Draft 1
ENTRE O
MITO E A CIÊNCIA:
OS PRÉ-SOCRÁTICOS
A
filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 500 anos antes de Cristo.
Há quem diga que a filosofia é muito mais antiga. Para alguns ela nasceu na
China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o chamado Livro
das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria oracular
redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras. Para
outros ela teria nascido na Índia cerca de 1500 anos antes de Cristo,
originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal
objetivo era orientar a vida humana.
É interessante aqui a opinião de Hegel, para
quem a filosofia, tal como hoje a entendemos, se originou realmente na Grécia
antiga e não no oriente. A razão aventada por Hegel é que a filosofia oriental nunca
se desvinculou suficientemente da religião. Ela não distinguia em si mesma
filosofia de sabedoria, de uma forma elevada de autoajuda. Enquanto a
filosofia trabalha com argumentos críticos e ideias do mais variado escopo, a
sabedoria tem a ver com conselhos sobre o bem viver e com a retidão no
comportamento. Veremos que os primeiros filósofos gregos se importavam menos
com a sabedoria e tinham um olhar crítico em relação à religião e à tradição
cultural mítica que os antecedia. Influenciados pelo pouco que conheciam de
ciência, eles queriam substituir a mitologia por uma especulação que pelo menos
perseguisse a forma da ciência.
Essa confusão é muito comum mesmo hoje entre
os leigos. Confunde-se filosofia com sabedoria de vida ou com alguma disciplina
mística, quase religiosa, enquanto a filosofia acadêmica, como resultado de uma
especulação coletiva de uma comunidade de conhecedores, sedimentada sobre uma
tradição milenar, pouco teria a ver com a sabedoria de autoajuda, tendo se
tornado hoje um assunto esotérico, cada vez mais inacessível ao público leigo.
Mas então, o que fez com que a filosofia
grega, em seus primórdios, se diferenciasse da filosofia oriental como não
devendo ser confundida com sabedoria?
Para responder a essa pergunta precisamos
considerar o trabalho dos filósofos pré-socráticos, assim chamados por terem
aparecido antes de Sócrates e por terem preocupações filosóficas cosmológicas, muito
diversas das preocupações morais de Sócrates. Eles foram os primeiros a terem
surgido na Grécia, em um período que vai do século VI ao século V antes de
Cristo. O principal objetivo desses filósofos era encontrar um princípio
originador e sustentador de tudo o que existe, a assim chamada arché.
Esse princípio pertencia à physis, pois os pré-socráticos viam seus
princípios como pertencentes à natureza. Eles eram cientistas, conheciam
matemática e astronomia. Eles queriam substituir as explicações mitológicas das
anomalias da natureza por princípio especulativos que pelo menos tivessem a forma
de princípios científicos, uma vez que em tais domínios a ciência como
ciência era impossível.
Os
milesianos
O primeiro
desses filósofos, Tales de Mileto, foi também um astrônomo e matemático grego
(647-524 a.C.), tendo previsto um eclipse no ano de 585 a.C. Ele acreditava que
a água fosse o princípio de todas as coisas, posto que a vida nasce das coisas úmidas.
O princípio água coincidia com o divino, donde tudo se encontra pleno de
deuses.
Para Nietzsche, Tales foi a primeira pessoa
a ter a ideia de uma unidade na multiplicidade de tudo o que existe, a intuição
original de que tudo é um, de que há uma unidade na multiplicidade constitutiva
do universo e que nós podemos ter, em princípio, acesso cognitivo a ela. Essa
tentativa de obter uma compreensão unificadora do mundo foi caracteristica da
filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica
occidental.
A ideia da unidade na multiplicidade foi em
nossa época desenvolvida através da noção de consiliência. Ela é um
pressuposto da pesquisa científica a existência de uma unidade na realidade
objetiva. Esse pressuposto faz com que através da investigação nós possamos ter
como princípio orientador a ideia de que as diferentes ideias devam poder ser
conciliadas umas com as outras, reforçando-se assim em sua plausibilidade.
Talvez o melhor exemplo seja o caso da teoria darwiniana da evolução, que foi
reforçada pela genética mendeliana e mais ainda pelo surgimento da genética
molecular. Consiliência é algo que tem faltado à filosofia contemporânea, tão
ávida de tornar-se ciência: mais unidade e menos fragmentação.
