frases sem
referência já possuem sentidos, podemos ao menos compreender de que maneira o
sentido incompleto do predicado pode ser completado pelo sentido completo do
termo singular, constituindo assim um conteúdo de pensamento. É isso o que nos
permite pensar que o presente rei da França é sábio sem ter de assumir sua
existência.
Um melhor entendimento emerge quando traduzimos
os sentidos fregeanos em termos de regras semântico-cognitivas. Nesse caso
diremos, retornando à sugestão de Tugendhat, que em frases predicativas
singulares verdadeiras a regra de atribuição do predicado se aplica a sua
referência usual, auxiliada pela aplicação da regra de identificação do
termo singular. Considere, por exemplo, a frase de Iuri Gagarin ao ver a Terra pela
primeira vez à distância:
A Terra é azul.
Primeiro
ele precisou identificar alguma coisa no espaço, um objeto: o planeta Terra. Só
com base nessa identificação ele pôde aplicar o predicado ‘...é azul’ ao objeto
que ele havia individuado. Vemos que a regra de atribuição do predicado ‘...é
azul’ precisa ser orientada
pela aplicação da regra de identificação do objeto a ser referido (que seleciona
dentre outros aquele chamado ‘Terra’) de maneira a encontrar o objeto, só então
podendo aplicar-se a ele de maneira a identificar sua propriedade
particularizada de ser azul. A regra de atribuição do predicado precisa, pois, aplicar-se
em combinação com a regra de identificação do objeto, pois só assim ela pode
encontrá-lo de modo que ele possa satisfazê-la ou não. Note-se que se o
enunciado fosse “A Terra é vermelha”, ele seria falso, pois o objeto
individuado pela regra de identificação do nome não satisfaria a regra de
atribuição do predicado ‘... é vermelho’. O que Frege havia identificado como
sendo “o pensamento” (der Gedanke) é a regra de verificação da frase (Satz),
que pode ter a propriedade de ser efetivamente aplicável ao fato, de ser
verdadeira adequando-se efetivamente a ele, ou de ser apenas concebivelmente
aplicável ao fato, não tendo, pois, tal propriedade, sendo por isso considerada
falsa, não se adequando a ele.
Vejamos agora o caso de termos singulares
vazios, da pretensa referência a inexistentes, como a encontrada na sentença
“Vulcano é vermelho”. Vulcano, como é sabido, é um pequeno planeta que os
astrônomos desde Le Verrier acreditavam que deveria existir entre o Sol e Mercúrio
de maneira a explicar as variações no periélio do último, tendo sido inclusive
calculado que ele se encontraria a cerca de 21 milhões de quilômetros do Sol.
Esse é o sentido fregeano do termo, que para ele seria o modo de se dar (Art
des Gegebenseins) de seu objeto. Mas para grande decepção dos astrônomos,
Vulcano nunca foi encontrado. E toda a discussão sobre Vulcano foi esquecida
depois que a aplicação da teoria geral da relatividade ao caso demonstrou com
precisão que a variação de seu periélio resultava da curvatura gravitacional do
espaço. Hoje temos certeza de que Vulcano não existe, de que a referência desse
nome é vazia, de que a sua regra de identificação não é aplicável. Como
resultado disso, a aplicação da regra de atribuição do predicado ‘...é
vermelho’ também fica impossibilitada. Como a regra de identificação do termo
singular não chega a se aplicar a seu objeto, a regra de atribuição do
predicado também não o alcança, não chegando a ser satisfeita por nenhuma
propriedade realmente dada, o que faz com que o predicado não se aplique e que por
conseguinte a frase (pace Frege) seja
falsa.
Contudo,
as considerações acima tornam fácil encontrar uma explicação mais apropriada
para o que acontece. Isso só é possível devido à imaginação. Nós somos capazes de ao menos conceber como seria a
aplicação de ambas as regras em combinação, mesmo que não possamos aplicá-las
ao mundo real. É só na medida em que somos capazes de conceber a possibilidade
de aplicação de ambas as regras de modo combinado em uma situação real, na
constituição do que Tugendhat chamou de uma regra de verificação (Verifikationsregel),
que compreendemos o sentido cognitivo da frase, algo equivalente ao pensamento (Gedanke)
fregeano.
É por isso que uma frase como “O presente
rei da França é calvo” já é capaz de exprimir um sentido completo, um
pensamento. É porque somos capazes de conceber as duas regras sendo usadas em
combinação de modo a formarem alguma regra de verificação, doando algum sentido
à frase, o pensamento, que por falta de objeto (e, portanto, de um fato
correlato) fica sem aplicação, tornando a frase falsa.
À
questão de se saber como é possível predicar calvície de algo que não existe, a
resposta fica agora sendo: nós somos capazes de conceber a aplicação das
regras e ao fazermos isso damos sentido aos termos e à frase como um todo. Só
na medida em que o sentido do termo singular passa a ser concebido pela
imaginação como podendo ser combinado com o sentido do predicado de modo a construir
um pensamento completo é que somos capazes de ter esse pensamento como sendo em
princípio aplicável, mesmo que ele permaneça efetivamente inaplicável à
realidade. Nós só predicamos, pois, de maneira a dar sentido à frase, ou seja,
de maneira a produzir um uso combinado da regra de atribuição com a regra de
identificação, de modo a formar a regra de verificação que é o pensamento,
aplicável a um fato meramente concebível. Mas nós não predicamos da maneira forçosa
que se dá quando a regra de atribuição do predicado se aplica à propriedade
local do próprio objeto identificado pelo termo singular, posto que tal objeto
não existe. Trata-se de uma predicação meramente imaginada, sem força assertórica,
pois sem uma pretensa relação com o mundo.
Ora, à
luz dessa reconstrução fica mais fácil fazer a teoria do sentido concordar com
a teoria das descrições. Podemos parafrasear a descrição ‘o presente rei da
França’ russellianamente como ‘somente um x,
tal que x é presentemente rei da
França’. E podemos dizer que aquilo que ganhamos com isso é uma formulação
analisada do mesmo sentido fregeano, ou seja, da mesma regra de identificação
para o presente rei da França, que passa a ser vista como possuindo dois
componentes:
(i)
a condição de unicidade,
(ii)
a regra
de atribuição do predicado ‘...é presentemente rei da França’.
Trata-se de uma regra de identificação de objeto na
medida em que ela nos faz distinguir um e não mais do que um objeto através de uma
propriedade criterial sua, que é a de presentemente reinar na França. A
inexistência do presente rei da França corresponde à inaplicabilidade desse
predicado e, portanto, à inaplicabilidade da regra de identificação formada por
(i) e (ii) e, por conseguinte, à falta de referência do sentido por ela
formado. Quanto ao predicado ‘x é calvo’,
ele também não se aplica, posto que não existe algo com a propriedade de ser o presente
rei da França a que ele possa se aplicar. Mas esse predicado também expressa
uma regra de atribuição e, portanto, um sentido fregeano. Juntando os fios: ao
pensarmos a sentença “Existe somente um x
tal que x é presentemente rei da
França e x é calvo” nada mais fazemos
do que ensaiar uma tentativa de aplicação da mesma regra de verificação que a
expressa pela frase “O presente rei da França é calvo”, ou seja, nada mais
fazemos que ensaiar a asserção do mesmo sentido, do mesmo pensamento, percebendo
então que a regra não possui aplicação efetiva, que esse pensamento não
corresponde ao fato, que ele é falso, posto que pela inaplicabilidade da regra
de identificação a regra de atribuição do predicado não tem como encontrar seu
objeto (em termos fregeanos, não há objeto a cair sob o conceito). Analisando o
caso da referência a inexistentes já vemos como é possível transitar de uma
explicação “fregeana” para uma explicação “russelliana” e vice-versa.
(ii) Existenciais negativos. Em um
entendimento fregeano, a negação da predicação de existência não é
problemática, pois é a negação da propriedade do conceito de ter ao menos um
objeto que sob ele caia. Tendo rejeitado como implausível e desnecessária a
noção fregeana de conceito entendido como a referência do predicado, e tendo
identificado o conceito com o sentido da expressão predicativa, dizer que o presente
rei da França não existe torna-se o mesmo que dizer que o sentido de ‘o presente
rei da França’ não chega a determinar uma referência.
Como
expressaríamos isso falando de regras semântico-cognitivas no lugar de
sentidos? Ora, diríamos que o sentido ou conceito expresso por um termo
singular como ‘o presente rei da França’ é dado pela regra de identificação
desse termo. Como a existência nada mais é do que a efetiva aplicabilidade de
uma regra conceitual, dizer que o objeto referido por essa regra conceitual de
identificação não existe é o mesmo que dizer que essa regra não possui a efetiva
(e continuada) aplicabilidade requerida.
Passemos agora à análise “russelliana”. Nela
uma descrição como ‘o presente rei da França’ é transformada em ‘ao menos um x e não mais que um x tal que x é o presente
rei da França’. Com isso o que temos é um sentido, uma regra de identificação, dado
que ela deve distinguir um objeto particular. Essa regra deve ser composta por
duas sub-regras:
(i)
a
condição de unicidade e
(ii)
a regra de atribuição do predicado ‘...é presente
rei da França’.
Dizer
que o presente rei da França não existe é ao menos dizer “Não é o caso que
existe ao menos um x e não mais que
um x, tal que x é presentemente rei da França”, e isso é o mesmo que dizer que a
regra de identificação composta pelas condições (i) e (ii) não é efetivamente aplicável
(mesmo que sua aplicação seja concebível na imaginação). Qual a diferença entre
essa regra, a regra anterior e o sentido (fregeano) da descrição? A resposta é
que se trata de exposições diferentes de algo pelo menos bastante similar. A
regra de identificação é apenas decomposta pela análise “russelliana” em duas:
a regra de unicidade e a regra de atribuição do predicado. Dizer que o presente
rei da França existe é dizer que a regra de atribuição do predicado ‘...presente
rei da França’ é efetivamente aplicável a um único objeto. E dizer que o presente
rei da França não existe é dizer que a regra de atribuição do predicado ‘...presente
rei da França’ não se aplica à propriedade local de um objeto específico. Como
o que temos são formas diversamente analisadas do modo como a referência é
determinada, as análises “russelliana” e “fregeana” dos existenciais negativos convergem
no sentido de se tornarem duas maneiras diversas de se dizer praticamente o
mesmo (isso fica mais claro quando pensamos em uma descrição definida realmente
aplicável como em “A presente rainha da Inglaterra tem cabelos brancos”: o
único x que é a presente rainha da Inglaterra possui uma porção de
propriedades individuadoras bem conhecidas que são criterialmente demandadas
por seu conceito, além da propriedade adicional de ter cabelos brancos).
(iii) Identidade. Considere agora sentenças de
identidade como “A estrela da manhã é a estrela da tarde”. Como podem ser tais
sentenças informativas, se as descrições se referem a um mesmo objeto? A
resposta de Frege é que apesar disso essas descrições exprimem modos de
apresentação diferentes, sentidos diferentes, e que expor modos de apresentação
diferentes dizendo que eles se referem a uma mesma coisa é informar. Parafraseando
o conceito de sentido em termos de regra, o que Frege acaba por nos sugerir é
que a frase acima é informativa porque nos diz que identificamos o mesmo objeto
através de duas regras de identificação diferentes, que apelam a configurações
criteriais diversas.
Por meio da teoria das descrições, chamando
o predicado ‘estrela da manhã’ de M e o predicado ‘estrela da tarde’ de T, a
frase de identidade pode ser simbolizada como
(1) ∃x (Mx & Tx & (y) (My → y
= x)) & (z) (Tz → z = x)).
Ou seja:
(2)
Existe somente um x
que é estrela da manhã e esse mesmo x
é estrela da tarde.
Mas o que (1) e (2) querem dizer é que tanto a
regra de atribuição do predicado ‘estrela da manhã’ quanto a regra de
atribuição do predicado ‘estrela da tarde’ efetivamente se aplicam a não mais
que um único objeto que acontece de ser o mesmo. Assim, a análise russelliana nos
garante que a regra de identificação constituída por “∃x (Mx
& (y) (My → y = x))” se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação
constituída por “∃x (Tx & (z) (Tz → z = x))”,
dado que por transitividade y = z. Mas isso é praticamente o mesmo que
dizer que temos duas regras de identificação diferentes, dois modos de
apresentação ou sentidos fregeanos diferentes para o mesmo objeto. Outra vez,
as duas análises demonstram-se suficientemente intertraduzíveis.
(iv) Contextos
opacos. Finalmente, considere os proferimentos de atitude proposicional
como:
(1) George
IV acredita que Scott é Scott.
e
(2) George IV acredita que o autor de
Waverley é Scott.
Por
que a verdade de (1) não garante a verdade de (2), se ambas as frases
subordinadas são frases de identidade sobre a mesma pessoa?
Para Frege a resposta é que em tais casos a
frase subordinada não tem a sua referência usual, que para ele é o
valor-verdade. Ela se refere, pensa ele, ao sentido ou pensamento da frase
subordinada. Como consequência, o valor-verdade da frase que exprime atitude
proposicional deixa de ser função do valor-verdade da frase subordinada,
tornando a intersubstituição salva
veritate impossível.
Como rejeitamos
a ideia fregeana contra-intuitiva de que a referência usual da frase deva ser o
seu valor-verdade, precisamos primeiro refazer a sua solução. Podemos preservar
a sua excelente sugestão de que a referência da frase subordinada seja o seu
sentido em proferimentos de atitudes proposicionais. Podemos simbolizar esse
ponto como “aAp”, em que ‘a’ refere-se a uma certa pessoa, ‘_’
torna a referência o próprio sentido, de modo que ‘p’ refere-se a um dado pensamento, e ‘A’ refere-se a uma atitude, que pode ser de crença, de
conhecimento, de desejo etc. Mas isso significa que nessa posição p não se refere mais ao fato (como uma
concatenação de elementos dada no mundo) que lhe possa eventualmente
corresponder, deixando de entrar em questão o papel do fazedor-de-verdade, a
sua correspondência com o fato no mundo. Na
frase de atitude proposicional, o que importa é certa relação entre o conteúdo
da frase principal (geralmente expressando uma disposição ou ato mental que
atribuímos a certa pessoa ou a nós mesmos) e o pensamento expresso pela frase
subordinada, de modo que a verdade ou falsidade da frase de atitude proposicional
dependa apenas de essa relação respectivamente se dar ou não se dar de fato na
mente da pessoa a. O fato que torna a
frase do tipo aAp verdadeira é o próprio pensamento de que p
tido por a. E isso se dá na independência do pensamento p da frase subordinada corresponder ou
não ao fato no mundo que lhe deveria ser correlato, na independência de esse
pensamento ser factualmente verdadeiro ou não. Em outras palavras: a referência
da frase subordinada é um conteúdo de pensamento em relação ao qual afirmamos
que a pessoa tem uma atitude ou disposição, de modo que:
Um enunciado do tipo “aAp” é verdadeiro see
a sua referência aAp for um
fato constituído pela existência da pessoa a
em sua atitude A em relação ao pensamento p que ela que ela tem.
É
por isso, afinal, que o pensamento expresso pela frase subordinada não pode ser
substituído salva veritate: é ele próprio o fato referido
pela frase subordinada.
Parafraseando agora pensamentos como regras
de verificação de frases, podemos dizer que as regras de verificação das frases
subordinadas de (1) e (2) são diferentes sem para isso nos comprometermos com a
efetiva aplicabilidade dessas regras, com a existência real daquilo que as
satisfaz. Assim, considerando o sentido do termo singular como uma regra de
identificação, podemos parafrasear (1) como
(1’) George IV acredita que a
regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott se
aplica ao mesmo objeto que a
regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott,
e (2)
como
(2’)
George IV acredita que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para
Scott se aplica ao mesmo objeto que a (diferente) regra de identificação (sentido)
que ele conhece para o autor de Waverley.
Como em (1’) e (2’) os conteúdos de pensamento com relação aos
quais George IV tem a relação de crença são diferentes, e como enunciados de
atitude proposicional como esses dependem apenas da correspondência entre a
relação de crença enunciada e pensada por quem enuncia e a relação de crença factualmente
dada (supostamente, um conteúdo cognitivo de crença atribuido a George IV) para
serem verdadeiros, as frases subordinadas não podem ser substituídas salva-veritate, pois os pensamentos ou regras verificacionais a serem por
elas referidos são diferentes.
Passemos agora à paráfrase russelliana. A
frase subordinada de (1) é analisada como:
(1’’) George IV acredita que existe precisamente
um x que é Scott e que esse x é Scott.
E a
frase subordinada de (2) é analisada de modo a obtermos:
(2’’) George IV acredita que existe precisamente
um x que é autor de Waverley e que esse
x é Scott.
Ora, como as locuções ‘somente um x que é Scott’ e ‘somente um x que é autor de Waverley’ contém diferentes
predicações, “Scott é Scott” não pode querer dizer o mesmo que “Scott é o autor
de Waverley”.
