Rascunho final do livro desenvolvendo uma teoria sobre a natureza da filosofia, publicado pela Edufrn 2005. Gráficos etc. não puderam ser postados. Este livro é uma tradução de C.F. Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (Langham 2002).
A
INDAGAÇÃO
FILOSÓFICA
POR UMA TEORIA GLOBAL
________________________
CLAUDIO F. COSTA
EDUFRN
Natal, 2005
*
Heráclito
Nun scheint mir, gibt es ausser der Arbeit des
Kunstlers noch eine andere, die Welt sub
specie aeterni einzufangen. Es ist – glaube ich,
der Weg des Gedankens, der gleichsam über
die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie ist
– sie von oben von Fluge betrachtend.**
Wittgenstein
Science is what we know; philosophy is what
we don’t know. (…) Science is what we can
prove to be true; philosophy is what we can’t
prove to be false.
Bertrand Russell
Kunstlers noch eine andere, die Welt sub
specie aeterni einzufangen. Es ist – glaube ich,
der Weg des Gedankens, der gleichsam über
die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie ist
– sie von oben von Fluge betrachtend.**
Wittgenstein
Science is what we know; philosophy is what
we don’t know. (…) Science is what we can
prove to be true; philosophy is what we can’t
prove to be false.
Bertrand Russell
_____________
* A sibila com boca raivosa proferindo palavras sem riso, sem adorno e sem incenso, alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita.
** Assim parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu vôo.
*** Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.
** Assim parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu vôo.
*** Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.
SUMÁRIO
PREFÁCIO, p. 6
I. INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA, p. 8
1. Observações Metodológicas
1. Observações Metodológicas
II. FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL: UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA, p. 15
1. Os atalhos da crítica da linguagem
2. Filosofia como análise da linguagem
3. A falácia objetual na filosofia analítica
4. Observações conclusórias: paralelo com o Organon aristotélico
1. Os atalhos da crítica da linguagem
2. Filosofia como análise da linguagem
3. A falácia objetual na filosofia analítica
4. Observações conclusórias: paralelo com o Organon aristotélico
III. FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA, 45
1. O caráter inevitavelmente conjectural da indagação filosófica
2. A idéia da filosofia como protociência
3. Origens e divisões da ciência
4. Alguns exemplos de insights filosóficos protocientíficos
5. Fissão
6. O núcleo resistente de problemas filosóficos residuais: duas hipóteses
7. Nossa idéia geral da ciência
8. Por uma concepção não-restritiva de ciência
9. Por que conceber a filosofia como um empreendimento protocientífico?
10. Conseqüências da concepção proposta
1. O caráter inevitavelmente conjectural da indagação filosófica
2. A idéia da filosofia como protociência
3. Origens e divisões da ciência
4. Alguns exemplos de insights filosóficos protocientíficos
5. Fissão
6. O núcleo resistente de problemas filosóficos residuais: duas hipóteses
7. Nossa idéia geral da ciência
8. Por uma concepção não-restritiva de ciência
9. Por que conceber a filosofia como um empreendimento protocientífico?
10. Conseqüências da concepção proposta
IV. RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA, p. 87
1. Filosofia e religião: a abordagem genética
2. A lei comtiana dos três estágios
3. Uma breve avaliação da lei de Comte
4. Filosofia como uma indagação transitória entre religião e ciência
5. Conclusões
1. Filosofia e religião: a abordagem genética
2. A lei comtiana dos três estágios
3. Uma breve avaliação da lei de Comte
4. Filosofia como uma indagação transitória entre religião e ciência
5. Conclusões
V. A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE, p. 117
1. O sabor artístico de alguns escritos filosóficos: similaridades externas
2. Similaridades internas entre filosofia e arte
1. O sabor artístico de alguns escritos filosóficos: similaridades externas
2. Similaridades internas entre filosofia e arte
VI. PARA UMA EXPLICAÇÃO GLOBAL: INTEGRANDO AS
CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS, p. 126
1. Filosofia como uma atividade cultural derivada
2. Uma explicação integradora da atividade filosófica
CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS, p. 126
1. Filosofia como uma atividade cultural derivada
2. Uma explicação integradora da atividade filosófica
VII. COROLÁRIOS E PROSPECTOS, p. 137
1. Formas da Filosofia
2. Três fases históricas na evolução da filosofia
3. A filosofia lingüístico-analítica nas rodas da história
4. O futuro da filosofia
1. Formas da Filosofia
2. Três fases históricas na evolução da filosofia
3. A filosofia lingüístico-analítica nas rodas da história
4. O futuro da filosofia
NOTAS
BIBLIOGRAFIA
PREFÁCIO
O presente texto é uma versão em português algo ampliada do livro The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA: Langham, 2002), que escrevi enquanto pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley, em 1999.