Tales foi sucedido por outros dois filósofos
Jônicos mais jovens do que ele, que foram Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro
sugeriu que o mundo fosse resultado de um elemento indefinido ou, mais
literalmente, o não-limitado, o Ápeiron, que é infinito. Essa é
uma ideia interessante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela
primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos.
Anaximandro foi responsável pela ideia de
que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros, que não cai nem para um
lado nem para outro, pelo equililíbrio das forças. O filósofo da ciência Karl
Popper viu nisso uma antecipação do conceito de inércia e mesmo o da
gravitação. A filosofia dos pré-socráticos atua entre a mitologia e a ciência e
as vezes, visivelmente, como uma antecipação da última.
Anaxímenes, por sua vez, sugeriu que o
princípio originador e constitutivo fosse o ar. Afinal, não podemos permanecer
vivos sem respirarmos. E disso ele supôs que o mundo inteiro, tal como um ser
vivo, também fosse dependente da existência do ar para subsistir. Como explicou
em um dos fragmentos:
Com
a nossa alma, que é ar, nos mantém unidos, assim o espírito e o ar, que são a
mesma coisa, mantém unido o universo inteiro.
Anaxágoras
(500 a.C. – 428 a.C.), outro importante filósofo pré-socrático, foi um dos
introdutores do conceito de mente (intelecto, inteligência) em filosofia. Ele entendia
o princípio como sendo a mente (nous), que ele entendia como sendo uma
coisa também material, mas absolutamente pura:
A
mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo o conhecimento de todas as
coisas e o maior poder.
Para Anaxágoras
a mente é uma força infinita que agindo sobre a matéria informe dá origem a
tudo o que existe nesse mundo.
Princípios
múltiplos
Outros
filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo múltipla. Assim,
para Pitágoras de Samos, um matemático, tendo percebido que tudo na natureza
possuia quantidades e formas, concluiu que os números eram o princípio
fundamentador do universo. Eles seriam o fundamento, a partir do número um, que
é base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria. Com base na
matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que objetivava explicar
não só o universo, mas também a vida humana. Os místicos pitagóricos
acreditavam na doutrina da transmigração das almas, tendo tido uma influência
maior no pensamento de Platão.
Também acreditavam em princípios múltiplos
os assim chamados filósofos atomistas, que foram Leucipo, Demócrito (460-370
a.C.) e, bem mais tarde, Epicuro. Para eles o mundo era constituido por completo
do que eles chamaram de átomos, que eram partículas invisíveis, indivisíveis e de
infinitas formas, que constituiam todas as coisas. Afora os átomos só existia o
vazio. Os átomos seguiam leis deterministas em seus movimentos. Assim, os
atomistas foram os primeiros filósofos propriamente materialistas. Mas isso não
os impedia de acreditarem no espírito, pois as almas humanas poderiam ser
entendidas como constituidas de átomos extremamente sutis. Assim, quando
sonhamos com um antepassado morto é porque os átomos constitutivos de suas
almas penetraram em nossas cabeças enquanto estávamos dormindo, interagido com
os átomos de nossas almas.
Pode ser dito que os atomistas estavam
antecipando descobertas científicas que ocorreram mais de dois mil anos depois,
que foram os átomos, a tabela períodica, e após isso as partículas subatômicas como
os electrons, os quarks, os gluons e os fótons.
Mesmo
que eles de maneira alguma pudessem antecipar a física moderna, eles já podiam
specular com a ideia de que a matéria é constituída de partículas invisíveis e
indivisíveis, o que ao menos em sua forma, demonstrou-se uma ideia correta.
Finalmente, sobre Demócrito é importante
notar que a maior parte dos fragmentos por ele deixados eram ditames morais,
muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:
É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem
acredita tê-lo.
Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.
A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada
pelo entendimento.
Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal,
porém, atinge mesmo aquele que não o procura.
Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a
pátria de uma alma virtuosa é o universo.
Em verdade, porém, nada sabemos, pois no abismo
encontra-se a verdade.
É
curioso e entristecedor notar que eles ditames valem hoje tanto quanto valeram
há 2.500 anos atrás. Parece que o ser humano nesse aspecto pouco ou nada
aprendeu com os erros de seus antepassados.