O ponto a ser notado é o de que aquilo que a
análise russelliana faz é apenas explicitar melhor um aspecto de nossa versão
da análise fregeana. Afinal, a análise fregeana em (2’), por exemplo, também pode ser
apresentada como
(2’’’) George IV acredita que existe somente
um x tal que a regra de identificação
que ele conhece para Scott, tanto quanto a (diferente) regra de identificação que
ele conhece para o autor de Waverley, a ele se aplicam.
Mas (2’’’)
e (2’’) não diferem essencialmente. Afinal, dizer ao modo de Russell que George
IV acredita que a regra de identificação que ele conhece para o predicado
‘Scott’ e que a regra de identificação que ele conhece para o predicado ‘o
autor de Waverley’ se aplicam a um único e mesmo objeto vem a dar praticamente no
mesmo que dizer ao modo de Frege que George IV acredita que a regra de identificação
(o sentido) que ele conhece para o termo singular ‘Scott’ tem o mesmo referente
que a regra de identificação (o sentido) que ele conhece para ‘o autor de
Waverley’. Conclusão: também no caso das atitudes proposicionais, as análises
são praticamente intertraduzíveis.
Conclusão
Podemos
sumarizar analisando a função referencial das descrições definidas de três
maneiras: (i) em termos de “entidades abstratas”, como Frege fez ao falar de
sentidos, (ii) em termos de regras de identificação cognitivo-criteriais, inspirados
em abordagens como as de Dummett e Tugendhat, e ainda (iii) usando os recursos
da lógica predicativa, como Russell fez em sua teoria das descrições. Trata-se,
porém, tão somente de maneiras diversas e complementares de se tentar dizer o
mesmo.
Críticos dogmáticos diriam que me vali de
contorcionismos argumentativo para demonstrar que ambas as teorias são modos
difererentes de se dizer (quase) o mesmo. Mas na verdade foram descontorcionismos,
posto que os contorcionismos já se encontravam presentes nos pressupostos
metafísicos de Frege e Russell. A impressão de que se trata de abordagens
conflitivas fica somente por conta desses pressupostos metafísicos implausíveis
que impregnam aquilo que cada um desses filósofos escreveu.
Muito
diversamente do que Russell pensava, as paráfrases produzidas pela teoria das
descrições nada mais são do que um artifício pelo qual se torna possível exprimir
formalmente a função referencial-identificadora das descrições definidas em seu
uso atributivo, fazendo isso através de expressões predicativas usadas em um domínio
que lhes garanta aplicação unívoca. E isso as faz figurar como expressões de
sentidos fregeanos – expressões de modos de apresentação que são melhor
parafraseados como regras de identificação. Como essas regras só se aplicam realmente
em instanciações cognitivas, fica claro o compromisso da teoria das descrições,
assim revisada, com o cognitivismo semântico que nos importa investigar.
4
NOMES PRÓPRIOS (I): DESCRITIVISMO
Nesse
capítulo começaremos a investigação de como os nomes próprios referem. Existem
duas espécies gerais de teorias dos nomes próprios: as descritivistas, que enfatizam o elo intermediário cognitivo
descritivamente exprimível, que deve poder existir entre o nome e o objeto, e
as referencialistas, que enfatizam o
objeto referido e sua relação causal com o proferimento, rejeitando a relevância
de um elo intermediário. Meu objetivo nesse e no próximo capítulo será o de
fornecer suporte para o capítulo 6, no qual apresentarei minha própria explicação
do mecanismo de referência dos nomes próprios. Assim, no presente capítulo
discutirei as versões clássicas do descritivismo e no próximo as principais ideias
do referencialismo kripkiano. Antes de tudo, porém, quero introduzir
criticamente a teoria referencialista dos nomes próprios sugerida por John
Stuart Mill ainda no século XIX, posto que ela está na origem da discussão
contemporânea.
Stuart
Mill: nomes sem conotação
Mill
começou por distinguir entre a denotação
e a conotação de um termo: a
denotação é a referência do termo, enquanto a conotação (sentido ou
significado) é o seu elemento passível de descrição e que implica um atributo.
Entre as expressões referenciais, a descrição definida (chamada por ele de
‘nome individual’) possui tanto denotação quanto conotação. Ela denota através
de sua conotação, nomeadamente, por expressar atributos que, possuídos unicamente pelo seu objeto, nos permitem
identificá-lo referencialmente. Uma descrição como ‘o autor de O coração das trevas’ conota um atributo
que somente um único indivíduo possuiu, qual seja, o atributo de ter sido o
autor de um certo livro. O mesmo não
acontece com o nome próprio. Em suas palavras:
Nomes próprios não são conotativos: eles
denotam os indivíduos que são chamados por eles, mas não indicam ou implicam
quaisquer atributos como pertencentes àqueles indivíduos. Quando chamamos uma
criança pelo nome Paulo ou um cão pelo nome César, esses nomes são simples
marcas usadas para permitir aos indivíduos se tornarem objeto do discurso.
(...) Nomes próprios são ligados aos objetos em si mesmos, não dependendo da
continuidade de nenhum atributo do objeto.
Em
outras palavras: o nome próprio não tem conotação. Ele tem uma estrutura mais
simples, ele refere diretamente, como se fosse um rótulo colado em uma
garrafa. Como para Mill o significado não reside naquilo que um nome denota,
mas naquilo que ele conota, segue-se que nomes próprios não possuem significado.
Quero fazer aqui uma pausa para notar que
Mill também fez afirmações que se encontram em dissonância com a interpretação standard que acabo de expor. Como ele
escreveu:
Um nome próprio não é mais do que uma marca sem
significado que conectamos em nossas mentes com a ideia do objeto, de modo que sempre que essa
marca encontra nossos olhos ou ocorre em nosso pensamento, podemos pensar
naquele objeto individual.
(grifo nosso).
Parece,
pois, que por significado Mill entendia aqui o significado linguisticamente
expresso, que se distingue da ideia do objeto. De fato, o nome próprio não tem nenhum
significado linguisticamente expresso do modo como acontece com a descrição
definida ou como parece acontecer com termos gerais (que ele chamava de ‘nomes
gerais’) como ‘homem’, ‘cão’ e ‘doença’, que para ele também conotam os
respectivos atributos além de denotarem os conjuntos de todos os homens, de
todos os cães e de todos os organismos doentes. Contudo, o que Mill chama de ideia
do objeto não parece menos do que um modo psicologista de se falar de conteúdos
informativos, a dizer, de sentidos que só diferem dos de Frege no aspecto
ontológico. Se for esse o caso, então a concepção de Mill acaba sendo compatível
com a sugestão de que nomes próprios possuem algo como sentidos entendidos como
modos de apresentação psicológicos, daí resultando que deixa de haver uma
contradição categórica entre a sua posição e o descritivismo sobre nomes
próprios defendido por Frege e outros. Embora eu considere essa a maneira mais benevolente
de se interpretar o que Mill estava tentando dizer, ignorá-la-ei aqui por
razões expositivas.
A teoria da
referência direta alegadamente proposta por Mill é facilmente refutável. Na forma
apresentada na primeira citação ela não é capaz de resolver satisfatoriamente
os enigmas da referência já considerados em nossa discussão da teoria russelliana
das descrições. Quanto ao enigma da referência a inexistentes, como dar sentido
a uma frase como “Papai Noel vive no Pólo Norte”, se o nome ‘Papai Noel’ não
possui nem conotação nem denotação? A isso Mill poderia responder que Papai
Noel se refere a um objeto imaginário. Mas considere o caso de um existencial
negativo verdadeiro como “Papai Noel não existe”. Se tudo o que pertence ao
nome for a sua referência, tal frase parece contraditória, pois aplicar o nome
já seria admitir sua existência. Quanto aos enunciados de identidade contendo
nomes co-referenciais, considere a diferença entre a frase (a) “Hesperus é
Hesperus” e a frase (b) “Hesperus é Phosphorus”. A primeira é tautológica, nada
dizendo, enquanto a segunda pode ser informativa. Como para Mill, por não
conotarem, os nomes co-referenciais não podem possuir diferentes valores semânticos,
a sentença (b) deveria ser tão trivial quanto (a). Finalmente, quanto ao
problema da ausência de intersubstitutividade em contextos opacos, considere
uma sentença como “Maria acredita que Cícero, mas não Túlio, é um orador
romano”. Se os nomes próprios ‘Cícero’ e ‘Túlio’ são apenas rótulos para uma
mesma pessoa, parece que Maria precisa ser capaz de acreditar em coisas
totalmente inconsistentes, como a de que Cícero não é Cícero. Por razões como
essas e sob a influência contrária do descritivismo de Russell, a teoria
milliana da referência direta dos nomes próprios cedo caiu no esquecimento.
Descritivismo
(I): Frege e Russell
A
teoria descritivista dos nomes próprios dominou o século XX até a década de
1970, quando acabou sendo eclipsada pela nova versão do millianismo inicialmente
proposta por Saul Kripke e Keith Donnellan. A ideia geral do descritivismo é a
de que o nome próprio refere indiretamente, por alusão a propriedades
geralmente exprimíveis através de conjuntos ou feixes (bundles) de
descrições. Ou seja: contrariamente ao millianismo, nomes próprios conotam.
Eles conotam por estarem no lugar de feixes de descrições, sendo por isso
logicamente mais complexos e não mais simples do que elas.
Segundo uma interpretação corrente que foi difundida
por Kripke, há duas formas de descritivismo: uma mais primitiva, defendida por
Frege e Russell, segundo a qual o sentido de um nome próprio é dado por uma
única descrição definida associada a ele, e outra mais sofisticada, defendida
por filósofos como Wittgenstein, Strawson e Searle, segundo a qual o sentido do
nome próprio é dado por um feixe ou agregado de descrições. Meu
principal objetivo nesse capítulo é o de demonstrar que essa interpretação é obviamente
incorreta. Uma complexa teoria descritivista dos nomes próprios já era aludida
nos escritos de Frege e Russell, mesmo que neles se encontrasse apenas
fragmentariamente tematizada. O que houve desde então foi uma progressiva explicitação
e adição de detalhes aspectuais em torno de um insight comum.
Para demonstrar minha tese quero começar considerando
a formulação fregeana. No pouco que escreveu sobre a referência dos nomes
próprios, Frege interpretou os seus sentidos como exprimíveis por diferentes
descrições ou conjunções de descrições definidas que a ele associamos. Essa
interpretanção aparece em uma conhecida nota de seu artigo “Sobre sentido e
referência”, onde a teoria descritivista propriamente se origina:
No caso de nomes genuinamente próprios, como
‘Aristóteles’, opiniões sobre o seu sentido podem divergir. O seguinte sentido
pode ser sugerido: discípulo de Platão e tutor de Alexandre o Grande. Quem quer
que aceite esse sentido irá interpretar o sentido do enunciado “Aristóteles
nasceu em Estagira” diversamente de quem interpreta o sentido de Aristóteles
como o professor estagirita de Alexandre o Grande. Na medida em que o nominatum permanece o mesmo, essas
flutuações no sentido são toleráveis.
O
que essa nota sugere é que pessoas diferentes podem associar descrições ou mesmo
conjunções de descrições diferentes a um mesmo nome – conjunções como ‘o
discípulo de Platão e o tutor de
Alexandre’. Os diversos sentidos associados ao nome são expressos pelas
diversas descrições definidas, sob a condição de que elas preservem a
referência.
Contudo, Frege também observou que as
flutuações no sentido não podem ser tão grandes a ponto de impedir a
comunicação: se diferentes usuários da linguagem associam descrições ou
conjunções de descrições totalmente diferentes a um nome próprio, perde-se a
unidade do sentido e torna-se impossível para eles saberem se estão falando da
mesma pessoa. Suponha, escreveu Frege, que Leo Peter tenha ido à residência do
doutor Gustav Lauben e o tenha ouvido dizer “Eu fui ferido”, sendo isso tudo o
que ele sabe sobre Gustav Lauben. Leo Peter tenta comentar o ocorrido com
Herbert Garner, que por sua vez sabe de um Dr. Gustav Lauben que nasceu em 13
de setembro de 1875 em N.N., não sabendo, porém, onde o Dr. Lauben reside agora,
nem qualquer outra coisa acerca dele. Disso resulta que Leo Peter e Herbert
Garner não conseguem saber se estão falando da mesma pessoa. Pois no dizer de
Frege eles
não falam a mesma língua, ainda que com esse
nome eles de fato designem o mesmo homem; pois eles não sabem que fazem isso.
Herbert Garner não associa, pois, à frase “Dr. Gustav Lauben foi ferido”, o
mesmo pensamento que Leo Peter quer com ela exprimir.
Do
que foi considerado deixa-se facilmente concluir que Frege concordaria com a
tese descritivista de que o sentido completo de um nome próprio é constituído
por um conjunto de sentidos geralmente exprimíveis através de descrições; cada
falante tem geralmente acesso a um certo subconjunto desse conjunto de sentidos;
mas tais subconjuntos precisam ter em comum ao menos o suficiente para que os
falantes possam saber que estão se referindo ao mesmo objeto; é preciso que os
dois conjuntos de descrições se interseccionem.
Michael
Dummett, o mais original e influente intérprete de Frege, protestou contra a ideia
de que Frege teria proposto uma teoria descritivista dos nomes próprios. A
alegação de Dummett foi a de que Frege usou descrições porque eram maneiras
fáceis de esclarecer o sentido de alguns exemplos, mas que isso não tem nada a
ver com a ideia de Russell de que o nome próprio é a abreviação de uma
descrição complexa, nem com a concepção referencialista do significado inerente
à teoria das descrições... Além disso, escreveu Dummett, não há nenhum indício
de que Frege concordaria com a ideia de que o sentido do nome próprio possa ser
sempre expresso através de descrições. Segundo ele, o importante para Frege é
que o nome próprio seja associado a um
critério para reconhecer um dado objeto
como o seu referente. Dummett ilustrou o seu ponto considerando as múltiplas
maneiras possíveis de se identificar o rio Tâmisa.
Muitas vezes, escreveu ele, isso é feito indiretamente, a partir de informações
colaterais, como é o caso de uma pessoa que percebe que se trata do mesmo rio
que passa sob a ponte de Radcot ou através da cidadela de Henley... E uma
pessoa pode saber que ele passa por Oxford sem saber que ele é o mesmo rio que
atravessa Londres, ainda assim identificando o rio corretamente. Não há,
concluiu ele, nenhuma condição suficiente que todos precisem saber para a identificação
do Rio Tâmisa.
Contudo, nenhuma das razões aduzidas por Dummett
justifica seu protesto. Primeiro, é perfeitamente possível adotar o
descritivismo sem se comprometer com a concepção referencialista do significado
implícita na exposição russelliana, o que me parece o cultprit da reação dummettiana. Depois, o descritivista não precisa
defender que tudo pode ser expresso por meio de descrições: representações
táteis, visuais e auditivas não podem ser em si mesmas resgatáveis através de
palavras. Descrições são geralmente expressões linguísticas de regras
convencionais ou convencionalmente fundadas – que é como poderíamos
chamar as combinações de regras convencionais – pelas quais significações se assomam
à linguagem. O que realmente conta são essas regras semântico-criteriais, as quais
se deixam exprimir através de descrições e que por isso, em alguma medida,
vinculam o nome próprio ao seu portador. Esse entendimento, porém, é complementar
à própria ideia de Dummett de que o importante para o sentido do nome próprio é
que ele seja associado a um critério de identidade para o objeto, permitindo
que ele seja reconhecido outra vez como sendo o mesmo. Finalmente,
um filósofo como Frege estava longe de pensar em uma descrição como condição
suficiente para a aplicação do nome próprio. Penso que Dummett tinha uma visão
demasiado restritiva do que pode ser uma teoria descritivista dos nomes
próprios, tendo sido falsamente orientado por uma aplicação simplificadora mas bastante
usual da teoria das descrições de Russell. Isso ficará mais claro quando
compararmos o seu exemplo do rio Tâmisa com o exemplo de Russell sobre Bismark.
Passemos então à concepção de Russell. Como
já foi notado, ele via os nomes próprios da linguagem ordinária como descrições
definidas abreviadas, truncadas ou disfarçadas, sugerindo que elas pudessem ser analisados pelo mesmo
método pelo qual ele analisara as descrições definidas. Como ele não estava primariamente
interessado na prática linguística ordinária, ele pouco se deteve na questão. Mas
para ele o nome próprio não abrevia uma única descrição, como muitos insistiram
em interpretá-lo, e como ele próprio, por mera conveniência de exposição,
costumava fazer parecer em seus textos mais técnicos. Isso fica claro em um
texto com menos preocupações formais, como Os
Problemas da Filosofia, onde ele demonstrou possuir um entendimento muito mais
complexo da questão. Eis uma passagem:
Palavras comuns, mesmo nomes próprios, são geralmente
descrições. Isto é, o pensamento na mente de uma pessoa usando um nome próprio
corretamente só pode em geral ser explicitamente expresso se o substituirmos
por uma descrição. Mais além, a descrição requerida para exprimir o pensamento irá variar para pessoas diferentes ou para
uma mesma pessoa em diferentes tempos. (grifos meus)
O
que essa passagem sugere é que há na linguagem um vasto repositório de
informações sobre o objeto de um nome, as quais são muitas vezes exprimíveis na
forma de descrições definidas. Quando proferimos o nome próprio, costumamos ter
em mente uma ou mais dessas descrições, de modo que tudo o que é necessário
para que o ouvinte entenda que se trata da mesma pessoa, escreveu Russell, é
que ele saiba que as descrições se aplicam à mesma entidade evocada em sua
mente.