Meu objetivo nesse livro é esboçar uma teoria global da natureza da filosofia, mais sistemática e complexa e talvez mais concludente do que eventuais concorrentes. Essa teoria é global no sentido de envolver qualquer espécie de indagação filosófica, o que só se torna possível por ela ter sido desenvolvida a partir de uma ampla perspectiva histórico-cultural. Essa perspectiva mais ampla nasce de uma investigação das conexões da filosofia com as atividades culturais mais fundamentais, que são a ciência, a religião e a arte. Em sua relação com as últimas a filosofia é identificada com uma atividade cultural derivada, cuja identidade resulta dela ser uma espécie de amálgama de elementos provenientes do pensamento científico, da religião e da arte.
Semelhanças e diferenças são investigadas. Em sua proximidade com a arte a filosofia pode ser concebida à maneira de uma “arte da razão”, unificando e integrando elementos conceituais com uma liberdade e flexibilidade próximas daquela com a qual a arte unifica e integra os elementos sensíveis (uma semelhança que vemos confirmada pela idéia freudiana de processo primário de pensamento, posto que tanto a filosofia quanto a arte seriam produto do processo primário, definido como aquele cujas cargas afetivas são móveis, por não se associarem rigidamente a representações correspondentes). Em sua proximidade com a religião, a filosofia tende à maior amplitude em suas sínteses, as quais inevitavelmente possuem elementos especulativos e não-cognitivos, que necessariamente vão além daquilo que pode ser consensualmente obtido como resultado concreto da investigação.
Por fim, em sua proximidade com a ciência, a filosofia é um esforço cognitivo direcionado à aproximação da verdade e a resultados efetivos, mesmo que nunca chegue a alcançá-los. As relações entre filosofia, arte e religião são dinâmicas, alterando-se no curso da história: pode ser notado que com o gradual, mas constante, desenvolvimento da ciência, a filosofia tende a afastar-se da religião e da arte para aproximar-se aos poucos da ciência.
Essa característica dinâmica da relação entre filosofia e ciência nos leva a supor que a primeira possa ser pensada como um esforço conjectural ou especulativo antecipador da ciência – como uma protociência. Tal suposição – que é central ao texto – foi muitas vezes considerada como limitadora e empobrecedora de nossa compreensão da atividade filosófica. Essa objeção certamente procede quando se tem em vista uma concepção positivista ou reducionista da investigação científica. Contudo, o conceito de ciência por mim adotado é muito mais liberal e flexível, sendo a idéia básica de há muito conhecida por filósofos que investigam o modo de funcionamento da comunidade científica, como é o caso de John Ziman, que definiu a ciência em termos de conhecimento público consensualizável. Seguindo as mesmas linhas de Ziman, defendo que a concepção mais intuitiva e plausível da natureza da ciência é a de que esta é toda e qualquer investigação que tem por fim a verdade, conquanto esta seja gerada por uma comunidade crítica de idéias (capaz de satisfazer exigências de objetividade, racionalidade, liberdade etc.), de tal modo que esta última seja capaz de obter um acordo consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade de seus resultados. Frente a uma concepção tão liberal de ciência, a filosofia evidencia-se naturalmente como o seu pendant protocientífico. Pois ela se torna simplesmente aquela indagação objetivadora da verdade, que embora gerada em uma comunidade crítica de idéias, ainda não se tornou remotamente capaz de alcançar um acordo consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade dos seus resultados.
Uma conseqüência importante de aceitarmos uma concepção de filosofia como conjectura antecipadora da ciência é relativizar – e não simplesmente refutar – a idéia de que a filosofia consiste em uma atividade de análise conceitual. O que chamamos de filosofia analítica – a filosofia como análise conceitual – passa a ser apenas a filosofia como antecipação de uma ciência da linguagem (Austin), ou então, como resultado de progressos semióticos típicos do século XX (que incluem o uso da lógica dos predicados e a análise dos usos ordinários das expressões), simplesmente a filosofia marcada pela ênfase propedêutica no elemento lingüístico-conceitual, no acento semântico (Quine), capaz de prevenir confusões lingüístico-conceituais e adicionalmente capaz de tomar em sua devida consideração a nossa presente imagem científica do mundo.