Um outro pré-socrático pluralista que merece
ser citado foi Empédocles de Agrigento (florescimento 450 a.C.). Ele foi o
autor da ideia de que o universo é constituido de quatro elementos (raízes),
que seriam a água, a terra, o ar e o fogo. Esses elementos imutáveis se
combinariam uns aos outros formando o universo visível. À parte os elementos
existiriam duas forças agindo sobre eles: a da harmonia (o amor) e a da
discórdia (o ódio). A força da harmonia atrairia os elementos produzindo os
constituintes do universo, que seriam desfeitos pela força da discórdia. O
processo pelo qual se desenvolve o mundo seria para Empédocles circular: de
tempos em tempos tudo se repetiria. No início os elementos estariam todos
perfeitamente misturados, os objetos não existiriam e a força imperante seria a
da harmonia em toda a esfera do mundo. Mas a força da discórdia logo penetraria
na esfera do mundo e começaria a agir separando os elementos e formando os
objetos que conhecemos, até um momento em que terra, água, ar e fogo estivessem
completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começaria a agir
misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o retorno ao estágio
inicial. Em seu tempo ele pensava estarmos em um estágio intermediário em que
as forças da discórdia agem de maneira cada vez efetiva.
Essa doutrina foi sugerida pela observação
dos acontecimentos cíclicos no mundo. Os seres vivos são gerados sem forma e crescem
e se diferenciam até envelhecer e, na morte, tornarem-se outra vez matéria
informe. Também as estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e
darem frutos na primavera e no verão, para então perderem as sus folhas no
outono e perderem as suas folhas e secarem no inverno, só para florescerem de
novo no próximo ano.
A ideia de um mundo cíclico foi tomada de
empréstimo por Nietzsche de Empédocles sob a forma do que ele chamava de o
eterno retorno. Nietzsche entendia a ideia do eterno retorno também como um
experimento psicológico para testar a veracidade de uma ideia. O pensamento
plenamente verás deverá ser aquele que, para o sujeito desse pensamento, fosse
capaz de retornar sempre como sendo o mesmo, e ainda assim ser vivido com a
mesma mesma intensidade. Isso é certamente impossível de acontecer, mas pode
ser admitido como um ideal daquilo que deveria ser o pensamento mais absolutamente
autêntico no sentido de que fosse resultado de um querer absolutamente puro e
legítimo – um ideal que deveria ser ao menos tentativamenteaproximado.
Finalmente, a ideia de um mundo cíclico
nada tem de absurda e está presente mesmo na cosmologia contemporânea: para
alguns astrofísicos o big-bang é para ser seguido pelo big-crunch e assim sucessivamente
– a versão contemporânia do mundo cíclico de Empédocles.
Heráclito
Quero
me deter em Heráclito e Parmênides, que foram os mais impressionantes filósofos
pré-socráticos. Em certa medida eles se opõem, pois Heráclito enfatizava a
mudança e Parmênides a imobilidade naquilo que ele chamava de ser. Mas veremos
que nem por isso eles se opõem por completo, posto que por trás da mudança
Heráclito enfatizava a unidade da razão, que pode ser comparada ao ser de
Parmênides.
Heráclito, como Nietzsche, Wittgenstein, e
ainda outros, foi um filósofo que se exprimia por meio de aforismos. Muitos dos
aforismos seus são profundos e nos dizem algo ainda hoje. Eis alguns deles:
A harmonia invisível é mais forte do que a
visível.
O que está em cima é idêntico ao que está
embaixo.
A natureza ama ocultar-se.
Nunca encontrarás
os confins da alma, tão profundo é o seu logos.
Heráclito
pertencia à nobreza hefésia (florescimento circa 504 a.C.). Foi um pensador de
índole aristocrática, misantropo, mas profundo e poético, seus aforismos sendo intencionalmente
obscuros, de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele
desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir
racionalmente.
Heráclito também era um elitista no que tange
ao comportamento moral. A razão humana é apenas um momento da razão universal.
Embora a razão seja comum a todos, para Heráclito muito poucos fazem uso dela.
Assim, diz ele:
A
despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um
entendimento particular. Não sabe nem escutar nem falar.