Russell apresentou em seguida como exemplo o
nome ‘Bismark’. Uma primeira e peculiar forma de acesso a Bismark é a que o
próprio Bismark tinha a si mesmo em um juízo como “Eu sou Bismark”. Nesse caso,
para Russell o próprio Bismark é um componente de seu juízo, sem passar por uma
descrição. Uma outra maneira de se ter em mente Bismark é a das
pessoas que lhe foram pessoalmente apresentadas. Nesse caso, o que elas consideram
é o corpo e a mente de Bismark, conhecidos por intermédio de conjuntos de dados
sensíveis a eles associados, geralmente aptos a serem expressos por descrições.
Mas ainda outra maneira de se conhecer Bismark, escreve Russell, é através da
história. Nesse caso associamos à sua pessoa descrições como ‘o primeiro
chanceler do império germânico é um astuto diplomata’ (que é uma descrição composta,
formada pela conjunção de uma descrição definida com uma descrição indefinida).
No final das contas, o que geralmente temos em mente é um vasto conjunto de
informações históricas exprimíveis sob a forma de descrições que podem ser capazes
de identificar a pessoa univocamente. Como ele escreve:
Quando nós, que não conhecemos Bismark, fazemos um
juízo sobre ele, a descrição em nossas
mentes será provavelmente alguma mais ou menos vaga massa de conhecimento histórico – muito mais,
geralmente, do que é requerido para identificá-lo. Mas aqui, por razão
de ilustração, vamos assumir que pensamos nele como ‘o primeiro
chanceler do império alemão’. (grifos meus)
O
texto é do próprio Russell e não me deixa mentir. O que ele sugere é que quando
usamos um nome próprio em terceira pessoa, o que temos em mente deixa-se
exprimir através de uma descrição complexa (a “massa de informações”), que só
pode ser constituda pela composição de uma variedade de descrições. Essa
descrição composta possui contornos vagos (que costumam variar de usuário para
usuário e inclusive para um mesmo usuário em diferentes ocasiões), pertencendo
a um ainda maior repositório de descrições que expressam uma totalidade de informações
identificadoras do mesmo objeto.
Que
espécie de composição de descrições e repositório de descrições é algo que fica
em aberto. Se quisermos poderemos tentar analisar essa totalidade como uma conjunção
de descrições sobre o mesmo x, a
saber, como uma conjunção de atribuições existenciais unívocas de propriedades.
Se os predicados descritivos dessas propriedades forem simbolizados como os do
conjunto {F1, F2... Fn}, uma descrição
definida composta (formada por outras descrições definidas) será então analisada
ao modo de Russell como (Ex) ((F1x & F2x... & Fnx) & (y) (F1y → y = x)
& (y) (F2y → y = x)...
& (y) (Fny → y = x)).
Não importa a maneira pela qual decidiremos interpretar a noção de “massa de
informações”; o fato é que a sugestão de que Russell defendia que ao usarmos
nomes próprios temos em mente uma única descrição não passa de uma quimera
interpretativa, uma caricatura do que ele realmente pensava.
O que
essas leituras textuais também demonstram é que Russell estava disposto a
analisar o nome próprio ‘Bismark’ de uma maneira que não difere
substancialmente daquela pela qual Dummett analisa o sentido do nome próprio
‘Tâmisa’. Uma descrição central, como ‘o primeiro chanceler do Império
Germânico’, é para Russell apenas uma dentre a massa de descrições que alguém
pode associar a Bismark, da mesma forma que para Dummett a descrição central ‘o
rio que atravessa Londres’ é apenas uma dentre as muitas descrições que alguém
pode associar ao nome ‘Tâmisa’.
Se insistirmos em achar que Frege não foi um
descritivista, então parece que deveremos concluir o mesmo de Russell. Mas como
Russell sempre foi considerado o “descritivista-mor”, a conclusão só pode ser a
de que Frege também foi um descritivista. E há uma razão para se pensar assim:
se há uma unidade efetiva no objeto teórico das teorias descritivistas, então
as suas várias versões não precisam ser alternativas inconsistentes entre si, mas
aproximações mais ou menos congruentes de um mesmo fenômeno complexo, cada qual
pondo em relevo diferentes aspectos dele, mesmo que divergindo em métodos e pressupostos.
Descritivismo
(II): Wittgenstein, Strawson e Searle
Após
Frege e Russell, vários outros filósofos ligados à filosofia da linguagem
natural, principalmente Wittgenstein, P.F. Strawson e J.R. Searle, apresentaram
sugestões de interesse no sentido de aprimorar a teoria dos nomes próprios como
feixes ou agregados de descrições fragmentariamente exposta pelos primeiros.
Quero considerar brevemente as sugestões de cada um deles.
Na seção 79 das Investigações Filosóficas Wittgenstein adiciona alguns comentários à
concepção de Russell. Segundo ele, ‘Moisés’ pode estar abreviando uma variedade
de descrições como, por exemplo, ‘o homem que guiou os israelitas através do
deserto’, ‘o homem que viveu naquele tempo e naquele lugar e que naquela época
foi chamado de ‘Moisés’’, ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo pela
filha do faraó’ etc. A isso ele adiciona que o nome ‘Moisés’ ganha sentidos
diferentes de acordo com a descrição que a ele associamos, reconhecendo assim
que um nome tem um sentido cognitivo expresso pelas descrições que
individualmente a ele associamos. A questão que emerge é: em que medida as
descrições do feixe de descrições vinculadas ao nome precisam ser satisfeitas
pelo objeto? Wittgenstein evade-se de uma resposta direta. Ele observa apenas
que utilizamos nomes próprios sem uma significação rígida, de modo que mesmo
que algumas descrições falhem em se aplicar, ainda assim poderemos nos servir
das outras como suporte. A linguagem natural é inevitavelmente vaga. Mais
ainda, com o tempo o corpo de descrições identificadoras do objeto referido por
um nome próprio tende a se alterar: características que antes se afiguravam
irrelevantes podem, em um conceito elaborado pela ciência, se tornar relevantes
e convencionalmente aceitas, enquanto outras podem se enfraquecer ou serem rejeitadas...
Segundo Strawson, para cada nome próprio há
em geral um conjunto de descrições pressupostas, o qual ele chama de conjunto pressuposicional (pressupositional-set), o qual possui limites indefinidos. Para
sabermos aplicar um nome próprio devemos normalmente conhecer uma razoável
porção do conjunto, que seja constituida por descrições definidas que ele chama
de descrições identificadoras (identifying descriptions), entendidas
como aplicando-se univocamente ao portador do nome. Embora nem os limites do
conjunto nem o que constitui uma razoável e suficiente proporção de suas
descrições sejam coisas precisamente definidas, isso não nos deveria preocupar,
pois, longe disso, essa indeterminação é parte daquilo que torna o uso dos
nomes próprios flexível.
Uma ideia importante é a do empréstimo da referência (reference borrowing). Strawson quer
explicar como alguém pode ser bem sucedido em usar um nome próprio
referencialmente, mesmo sem conhecer uma descrição identificadora. Para ele,
quando não temos uma descrição identificadora podemos tomar de empréstimo suas
credenciais de referência feitas por outra pessoa, a qual por sua vez toma de
empréstimo suas credenciais de referência feitas por outras pessoas até chegar
a quem conheça realmente uma proporção suficiente de descrições identificadoras
para poder com segurança identificar o objeto. Eis
porque, após a aula, um aluno pode em um sentido se referir a Aristóteles
sabendo apenas que ele foi um filósofo. Ele pode fazê-lo tomando de empréstimo
a referência identificadora tida pelo professor e sugerida pela descrição
definida ‘o filósofo citado pelo professor na última aula’.
Quanto ao significado de um nome próprio,
este seria para Strawson aquela descrição unicamente identificadora que alguém
associa ao nome próprio quando o usa. Assim, podemos querer dizer coisas
diferentes com um nome como ‘Aristóteles’, conforme associemos a ele a
descrição ‘o maior discípulo de Platão’ e ‘o autor da Metafísica’. Isso torna préviamente indeterminado o que queremos
dizer com o nome. Mas isso não é uma desvantagem, posto que a comunicação seria
muito mais difícil se cada usuário do nome próprio precisasse conhecer todas as
descrições do conjunto-pressuposicional para poder aplicá-lo.
A formulação mais sistemática, clara e elaborada
da teoria descritivista dos nomes próprios se encontra em um artigo de 1958
escrito por J.R. Searle. Para esse autor, um nome próprio tem suas condições de
aplicação definidas pela aplicação a um único objeto de um número suficiente,
mas indefinido, de descrições. Searle exemplifica isso com o nome
‘Aristóteles’, que se encontra associado a uma classe de descrições definidas que
inclui:
1. o tutor
de Alexandre o Grande,
2. o autor
da Ética a Nicômano, da Metafísica e De Interpretatione,
3. o
fundador da escola do Liceu em Atenas,
Ele
inclui entre as descrições do feixe mesmo algumas descrições indefinidas como
‘um grego’ e ‘um filósofo’. Para Searle o nome próprio ‘Aristóteles’ preserva a
sua aplicação se um número suficiente e variável de tais descrições se aplica.
E podemos supor que este seria, em um caso extremo, minimamente redutível a um único
disjunto de uma disjunção de descrições.
Essa questão das condições de aplicação de
um nome próprio é também a do seu sentido. Na paráfrase sintética de Susan
Haack: os sentidos que damos a um nome
próprio são expressos por subconjuntos não previamente determinados de um
conjunto aberto de descrições co-referenciais. O
fato de os nomes próprios não conotarem sentidos específicos não quer dizer que
eles não conotam sentido algum. Os nomes próprios conotam descrições de forma
solta (in a loose way). Longe de ser
um defeito é isso o que dá ao nome próprio a sua muito superior flexibilidade
de aplicação. Como escreveu Searle:
...o caráter único e a imensa conveniência pragmática
dos nomes próprios em nossa linguagem repousa precisamente no fato de que eles
nos permitem referir publicamente a objetos sem sermos forçados a levantar
questões e a chegar a um acordo sobre que características descritivas
exatamente constituem a identidade do objeto. Eles funcionam, não como
descrições, mas como cabides para pendurar descrições.
Essa
versão do descritivismo permite explicar uma variedade de casos. É possível,
por exemplo, que um objeto satisfaça apenas umas poucas, ou mesmo uma única das
descrições pertencentes ao feixe de descrições costumeiramente associadas a seu
nome. O que não pode acontecer é que o nome próprio se aplique sem que nenhuma das descrições relevantes seja
satisfeita. Como Searle observou, Aristóteles não pode ser o nome do garçom de
um restaurante em Berkeley ou o nome de um numero primo. Ou ainda:
Se um especialista em Aristóteles vier nos
informar que descobriu que Aristóteles na verdade não escreveu nenhuma das
obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um mercador de peixes veneziano do
renascimento tardio, nós entenderemos isso como uma piada de mau gosto e nos
recusaremos a ver qualquer propósito no que ele está dizendo.
De
posse dessa teoria dos nomes próprios Searle tem condições de explicar melhor afirmações
de existência com nomes próprios, bem como identidades analíticas e
não-analíticas entre eles: dizemos “O Everest existe” quando um número mínimo,
mas indeterminado, de descrições, se aplica ao objeto; afirmamos uma identidade
analítica, como “O Everest é o Everest” quando os mesmos conjuntos de
descrições de cada ocorrência do nome se aplicam ao mesmo objeto; e afirmamos
identidades não-analíticas, como “O Everest é o Chomolungma”, quando diferentes
conjuntos de descrições se aplicam ao mesmo objeto.
Essas explicações estão em perfeito acordo com as de Frege. Às
duas últimas ele poderia adicionar que os diferentes conjuntos de descrições que
as pessoas podem ter em mente não podem ser disjuntos; se eles não forem
idênticos, eles precisam ao menos se interseccionar para que saibamos que
estamos falando de um mesmo objeto.
Embora Searle tenha desenvolvido a melhor exposição
do descritivismo em oferta, há objeções, boas e más, contra ela. Uma objeção
interessante, proposta por William Lycan, é a seguinte: mesmo
que o número de descrições satisfeitas pelo objeto não seja definido, ele
precisa ser superior à metade do feixe de descrições, pois menos do que isso
permitiria que dois objetos totalmente diversos, cada um satisfazendo uma
metade das descrições, fossem identificados pelo mesmo nome próprio. Contudo,
parece perfeitamente possível que se descubra um objeto que satisfaça menos da
metade das descrições, talvez apenas uma ou duas, e que mesmo assim ele seja
referido pelo nome.
Responder à objeção de Lycan não é
difícil. Como todo critério de aplicação, o critério de satisfação parcial de
um feixe de descrições tem seus limites de aplicação. Assim, se um objeto
satisfaz uma metade das descrições e outro objeto satisfaz a outra metade
(assumindo que elas possuem o mesmo valor), simplesmente não há mais como saber
a que objeto devemos aplicar o nome próprio e ele perde a sua função
referencial. Isso não impede, porém, a existência de casos nos quais apenas
umas poucas descrições do feixe sejam satisfeitas e que isso seja suficiente
para que o nome próprio se aplique: basta que não se tenha encontrado nenhum objeto
concorrente que satisfaça um número tão grande de descrições identificadoras
tão importantes quanto as já satisfeitas pelo suposto portador do nome próprio.
A objeção mostra, pois, que a teoria de Searle demanda algum acréscimo para
continuar sustentável. É preciso acrescentar ao menos a exigência da
inexistência de concorrentes à altura do objeto em consideração. O
problema com teorias as teorias descritivistas expostas nesse capítulo, como
ainda veremos, não é bem o de que elas contém erros, mas o de que elas ainda são
vagos e fragmentários esboços teóricos, o que lhe reduz o poder explicativo.
O que esse breve excurso histórico
demonstra é que, diversamente do que se tende a pensar, há uma forte unidade
naquilo que os defensores do descritivismo tradicional sustentaram. Não se
trata de várias teorias, mas de um único esboço teórico, que foi desenvolvido sob
perspectivas e interesses diversos por cada autor, o que sugere algo a favor de
seu potencial heurístico.
5
NOMES PRÓPRIOS (II): CAUSALISMO
Em 1970 Saul Kripke proferiu em Princeton as palestras
que deram origem ao texto de Meaning and
Necessity. Esse texto extraordinariamente original não contém apenas um influente
assalto às teorias descritivistas dos nomes próprios. Ele também contém (entre
outras coisas) o esboço de uma inovadora teoria referencialista dos nomes
próprios, em seus princípios muito próxima da teoria da referência direta de J.S.
Mill, agora também estendida aos termos de espécies naturais. Desde então o
descritivismo clássico de Frege, Russell, Wittgenstein e outros, foi eclipsado
pelos defensores de uma nova teoria da referência, que acabou por se tornar para
muitos modelar.
Embora reconhecendo que essas novas ideias
transformaram definitivamente o panorama da discussão, tornando-o mais difícil,
intrincado e desorientador, estou convencido de que a nova concepção da
natureza da referência não é em si mesma sustentável. O principal objetivo
desse capítulo será explicar porque penso assim.
Objeções
kripkianas ao descritivismo
Quero
começar expondo as objeções de base feitas por Kripke às teorias descritivistas
dos nomes próprios. Elas têm sido classificadas como sendo de três tipos: a
objeção de rigidez (o problema
modal), a objeção da necessidade indesejada (o problema epistêmico) e a
objeção da ignorância ou erro
(o problema semântico). Quero me limitar aqui a uma rápida exposição crítica
dessas objeções, deixando uma discussão mais detalhada para o próximo capítulo.
Vejamos primeiro a objeção modal, a da
rigidez. Ela parte da constatação feita por Kripke de que nomes próprios são
designadores rígidos, a saber, termos capazes de designar um mesmo objeto em
todos os mundos possíveis, ou pelo menos naqueles mundos possíveis nos quais
esse objeto existe. Contudo, as descrições definidas não costumam ser
designadores rígidos, aplicando-se a objetos diversos em diferentes mundos
possíveis. Como os nomes próprios são sempre designadores rígidos, eles não
podem equivaler a descrições definidas, posto que o seu perfil modal é
diferente: o mecanismo pelo qual nomes próprios referem deve ser intrinsecamente
diverso daquele pelo qual descrições definidas referem.