Gostaria de expressar meus agradecimentos ao professor John R. Searle, por ter me aceito em Berkeley, e à CAPES, pela concessão da bolsa de pós-doutorado sem a qual o presente livro não poderia ter sido escrito.
Natal, 2005
I
INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA
Entre os muitos problemas filosóficos, o problema da natureza da filosofia não é certamente o mais importante ou excitante. Não obstante, ele é um dos mais desconfortáveis para o filósofo. Pois como pode alguém pretender fazer filosofia, ou fazê-la corretamente, se não é sequer capaz de nos dizer o que está tentando fazer? Esse livro é um esforço no sentido de fornecer uma explicação geral da natureza da indagação filosófica, não sob uma perspectiva particular, mas com base em um exame abrangente da filosofia em seu desenvolvimento histórico e em suas conexões com outras atividades culturais.
Uma objeção feita freqüentemente à tentativa de prover uma explicação unificada da natureza da filosofia é a de que se trata de uma matéria tão multifacetada e mutável, que qualquer esforço para capturá-la em um apropriado arcabouço teórico estará destinado ao fracasso. Não se pode classificar núvens por suas formas, como uma vez notou Wittgenstein. No entanto, não seria possível investigar a filosofia teoreticamente, se acaso fossemos capazes de determiná-la com base em critérios originados de uma perspectiva suficientemente genérica e flexível? Afinal, de um modo geral, ao menos, há muito que a meteorologia classificou os tipos de núvens, ao menos, por suas formas. Nos próximos capítulos mostrarei que uma aproximação teorética geral da natureza da filosofia é possível. Neles, uma sucessão de argumentos será reunida de modo a criar um arcabouço teórico suficientemente abrangente e poderoso para nos prover dos meios capazes de identificar e mapear o território filosófico. Antes de começarmos, porém, algumas considerações metodológicas precisam ser feitas.
Uma objeção feita freqüentemente à tentativa de prover uma explicação unificada da natureza da filosofia é a de que se trata de uma matéria tão multifacetada e mutável, que qualquer esforço para capturá-la em um apropriado arcabouço teórico estará destinado ao fracasso. Não se pode classificar núvens por suas formas, como uma vez notou Wittgenstein. No entanto, não seria possível investigar a filosofia teoreticamente, se acaso fossemos capazes de determiná-la com base em critérios originados de uma perspectiva suficientemente genérica e flexível? Afinal, de um modo geral, ao menos, há muito que a meteorologia classificou os tipos de núvens, ao menos, por suas formas. Nos próximos capítulos mostrarei que uma aproximação teorética geral da natureza da filosofia é possível. Neles, uma sucessão de argumentos será reunida de modo a criar um arcabouço teórico suficientemente abrangente e poderoso para nos prover dos meios capazes de identificar e mapear o território filosófico. Antes de começarmos, porém, algumas considerações metodológicas precisam ser feitas.
1. OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS
Há dois pontos metodológicos a serem considerados. O primeiro diz respeito à distinção entre duas diferentes abordagens da natureza da filosofia: a prescritivista e a descritivista.
A abordagem prescritivista ambiciona dizer o que a filosofia deveria ser; ela é uma proposta para o que deveria ser chamado por esse nome. A definição sugerida por Carnap, segundo a qual a filosofia é uma investigação da sintaxe lógica da linguagem científica(1), a concepção de Heidegger da filosofia como a ciência da seridade do Ser (do Ser em si)(2), a concepção wittgensteiniana da filosofia como uma terapia contra o enfeitiçamento de nosso entendimento pelos meios da linguagem(3)... tudo isso foram prescrições, propostas concernentes àquilo que esses filósofos acreditavam que a filosofia deveria ser. Uma abordagem prescritivista não pode ser dita verdadeira ou falsa simplesmente ao ser comparada com a praxis histórica real da filosofia, pois não é uma abordagem feita com a intenção de representar essa praxis. Com relação a essa praxis, a abordagem prescritivista somente pode ser bemsucedida, se adotada, ou malsucedida, se não adotada. E de fato, algumas abordagens prescritivistas foram bemsucedidas nesse aspecto. A virada epistemológica inadvertidamente imprimida à filosofia moderna por Descartes foi uma prescrição bemsucedida, pelo menos por algum tempo. E o mesmo pode ser dito sobre a virada lingüística que Frege, Russell e Wittgenstein imprimiram à filosofia do século vinte. Dizendo o que a filosofia deveria ser, a abordagem prescritivista permanece desinteressada da prática passada da filosofia. Para dizer figurativamente, ela “olha para o futuro”.