As
opiniões dos homens são jogos de crianças.
Heráclito,
ao que parece, era também um filósofo capaz de odiar em medida pouco comum,
como demonstram os seus aforismos desmissivos acerca de seus concidadãos. Faço
aqui apenas uma breve seleção deles:
Os porcos preferem a lama à água limpa.
Tudo o que rasteja merece ser chicoteado.
Um para mim vale
mil se for o melhor.
Burros preferem a
grama ao ouro.
Os cães ladram
para aquilo que desconhecem.
Se
vocês quiserem ofender alguém gravemente sem precisar lançar mão de palavrões,
basta se lembrarem de algum desses aforismos de Heráclito.
Heráclito foi o filósofo do conflito. Para
ele o conflito entre os opostos é necessário, pois é dele que nasce a mais bela
harmonia. Ele considerava as guerras como necessárias:
A
Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de
outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.
Tentando
dar um exemplo atual: a Guerra da Ucrânia provavelmente porá um fim ao sistema
autocrático russo que sobreviveu aos Czares e mesmo à velha União Soviética,
tendo cedido poderes ditatoriais a Putin. Esse Sistema, regido pela mão forte
dos Czares, foi por muitos séculos necessário para manter unificado o imenso
território russo, destituído de fronteiras naturais. “Na Rússia”, dizia-se, “a
cor da neve é vermelha.” Mas hoje esse sistema se tornou ultrapassado. A queda
de Putin, que se acredita que irá ocorrer, servirá para dividir a Rússia em
federações menores e, espera-se, democráticas, dando fim à espécie de visão de
mundo que originou o sangrento império russo.
A Guerra como solução de conflitos era inevitável
no mundo antigo. Por exemplo, foi graças à genialidade de um general grego,
Temístocles, que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a
continuação da produção cultural grega com o aparecimento de Platão e
Aristóteles em filosofia. Sem Temístocles esses filósofos não teriam existido. Hegel
era um admirador de Heráclito. A ideia hegeliana de um devir dialético na
história tem a sua origem nesse último filósofo.
Mas não seria a necessidade da guerra uma
ideia ultrapassada, posto que esperamos que no futuro as guerras deixarão de
existir? Essa seria uma maneira superficial de entendermos o que Heráclito quis
dizer. Mesmo que as guerras deixem de existir, os conflitos entres grupos
humanos continuarão existindo de forma mais sublimada, por exemplo, como
conflito de ideias. Se Heráclito estivesse aqui entre nós ele diria que a sua
ideia de guerra, agora entendida de forma metafórica como qualquer forma de
conflito social em qualquer sociedade, continuará sempre existindo, pois é
inerente à vida humana em sociedade.
Outra ideia iconoclasta de Heráclito é a de
que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para que exista a
justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas oposições são
interdependentes, o que deve desfazer a ilusão escapista, muitas vezes
incorporada ao cristianismo, de que possa haver um mundo inteiramente justo e
inteiramente bom, ao menos dentro da perspectiva humana. Essa ideia vale para a
sociedade e também para os indivíduos. Para Heráclito o ser humano é
constitutivamente aprisionado ao conflito, e é melhor para ele mesmo que o
aceite e que tente superá-lo conscientemente, pois a possibilidade de nos
elevarmos para além do conflito pela afirmação de sua inexistência é enganosa.
Aqui a influência de Heráclito sobre Nietsche.
Faço uma pausa para lembrar o livro “O
visconde partido ao meio” de Ítalo Calvino. Na estória, o visconde Medardo di
Terralba é uma pessoa que na Guerra contra os mouros foi Partido em duas metades
por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o problema separando
as metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes. Mas houve uma falha
na tentativa. Um deles herdou a parte má do visconde, enquanto o outro herdou a
parte boa. Aquele que herdou a parte má se transformou em um psicopata que se
divertia em destruir tudo o que era vivo, belo ou bom. Já o que herdou a parte
boa era bom demais. Era ingênuo e esquecia de si mesmo. Sua namorada que logo
se cansou dele por considerá-lo demasiado tedioso. A estória termina quando as
duas metades se reencontram e tentam duelar entre si. Curiosamente, no duelo
eles pareciam querer aproximar-se um do outro. Feridos, eles caem outra vez nas
mãos de um cirurgião competente, que reune as partes e faz reviver o visconde
original. Esse visconde passa a ser então uma pessoa que age corretamente, na
justa medida, ciente outra vez dos extremos volitivos do bem e do mal que deve manter
sob o controle de sua consciência.