Com efeito, parece que para qualquer
descrição que venhamos a escolher como constitutiva de um nome próprio é sempre
possível imaginar casos nos quais o objeto existe mas ela não se aplica.
Podemos, escreve Kripke, imaginar um mundo possível no qual Aristóteles nunca
tenha realizado os grandes feitos que descritivamente lhe atribuímos. Esse é o
caso de um mundo no qual Aristóteles realmente existiu, mas morreu na
adolescência. Nesse mundo ele não satisfaz as descrições definidas de ter sido
o preceptor de Alexandre, nem o fundador do Liceu, nem a pessoa que escreveu os
grandes textos filosóficos pelos quais o seu nome é lembrado. Sequer descrições
contendo o lugar e data de nascimento são garantidas. Podemos perfeitamente
imaginar um mundo possível no qual Aristóteles viveu quinhentos anos mais
tarde, tendo sido ainda assim nosso mesmo Aristóteles.
Todavia, a objeção de rigidez só se aplica a
teorias descritivistas que identificam o sentido de um nome próprio com uma
descrição definida ou mesmo a um subconjunto escolhido de descrições definidas constitutivas
do feixe. Mas para quem leu o capítulo anterior deve ter ficado claro que Frege
não defendeu semelhantes ideias, nem Russell, sem falar dos descritivistas
posteriores como Strawson e Searle. Uma teoria como a de Searle é de antemão imune
à objeção modal por enfatizar que nenhuma descrição específica pertencente ao
feixe precisa ser satisfeita, conquanto um número suficiente embora indefinido
delas seja satisfeito. Mesmo que seja possível imaginar, como fez Kripke,
que Aristóteles não satisfaça à grande maioria das descrições, não é possível
imaginar que ele não satisfaça nenhuma delas. Não é possível imaginar, por
exemplo, que ele não tenha sido um filósofo, mas um grande armador grego que
viveu no século XX, seduziu Callas e se casou com Jackeline, pois esse sujeito com
certeza não poderia ter nada a ver com o nosso Aristóteles. Mesmo quanto ao
Aristóteles que em um mundo possível viveu 500 anos depois do Aristóteles tal
como o conhecemos, para ser reconhecido como sendo o nosso Aristóteles ele deve
ter feito pelo menos alguma coisa relevantemente “aristotélica”, por exemplo,
ter escrito a Ética a Nicômano.
Outro tipo de objeção é a epistêmica ou da
necessidade indesejada. Se o nome próprio for equivalente a uma descrição,
então ela necessariamente se aplica. Uma frase como “Aristóteles foi o autor da
Metafísica” deveria ser a priori, pois se a descrição ‘o autor
da Metafísica’ faz parte da definição
de Aristóteles, então dizer que Aristóteles foi o autor da Metafísica seria fazer um enunciado tautológico, incapaz de
suportar contradição. Mas não é isso o que acontece. Aristóteles poderia muito
bem ter existido sem jamais ter escrito uma linha de sua Metafísica.
Essa objeção da necessidade indesejada claramente
não se aplica a teorias do feixe de descrições como a de Searle, que não
demandam a aplicabilidade de nenhuma descrição individual pertencente ao feixe.
Além disso, as leituras minimamente cuidadas de Frege, Russell e Searle realizadas
no capítulo anterior demonstram que a objeção da necessidade indesejada na
verdade não se aplica a nenhuma formulação da teoria descritivista, mas tão somente
a uma tosca caricatura dessas teorias. A única necessidade que precisa ser
sustentada pela teoria do feixe é a de que pelo menos uma
descrição definida pertencente ao feixe necessariamente se aplique ao objeto
nomeado, no caso desse objeto existir, não havendo nenhuma descrição específica
ou mesmo conjunção de descrições que seja necessariamente aplicável. No próximo
capítulo discutiremos um contra-exemplo de Donnellan no qual ele tenta
contestar essa necessidade mínima, mas veremos que mesmo esse exemplo não
resiste a uma análise cuidadosa.
Finalmente, há a objeção semântica da ignorância e do erro. Kripke
observou que podemos associar a um nome próprio tão somente uma descrição indefinida, sem por isso deixarmos de
referir. Este é o caso do nome próprio ‘Feynman’. Muitas pessoas associam a
este nome apenas à descrição indefinida ‘um físico norte-americano’. Mas
somente uns poucos seriam capazes de responder que ele foi o inventor da
eletrodinâmica quântica ou de dissertar sobre suas contribuições para a
microfísica. Mesmo assim, as pessoas são capazes de se referir a Feynman
através de seu nome. Uma descrição indefinida, entretanto, é incapaz de
garantir a singularidade própria da referência. Logo, o descritivismo é
insuficiente. Quanto ao problema do erro, Kripke observou que existiam em seu
tempo pessoas que associavam ao nome ‘Einstein’ a descrição ‘o inventor da
bomba atômica’. Apesar de a descrição não se aplicar ao portador do nome, essas
pessoas conseguiam se referir a Einstein. Ora, se é assim,
então parece que descrições pouco tem a ver com aquilo através do que o nome
refere.
A essa espécie de objeção Searle responderia
que aquilo que mais importa é o conteúdo
que as pessoas da comunidade linguística à qual pertence o falante tomam como
relevante para a designação do objeto. Assim,
para Searle, se uma pessoa tem em mente uma descrição como ‘o indivíduo que
minha comunidade chama de Einstein’, isso pode bastar para neutralizar o
conteúdo divergente. Já ao saber que Feynman é o nome de um físico
norte-americano, a pessoa realiza o que Strawson chamou de empréstimo da
referência, rementendo o trabalho de efetivamente referir aos usuários
especializados da palavra. Se essas justificações não lhe parecerem suficientes,
uma resposta mais completa será dada com base na versão do descritivismo a ser
apresentada no próximo capítulo.
Há diversas outras objeções mais específicas,
como alguns imaginativos contra-exemplos de Kripke e Donnellan. Mas só poderei
respondê-las mais tarde, quando for capaz de aplicar minha própria versão da
teoria descritivista a eles de modo a obter respostas mais completas. Contudo,
as poucas considerações feitas acima já sugerem que as objeções de Kripke ao
descritivismo não parecem ser tão decisivas
quanto os seus defensores gostariam de sustentar.
É difícil encontrar qualquer objeção
decisiva contra uma formulação da teoria descritivista dos nomes próprios como
a desenvolvida por Searle, e a razão disso está no fato de ela ter sido
apresentada de forma não-simplificadora e suficientemente vaga. Mas, como se
tornará claro no próximo capítulo, essa vantagem é também a sua maior fraqueza,
pois, devido à sua própria vaguidade, essa teoria carece de recursos que proporcionem
respostas mais eficazes e completas a uma variedade de contra-exemplos e
objeções.
Batismo
e cadeia causal-histórica
A
crítica de Kripke ao descritivismo só se torna atraente por ter sido
complementada com uma versão mais sofisticada e consequente da concepção referencialista
introduzida por J.S. Mill. Antes de expô-la vamos considerar o fenômeno da
rigidez dos nomes próprios. Um nome próprio como Benjamin Franklin é rígido
porque ele se aplica a um mesmo objeto – Benjamin Franklin – em qualquer mundo
possível no qual esse objeto existe. Mas o mesmo não acontece com a maioria das
descrições definidas. A descrição definida ‘o inventor das bifocais’ se aplica
a Benjamin Franklin no mundo atual; mas ela poderia se aplicar a João da Silva
em um mundo no qual João da Silva e não Benjamin Franklin tivesse descoberto as
bifocais, ou mesmo no qual Benjamin Franklin nunca existiu. E ela poderia não
se aplicar a ninguém em um mundo no qual Benjamin Franklin existiu, mas as
bifocais nunca foram inventadas. Qual a explicação para isso?
Para quem é simpático à solução atribuida a Stuart
Mill, a explicação encontra-se à mão. Ela advém da ideia de que descrições
referem indiretamente, por conotarem atributos de objetos, ao passo que nomes
próprios referem diretamente aos seus próprios objetos, como se fossem rótulos que
lhes tivessem sido colados. Ora, isso deve tornar a referência dos nomes
próprios independente de propriedades acidentais descritivamente representáveis
de seus portadores. A referência deve dizer respeito ao objeto em si mesmo.
Kripke pensa de modo semelhante. Para ele os
nomes próprios se referem aos seus objetos sem intermediários. Só isso explicaria
porque, diversamente das descrições definidas, os objetos de referência dos
nomes próprios continuam sendo os mesmos em qualquer mundo possível. Nomes
próprios não podem se referir nem a substratos nus (bare particulars)
subjacentes aos objetos, nem a feixes de qualidades abstratas (bundles of qualities) constitutivas do
objeto. Como ele escreve:
O que eu nego é que um particular não seja
nada além de um ‘feixe de qualidades’, seja o que for que se queira dizer com
isso. Se uma qualidade é um objeto abstrato, um feixe de propriedades é um
objeto com um grau até mais alto de abstração, não um particular. Filósofos
chegaram à posição oposta através de um falso dilema: eles perguntaram: estão
os objetos atrás do feixe de qualidades, ou o objeto não é nada além do feixe?
Nada disso é o caso. Essa mesa é de madeira, é marrom, está no quarto etc. Ela
tem todas essas propriedades e não é uma coisa sem propriedades, atrás delas.
Mas não deveria ser por isso identificada com um conjunto ou ‘feixe’ de suas propriedades,
nem com o subconjunto de suas propriedades essenciais.
Com
efeito, o dilema não é aceitável: objetos não são nem feixes de qualidades
abstratas sem critério de individuação, nem substratos nus incognoscíveis
enquanto tais. Mas apesar de Kripke rejeitar o dilema, ele não oferece qualquer
solução alternativa. Ele apenas nos pede para aceitarmos o fato de que
identificamos particulares pelo que eles são, fazendo de conta que essa exigência
não requer maior explicação, como se essa identificação acontecesse de uma
forma mágica. Não obstante, parece que a única maneira de evitarmos a magia e
encontrarmos o caminho da explicação é admitindo que isso acontece pelo
reconhecimento de propriedades ou combinações de propriedades identificadoras
do objeto, sejam elas o que forem.
Se não houvesse nenhuma alternativa, a
resposta de Kripke seria admissível e a insatisfação ficaria por nossa conta. Mas
há uma alternativa. Ela consiste em se recorrer à emergente ontologia dos tropos. Segundo essa já mencionada teoria
ontológica, os objetos físicos nada mais são do que agrupamentos (mais
ou menos sistemáticos) de propriedades espaciotemporalmente localizadas, as
quais são mais propriamente chamadas de ‘tropos’, ‘particulares abstratos’ ou,
digamos, ‘propriedades singularizadas’. Segundo a teoria dos tropos, objetos
físico-materiais não precisam mais ser identificados com conjuntos de
propriedades abstratas, como já se pensou, mas com grupos ou combinações tidas
por adequadas de tropos compresentes
(ou seja, tropos que possuem similar localização espaciotemporal), podendo
esses grupos ser identificados através de regras criteriais. Tais propriedades
particularizadas, os tropos, nada tem a ver com as problemáticas propriedades
abstratas (formando supostos ‘feixes de qualidades’) visadas pela crítica de
Kripke, dado que a teoria dos tropos identifica universais (entidades
abstratas) com conjuntos de tropos qualitativamente idênticos entre si (ou com
quaisquer tropos idênticos a um dado tropo, como prefiro dizer, de modo a
circundar o conceito supostamente abstrato de conjunto). Sendo assim, ao menos
em princípio temos uma auspiciosa resposta à objeção kripkiana de que não existe
um conjunto de propriedades ou um subconjunto de propriedades essenciais a
serem identificadas com o objeto.
Essa
alternativa, contudo, não era apenas ignorada na década de 1960, quando Kripke
desenvolveu suas ideias, mas lhe teria sido de muito pouca valia, pois parece
conformar-se melhor com alguma forma de descritivismo. Afinal, se o objeto
referido por um nome for algo como um agrupamente mais ou menos sistemático de tropos
compresentes, parece que a maneira pela qual o nome a ele se refere deve ser
pela identificação dos tropos adequadamente escolhidos, melhor dizendo, de combinações
de tropos através das quais esse sistema nos pode ser apresentado e
identificado como tal. Esses variados tropos e suas combinações, por sua vez,
seriam eventualmente aquilo que satisfaz as configurações criteriais demandadas
pelas descrições de algum modo unificadas por alguma regra – aquilo que Ernst
Tugendhat sugeriu ser a regra de identificação do nome próprio. Veremos
no próximo capítulo como essa regra pode ser efetivamente construída.
Admitindo, para efeito de discussão, que a
resposta de Kripke seja correta, a pergunta que emerge é sobre a constituição
dos nomes próprios: como se formam esses designadores rígidos capazes de se
referir aos seus portadores sem a intermediação de propriedades conotadas? A
resposta que ele oferece encontra-se em sua teoria causal-histórica
da relação referencial, segundo a qual os nomes se referem por meio de uma
apropriada relação causal com os seus objetos. Eis
como ele a apresentou:
Um ‘batismo’ inicial se dá. Aqui o objeto pode
ser nomeado por ostensão, ou a referência do nome pode ser fixada por uma
descrição. Quando o nome é passado ‘de elo a elo’ o receptor do nome deve, eu
penso, ter a intenção de usá-lo com a mesma referência do homem do qual ele o ouviu.
Em
outras palavras: primeiro há um ato de fixação
da referência (reference fixing) através do batismo de um objeto
com um nome ou através de descrição provisoriamente fixadora da referência. Depois,
o mesmo objeto passa a ser referido pelo mesmo nome por outros falantes, que o ouvem
e o comunicam de um para outro, em um processo de empréstimo da referência (reference borrowing). Mesmo que a descrição que eles possam
vincular ao nome se demonstre insuficiente ou errônea, a referência ocorrerá, conquanto
a cadeia causal seja mantida e os diversos falantes preservem a intenção de se referir ao mesmo objeto
específico referido por quem primeiro lhe emprestou o nome. Note-se que essa
intenção de se referir ao mesmo objeto não poderia ser confundida com a
intenção de se referir a um objeto específico, uma vez que a última precisaria
ser então determinada através de cognições capazes de ser linguisticamente
resgatadas por descrições identificadoras do objeto.
Chamando de nomeadores originários às
pessoas que fixaram práticas sociais de referência de um nome (como acontece
com os responsáveis pelo batismo, mas também com especialistas) e chamando de nomeadores subsequentes os demais usuários do nome, eis o esquema de uma
cadeia causal-histórica que irá terminar com o proferimento do nome por um
falante:
Nomeador(es) originário(s) ß relação causal ß objeto
¯... (relações causais)
Nomeadores subsequentes
¯... (relações causais)
Proferimento do nome
por um falante...
Há
alguns nomes próprios que são introduzidos através de descrições e não de
batismo, como o próprio Kripke reconheceu. Considere o caso do nome próprio de
um objeto inferido, como o planeta Netuno. O astrônomo Le Verrier calculou que
deveria existir um novo planeta situado em certa região do espaço, responsável
pelos desvios na órbita de Urano. Le Verrier chamou esse planeta de ‘Netuno’
antes mesmo de encontrá-lo, tendo em mente as descrições correspondentes ao
lugar e massa aproximada. Apesar disso, é possível argumentar que uma vez que o
objeto seja encontrado, a referência passa a ser sustentada pela cadeia causal que
com ele se inicia, podendo a descrição até mesmo revelar-se falsa sem que o
nome perca a sua referência.
Do que
consideramos até agora devemos concluir que há um elemento intuitivo bastante convincente
na teoria causal-histórica, que mesmo um descritivista precisa levar em conta. Esse elemento é
derivado do fato de que nosso universo nada mais é do que um colossal e
indescritivelmente intrincado oceano causal. Assim, se agora profiro o nome
‘Aristóteles’, é inegável que só posso designar esse filósofo porque existe um enormemente
complexo tear causal que terminou em meu proferimento atual e que de algum modo
precisa em suas origens ter envolvido o próprio Aristóteles como fator causal
determinante do ato de batismo. Mais além, essa função causal pode existir
mesmo de forma indireta, como no caso do batismo prévio do planeta Netuno, onde
a mera suposição de existência foi o que inicialmente originou a cadeia causal.
Quanto a isso não há dúvida. Um descritivista que saiba o que é causalidade
precisará admitir esse ponto. A questão que me concerne é a de se saber o
quanto nos serve invocar esse imenso e desconhecido tear causal na explicação
da função referencial. Meu palpite é o de que não serve para nada.
Problemas
internos
Quero
agora passar a uma análise crítica da concepção kripkiana, começando por considerar
duas dificuldades internas à teoria causal-histórica da referência dos nomes
próprios proposta por Kripke.
