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sexta-feira, 11 de maio de 2012

# NOTA SOBRE A NATUREZA DO SENTIDO

Texto extraido do livro Cartografias conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea (Natal: Edufrn 2008) - C.F. Costa                                                 



                                                      A NATUREZA DO SENTIDO


Há uma acepção genérica para o que entendemos com a palavra ‘sentido’, a qual compreende todas as formas concebíveis de significação? Quero sugerir que sim, que existe uma natureza comum a tudo aquilo que chamamos de sentido ou significado, a qual inclui muito mais do que o mero significado lingüístico e que pode ser expressa por meio de uma definição. Para chegar a ela quero começar explorando a idéia mais ou menos intuitiva de que sentido tem a ver com regra; mais precisamente: com regularidade. Mas o que é uma regularidade?
     Considere o hábito dos choferes de caminhão da década de 1950, de dirigir com o cotovelo apoiado na janela(1). Ele pode ser uma regularidade estatística, mas não chega a ser nem regra nem lei natural: é, pura e simplesmente, uma regularidade. A regularidade é a tendência, em maior ou menor grau, à repetição de um fenômeno (Elias geralmente dirige com o cotovelo na janela) sempre que forem dadas certas condições (Elias é chofer de caminhão...). É por expressar uma regularidade que o hábito do caminhoneiro faz algum sentido ao invés de reduzir-se a um acidente arbitrário.
     O conceito de regularidade é mais amplo que o de regra, pois a regra é uma forma específica de regularidade. Regras são regularidades na ação humana, geralmente provenientes de convenções explícitas (como a de parar ao sinal vermelho) ou implícitas (como, geralmente, a de fazer concordar o gênero do adjetivo com o do substantivo). Fala-se ainda de regras como normas de ação (geralmente dependentes do tear social e de possíveis sanções decorrentes de sua transgressão) e até mesmo de regras como disposições inatas preparadoras da ação (como seria uma gramática universal à lá Noam Chomsky). Quando a regularidade nada tem a ver com ações humanas, o caso mais típico é o das leis naturais, universais ou estatísticas. O conceito de regularidade abrange, pois, tudo o que acabamos de considerar, tanto quanto o conceito de sentido, razão pela qual ele parece-me a chave para o entendimento do último. Eis a vaga e geral definição de sentido (significado, significação) que gostaria de propor:

                           Sentido  =  qualquer regularidade ou combinação de regularidades.

     Para exemplificar a intuição subjacente, considere as duas seguintes combinações de traços:

                                                       ---  o                     >--->  o

     Há algum sentido em alguma dessas combinações? Creio que todos concordarão que a da direita parece fazer algum sentido, certamente mais do que a da esquerda. Afinal, a seta dirige os nossos olhos para o círculo, parecendo apontar para ele. A seta exprime uma regra com a qual estamos acostumados, a de apontar numa direção, sendo tal regra aquilo que lhe confere certo sentido (a própria palavra ‘sentido’ também significa direção). Onde há regra há regularidade, e como onde há regularidade há sentido, onde há regra há sentido.
     Essa idéia pode ser aplicada a vários domínios, como o da natureza e o da sociedade. Quanto à natureza, dizemos que os fenômenos fazem sentido ao associarmos a eles certas leis, ou seja, a ocorrência geralmente combinada de regularidades naturais. Considere casos gerais como o fenômeno das marés, ou o caso singular de um eclipse solar. Como observou Wittgenstein, “o significado é aquilo que a explicação do significado explica”(2). Para a ciência, as marés são explicadas basicamente pela aplicação da lei da gravitação, que é uma regularidade universal. Do lado da terra que se encontra mais próximo à lua ocorre uma maré alta, provocada pela predominância da atração gravitacional da lua sobre as massas d´água, enquanto do lado oposto da terra o afastamento do seu centro gravitacional produzido pela atração da lua também produz uma maré alta. Considerando que a terra gira a cada vinte e quatro horas, uma maré alta é produzida no mesmo local a cada doze horas, resultando em uma complexa regularidade cíclica baseada nas leis físicas associadas às circunstâncias. Quanto ao caso singular de um eclipse solar, ele é o resultado de uma combinação das leis da gravitação e da ótica aplicadas a circunstâncias particulares. Temos, pois, regularidades e combinações de regularidades na explicação do significado dos fenômenos físicos.
     Quanto ao domínio do social, as ações humanas podem ter esse ou aquele significado quando lhes associamos regras convencionais que elas estão seguindo, ou seja, pela ocorrência, combinada ou não, de regularidades aplicadas às circunstâncias dadas. Assim, o sentido de um aperto de mão em uma visita consiste no fato de que os movimentos seguem uma convenção social. Para um caso mais complexo, considere – na peça de Shakespeare intitulada O Mercador de Veneza – o ato de Porcia de disfarçada de homem pedir ao seu noivo, Bassanio, o valioso anel que ela mesma lhe houvera presenteado, em retribuição por ter salvado a vida de um amigo. Este é um sofisticado teste para as virtudes de Bassanio, pondo em conflito a promessa que ele tinha feito a Portia de jamais se desfazer do anel com o sentimento de que seu dever maior é o de retribuir de forma condizente um imenso favor. Por isso, Bassanio rompe a promessa e lhe dá o anel, um ato cuja humanidade é compreendida e desculpada por Porcia. O que torna esse ato significativo é o fato de ele ser o produto resolutivo de um conflito entre normas de conduta e o ideal da virtude.
     A idéia também é plausível em um outro domínio da significação, que é o dos atos intencionais. Se alguém tem a intenção de tomar um avião para Recife, por exemplo, essa intenção contém um plano de ação mais ou menos determinado, que inclui o estabelecimento dos horários, a compra da passagem, chegar ao aeroporto a tempo, enfrentar o check-in... Mas todo esse cálculo intencional envolve o conhecimento de normas, prescrições, regularidades mais ou menos confiáveis, que são combinadas de acordo com as circunstâncias conhecidas de modo a dar a essa intenção particular o seu sentido próprio.
     Além dos sentidos dos fenômenos naturais, das ações humanas e das intenções, há também o sentido ou significado lingüístico, que tem sido privilegiado pelos filósofos. Uma linguagem natural é um sistema de regras. O ilimitado número de novos significados gerados por novos proferimentos deve resultar de combinações de regras simples (que geralmente são convenções implícitas que a comunidade lingüística faz herdar) feitas com base em circunstâncias simbólico-contextuais dadas.
     Para que seja possível um estudo sistemático das formas de regra que constituem o significado em nossa linguagem é conveniente recorrer à lógica predicativa, que propõe reduzir as formas enunciativas verofuncionais ao enunciado predicativo (ou relacional) singular. A pergunta sobre o significado lingüístico torna-se então: quais as formas das regras constitutivas dos sentidos descritivos dos enunciados predicativos singulares? Considere um enunciado predicativo singular como “Sócrates é calvo”, cuja forma lógica pode ser expressa por Fa. Isso nos permite dividir a questão em três:

(1) a questão do significado do nome a, que é constituído pela sua regra de identificação;
(2) a questão do significado do termo predicativo F, que é constituído por sua regra de aplicação;
(3) a questão do significado cognitivo do conjunto Fa, ou seja, da própria sentença predicativa singular, que é constituído por sua regra verificacional, que por sua vez depende de uma combinação das outras duas.

     É na explicação do sentido cognitivo dos enunciados predicativos que a idéia de sentido como combinação de regularidades – que no caso são regras semânticas – se apresenta com mais força. Ernst Tugendhat identificou essas regras usando expressões semelhantes às que estou usando aqui. Mas parece-me que ele teria ousado e acertado mais se tivesse identificado mais decididamente cada uma dessas regras com o sentido cognitivo da expressão correspondente(3).
     A conclusão que parece se impor é a de que, definindo-se o sentido em termos de regularidade, podem ser estabelecidos três níveis. Primeiro temos fenômenos naturais e ações humanas, que têm sentido em um nível primário. Depois temos intenções, que refletindo representacionalmente as primeiras regularidades, têm sentido em um nível secundário, através do qual o sentido se torna compreensível para o homem. Finalmente temos a linguagem, que refletindo regularidades tornadas compreensíveis através de nossa interpretação intencional dos signos, reproduz o sentido em um terceiro nível, tornando-o comunicável com auxílio de uma pragmática, ela própria constituídas por regras, logo, por sentidos. Cada nível de reprodução do sentido depende, para a sua existência, de que o nível inferior já tenha sido em alguma medida satisfeito.
     A conseqüência dessa conclusão dá o que pensar: ela vira de cabeça para baixo o pressuposto, comum em filosofia da linguagem, de que o significado é primariamente e propriamente lingüístico. Ações humanas e os fenômenos naturais fazem sentido por si mesmos, na independência de sua representação lingüística. Mais do que isso: o sentido é originariamente extra-lingüístico.


Notas
1 Retiro esse exemplo de R. M. Martin: The Meaning of Language (MIT Press: Cambridge Mass. 1987), cap. 7.
2 Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações Filosóficas), seção 560.
4 Ernst Tugendhat: Logische-Semantik Propedeutik (Reclam: Stuttgart 1986), cap. 13. Trad. bras. Propedêutica lógico-semântica (Vozes: Petrópolis 1997).

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