Para Heráclito o princípio não era a água,
nem o ar nem o Ápeiron, mas o fogo, o que faz todo o sentido. Segundo ele:
Este
mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre vivente fogo, com medidas
certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.
Para
ele sem o conflito o mundo se auto-destruiria. Ele não foi só o filósofo do
conflito, mas também o do movimento, da mudança. Como o fogo, tudo se encontra
em movimento. Por isso, como ele disse, nunca podemos atravessar o mesmo rio,
pois as águas serão sempre outras; um discípulo seu disse que sequer uma vez
atravessamos o mesmo rio, pois as águas que passam por nós enquanto o
atravessamos também são sempre outras.
Mas não entende Heráclito quem acredita que
ele queria reduzir tudo ao movimento, pois sob o conflito existe a ordem oculta
das coisas, imposta pela razão (o logos) e alcançável através do
pensamento. Para ele a razão secretamente domina o mundo. Heráclito era um
panteista que acreditava que Deus se encontra em todas as coisas, e esse Deus,
o Uno, era para ele a razão. A razão, disse ele, é comum a todos, mas o vulgo
não faz uso dela, nem os habitantes de sua cidade, que deveriam ser todos
enforcados, nem os grandes poetas como Homero e Hesíodo.
O
fundamento último da filosofia de Heráclito não está, portanto, no movimento
nem no conflito dos opostos, mas na ideia da unidade do todo, na ideia de que a
razão que subjaz ao conflito é capaz de unificar os opostos. Sob a perspectiva
de Deus ou razão ou uno todas as tensões são reconciliadas e as diferenças
harmonizadas. Como ele disse:
Para
o Deus todas as coisas são justas e boas, mas os homens sustentam que algumas
coisas são erradas e outras certas.
Nisso Heráclito
lembra Leibniz, para o qual o mundo era constituido de mônadas vivas, sem
janelas, mas harmonicamente associadas umas às outras pela mônada divina no
instante em que as criou. Leibniz afirmava que as mônadas não humanas, como as
que constituem essa mesa, percebem o mundo infinitamente, mas de modo
inconsciente. A mônada alma (o homem) percebe o mundo infinitamente e de modo
parcialmente consciente, mas sob um só aspecto. Já a mônada divina é capaz de
perceber o mundo infinitamente e de modo totalmente consciente e, ainda, sob
todos os aspectos. Por isso para ela não pode existir nada que seja
desnecessário ou mal ou injusto, se contrastado com a totalidade. Visto sub
specie aeternitatis tudo se encontra justificado.
Heráclito,
como Nietzsche, Wittgenstein, e ainda outros, foi um filósofo que se exprimia
por meio de aforismos. Muitos dos aforismos seus são profundos e nos dizem algo
ainda hoje. Eis alguns deles:
A harmonia invisível é mais forte do que a
visível.
O que está em cima é idêntico ao que está
embaixo.
A natureza ama ocultar-se.
Nunca encontrarás
os confins da alma, tão profundo é o seu logos.
Há também em Heráclito o que me parece uma
sugestão sobre a natureza da filosofia como um saber antecipador da ciência,
que ele apresenta na forma do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o
expõe:
A
sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem alegria, sem ornatos e sem
perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos, graças ao deus que está
nela.
Esse juízo
sobre a sibila pode se aplicar bem ao que foi feito de melhor na história da
filosofia e, certamente, ao aforismos do próprio Heráclito. Muito da filosofia
antiga metaforicamente antecipa o que será mais tarde tematizado por outros
filósofos e o conhecimento futuro da ciência – mesmo que os filósofos não possuíssem,
por certo, os conceitos para concretizar seus insights da maneira
não-metafórica, precisa e preditivamente forte daquilo que resulta da aplicação
das leis científicas. Por isso a filosofia é por vezes chamada de o guardador
de lugar da ciência ou, mais ilustrativamente, de o berçário das ciências.