Uma primeira é a seguinte. Nas passagens
onde Kripke introduz sua ideia da cadeia causal-histórica, ele recorre explicitamente
a ao menos uma intenção, que é a de
“usar o nome com a mesma referência do homem de quem a ouviu”. Essa
intenção serve para selecionar o objeto referido na cadeia comunicacional como
sendo o mesmo, tanto para o falante quanto para o ouvinte. Contudo, se essa
intenção de preservar a mesma referência for entendida como preservando os
mesmos conteúdos cognitivos vinculados ao nome, nós recaímos no descritivismo,
pois esses conteúdos são os mesmos que, para serem interpessoalmente acessíveis,
devem se deixar exprimir por intermédio de descrições. Mas se assim for, o
descritivismo emerge do interior do próprio externalismo kripkiano, o que faz
com que a suposta vantagem da teoria causal-histórica – a de ter superado as
limitações do descritivismo – pareça se perder.
Pode-se tentar contornar a falha recém-exposta
sugerindo que a intenção seja a de preservar a mesma referência na
independência de sermos capazes de conceber qualquer coisa de seu objeto
intencional. Contudo, se o ouvinte não precisa ter ideia alguma de qual possa
ser a intenção do falante, então a intenção de com o mesmo nome se referir ao
mesmo objeto se reduz a uma aposta arbitrária. É como se alguém dissesse: “Vou
comprar a mesma roupa que você comprou,
mas não precisas me dizer qual foi” – o que traduz uma intenção vazia que de
nada serve. A intenção de referir-se à mesma coisa sem que se saiba nada sobre
o que a coisa é de nada serve e seu poder explicativo é nulo. Se alguém me
perguntar quem foi Aristóteles, de nada adianta eu dizer: “Siga a mesma cadeia
causal que estou seguindo quando profiro o nome ‘Aristóteles’... mas não se
esqueça de ter a intenção de se referir à mesma pessoa a quem eu estou me
referindo”.
A segunda dificuldade diz respeito às
mudanças na denotação. Gareth Evans formulou um contra-exemplo decisivo a
respeito, que diz respeito ao nome próprio ‘Madagascar’.
Sabe-se que originariamente o nome ‘Madagascar’ se referia à região mais
oriental do continente africano. Mas quando Marco Polo esteve por lá, alguma tradução
incorreta levou-o a pensar que ‘Madagascar’ fosse o nome da grande ilha situada
próxima à costa oriental da África. Mais tarde, devido aos relatos de Marco
Polo, as pessoas passaram a chamar a ilha pelo nome de Madagascar,
esquecendo-se da referência original. Certamente, se a referência do nome fosse
fixada apenas por apelo a um batismo inicial, essa alteração não poderia ter
ocorrido. Marco Polo tinha até mesmo a intenção
de se referir à mesma coisa que a pessoa da qual ele ouviu o nome próprio pela
primeira vez e não a de introduzir uma nova referência para o mesmo nome.
Uma resposta para esse tipo de objeção foi
sugerida por Michael Devitt.
Segundo esse autor, o sentido de um nome próprio não tem a ver propriamente com
a referência, mas é uma habilidade de designar um objeto. Essa
habilidade não costuma ser aprendida por um único batismo, mas por muitos, em
um processo que ele chamava de fundamentação
múltipla (multiple grounding). Assim, o nome Madagascar havia sido fixado
através de múltiplos batismos como uma região oriental do continente africano,
até ter sido inadvertidamente rebatizado por Marco Polo. Se nos usos subsequentes
as pessoas passaram a seguir Marco Polo referindo-se à ilha é porque a
fundamentação múltipla entrou novamente em ação formando um novo hábito de
referir, um sentido diverso para o nome.
O que me
parece problemático nesse apelo à fundamentação múltipla produtora de um hábito
é que ela recorre a um mecanismo psicológico-empírico que em si mesmo pode não
ser capaz de refletir o elemento convencional do uso do nome próprio. Afora
isso, embora ela possa se aplicar a Madagascar, ela não parece se aplicar a
Aristóteles, que foi de uma só vez assim batizado e do qual estamos demasiado distanciados
no tempo para rebatizar. Uma resposta que intenta evitar o problema pode ser a proveniente
do próprio Kripke. Para
ele, uma intenção, no caso, a intenção
de Marco Polo de se referir a uma ilha, sobrepuja
a intenção dos antigos usuários do nome, estabelecendo uma nova prática social.
A partir disso o nome próprio ganha um novo sentido e uma nova referência. Trata-se,
pois, de mera homonimia. Embora essa resposta possa ser mais apropriada, ela
ainda sofre de descritivismo camuflado ao refletir o convencional na forma de
intenção. Afinal, a intenção de Marco Polo de se referir à ilha só parece valer
se ela for cognitivamente capaz de ser expressa por descrições como ‘a grande
ilha sub-equatorial próxima da costa oriental do continente africano’, já que
era algo assim que ele devia ter em mente.
Uma dificuldade adicional, que quero
rapidamente considerar, diz respeito ao significado de nomes próprios diversos
de um mesmo portador. Há casos em que esses nomes próprios têm o mesmo conteúdo
informativo (ex: “Todos chamam a Beatriz de Bia”). Mas há casos em que este
último difere. Por exemplo: o padre Marcial Maciel foi fundador da ordem dos Legionários
de Cristo e também um criminoso. Entre os seus muitos atos ilícitos estava o de
possuir falsas identidades. Uma delas foi a de Raúl Rivas, que se dizia um
empregado da Shell e agente da CIA. Rivas conheceu em 1976 a senhora Blanca Gutiérrez,
a qual se apaixonou por ele. Rivas teve com ela dois filhos sem que ela
descobrisse a sua verdadeira identidade. Os conteúdos informativos dos nomes ‘Marcial
Maciel’ e ‘Raúl Rivas’ são (ou foram) certamente, muito diversos. A teoria do
feixe não encontraria problemas em explicar essa diferença. O seu defensor
diria que o conjunto de descrições definidas abreviadas pelo falso nome teria
sido no início publicamente considerado como sendo completamente diferente do
conjunto de descrições abreviadas pelo nome verdadeiro, sendo essa a razão pela
qual os seus significados eram muito diversos. Mais tarde, contudo, foi
descoberto que o primeiro conjunto de descrições era na verdade um subconjunto
do segundo, ou seja, que o conteúdo de significação do nome falso era parte
do conteúdo de significação do nome verdadeiro. Isso explica não só por que se
tratava da mesma pessoa mas também por que era possível à Blanca Gutiérrez não
saber que se tratava da mesma pessoa.
Parece mais difícil encontrar uma explicação
para o que se sucedeu sob a perspectiva da teoria causal-histórica. Suponhamos,
primeiro, que na teoria causal-histórica o significado do nome próprio fosse dado
por sua fonte causal última, o objeto do ato de batismo. Sendo essa fonte a
mesma para ambos os nomes próprios, parece então que eles deveriam ser vistos
como possuindo uma mesma referência. Mas isso seria contra-intuitivo, posto que
deixaria inexplicada a razão pela qual Blanca Gutiérrez não pôde identificar Raúl
Rivas como sendo a mesma pessoa que Marcial Maciel. Suponhamos,
alternativamente, que a fonte do significado e da função referencial seja o
próprio ato do batismo. Nesse caso teremos dois atos diferentes, um para cada
nome próprio (ao que parece, Marcial Maciel se auto-batizou com o nome de Raúl
Rivas). Contudo, parece que com isso não temos mais nenhuma razão intrínseca
para dizer que os dois nomes se referem ao mesmo objeto. A melhor solução seria
então a de sugerir que embora os atos de batismo dos dois nomes tenham se dado
em diferentes épocas, sendo o objeto de referência causalmente envolvido é o
mesmo... Blanca Gutiérrez ficou sabendo da cadeia causal por ela passada
através do auto-batizado Raúl Rivas com a intenção de fazê-la referir-se a ele
mesmo, embora ela nada soubesse da cadeia causal-histórica iniciada pelo
batismo da Marcial Maciel junto à intenção de fazer referência ao último. Mas
como a teoria causal-histórica seria capaz de explicar que, considerando que Raúl
Rivas e Marcial Maciel são a mesma pessoa, Blanca não se tornou consciente de
que Raúl Rivas era Marcial Maciel? Como explicar que a intenção que ela tinha
de se referir a Rivas não poderia ser a intenção de se referir a Marcial Maciel?
A suspeita que emerge é a de que algo importante está faltando. Teorias causais-históricas
não parecem capazes de se porem de pé sozinhas.
Referências
indiretamente causais
Há
outras dificuldades apontadas na teoria causal-histórica, cuja consideração pode
ser instrutiva. Uma delas é a que concerne nomes que não tem ou não parecem ter
relação causal com as suas referências. Quero começar considerando dois
exemplos de John Searle, para quem a causação do nome pelo seu portador não existe.
Primeiro, sabendo que existe a 5ª avenida em Nova York, podemos
inferir que existe uma 4ª avenida, referindo-nos assim a alguma coisa de que nunca
ouvimos falar e que não pode estar na origem causal de nosso proferimento. O
segundo exemplo concerne o faraó Ramsés VIII. Tudo o que sabemos acerca do
faraó Ramsés VIII é que ele veio depois de Ramsés VII e antes de Ramsés IX. Mas
com isso podemos inferir que Ramsés VIII existiu, sem que nenhuma cadeia causal
tenha chegado até nós partindo de seu batismo. Outros exemplos são os de coisas
que só existirão no futuro, como o furacão chamado ‘Katrina’, que recebeu esse
nome antes de ele se formar, ou a cidade planejada chamada ‘Brasília’, que teria
recebido esse nome em 1823, dado por José Bonifácio de Andrada e Silva, que
tinha a proposta de levar a sede das decisões brasileiras para o interior do
país. Somente a partir de 1956 a nova capital com esse nome começou a ser
construída. Ainda outro exemplo é o da referência a coisas meramente possíveis,
como Lauranda, que seria o ser humano que poderia ter nascido da célula
espermática que originou Laura com o óvulo que originou a sua irmã Amanda. E há
também casos de nomes de objetos abstratos da matemática, como o número p em geometria, objetos que,
como os meramente possíveis, não seriam capazes de possuir nenhuma eficácia
causal. Kripke não nega que esses nomes todos tenham referência, mas sua teoria
parece insuficiente para explicá-la.
Há, porém, respostas possíveis em defesa da
concepção causal-histórica. Uma delas consistiria em exigir apenas uma cadeia
causal potencialmente existente, mesmo que ela não nos seja
atualmente dada. Em todos os casos acima, com possível exceção do último, essa
potencialidade existe. Mas essa solução pode ser demasiado fraca. Mesmo que ela
seja uma condição necessária, não é suficiente, posto que não parece ser uma
mera potencialidade o que nos permite usar o nome referencialmente. Uma
variante intuitiva consistiria em exigir a existência de circunstâncias
quaisquer que sejam causalmente possibilitadoras do uso referencial do nome próprio, as quais de um modo ou de outro
envolvem o objeto referido, seja ele atual ou não, em termos causais. Isso
acontece, por exemplo, no caso de Le Verrier, que calculou que um suposto planeta
estaria causando as perburbações na órbita de Urano, chamando-o de Netuno: a
força gravitacional do suposto planeta modificaria a órbita de Urano, tendo
esse fato suposto, cuja suposição seria bem causada, determinado causalmente a
formação da hipótese na cabeça de Le Verrier – se esse fato não fosse
razoavelmente concebível, ele certamente não teria determinado a formação da
hipótese. Essas duas condições podem ser unidas na formulação da seguinte
condição causal:
Cc:
O uso
referencial efetivo de um nome próprio só é possível se:
(i)
ele
for adequadamente causado por um batismo que envolve o seu objeto de
referência,
ou se
(ii)
existirem circunstâncias causais que de algum
modo envolvem o objeto de referência do nome (seja ele atual ou não) e cujo conhecimento
permitiria com suficiente probabilidade inferir a sua existência, a qual, por
sua vez, seria posteriormente capaz de se tornar (por meio de um batismo) a mais
adequada origem causal do uso referencial do nome.
Podemos
aplicar Cc (ii) aos casos acima. Se aplicarmos tal condição aos dois exemplos
de Searle é possível responder considerando que aquilo que chamamos de causa
eficiente é apenas um elemento mais relevante de um conjunto de fatores causais
que constitui uma situação, um estado de coisas, um processo, muitos desses
fatores podendo ser apenas inferidos como existindo.
Assim, sabendo que a 5ª avenida é o fator causal efetivo que está na origem da
cadeia causal que nos permite nomeá-la e sabendo que ele deve ser parte de um
estado de coisas constituido por uma sequência de avenidas numeradas assumidas
como fatores causais, nós inferimos que uma 4ª avenida provavelmente também
deve existir. Junto a isso, aliás, nós concluimos também que a 4ª avenida seria
uma causa potencial (batizável) de nosso uso referencial desse nome (o que pode
bem ser uma conclusão falsa). Do mesmo modo, Ramsés VII e Ramsés IX fazem parte
de um processo causal de sucessão de faraós que naturalmente deveria incluir
Ramsés VIII como um elemento por nós desconhecido do processo causal iniciador
da cadeia causal que chega até nós, o qual pode mesmo assim ser reconhecido
como sendo um fator causal potencial. Não importa que tais fatores causais não
façam parte do que foi o fator causal eficiente de nossas ilações; importa que
eles devem ter sido partes constitutivas dos respectivos estados de coisas e
processos que através de fatores causais ditos eficientes deram início à cadeia
causal-histórica que a nós chegou.
No
caso do furacão Katrina, existiam conhecidos fatores causais que permitiriam
prever o seu aparecimento, mas esses elementos, embora responsáveis pelo nome,
não podem fazer parte do furacão, embora o tenham causado. No caso de Brasília
tampouco: a cidade existia apenas na mente de José Bonifácio e mais tarde na
mente dos arquitetos e urbanistas que a planejaram. O que a originou foi a simples
intenção do presidente Juscelino Kubitscheck de construir uma nova capital
federal.
Essas condições, porém, já são fatores causais que envolvem o objeto de
referência (mesmo que meramente concebido e não-atual) como fatores causais determinantes
de sua realização. E tanto Katrina quanto Brasília se tornaram, uma vez existentes,
fatores causais determinadores do uso referencial dos respectivos nomes
próprios. No caso de Lauranda, devemos apenas nos lembrar que um objeto
meramente possível não é um objeto existente e que por consequência esse nome
próprio deve carecer de referência; mesmo assim existem as circunstâncias
causais possibilitadoras, mesmo que sejam de algo que não venha a se atualizar.
Finalmente, o número p talvez possa ser considerado resultante de quaisquer
circunstâncias de fixação da referência através das quais dividimos o diâmetro
de um círculo pelo seu raio (a suposta ausência de causalidade pode ser apenas aparente,
uma vez que inevitavelmente percebemos, desenhamos ou imaginamos círculos reais
aproximados na geometria aplicada). Parece,
pois, que em qualquer um dos casos até agora considerados, ao menos a condição
Cc(ii) é passível de ser satisfeita.
Outra espécie de objeção é a que resulta da
elaboração de situações imaginárias nas quais a cadeia causal-histórica inexiste.
Searle imaginou uma pequena comunidade linguística na qual cada nome próprio é
estabelecido indexicalmente na presença de todos os outros falantes, de modo
que nenhuma cadeia causal precisa se formar. Esse argumento demonstra que a
cadeia causal-histórica pode ser desnecessária, mas não demonstra que nenhuma
relação causal seja necessária à constituição da função referencial dos nomes
próprios.
Apesar de tudo é possível pensarmos em
dificuldades mais resistentes, concernentes a referências aparentemente
coincidentais de certos nomes próprios.
Primeiro,
parece possível imaginar situações em que o uso referencial bem sucedido do
nome próprio não passe por Cc(ii). Digamos que exista um vidente que, olhando
para a sua bola de cristal, seja capaz de adivinhar nomes próprios e de nos
informar toda espécie de coisas sobre a sua referência. Ele olha para a sua
bola de cristal e clama: ‘Kamchatka!’, dissertando sobre os muitos vulcões
dessa isolada península. Ele olha outra vez para a bola e clama ‘Tom Castro!’,
passando a dissertar sobre a vida desse notório vilão. Se, depois de fazer
todos os testes concebíveis, não descobríssemos nenhum truque, começaríamos a
desconfiar que sem precisar recorrer nem a cadeias causais-históricas nem a
circunstâncias que permitam inferir sob assunções causais a existência dos
portadores de nossos nomes próprios, o vidente através deles efetivamente
refere (mesmo que recorra a descrições para prová-lo). Mesmo assim, devemos
notar que o nome tem referência sempre que sabemos causalmente que ele a tem.
Além do mais, mesmo que a relação causal do que o vidente vê com a cadeia causal-histórica
nunca seja esclarecida, isso não demonstra que ela não existe.