A abordagem descritivista, por sua vez, não pretende dizer o que a filosofia deveria ser, mas o que a filosofia de fato tem sido. Ela “olha para o passado”, tentando tornar explícitas as condições criteriais que a comunidade filosófica implicitamente admitiu para a identificação da filosofia, em seu sentido técnico ou acadêmico, durante toda a história dessa disciplina, ou ao menos com relação a alguns de seus segmentos históricos ou regionais. Abordagens descritivistas constituem o tipo de explicação mais provavelmente encontrado em dicionários de filosofia e em livros-texto do que nas doutrinas dos filósofos, pois os últimos costumam estar mais comprometidos com o avanço de suas próprias perspectivas pessoais, freqüentemente revisionárias. Entretanto, quando C. D. Broad definiu a filosofia como a busca de uma concepção geral do mundo e do lugar do homem nele(4), quando G. E. Moore sugeriu que a filosofia, entre outras coisas, é uma tentativa de fornecer uma descrição geral das mais amplas classes de coisas do universo e do modo como elas estão relacionadas umas com as outras(5), quando Ernst Tugendhat escreveu que a filosofia é a elucidação da rede formada pelos conceitos constitutivos de nosso entendimento como um todo(6), o que esses filósofos estavam tentando fazer era satisfazer um paradigma descritivista, na medida em que tentavam cobrir tanto quanto possível a extensão do que sempre foi chamado de filosofia.
O tempo parece trabalhar a favor das abordagens descritivistas, pois é possível que com o passar do tempo o espaço para as abordagens prescritivistas se torne sempre menor, enquanto o espaço para as abordagens descritivistas certamente se torna maior. Se um dia a filosofia chegar a um fim, não restará mais espaço para propostas. Hoje, quando alguns sugerem o declínio ou mesmo do fim da filosofia, a abordagem descritivista parece se tornar mais a mais interessante. Dessa espécie será, com efeito, a abordagem metafilosófica adotada nesse livro.
É importante tornar claro em que sentido falarei de ‘filosofia’ sob a perspectiva descritivista. Não é no sentido vernacular da soma das crenças não examinadas geralmente mantidas pelas pessoas de maneira a dirigir as suas vidas, e também não é em nenhum sentido popular, como quando se fala da filosofia como sabedoria condutora da existência humana. A investigação ficará aqui restrita ao sentido próprio, técnico, culto, acadêmico ou erudito da palavra, o sentido no qual a tradição filosófica ocidental tem usado para referir-se a si mesma e que se encontra paradigmaticamente exemplificado nas obras dos mais proeminentes filósofos dessa tradição. Ao tornar esse sentido erudito explícito, espero poder fazê-lo com os critérios pelos quais usamos a palavra “filosofia” referencialmente, de maneira a identificar o que lhe pertence e o que não. Mais do que isso, quero realizar um esforço de fundamentação, justificando a existência de tais critérios de identificação ao evidenciar que eles podem ser derivados da “localização epistêmica” da filosofia no território da cultura, ou seja, de sua relação com três atividades culturais fundamentais, que são a ciência, a religião e a arte.
Mas o que nos intitula a esperar que seja possível oferecer uma explicação unificada da natureza da filosofia? A tarefa parece prima facie plausível porque não apenas temos (talvez enganosamente) o sentimento de que o termo “filosofia” possui algum tipo de sentido erudito ou acadêmico unificado, mas também porque pessoas adequadamente treinadas são capazes de distinguir com alguma segurança o que conta ou não como filosofia nesse sentido. Disso parece seguir-se que, por meio de um exame suficientemente cuidadoso das aplicações do termo, nós seríamos em princípio capazes de tornar explícitas as condições que têm guiado nossas decisões de usá-lo ou não, explicando-as e organizando-as na forma de uma caracterização ou teoria metafilosófica global. Embora não deixe de ser possível que o termo “filosofia” não tenha qualquer sentido técnico unívoco, adotarei a tese de que tal sentido exista como uma hipótese de trabalho para ser avaliada através de seus resultados.