Parmênides
Senão o
mais importante, ao menos o mais influente dos filósofos pré-socráticos foi Parmênides
de Eleia (florescimento: 500 a.C.), o fundador da escola eleática. Para ele o
princípio, a arché, era o que ele chamou de o ser. Ele definiu o ser
como uma coisa imóvel e imutável. A ideia central é a de que o ser, o uno, é,
enquanto o não-ser, a mudança, o vir-a-ser, é uma ilusão. É assim porque se
qualquer coisa vem a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se vem a
ser do ser então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se
qualquer coisa vem do não-ser, então ela nada é, pois nada vem do não-ser.
Mas o que é, afinal, o ser? Parmênides
apresenta o ser como possuíndo uma lista de atributos. Para ele o ser é
incorruptível, nem ele é gerado nem perecível, encontrando-se inteiro em cada
instante. Ele é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel, mas também finito e até
mesmo redondo. Em conformidade com o modo de pensar dos pré-socráticos o ser
parmenídico deve, pois, pertencer à physis. E se ele diz que o pensar e
o ser são o mesmo, ele está apontando para o pensamento concreto das mentes
humanas. O ser parmenídico parece tomar o lugar dos deuses do politeismo,
embora perdendo a qualidade de projeção antropomórfica característica dos
primeiros.
Parmênides complementa esse pensamento
ontológico, isto é, daquilo que é, que existe de mais geral, com algumas
sugestões de teoria do conhecimento, ou seja, epistemológicas, dando início a
um domínio de investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que
vem até os dias de hoje. Ele distingue entre o conhecimento e a opinião. O
conhecimento diz respeito ao ser, a opinião diz respeito à mera aparência, ao
pretenso conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é imutável,
diversamente do pretenso conhecimento do não ser, da aparência, que é o
conhecimento daquilo que aparece aos sentidos e se apresenta como mutável.
Vale a pena transcrevermos aqui o fragmento
principal do poema de Parmênides:
E
agora (disse a musa) vou falar: e tu, escuta as minhas palavras e guarda-as
bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da investigação concebíveis. O
primeiro diz que o ser é e que o não-ser não é; esse é o caminho da convicção,
pois conduz à verdade. O segundo caminho diz que o que não é, é, e que o
não-ser é necessário; essa via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes
conhecer aquilo que não é, nem expressá-lo em palavra.
Filósofos
posteriores, tanto materialistas como idealistas, foram influenciados por
Parmênides. Assim, os atomistas, que eram materialistas, acreditavam que os
átomos eram o ser, pois eles eram imutáveis e indestrutíveis. Já Platão
acreditava que o ser eram as ideias imutáveis e indestrutíveis, existentes em
um mundo puramente inteligível e independente do mundo material.
O discurso de filosófos como Heráclito e
Parmênides nos impressiona mesmo hoje, mas o que ele significa possui muito de
enigmático, tendo suscitado inúmeras interpretações.
Quero considerer aqui apenas, como exemplo,
a interpretação dos lógicos. Eles perceberam que Parmênides foi o primeiro filósofo
a ter vislumbrado o que mais tarde foi desenvolvido sob a forma de as três leis
do pensamento, que são o princípio da identidade, o princípio da não-contradição
e o princípio do meio excluido.
O
princípio da identidade nos diz que uma coisa é ela mesma. Formalmente, que o
enunciado P é o memo que P (P = P ou P -> P). Já o princípio da não
contradição nos diz que não é o caso que uma coisa é diferente dela mesma ao
mesmo tempo e sob o mesmo aspecto; formalmente: ~(P & ~P). A esses dois
princípios se pode adicionar mais um, o princípio do terceiro excluído, que nos
diz que ou uma coisa é ela mesma ou ela não é ela mesma, o que formalmente pode
ser apresentado como “P v ~P”. Esses princípios são logicamente relacionados,
pois se uma coisa é ela mesma (ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva), ou
seja, se P -> P, então ela não pode ser que ela seja e não seja ela mesma,
ou seja, ~(P & ~P). E se uma coisa é ela mesma então ela não pode não ser
ela mesma, ou seja P v ~P. Esses princípios equivalem e, para quem tem o bom
senso de acreditar na lógica clássica, essa equivalência é uma verdade lógica
(uma tautologia).