Podemos mesmo conceber uma situação extrema,
um mundo possível no qual as pessoas funcionam de modo semelhante a mônadas
leibnizianas, não precisando aprender os sentidos ou referências dos nomes
próprios, nem comunicá-las umas às outras, apreendendo o seu uso intuitivamente.
A cada pessoa ocorreriam nomes próprios, havendo uma concordância inexplicável
entre os sentidos e referências que cada pessoa desse a cada nome; um nome
próprio seria pronunciado apenas para comunicar sobre o seu portador algo contingente
que as outras pessoas ainda desconheçam. Não obstante, essa hipótese parece demasiado
implausível. Não é assim que usamos os nomes próprios para referir em nosso
mundo, nem somos capazes de imaginar como isso seria possível.
Parece que nenhuma das objeções consideradas
até agora é suficientemente forte para destruir a concepção causal da nomeação,
tal como apresentada pela condição Cc ou por alguma formulação similar, mesmo
que Cc enfraqueça a intuição original tendendo a transformá-la no lugar comum
que consiste na admissão de que a nomeação envolve causalidade.
Referências
coincidentais
Há, porém,
ainda outros exemplos possíveis que ao menos à primeira vista parecem resistir
à ideia de que a condição Cc seja indispensável à referência: trata-se do que
poderíamos chamar de referências coincidentais.
Considere o seguinte caso de um nome próprio
sem nenhum relacionamento causal com o seu objeto. Digamos que Jaime, um jovem
dado a fazer brincadeiras sem graça, conheça bem uma menina de nome Elaine.
Suponha agora que ele invente um nome, digamos, ‘Ivny’, para uma boneca de
louça possuída por Elaine adicionando a isso que a boneca lhe foi dada quando ela
era criança e que esteja guardada no fundo do guarda-roupa. Com isso Jaime produziu
um grupo considerável de descrições meramente inventadas que ele associa ao
nome próprio ‘Ivny’. Digamos que por uma incrível coincidência essa estória se
revele verdadeira. Nesse caso, poderíamos dizer que Jaime se referiu à Yvny? Não
devemos admitir que ele se referiu a Yvny, mesmo que por uma absurda coincidência?
Seria possível objetar que o nome ‘Yvny’ tem um sentido descritivo e que por
isso é capaz de determinar a sua referência. Nesse caso a conclusão parece ser
a de que, ainda que não haja nenhuma cadeia causal-histórica entre o objeto e o
proferimento, a referência é possível. Mas ela só é possível porque o nome
possui significado no sentido de demandar um adequado conteúdo descritivo a ele
associado.
O mesmo fenômeno parece ser em princípio constatado
com respeito a proferimentos indexicais. Digamos que alguém de olhos vendados
tente adivinhar o que foi colocado em cima da mesa à sua frente dizendo:
1. Sobre essa mesa há um vaso de
flores.
Digamos
que a pessoa casualmente acerte: um vaso de flores foi realmente colocado sobre
a mesa. Será que a pessoa, ao adivinhar, pensar e dizer a frase (1) se refere ao vaso de flores sobre a mesa?
Pode ser lembrado que a frase é verdadeira, e que sendo verdadeira a pessoa parece
ter se referido ao vaso de flores. Um defensor da teoria causal poderá objetar
que a própria pessoa não sabe que a frase é verdadeira, pois embora o
pensamento expresso pela frase seja verdadeiro, ele só é verdadeiro para alguma
testemunha, ou seja, um intérprete presente que ouça a frase e compare o
pensamento que ela exprime com o fato correspondente. Seja como for, temos a
impressão de que nesse caso, como no anterior, a referência é feita, embora de
forma meramente coincidental.
Diante de exemplos como esses, a verdadeira
questão é a de se saber se uma referência meramente coincidental é uma
referência no sentido próprio da palavra. Não pretendendo confundir nem o
leitor nem a mim mesmo, minha resposta é negativa! A referência coincidental me
parece tão pouco real quanto um nome gravado em uma pedra em uma região
isolada, que por acaso é o mesmo do viajante que por acaso a encontra e o lê. O
processo representacional é de natureza causal, por mais indireta que essa
relação possa ser. A referência é uma associação que fazemos entre a palavra e
o mundo e essa associação deve inevitavelmente envolver elos causais. A melhor
explicação aqui seria a de que a referência coincidental é – mesmo quando possa
não parecer – uma forma meramente ilusória de referência.
Nomes
Próprios Vazios
Um
problema resiliente deixado pela teoria causal-histórica é o que diz respeito a
nomes próprios sem referência. Eis alguns exemplos:
- Vulcano
- Eldorado
3. Atlântida
4. Rumpelstiltskin
5. Sherlock Holmes
6. Gandalf
7. Urville
Tais
nomes não podem satisfazer Cc, pois não possuem sequer um objeto potencialmente
causal. Como eles possuem significado, eles não constituem problema para
teorias fregeanas ou descritivistas da referência, segundo as quais a
existência do sentido não depende da existência da referência. Contudo, nomes
sem referência são um grave problema para as teorias causais como a de Kripke,
que fazem depender a função referencial do nome de sua referência, a qual parece
ser o que verdadeiramente os torna nomes próprios.
Uma
estratégia para o defensor da teoria causal-histórica é a de sugerir que nomes
próprios sem referência não são verdadeiros nomes próprios, mas descrições
definidas disfarçadas, as quais referem por um mecanismo conotativo completamente
diferente daquele pelo qual o nome próprio refere. O problema é que um exame
cuidadoso revela que muitos nomes próprios vazios são demasiado similares aos
nomes próprios mais comuns para serem idoneamente considerados descrições
disfarçadas.
Considere primeiro os exemplos (1)-(3). Se
os examinarmos mais de perto veremos que esses nomes não substituem uma única
descrição definida, mas uma variedade de descrições, reconduzindo-nos à teoria
do feixe. No caso de Vulcano, trata-se do nome de um pequeno planeta postulado
por Urban Le Verrier no século XIX como encontrando-se a cerca de 21 milhões de
Km do Sol, de modo a explicar as mudanças no periélio de Mercúrio (as quais
foram mais tarde explicadas pela teoria da relatividade). É possível sugerir
que essa última frase exprime apenas uma única descrição definida complexa. Mas
(3) e (4) podem ser vistos como nomes próprios com conteúdo informacional ainda
mais elaborado, não diferindo muito daquilo que feixes de descrições disjuntivas
exprimem. O nome próprio ‘Eldorado’ procede de relatos e rituais indígenas
variados, os quais levaram os conquistadores espanhóis a crer que em alguma
região no oeste da Amazônia existiria uma cidade cujo rei se vestia de ouro e
possuía inacreditáveis riquezas. Com base nessas e noutras descrições,
aventureiros e exploradores desceram à foz do Amazonas procurando em vão
encontrá-la e por vezes acabando como repasto de canibais. O nome lendário de
‘Atlântida’ foi associado por Platão a uma variedade de descrições que contam
da existência de uma ilha situada entre o mar mediterrâneo e o oceano atlântico;
essa ilha, que entre outras coisas teria sido habitada por um povo muito rico,
teria desaparecido devido a um maremoto que se deu há cerca de 9.000 anos a.C. Se
algo como Eldorado ou Atlântida fosse encontrado, seria porque pelo menos alguma
coisa das descrições dos respectivos feixes se aplica.
É verdade que os feixes de descrições dos
exemplos acima são ainda pobres se comparados com os de nomes próprios usuais como
Marte, Paris e Aristóteles. Mas a razão disso deve estar no simples fato de que
os portadores dos nomes próprios usuais persistem em sua interação causal
conosco, permitindo-nos com o tempo acumular informações identificadoras,
enriquecendo sempre mais os seus feixes de descrições. Em contraste, os nomes
próprios vazios encontram-se em situação semelhante à do planeta Netuno logo
após a descoberta de sua existência por Le Verrier. Nada disso indica ser
preciso postular um mecanismo de identificação essencialmente diverso daquele
dado por descrições com suposta base causal.
Compare agora o funcionamento do nome
‘Atlântida’ com o do nome ‘Tróia’. Também nesse último caso, tudo o que se
tinha em mãos era um limitado feixe de descrições retirado da Ilíada de Homero. Contudo, diversamente
dos casos anteriores, Tróia foi realmente encontrada. Como é sabido, tendo
levado a sério essas descrições e as indicações locais de Frank Calvert, Heinrich
Schliemann encontrou o sítio no qual se situam os restos da verdadeira cidade
de Tróia. Qual a diferença entre os nomes ‘Eldorado’ e ‘Atlântida’, de um lado,
e o nome ‘Tróia’, de outro? Em meu juízo só uma: os primeiros são certamente vazios,
o último não. Fora isso, eles se comportam todos da mesma maneira. Logo, os
primeiros são nomes vazios verdadeiros e a teoria causal-histórica não parece
capaz de explicá-los. Podemos admitir que diversamente do nome próprio vazio, o
nome próprio possuidor de referência é passível de uma relação causal adequada,
atual ou potencial, com o seu objeto de referência. Mas isso não torna os
primeiros essencialmente diversos.
Consideremos agora os exemplos
(4)-(6), os quais, diversamente de (1)-(3), são de nomes propositadamete ficcionais.
Aqui também temos feixes de descrições identificadoras do objeto, apenas que
elas não são aplicadas à realidade atual, mas apenas ao domínio de objetos pertencentes
a mundos ficcionais. Rumpelstiltskin abrevia descrições identificadoras de um ganancioso
anão em um conto de fadas, Sherlock Holmes abrevia as de um brilhante detetive
de uma série de contos de Conan Doyle, Gandolf abrevia as de um mágico detalhadamente
caracterizado no mundo ficcional criado por J.R.R. Tolkien. Os mecanismos de
identificação permanecem os mesmos, alterando-se apenas o domínio de aplicação,
que nesses casos é o de realidades meramente ficcionais. Há aqui uma relação
causal com o conto de fadas
Um último caso que gostaria de considerar é
o da curiosa cidade ficcional de Urville. Essa cidade situa-se no sudeste da
França. Ela foi fundada em 1.100 pelos fenícios, foi transformada em
cidade-estado na Idade Média e tomada pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial... Essas são as principais descrições através das quais constituimos a
regra que nos torna capazes de localizá-la. Urville é também a maior cidade da
Europa, capital da França, com cerca de 12 milhões de habitantes... sendo essas
(de forma resumida) as descrições constitutivas da regra pela qual a
caracterizamos. Só que Urville, obviamente, não existe. Ela é o produto da
imaginação de um desenhista autista chamado Gilles Tréhin, que por mais de
vinte anos a concebeu em seus mínimos detalhes. Ele criou para o nome ‘Urville’
uma precisa e extraordinariamente complexa regra de identificação ficcional,
embora realista: ela deve aparentar ao máximo ser aplicável ao mundo real,
incluindo uma história causal fictícia. É como se ela pertencesse a um mundo
possível muito próximo, no qual a história tivesse tido uma pequena mas
significativa alteração: Urville no lugar de Paris.
Mesmo admitindo que os nomes próprios vazios
como (1)-(7) não abreviam descrições definidas isoladas, mas muitas vezes feixes
de descrições, satisfazendo assim a concepção descritivista, há estratégias
possíveis para a teoria causal-histórica a serem aplicadas mesmo a esses casos.
Podemos admitir que eles são verdadeiros nomes próprios que, embora não se
refiram a objetos reais, possuem ao menos circunstâncias
fixadoras da referência.
Embora tais circunstâncias existam, o objeto da referência não existe no mundo
real. Contudo, em muitos casos elas nos mostram como poderíamos encontrá-lo se
ele existisse. Ele pode ser um objeto potencial, não menos que Lauranda. Mas as
circunstâncias fixadoras da referência já têm um papel causal na
determinação do uso referencial e supostamente do significado do nome próprio.
Pode-se, pois, sugerir que um nome próprio pode ter significado e ser vazio na
medida em que ele contenha circunstâncias fixadoras da referência capazes de
tornar a existência de seu objeto de referência ao menos possível.
Embora essa solução, como outras concebíveis,
possa ser tentada, ela padece de uma grave deficiência no que concerne ao próprio
conceito de circunstâncias fixadoras da referência. Não sendo objetos
kripkianos, tais circunstâncias só podem ser ao final das contas entendidas em
termos de propriedades ou conjunto de propriedades criteriais. Tais
propriedades, por sua vez, podem ser descritas. E as suas descrições acabam por
se evidenciar como sendo constituintes de descrições ou feixes de descrições que
os nomes próprios vazios abreviam. Com isso voltamos a admitir assunções próprias
de uma concepção dos nomes próprios de fundo descritivista.
Nomes
vazios e designadores persistentes
A
admissão de que nomes próprios podem ter sentido, mesmo não se referindo a
coisa alguma, nos permite dissolver uma ambiguidade existente na concepção
kripkiana de designador rígido. Kripke definiu inicialmente o designador rígido
como o que hoje chamamos de um designador
persistente: aquele que designa um mesmo objeto em qualquer mundo possível
no qual esse objeto existe. M ais tarde e em outras passagens ele definiu o
designador rígido como o que hoje chamamos de um designador obstinado: aquele que designa o mesmo objeto em todos os
mundos possíveis, mesmo naqueles nos quais esse objeto não existe. O
próprio Kripke, embora em um primeiro momento tenha preferido não se decidir
entre essas duas definições,
parece ter hoje escolhido a segunda e mais espinhosa alternativa.
Que nomes próprios sejam designadores
persistentes está de acordo com a assunção de que eles só tem sentido porque
seu uso resulta de um processo causal que costuma ter sua origem última no efeito
do próprio objeto existente sobre aquele que o batiza: em um mundo no qual esse
objeto não existe não deve existir o nome próprio caracterizado por sua função
identificadora. Mas há uma vantagem em se admitir que nomes próprios são
designadores obstinados, que é a de sermos capazes de explicar porque podemos
falar deles como designando possibilidades
não-atualizadas no mundo possível em
questão. Considere, por exemplo, um mundo no qual Aristóteles nunca existiu.
Mesmo assim, parece que podemos supor a possibilidade de ele existir nesse
mundo. Mas essa suposição só parece viável se o nome próprio ‘Aristóteles’ tiver
alguma referência, mesmo que ela não seja dada em tal mundo. Uma resposta
para quem aceita que nomes próprios são designadores obstinados é dizer que em
mundos nos quais uma referência como Aristóteles não existe eles se referem ao
objeto em nosso próprio mundo atual. Mas, como já vimos ao discutir o atualismo
de Kaplan, essa resposta não parece coerente, pois não podemos usar um nome
para um objeto em um mundo possível sem inserir o nome nesse mundo; e inserir o
nome em um mundo possível exige relacioná-lo ao contexto daquele mundo. Disso
se segue que usar um nome em um mundo possível de modo a que ele se refira ao
nosso mundo atual seria o mesmo que tentar inseri-lo simultaneamente nos contextos
dos dois mundos, o que levaria a uma contraditória confusão na satisfação de
critérios de inserção contextual: Aristóteles teria escrito e não escrito a sua
Metafísica, usaria barba e seria imberbe
etc.
A esse problema poderíamos adicionar a
facilmente esquecida consideração de senso comum de que não existe
referência sem objeto de referência. Como já foi notado no capítulo 2 desse
livro, é parte da gramática de nosso conceito de referência que só podemos
atribuir função referencial a um termo se admitimos que o seu objeto de
referência existe, de modo que sempre que descobrimos que esse objeto não
existe, nós lhe negamos o sucesso referencial. Ou
seja: em nenhum mundo possível pode um nome próprio se referir a algo que nele
não existe.
Vale, porém, a observação de que nossa intuição
de que um nome próprio pode se referir a um objeto não atualizado (ex: Vulcano)
em um mundo possível que não seja o nosso é diretamente dependente da admissão
de que esse nome possui um sentido descritivo. Só assim é que podemos, através
da imaginação, fazer um nome próprio vazio designar um objeto em um outro mundo
possível no qual esse objeto virá a existir. Com efeito, quando falamos em
possibilidades não-atualizadas estamos considerando apenas isso: a referência
de nomes próprios em situações contrafactuais nas quais seus objetos de
referência existem, o que não passa de uma referência meramente possível.
Assim, a inexistência de atos de referência
sem objetos de referência não significa que não possamos falar de
possibilidades não-atualizadas de referência. Podemos, encontrando-nos em nosso
mundo atual, nos referir a objetos que são possibilidades não atualizadas, como
Vulcano, Eldorado, Atlântida... simplesmente no sentido de que podemos imaginar
mundos possíveis nos quais esses nomes possuem referências. É fácil explicar
como isso é possível se admitirmos que o significado de um nome próprio é dado
por modos de apresentação descritivos, melhor dizendo, por regras de
identificação descritivamente exprimíveis, pois mesmo que essas regras não
sejam satisfeitas no mundo atual, elas podem ser concebivelmente satisfeitas em
algum mundo possível, justificando assim a possibilidade de sua referência. Se
admitirmos – contra Kripke – que nomes próprios não demandam a existência do
objeto como garantia de seu status, o entendimento de um nome próprio como
sendo um designador persistente se torna o mais natural. Por isso daqui em
diante entenderei designadores rígidos como sendo designadores persistentes.