Também poderia ser objetado o seguinte. Somos admitidamente inconscientes dos critérios que aplicamos para identificar os designata de termos gerais centrais de nossa linguagem natural, como “conhecimento”, “verdade”, “bem”. Eles estariam exprimindo categorias atemporais do pensamento, incrustradas em nossa compreensão do mundo desde tempos imemoriais. Mas o termo “filosofia” não pertence a essa classe, sendo de surgimento muito mais recente, não havendo associada a ele uma gramática criterial implícita a ser resgatada. Que essa objeção é insuficiente pode ser mostrado quando consideramos que também somos inconscientes dos critérios de aplicação de termos técnicos ainda mais recentes, como “teoria”, “explicação”, e “observação”, tal como são usados nas ciências. Se perguntamos ao cientista filosoficamente não-informado o que significa “explicação científica”, ele terá grande dificuldade de dar uma resposta articulada, sendo forçado a apelar para exemplos. É tarefa do filósofo da ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos. Ora, por que não poderia essa idéia aplicar-se também à filosofia em si mesma? De fato, o conceito de filosofia foi introduzido em nossa cultura acadêmica há longo tempo, sofrendo subseqüentemente um desenvolvimento próprio, um desenvolvimento aparentemente sustentado pela natureza própria da atividade filosófica e do que lhe pode ser dado como objeto de investigação. Se pudéssemos tornar explícitos os critérios para a identificação do que chamamos de filosofia de uma maneira que também esclareça por que precisa ser assim, provendo um rationale para o uso da palavra, uma teoria da natureza da filosofia, nós chegaríamos a uma análise filosoficamente interessante desse conceito. Através dessa análise, nós não só estaríamos entendendo melhor o que o filósofo está tentando fazer, mas também prevenindo a prática enganosa de filosofia.
O segundo ponto que desejo endereçar diz respeito a dois perigos opostos com os quais nos defrontamos em questionamentos metafilosóficos. O primeiro pode ser chamado de pobreza. A definição de filosofia como uma explicação do mundo como um todo e do lugar que o homem nele ocupa, embora muito inclusiva, é por certo excessivamente vaga e pouco informativa. Além do mais, se nós a considerarmos mais de perto, veremos que ela não é bem sucedida em nos prover sequer de uma condição necessária, posto que há muitas filosofias que não chegam a fazer isso, e menos ainda de uma condição suficiente, posto que a religião também é capaz de fazer o mesmo. A pobreza limita a maioria das explicações descritivistas. Buscando escapar dessa vacuidade, freqüentemente chegamos a obter sucesso em dizer algo mais definido à custa da generalidade. Esse segundo tipo de inadequação pode ser chamado de redutivismo, sendo uma limitação quase inevitável à abordagem prescritivista. A notória definição carnapiana de filosofia como a investigação da sintaxe lógica da linguagem é um exemplo de redutivismo, pagando pela vantagem da precisão, um exorbitante preço em exclusão.
A teoria global descritivista da natureza da filosofia a ser desenvolvida neste livro busca preservar a extensão do objeto de investigação sem cair nas limitações de uma caracterização insuficientemente informativa. Quero mostrar que isso é possível na medida em que a abordagem descritivista for capaz de integrar o que parece ser descritivamente verdadeiro em certas bem conhecidas concepções da natureza da filosofia, que resultam da investigação de suas relações próximas com a ciência, a religião e a arte, bem como com o próprio meio lingüístico através do qual ela opera.
A abordagem prescritivista ambiciona dizer o que a filosofia deveria ser; ela é uma proposta para o que deveria ser chamado por esse nome. A definição sugerida por Carnap, segundo a qual a filosofia é uma investigação da sintaxe lógica da linguagem científica(1), a concepção de Heidegger da filosofia como a ciência da seridade do Ser (do Ser em si)(2), a concepção wittgensteiniana da filosofia como uma terapia contra o enfeitiçamento de nosso entendimento pelos meios da linguagem(3)... tudo isso foram prescrições, propostas concernentes àquilo que esses filósofos acreditavam que a filosofia deveria ser. Uma abordagem prescritivista não pode ser dita verdadeira ou falsa simplesmente ao ser comparada com a praxis histórica real da filosofia, pois não é uma abordagem feita com a intenção de representar essa praxis. Com relação a essa praxis, a abordagem prescritivista somente pode ser bemsucedida, se adotada, ou malsucedida, se não adotada. E de fato, algumas abordagens prescritivistas foram bemsucedidas nesse aspecto. A virada epistemológica inadvertidamente imprimida à filosofia moderna por Descartes foi uma prescrição bemsucedida, pelo menos por algum tempo. E o mesmo pode ser dito sobre a virada lingüística que Frege, Russell e Wittgenstein imprimiram à filosofia do século vinte. Dizendo o que a filosofia deveria ser, a abordagem prescritivista permanece desinteressada da prática passada da filosofia. Para dizer figurativamente, ela “olha para o futuro”.