Mas Parmênides parece ter indebitamente
misturado a percepção desses princípios lógicos com ideias associadas, não
propriamente lógicas, mas de algum conteúdo empírico. A impressão resultante da
leitura de seu poema parece resultar dessa condensação de ideias aproximadas.
Há dois filósofos que nos levariam ao
entendimento que acabo de sugerir. O primeiro deles foi Wittgenstein, para quem
a filosofia, ou grande parte dela, era resultado de confusões
linguístico-conceptuais e grande parte da tarefa última do filósofo é a de
desfazer essas confusões do pensamento, disso nada resultando.
O
efeito tão sublime quanto ofuscante do poema de Parmênides seria resultado da
condensação de ideias diversas, vagamente expressas em algumas poucas linhas. Há
no ser parmenídico um resquício da religião, dado que o ser possui ainda
características de um deus, sendo eterno e indestrutível. Mas ele também possui
características lógicas, por antecipar as leis do pensamento. Afora isso, ele
nos constrange a buscar a verdade no lugar da falsidade. A falsidade, para ele,
nem sequer pode realmente ser dita sem revelar a sua natureza.
O segundo filósofo que nos poderia dizer
algo sobre a filosofia em suas origens foi Auguste Comte. Segundo Comte, a
metafísica, e com isso ele incluiria o pensamento dos filósofos pré-socráticos,
encontrava-se a meio caminho entre a religião e a ciência. Pela religião as
anomalias da natureza seriam explicadas pela intervenção dos deuses, no
politeismo, ou do Deus no monoteísmo. Cansados das explicações religiosas e
tendo uma noção do que era a ciência, os filósofos tentaram recorrer
especulativamente a princípios que não eram nem espíritos nem princípios ou
leis científicas, mas princípios metafísicos que em geral condensavam um pouco
de cada coisa. A metafísica serviria apenas para manter viva a chama da
curiosidade humana, motivando-nos à busca intelectual, o que em algum momento
posterior resultaria no aparecimento de alguma ciência particular. Só a
existência das religiões e da especulação metafísica durante muitos séculos é
que permitiu a mente humana se concentrar no esforço inquisitivo até que fossem
encontradas as condições para o surgimento de alguma ciência. Mas é típico da
ciência particular, uma vez surgida, a desistência de buscar um princípio único
determinante de toda a realidade, como tentaram os pré-socráticos. Para Comte o
poema de Parmênides seria uma especulação de certo modo sincrética, que
antecipa, entre outras coisas, a descoberta dos princípios lógicos do
pensamento realizadas mais tarde por Aristóteles, como o princípio da
não-contradição.
***
Os
filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituido as explicações
mitológicas por especulações metafísicas que buscavam as forma da ciência. Eles
tiveram a ideia de substituirem a explicação do cosmo através dos deuses pela
explicação através de princípios que eles mesmos não tinham como precisar, pois
eram puramente especulativos e vagos. Isso foi assim porque todos eles foram
influenciados pela ciências que iniciavam o seu desenvolvimento na Grecia
antiga. Havia a matemática importada do Egito e da Babilônia, como o caso da
geometria, tomada de pelos gregos de forma abstrata, sem preocupação com as
suas aplicações, e assim axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de
Euclides intitulada, Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia
também tomados dos egípcios. Sabemos, por exemplo, que um filósofo grego
chamado Erastótenes (circa 300 a.C,) conseguiu medir o diâmetro da terra com
razoável precisão, sabendo que ela era redonda. Ele mandou colocar duas estacas
ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma da outra. Uma delas fazia
uma sombra maior do que a outra, devido à circunferência da terra. Com comparação
dos triângulos formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu realizar o
cálculo, um feito extraordinário que foi esquecido nos séculos seguintes. Havia
um conhecimento de engenharia e de rudimentos de física, por exemplo, através
da lei de Alavanca de Arquimedes ou de sua medida da massa específica de
diferentes substâncias.
A filosofia dos pré-socráticos foi no século
V substituida pela filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão
e Aristóteles. Esses, junto com filósofos como Kant e Hegel, constituem o
cânone, se assim podemos chamar, da tradição filosófica, pela amplitude, coesão
lógica, unidade e força imaginativa de seus sistemas, que foram tentativas de
explicar o mundo e o lugar que o homem nele ocupa com base no conhecimento e na
cultura de suas épocas.