O
problema do autômato kripkiano completo
Podemos
também demonstrar a indispensabilidade do elemento cognitivo-representacional e
potencialmente descritivo através de um reductio ad absurdum. Para tal
precisamos recorrer à ideia do que poderia ser chamado de um autômato kripkiano
completo. Este seria um autômato capaz de criar e usar nomes próprios. Ele é
completo no sentido de não correr risco algum de incorrer em descritivismo, uma
vez que não precisa satisfazer sequer a exigência de ser capaz de ter a intenção
de usar as palavras com a mesma referência que os outros autômatos da mesma
espécie em nenhum sentido cognitivo da palavra ‘intenção’. Trata-se, pois, de
um mecanismo primitivo, desprovido de qualquer forma de mente ou consciência,
mas ainda assim capaz de “identificar” pessoas através de seus sensores
fotoelétricos e de “batizá-las” com “nomes próprios”. Imagine agora uma
“sociedade” desses autômatos. Eles seriam então capazes de reter imagens e traços
comportamentais da pessoa que “batizam” com o nome próprio e ainda de transmiti-las
para outros autômatos similares, “comunicando-as” a esses nomeadores
secundários, os quais a partir de então se tornam capazes de repetir o nome da
pessoa quando a “vêem” ou quando apropriadamente “perguntados” sobre como se
chama uma pessoa com tais e tais características. Como há de ser notado, o
mecanismo de referência se reduz aqui a uma cadeia causal-histórica puramente externa,
destituída de qualquer elemento psicológico.
O
interesse dessa experiência em pensamento é que ela evidencia o quão
inconvincente se torna o ato de referir na ausência do elemento verdadeiramente
cognitivo. Não entendemos realmente como é possível que, nos sentidos que efetivamente
damos às palavras, um autômato kripkiano seja realmente capaz de usar nomes
próprios para referir no sentido próprio da palavra. Palavras como ‘denotar’, ‘nomear’,
‘identificar’, ‘referir’, ‘comunicar’, ‘ver’, ‘sociedade’, foram todas aqui
usadas entre aspas, devido ao uso simplificado e analógico que foi feito delas.
O que esses autômatos seriam capazes de fazer seria apenas produzir imitações
mecânicas dos processos referenciais que se dão em nossas mentes conscientes, o
que se demonstra em sua ausência de flexibilidade, complexidade e sofisticação
comportamental.
Imagine, porém, que não se trate mais de autômatos
kripkianos, mas de andróides extremamente sofisticados, tais como os que
aparecem nos filmes de Steven Spielberg:
seres capazes de compartilhar com perfeição nossa forma de vida, de aprender
todos os detalhes de nossa linguagem natural, usando os nomes próprios tão perfeitamente
quanto nós mesmos. Ora,
nesse caso não ficaremos mais satisfeitos em considerar os seus atos de nomear
elos terminais de uma cadeia causal puramente externa. Por analogia com nós
mesmos será inevitável lhes atribuir mentalidade. Isso significa que seremos compelidos
a identificar certos pontos nodais de seus caminhos causais como também sendo
internamente descritíveis em termos psicológicos como cognições, representações
ou intenções. Afinal, não temos como nos impedir de identificarmos a
consciência alheia por analogia com a nossa. Não somos capazes de imaginar que
andróides “completamente destituídos de
consciência” fossem capazes de falar e de se comportar de modo indistinguível dos
seres humanos. Mesmo que eles viessem conversar conosco, tentando nos convencer
que são completamente destituídos de consciência, não possuindo realmente pensamentos,
nem intenções, nem vontade, não acreditaríamos em suas afirmações, pois elas
nos soariam ridiculamente incoerentes e inverossímeis. Nós seríamos
irreprimivelmente forçados a atribuir-lhes consciência.
A conclusão é a de que se quisermos que os
nomes próprios tenham referência no sentido próprio da palavra, a causação física
externa terá de ser a tal ponto elaborada que irá inevitavelmente se refletir
na forma de processos causais psicológico internamente avaliáveis, nos quais o
elemento cognitivo-representacional-intencional ganha um papel preponderante,
forçando o retorno do elemento descritivamente exprimível inicialmente
rejeitado.
Cadeias
causais, elos cognitivos e histórias causais
Mesmo
concedendo que deva haver alguma razão causal indispensável para que um nome
próprio possua referência, a questão é avaliar o seu poder explicativo. Uma
teoria causal-histórica realmente consequente deveria ser fundamentalmente construída
sem a admissão de quaisquer elos psicológicos como intenções, cognições ou
representações que se deixassem expressar como descrições. Mas não parece que o
simples recurso a uma cadeia causal externa, a saber, uma cadeia causal constituída
de elementos interpessoalmente acessíveis, como ondas de som, fenômenos
eletrofisiológicos, movimentos corporais... seja suficiente para explicar a
referência. Mesmo que Kripke admita que precisamos ter a intenção de nos
referir ao mesmo objeto, já vimos que para ser realmente consequente ele
precisaria reduzi-la a uma intenção de reprodução de um conteúdo desconhecido, o
que seria o mesmo que nada.
Dificuldades mais sérias aparecem quando
tentamos explicar a referência do nome próprio através de uma cadeia causal
puramente externa. Uma primeira dificuldade é que existem incontáveis cadeias
causais às quais estamos sendo continuamente expostos, mas cujo elo final pode
ser qualquer coisa menos o uso de um nome próprio para referir. Ora, como então
identificar a cadeia causal que tem como elo final o uso referencial de um nome
próprio? Como saber, por exemplo, que a palavra ‘Cacilda’ está sendo usada como
nome de pessoa e não como o nome de um restaurante ou como uma exclamação vulgar?
Como saber que uma pessoa está usando o nome próprio ‘Aristóteles’
corretamente, como elo último de uma cadeia causal apropriada? Digamos que ao
ouvir pela primeira vez o nome ‘Aristóteles’, um nomeador secundário conclua
que o falante quer se referir a um colégio de sua cidade que possui esse nome.
Como saber que essa não é a cadeia causal-histórica correta sem recorrer a cognições-descrições
que relacionamos à própria pessoa de Aristóteles? Imagine agora, dado asas à
imaginação, que ao batizar Aristóteles, os sons das palavras proferidas tenha
feito balançar um espelho próximo, que por causa disso refletiu um foton que
atravessou a extratosfera e foi até a Lua, de onde foi refletido outra vez,
voltando por acaso à superfície da terra, onde foi absorvido por um átomo de
carbono em uma plantação de cereais; imagine que essa ínfima quantidade de
energia tenha permanecido guardada nesse átomo, mesmo que tenha este passado pelo
corpo de algum animal que se tenha alimentado dos cereais, passando-se milênios
até que o momento em que ela de alguma forma contribuiu (infimamente) para o
movimento de suas cordas vocais quando você pronunciou o nome ‘Aristóteles’.
Faria esse foton refletido parte da cadeia causal que fez com que você
pronunciasse o nome Aristóteles? É importante notar a absurdidade física da
questão, pois em geral somos muito pouco conscientes do fato de que vivemos o
tempo todo imersos em um inextricável oceano causal. Como escolher, dentre
inúmeras e imensamente complexas cadeias causais externas que simultaneamente
ocorrem e se entrecruzam, aquela que é responsável pela referência? Tão certo
quanto a sua própria existência é o fato de que a cadeia causal-histórica externa
é, se considerada apenas em si mesma, completamente inexcrutinizável e
inseparável das outras conexões que formam o imenso tear causal que nos
envolve. Existe algum procedimento que nos permita, ao menos em princípio,
encontrar certos elos causais mais relevantes?
Há um procedimento em princípio concebível, capaz
de identificar a cadeia causal externa relevante (acessível em terceira pessoa)
e que tem algo a nos ensinar. Ele parte da suposição de que certos elos causais
externos neurofisiológicos podem ser também de algum modo descritos em termos psicológicos,
nomeadamente, como cognições,
representações ou intenções de designar um certo objeto. Contudo, essa
admissão significa que é praticamente inevitável considerarmos primeiro
cognições ou representações internas para então nos tornarmos capazes de perceber
uma correlação entre essas cognições ou representações internas e a sua
contraparte física na forma de elos neurofisiológicos constitutivos da cadeia
causal externa, seja ela qual for. Contudo, como essas cognições e
representações internas comunicáveis são geralmente exprimíveis através de
descrições, se admitirmos que é esse o caminho natural para a identificação das
cadeias causais, parece que acabamos por nos comprometer com alguma forma de
descritivismo.
Podemos fazer experiências em pensamento que
no ajudem a comprovar a tese de que cognições e consequentes descrições são, no
final das contas, inevitáveis. A primeira é a seguinte. Imagine que se invente
um cerebroscópio capaz de identificar quando uma pessoa ao dizer o nome
‘Aristóteles’ segue os elos finais da cadeia causal correta, uma vez que o
aparelho é capaz de ler o tipo de elo
neurofisiológico adequado no comportamento neuronal de seu cérebro. Com isso, o
cerebroscópio será capaz de nos dizer quando uma outra pessoa está usando a
palavra ‘Aristóteles’ na sequência final de uma cadeia causal correta por ler
em seu cérebro um tipo de elo neurofisiológico similar ao de uma primeira
pessoa. Contudo, só será possível saber que o cerebroscópio está lendo o elo
causal final correto porque os falantes concordam que estão se referindo
ao Aristóteles geralmente mencionado em filosofia e não a um outro Aristóteles
qualquer. Esse acordo, contudo, é cognitivo e no final das contas descritivo, sendo
ele o critério final para a conclusão de que o cerebroscópio identificou o elo
causal final correto. Em outras palavras: a identificação da relação causal
certa irá depender da cognição, o que sugere uma grave petição de princípio
pesando sobre o objetivo final do argumento kripkiano.
Do ponto de vista dos usuários do nome, pelo
menos, algum elemento cognitivo interno termina sendo em algum momento
imprescindível. Quero ilustrar o mesmo ponto crucial com um exemplo concreto de
explicação psicológica. Suponha que eu decida comprar um presente para alguém
em agradecimento a um favor. Se me perguntarem “Por que você decidiu comprar o
presente?”, eu responderei: “Por me sentir grato por um favor que a pessoa me
fez”. Trata-se, no caso, de uma decisão em nível psicológico, a qual é
explicada por um sentimento também psicológico, sustentando uma identidade de
nível entre o explicandum e o explicans. Mas suponha que seja possível
explicar minha decisão de comprar o presente apelando aos processos
neurofisiológicos em meu cérebro correspondentes ao meu sentimento de gratidão
com relação ao favor que foi feito. Seria essa explicação isolada suficiente e
adequada para a minha decisão de comprar o presente? Seguramente não. Pois ela
só poderá ser considerada adequada se já de antemão for sabido que o processo
neurofisiológico em questão corresponde à decisão de comprar o presente e ao
sentimento de gratidão para com o comportamento de outra pessoa. Ou seja: mesmo
que possível, a explicação causal externa de atos conscientes só se justifica
na medida em que formos capazes de traduzi-la como de algum modo correspondendo,
como uma sombra, à sua superveniente explicação causal interna, psicológica.
Algo similar acontece quando consideramos uma possível explicação da referência
pelo recurso a cadeias causais externas: tais explicações só farão sentido na
medida em que forem vistas como contendo traduções externas de processos
internos, nos quais o elemento semântico é de algum modo em algum momento e em
suficiente medida psicologicamente instanciado.
Imagine agora que seres alienígenas quase
oniscientes, de visita ao nosso planeta, decidissem estudar nossa praxis linguística.
Suponha que eles fossem capazes de registrar todos os nossos atos
comunicacionais e de identificar as cadeias causais-históricas que nos levam a
proferir nossos nomes próprios nos mais diversos contextos. Parece razoável
pensar que eles se tornariam no final capazes de identificar essas cadeias sem
recurso a nossas descrições de elos cognitivo-representacionais. Isso sugere
que uma explicação puramente causal em terceira pessoa é logicamente possível. Contudo,
essa sugestão é ilusória. Não é apenas pelo fato de que não possuimos essa
perspectiva quase onisciente em relação a nós mesmos ou de que os alienígenas
sabem que por tudo o que somos capazes de fazer com as palavras não podemos ser
autômatos, mas seres conscientes, capazes de acesso cognitivo-representacional
às referências dos nomes próprios que usamos. O ponto crucial é que para identificar
nossa linguagem enquanto linguagem e nossos usos referenciais enquanto tais, os
alienígenas precisam ter consciência do que é uma linguagem e possuírem eles
mesmos estados cognitivos-representacionais correspondentes. Ou seja: em algum estágio
anterior do processo será sempre necessário que seja dado um padrão constituído
por estados cognitivos-representativos-descritivos, explícitos ou não, que por
tal razão se demonstram como sendo os verdadeiros elos causais interpretáveis
em termos fisicalistas. O elemento psicologicamente dado é o critério último
para a identificação dos elos causais externos, de terceira pessoa, ainda que
esses últimos sejam irredutíveis.
Resumindo
o ponto fundamental: como explicação isolada
para a referência, o externalismo causal acaba incorrendo em uma inevitável falácia
do tipo petitio principii. Para se evitar o recurso a um elemento cognitivo-descritivo
comprometedor, apela-se a uma cadeia causal puramente externa. Mas, considerando-se
a descomunal pletora de cadeias causais que podem ser associadas ao
proferimento de um nome, como distinguir aquela que conduz ao seu proferimento
correto? Ora, a única maneira de responder a isso é apelando a cognições ou
representações internas, que constituem a apresentação psicológica de elos principalmente
neurofisiológicos constitutivos de uma cadeia causal externa. Contudo, tais
cognições ou representações internas costumam ser, por sua vez, susceptíveis de
exposição descritiva, o que nos compromete outra vez com alguma forma de
descritivismo. Kripke evita o descritivismo através do recurso a uma teoria causal
que acaba sempre por pressupô-lo.
Devemos concluir desses argumentos que o
recurso à cadeia causal externa é incapaz de desempenhar qualquer papel no
sentido de explicar a referência? Creio que não. Embora o rastreamento do tear
causal externo (os sons proferidos em atos de batismo, os seus efeitos específicos
nos cérebros dos participantes etc.) seja praticamente impossível, é muitas
vezes possível uma identificação do que poderíamos chamar de história causal, que seria a história de manifestações cognoscíveis
relevantes, derivadas do percurso espaciotemporal delineado pela efetiva cadeia
causal-histórica.
Considere, por exemplo, o nome ‘Sócrates’. Sabemos
que Sócrates existiu devido aos testemunhos deixados por contemporâneos que o
conheceram pessoalmente, como Platão, Xenófanes e Aristófanes, os quais foram
mais tarde lembrados por Aristóteles e pelos socráticos menores. Podemos
discernir nisso histórias causais embasadas em cadeias causais que, através das
mais variadas ramificações, chegaram até nós. Embora nunca venhamos a
reconhecer as cadeias causais específicas que se deram entre o Sócrates histórico
e o que ele possa ter produzido nos que possam tê-lo batizado com esse nome e mais
tarde tenha repercutido nos cérebros de Platão, de Aristóteles e dos socráticos
menores... somos ainda assim capazes de identificar uma história causal que tenha
deixado marcos repetíveis permanentes, como os eventos causais que ficaram marcados
nos escritos de Platão, Aristóteles e outros. Informações sobre a história
causal podem se tornar relevantes para a explicação da referência. Podemos tomar
ciência dela. E a constatação da completa ausência de histórias causais pode até
mesmo levar-nos a rejeitar uma suposta referência como ilegítima.
É importante enfatizarmos, porém, que as histórias
causais só ganham qualquer força explicativa com relação à determinação da
referência porque nós tomamos consciência dos elos que as constituem, ou seja,
porque somos capazes de representá-los cognitivamente, o que normalmente significa
torná-los susceptíveis de representação descritiva. Daí que uma teoria
descritivista dos nomes próprios deveria ser mesmo capaz de incorporar ao feixe
de descrições constitutivas do sentido de um nome próprio informações sobre a
história causal, exigindo então que a comunidade linguística (ao menos
através de alguns de seus membros) fosse capaz de, em algum momento, produzir representações
descritivas dessa história de modo a justificar o uso referencial. Veremos ao
menos um caso concreto disso mais tarde, ao examinarmos criticamente o exemplo
de Donnellan sobre Tales, o primeiro filósofo da tradição ocidental, que por
ter sido o primeiro possui uma história causal particularmente relevante.
Quero, finalmente, esclarecer melhor o modo
de ver recém-sugerido apelando para o exemplo de um nome próprio muito simples.