A abordagem descritivista, por sua vez, não pretende dizer o que a filosofia deveria ser, mas o que a filosofia de fato tem sido. Ela “olha para o passado”, tentando tornar explícitas as condições criteriais que a comunidade filosófica implicitamente admitiu para a identificação da filosofia, em seu sentido técnico ou acadêmico, durante toda a história dessa disciplina, ou ao menos com relação a alguns de seus segmentos históricos ou regionais. Abordagens descritivistas constituem o tipo de explicação mais provavelmente encontrado em dicionários de filosofia e em livros-texto do que nas doutrinas dos filósofos, pois os últimos costumam estar mais comprometidos com o avanço de suas próprias perspectivas pessoais, freqüentemente revisionárias. Entretanto, quando C. D. Broad definiu a filosofia como a busca de uma concepção geral do mundo e do lugar do homem nele(4), quando G. E. Moore sugeriu que a filosofia, entre outras coisas, é uma tentativa de fornecer uma descrição geral das mais amplas classes de coisas do universo e do modo como elas estão relacionadas umas com as outras(5), quando Ernst Tugendhat escreveu que a filosofia é a elucidação da rede formada pelos conceitos constitutivos de nosso entendimento como um todo(6), o que esses filósofos estavam tentando fazer era satisfazer um paradigma descritivista, na medida em que tentavam cobrir tanto quanto possível a extensão do que sempre foi chamado de filosofia.
O tempo parece trabalhar a favor das abordagens descritivistas, pois é possível que com o passar do tempo o espaço para as abordagens prescritivistas se torne sempre menor, enquanto o espaço para as abordagens descritivistas certamente se torna maior. Se um dia a filosofia chegar a um fim, não restará mais espaço para propostas. Hoje, quando alguns sugerem o declínio ou mesmo do fim da filosofia, a abordagem descritivista parece se tornar mais a mais interessante. Dessa espécie será, com efeito, a abordagem metafilosófica adotada nesse livro.
É importante tornar claro em que sentido falarei de ‘filosofia’ sob a perspectiva descritivista. Não é no sentido vernacular da soma das crenças não examinadas geralmente mantidas pelas pessoas de maneira a dirigir as suas vidas, e também não é em nenhum sentido popular, como quando se fala da filosofia como sabedoria condutora da existência humana. A investigação ficará aqui restrita ao sentido próprio, técnico, culto, acadêmico ou erudito da palavra, o sentido no qual a tradição filosófica ocidental tem usado para referir-se a si mesma e que se encontra paradigmaticamente exemplificado nas obras dos mais proeminentes filósofos dessa tradição. Ao tornar esse sentido erudito explícito, espero poder fazê-lo com os critérios pelos quais usamos a palavra “filosofia” referencialmente, de maneira a identificar o que lhe pertence e o que não. Mais do que isso, quero realizar um esforço de fundamentação, justificando a existência de tais critérios de identificação ao evidenciar que eles podem ser derivados da “localização epistêmica” da filosofia no território da cultura, ou seja, de sua relação com três atividades culturais fundamentais, que são a ciência, a religião e a arte.
Mas o que nos intitula a esperar que seja possível oferecer uma explicação unificada da natureza da filosofia? A tarefa parece prima facie plausível porque não apenas temos (talvez enganosamente) o sentimento de que o termo “filosofia” possui algum tipo de sentido erudito ou acadêmico unificado, mas também porque pessoas adequadamente treinadas são capazes de distinguir com alguma segurança o que conta ou não como filosofia nesse sentido. Disso parece seguir-se que, por meio de um exame suficientemente cuidadoso das aplicações do termo, nós seríamos em princípio capazes de tornar explícitas as condições que têm guiado nossas decisões de usá-lo ou não, explicando-as e organizando-as na forma de uma caracterização ou teoria metafilosófica global. Embora não deixe de ser possível que o termo “filosofia” não tenha qualquer sentido técnico unívoco, adotarei a tese de que tal sentido exista como uma hipótese de trabalho para ser avaliada através de seus resultados.
Também poderia ser objetado o seguinte. Somos admitidamente inconscientes dos critérios que aplicamos para identificar os designata de termos gerais centrais de nossa linguagem natural, como “conhecimento”, “verdade”, “bem”. Eles estariam exprimindo categorias atemporais do pensamento, incrustradas em nossa compreensão do mundo desde tempos imemoriais. Mas o termo “filosofia” não pertence a essa classe, sendo de surgimento muito mais recente, não havendo associada a ele uma gramática criterial implícita a ser resgatada. Que essa objeção é insuficiente pode ser mostrado quando consideramos que também somos inconscientes dos critérios de aplicação de termos técnicos ainda mais recentes, como “teoria”, “explicação”, e “observação”, tal como são usados nas ciências. Se perguntamos ao cientista filosoficamente não-informado o que significa “explicação científica”, ele terá grande dificuldade de dar uma resposta articulada, sendo forçado a apelar para exemplos. É tarefa do filósofo da ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos. Ora, por que não poderia essa idéia aplicar-se também à filosofia em si mesma? De fato, o conceito de filosofia foi introduzido em nossa cultura acadêmica há longo tempo, sofrendo subseqüentemente um desenvolvimento próprio, um desenvolvimento aparentemente sustentado pela natureza própria da atividade filosófica e do que lhe pode ser dado como objeto de investigação. Se pudéssemos tornar explícitos os critérios para a identificação do que chamamos de filosofia de uma maneira que também esclareça por que precisa ser assim, provendo um rationale para o uso da palavra, uma teoria da natureza da filosofia, nós chegaríamos a uma análise filosoficamente interessante desse conceito. Através dessa análise, nós não só estaríamos entendendo melhor o que o filósofo está tentando fazer, mas também prevenindo a prática enganosa de filosofia.
O segundo ponto que desejo endereçar diz respeito a dois perigos opostos com os quais nos defrontamos em questionamentos metafilosóficos. O primeiro pode ser chamado de pobreza. A definição de filosofia como uma explicação do mundo como um todo e do lugar que o homem nele ocupa, embora muito inclusiva, é por certo excessivamente vaga e pouco informativa. Além do mais, se nós a considerarmos mais de perto, veremos que ela não é bem sucedida em nos prover sequer de uma condição necessária, posto que há muitas filosofias que não chegam a fazer isso, e menos ainda de uma condição suficiente, posto que a religião também é capaz de fazer o mesmo. A pobreza limita a maioria das explicações descritivistas. Buscando escapar dessa vacuidade, freqüentemente chegamos a obter sucesso em dizer algo mais definido à custa da generalidade. Esse segundo tipo de inadequação pode ser chamado de redutivismo, sendo uma limitação quase inevitável à abordagem prescritivista. A notória definição carnapiana de filosofia como a investigação da sintaxe lógica da linguagem é um exemplo de redutivismo, pagando pela vantagem da precisão, um exorbitante preço em exclusão.
A teoria global descritivista da natureza da filosofia a ser desenvolvida neste livro busca preservar a extensão do objeto de investigação sem cair nas limitações de uma caracterização insuficientemente informativa. Quero mostrar que isso é possível na medida em que a abordagem descritivista for capaz de integrar o que parece ser descritivamente verdadeiro em certas bem conhecidas concepções da natureza da filosofia, que resultam da investigação de suas relações próximas com a ciência, a religião e a arte, bem como com o próprio meio lingüístico através do qual ela opera.
II
FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL:
UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA
UM CASO DE DEFINIÇÃO REDUTORA
Tão logo finalidades científicas colocam grandes exigências na fineza das distinções, o olho nu
torna-se insuficiente. O microscópio, contudo, é para tais finalidades perfeitamente adequado,
embora por isso mesmo para todas as outras inútil.
Gottlob Frege
Nosso objetivo é trazer as palavras de volta de suas férias metafísicas para a linguagem ordinária.
Wittgenstein
Wittgenstein
Uma núvem de filosofia se condensa em uma gota de gramática.