Trata-se de uma cadela chamada Dodó (corruptela de ‘Dona’), que minha mulher e
eu uma vez tivemos. Antes de ela ter um nome nós já sabíamos identificá-la como
‘o nosso cão’. Nós a identificávamos perceptualmente pelo seu pequeno tamanho,
pela cor marrom dos pelos, pela forma e cor branca do focinho e pelo fato de ela
ser o único habitante canino da casa. Quando ela passou a ser chamada de Dodó,
nós usávamos o nome tendo em mente o animal com as características
recém-descritas. Assim, o que fizemos foi associar o nome a representações capazes
de ser interpessoalmente compartilhadas e em certa medida expressas na forma
descritiva de um retrato falado, caso isso fosse necessário. Quem realmente
conheceu a Dodó, conheceu uma descrição da forma: ‘a cadela com tais e tais
características, que morou em tal e tal lugar e que pertenceu a tais e tais pessoas’.
Claro, eu pude passar o nome a outras pessoas que nunca a viram sem o auxílio
dessa descrição, dizendo que tinha um cão. Essas pessoas conheceram, portanto,
a representação expressa pela descrição parcial: ‘o cão do Claudio’. Note-se
que há aqui uma cadeia causal-histórica e que ela é indispensável. Contudo, é ainda
mais importante notar que os elos da cadeia causal que acabei de expor podem
ser descritos em termo de conteúdos cognitivo-representacionais internos,
similares ou complementares, que se repetem atualizando-se (talvez de forma
não-reflexiva) nas mentes das pessoas e sendo em boa medida exprimíveis através
de descrições expressivas de regras de identificação (regras-descrições).
É verdade
que ao falarmos de Dodó nós cumprimos com a exigência de Kripke de ter a
intenção de fazer referência ao mesmo objeto. Mas essa intenção não foi em
momento algum um querer destituído de conteúdo, mas a intenção de designar o
mesmo objeto por compartilhar de elementos intencionais similares aos de outros
usuários do nome. Claro que esses elementos intencionais só existiram porque os
elos do tear causal são em geral eventos neurofisiológicos de um certo tipo,
sejam eles quais forem, os quais puderam ser-nos apresentados internamente em
termos de conteúdos cognitivo-representacionais em geral passíveis de apresentação
descritiva. Esses elos, quando pensados pelos diversos falantes, apresentavam o
necessário grau de similaridade e complementariedade entre si. Também esse exemplo
sugere que, contrariamente ao que se possa supor, cadeia causal-histórica e
cognição-representação-descrição são coisas que se complementam ao invés de se
opor.
O
Descritivismo dos elos Causais
As
considerações feitas até aqui sugerem que a concepção causal-histórica só será
capaz de ganhar algum poder explicativo se for integrada a um descritivismo dos
elos causais. A existência de alguma conexão causal externa entre o nome e a
sua referência, por mais indireta que seja, é condição indispensável para que o
nome próprio realmente possua ou venha a possuir referência. Isso é
indiscutível e já era sabido mesmo por filósofos descritivistas como P. F.
Strawson. Mas essa condição não é suficiente. É preciso que a conexão causal
possa ser reconhecida como sendo adequada à função referencial do nome. Contudo,
ela só será reconhecida como adequada se for aquela cujos elos causais são
capazes de preservar a relação de referência que o nome tem com o seu objeto. E
o candidato natural a elo causal capaz de preservar essa relação é aquele
constituído por conteúdos cognitivos (representacionais, intencionais) que se reiteram
e se complementam no estabelecimento da relação referencial. Esses elos
cognitivos poderiam então instanciar regras descritivamente exprimíveis, capazes
de identificar o referente através de suas propriedades singularizadoras,
quaisquer que elas fossem. Se assumirmos a condição da existência da cadeia
causal externa como sendo em alguma medida resgatável pelas descrições que expressam
cognições envolvidas em adequados momentos de histórias causais, essas
histórias e as resultantes descrições dos elos causais cognitivos
instanciadores de regras de conexão com o objeto seriam capazes de no final das
contas fornecer elementos explicativos da função referencial do nome próprio.
Afinal, é só a esses elementos que temos ou podemos ter efetivo acesso como
usuários conscientes da linguagem. Consequentemente, uma versão menos
inadequada da teoria causal-histórica precisaria ao menos supor, como elos
causais externos, coisas como tipos de estados neurofisiológicos externos capazes
de serem descritos internamente como elos causais cognitivos geralmente
exprimíveis através de descrições que expressam procedimentos de identificação que
se afiguram como padrões complementares e reiteráveis no delineamento do tear
causal.
O esquema que se segue visa ilustrar a
estrutura do tear causal cujos elos mais evidentes podem ser internamente
interpretados como conteúdos cognitivo-representacionais geralmente passíveis
de formulação descritiva:
Nomeador
originário:
(primeiro
elo causal: ¬ relação
causal ¬ objeto
nome +
cognições)
¯... (relações causais cognitivas)
Nomeadores
secundários:
(elos causais
cognitivos...)
¯...
Proferimento do nome pelo falante...
É
preciso lembrar que os elos causais relevantes devem ser afinal estados
cognitivos que em muitos casos podem ser apenas em alguma medida reproduzidos por
falantes que sejam nomeadores secundários. Esses elos são geralmente descritíveis
internamente, em primeira pessoa, como cognições (representações, ideias, intenções...),
devendo também poder ser em princípio descritíveis externamente, em terceira
pessoa, na forma de comportamento neuronal. Nós não teríamos como nos guiar por
qualquer forma de identificação externa (seja a de histórias causais, seja a de
supostas cadeias causais-históricas), a não ser pelo recurso à superveniência das
cognições internas sobre elos causais externos.
Mesmo com as admissões acima mencionadas, a
teoria causal-histórica parece longe de se tornar satisfatória. Afinal, não é
somente o elo causal do batismo (que em muitos casos nem se dá) que chega até
nós. Considere o caso de Aristóteles. Que ele tenha escrito o Corpus
Aristotelicum é um fato extremamente importante sobre Aristóteles, que
pressupõe uma cadeia causal-histórica que chegou até nós e sem a qual não
poderíamos ganhar conhecimento dele. Que Aristóteles nasceu em Stagira em 384
a.C. e faleceu em Chalcis em 322 também é um fato importante acerca de
Aristóteles; mas ele só é sabido por nós porque existem cadeias causais-históricas
que vem desde o registro desse fato por outros até nossa tomada de consciência
dele. O mesmo podemos dizer do fato de ele ter aos 17 anos viajado para a Magna
Grécia para se encontrar com Platão, do fato de ele ter sido preceptor de
Alexandre, de ter se casado com Pythias, de ter fundado o Liceu. Nossas
consciências desses eventos tem sempre como fundamento último cadeias histórico-causais
que sabemos existir mesmo que elas sejam completamente desconhecidas de nós
mesmos. Mas então, por que selecionar uma cadeia histórico-causal específica,
aquela do batismo, como a única apropriada? O que o batismo de uma pessoa,
através de um mero signo linguístico sonoro ou visual em si mesmo perfeitamente
acidental, tem de superior a outras cadeias histórico-causais produtoras de
cognições relevantes associadas ao nome próprio, como as cognições
localizadoras e caracterizadoras de seu portador?
Considerações
finais
O
ponto fundamental de minha crítica a uma teoria causal-histórica é que ela incorre
em uma petição de princípio, pois a
identificação da cadeia causal externa termina sempre na pressuposição de critérios
identificadores cognitivo-representacionais em princípio descritivamente
resgatáveis. Ou seja: se quisermos justificar a referência valendo-nos de
cadeias causais externas, isso será logicamente possível, mas ao preço do
abandono da teoria causal; pois só seremos capazes de identificar as cadeias
causais externas corretas por meio de uma identificação prévia dos eventos
cognitivos que lhes são supervenientes, eventos descritivamente explicitáveis, com
base nos quais usamos o nome próprio na identificação consciente de seu objeto.
Os nomes próprios de pessoas costumam ser em
sua expressão fonética e ortográfica multiplamente ambíguos, de modo que a
unicidade de sua designação acaba por depender do contexto em que são usados.
Contudo, esse fato não nos leva a confundir nomes próprios com indexicais, pois
o contexto desambiguador do nome próprio não é o do proferimento, mas o de uma
pluralidade de crenças interligadas conectadas ao contexto do proferimento, as
quais, como veremos, fazem valer um certo domínio de objetos que contém aquele
a ser selecionado por uma específica regra de identificação para o nome. (Cf.
capítulo 6.)
Segundo Kripke, a segunda definição é de
jura, encontrando-se no prefácio de Meaning and Necessity, enquanto
a primeira foi incompletamente apresentada no corpo do livro. Ele também hoje
defende que é no segundo sentido que descrições definidas não são designadores
rígidos. As críticas que farei também poderiam ser aplicadas à segunda
definição, mas prefiro não fazê-lo por duvidar de sua inteligibilidade. Ver Saul Kripke, “Naming
and Necessity Revised”, School of Advanced Studies, 2019 (Lecture). Para discussão, ver Kaplan 1989, p. 569. Cf.
comentário de G.K. Fitch 2004, pp. 36-37.
Kaplan: “Demonstratives”, IX. Simplifico
(melhor dizendo, “descomplico”) o exemplo de Kaplan, de modo a tornar patente o
que é claramente equívoco no argumento.
Luntley: 1999, p. 334. O
platonismo fregeano pode ser evitado se entendermos o pensamento simplesmente
como um pensamento-modelo psicológico dado (um tropo de pensamento) ou
qualquer outro pensamento (tropo de pensamento) qualitativamente idêntico a
ele. Isso é suficiente para não fazer do pensamento algo dependente de um único
indivíduo psicológico que o pense. Cf. Costa 2018, cap. IV.
Gareth Evans ressaltou o elemento causal: se
estou diante de um objeto real ao qual me refiro pelo demonstrativo
‘isso’, meu conteúdo de crença é causado
pelo objeto, de modo que se o objeto se alterasse ou deixasse de existir, meu
conteúdo de crença indexical (pensamento) também se alteraria ou deixaria de
existir. Não obstante, isso não é suficiente para desfazer a natureza cognitiva
do pensamento demonstrativo. Cf. Evans 1982, 5.1,
9.4, 9.5.
No exemplo original de Perry, Heimson é um
imitador de Hume que, tendo se convencido de ser o próprio Hume, diz “Eu
escrevi o Treatise”, o que é
obviamente falso, pois só o próprio Hume poderia dizer isso de modo verdadeiro.
Nenhuma descrição, insiste Perry, pode substituir aqui o pronome pessoal ‘eu’ dito
pelo próprio Hume. Com efeito, o pronome pessoal ‘eu’ não parece ser
substituível por coisa alguma de forma absolutamente congruente. Mas, como
veremos, uma congruência parcial pode ser suficiente. Na maioria dos contextos,
aliás, “Hume escreveu o Treatise” faz
o mesmo serviço que o proferimento acima.
Pequenas diferenças semânticas podem ter maior
importância se o contexto for o de um discurso filosófico, como Wittgenstein e
outros demonstraram. Ignorá-las pode produzir confusões se elas forem usadas
por filósofos na produção de pequenos ou grandes mal-entendidos. (A palavra
‘sofista’, usada pejorativamente por Platão, não possui um ponto de corte
específico; depende do rigor de quem julga. Se for muito alto poderá se aplicar
até mesmo ao próprio pensamento platônico; se for exageradamente alto pode ser
que nenhuma filosofia mais se salve.)
1905, pp. 479-493. Ver também Russell 1919, cap. 16.
Strawson 1952, p.
184 ss.
Wettstein 1981,
pp. 241-257.
Stanley & Williamson
1995.
Essa ideia é plausível demais para ser
rejeitada, dado que a linguagem é expressão de um sistema de convenções capazes
de se combinar e que convenções são regras compartilhadas pela comunidade
linguística – uma descoberta tão antiga quanto o Crátilo de Platão. Até mesmo a ideia de Russell de que o sentido de
um nome próprio lógico como “Isso-vermelho” é o próprio sense-datum do vermelho torna-se admissível se ele for, ao invés,
identificado com uma regra-convenção que associe a palavra ‘isso’ à cognições
de sense data de vermelho (Cf. Russell 1918; Costa 2018, cap. IV.)
Ver Tugendhat 1976, p.
262. Ver também Tugendhat &
Wolf 1983, p. 185.
Certamente, cada um desses três casos pode
ser expresso pela lógica predicativa, na medida em que transformarmos as
expressões referenciais em expressões predicativas, delas predicando
existência: Considere a frase “Mamíferos voadores existem”; simbolizando
‘mamíferos’ por M e ‘voadores’ por V, temos ∃x (Mx & Vx). Considere uma descrição definida como
em “A estrela da manhã existe”; simbolizando o predicado ‘estrela da manhã’
como M temos ∃x (Mx & (y) (My → y = x)). Para o nome
próprio na frase ‘Sócrates existe’, abreviando o conteúdo descritivo que o nome
possa conter através do predicado ‘socratiza’ e simbolizando este último por S,
temos ∃x (Sx & (y) (Sy → y = x)). Considere,
ainda, a frase predicativa singular “Sócrates é calvo”, que pode ser traduzida
como “Existe somente um algo que é Sócrates e ele é calvo”. Entendendo-se
‘Sócrates’ como a abreviação de descrições analisáveis através de predicados,
abreviando esses predicados por meio do predicado ‘socratiza’ simbolizado como
S, e simbolizando o predicado ‘calvo’ como C, temos ∃x (Sx & (y) (Sy → y = x) & Cx).
Gareth Evans 1982, p. 56, nota que as
descrições definidas podem se referir a indivíduos diferentes em diferentes
mundos possíveis, diversamente dos nomes próprios. Mas como veremos no capítulo
6, as descrições definidas só são flácidas enquanto se encontram semanticamente
vinculadas a nomes próprios, caso contrário elas se tornam rígidas. Isso
demonstra que não há nada de especial diferenciando a semântica dos nomes
próprios usuais, diversamente do que referencialistas modernos como Kripke
acreditam.
Podemos especular se não seriam os predicados
da descrição analisada expressões que nos permitiriam designar propriedades
singularizadas geralmente externas, ou seja, complexos de tropos físicos estabelecidos
como univocamente existentes pelos quantificadores existencial e universal com
base em sense data, eles mesmos tropos internos. Minha sugestão foi a de que a
leitura dos sense data como nos remitindo a complexos de tropos externos
poderia ser definitoriamente determinada pela satisfação conjunta das
condições de realidade externa, nomeadamente, da máxima intensidade sensorial,
da independência da vontade, da intersubjetividade e do seguimento de leis
naturais. Cf. Costa 2018 cap. VI, sec. 28 ss.
Podemos complementar a descoberta de Frege
adicionando que uma frase como essa é ambígua. Ela exprime dois sentidos: um
sentido fundamentador, que apresenta um mesmo fato fundamentador, desambiguado
pela frase de identidade “Vênus = Vênus”, e um fato aspectual, na verdade um
sub-fato que é desambiguado pela frase diferenciadora “A estrela da manhã ≠ A
estrela da tarde”. Afinal, tanto esse sub-fato aspectual quanto o modo de
apresentação desse sub-fato são diferentes. Essa seria a intuição que o
bidimensionalismo semântico tenta resgatar usando uma semântica de mundos
possíveis que em meu juízo tende a perpetuar erros que nasceram com Frege e
foram aprofundados por Rudolph Carnap e outros, como as ideias de que a
referência de um enunciado é o seu valor-verdade ou de que a referência do
predicado é a classe dos objetos aos quais ele se aplica. Cf. Costa 2018,
cap. IV, sec. 27.
Mill 2002, livro 1, cap. 2,
seção 5, p. 20. Esse trecho nos fornece os elementos para a interpretação
standard de Mill que nos ficou.
Ver Devitt &
Sterelny 1999, p. 45. Lycan 2006, pp. 256-7. S.P. Schwartz 1977, pp. 18-19. Essa interpretação foi difundida por Saul
Kripke, que por sua vez parece tê-la tomado de John Searle.
Gottlob Frege 1892, p.
28, paginação original.
Autores norte-americanos, influenciados por
Saul Kripke, associam Frege ao descritivismo, enquanto autores ingleses,
influenciados por Michael Dummett, costumam rejeitar essa associação. Ver Dummett 1981, pp. 97-98,
110-111, p. 186 ss. Corroborando a interpretação de Dummett estão Lynski 1977,
pp. 42-43 e, mais recentemente, Luntley 1999, p. 261.
1980 (1911), p. 29.
Essa passagem,
como a próxima a ser citada, encontra-se idêntica no artigo de Russell de 1918.
Leonard Linsky interpretou Wittgenstein como
tendo aqui sugerido a ausência de limites convencionais para fixar as descrições
(ver Linsky 1977, p. 99). Mas não há suficiente evidência textual para essa ideia.
Seja como for, se Wittgenstein tivesse pensado assim ele estaria errado. Não
parece concebível que o nomes próprio possa manter uma referência única e
separável se os limites de sua aplicação resultarem de decisão arbitrária.
Ver Salmon 2005,
p. 23-31.