Wittgenstein
Wittgenstein
Quando, como metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre a história da filosofia, há algumas explicações de sua natureza que somos tentados a rejeitar sem maiores considerações. Esse é o caso de qualquer explicação baseada no objeto próprio ou no método próprio da filosofia. Pois há uma variedade quase tão grande de objetos e métodos quanto de filosofias ou, pelo menos, de movimentos filosóficos. Além disso, as muitas áreas da filosofia teórica e prática parecem ter uma correspondente variedade de objetos específicos, variando também a metodologia para corresponder ao objeto. Somente o metafilósofo prescritivista pode ainda ter a esperança (ou fantasia) de divisar o objeto de investigação próprio da filosofia. Já o descritivista tenderá a ver tais formas de explicação como inerentemente redutivas, estreitando desnecessariamente as fronteiras da filosofia.
Como a minha intenção é construtiva mais do que crítica, irei examinar somente uma concepção da natureza da filosofia que a identifica com um método próprio e, freqüentemente, com um objeto de investigação próprio. Trata-se de uma concepção subjacente a desenvolvimentos extremamente importantes da filosofia do século XX, ou seja, da concepção extremamente influente e ainda amplamente aceita de que o método próprio da filosofia é o de análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia é o que pode ser chamado de a estrutura lógico-gramatical de nossos conceitos mais centrais. Essa concepção foi sustentada por filósofos como Ludwig Wittgenstein, Friedrich Waismann, A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michal Dummett, Ernst Tugendhat, R. E. Brandom e muitos outros.
A concepção da filosofia como análise conceitual foi seriamente desafiada pela assim chamada “virada naturalista”, promovida especialmente por W. V. O. Quine(7). Para ele, a filosofia é mais do que uma mera questão de investigação lingüístico-conceitual, posto que ela não é algo essencialmente distinto da ciência empírica. Não há efetivamente nenhuma distinção real a ser traçada aqui: a filosofia forma um continuum com a ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais, algo como as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país(8).
Embora esse ponto de vista tenha algumas vantagens, o problema é que nenhum advogado da virada naturalista seria capaz de explicar porque nós todos permanecemos tão pouco dispostos a ver as fronteiras entre a ciência e a filosofia como o resultado de acordos convencionais arbitrários. A tese quineana de que a distinção entre filosofia e ciência resulta de uma decisão artificial não explica por que sentimos uma resistência tão grande à idéia de alterar as fronteiras presentes, chamando de ciência o que tem sido chamado de filosofia e vice-versa. Mais além – e isso me parece decisivo – a tese não explica porque não precisamos apelar para nenhum novo acordo convencional, quando identificamos uma nova teoria como sendo filosófica ao invés de científica, ou vice-versa. A concepção da filosofia como análise conceitual tem ao menos o mérito de tentar responder a essas questões por meio de uma explicitação do que seriam as características distintivas da filosofia.
Embora existam muitas versões da concepção de filosofia como análise lingüístico-conceitual, quero reduzi-las de modo um tanto artificial a duas formas gerais, de maneira a mostrar melhor as limitações intrínsecas dessa concepção. Chamarei essas duas formas de filosofia como análise lingüístico-conceitual de a) crítica da linguagem e de b) análise da linguagem. Ao fazermos crítica da linguagem buscamos analisar ou elucidar conceitos de modo a dissolver confusões filosóficas. Ao fazermos análise da linguagem, procuramos analisar conceitos em busca de um melhor entendimento de nossa arquitetura conceitual, ou então na tentativa de transformá-la e aperfeiçoá-la. No que se segue irei explicar o que entendo por cada uma dessas formas de filosofia, mostrando que, a despeito de seus próprios méritos, elas falham em nos oferecer uma adequada explicação da natureza da filosofia.
1. OS ATALHOS DA CRÍTICA DA LINGUAGEM
A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos filosóficos, muitos deles pertencentes à filosofia tradicional. Isso tem sido historicamente realizado de duas maneiras. A primeira como uma análise da estrutura lógica das sentenças – o que chamarei de forma de análise sintaticamente orientada. A segunda espécie de análise constitui-se de um exame cuidadoso dos significados ou usos das expressões de nossa linguagem ordinária em seus contextos interpessoais – o que chamo de forma pragmaticamente orientada de análise. Uso as expressões “forma de análise sintaticamente orientada” e “pragmaticamente orientada” respectivamente em substituição a uma distinção de conotação algo mais restritiva, a velha e enganosa distinção entre filosofia da linguagem ideal (guiada pela lógica) e filosofia da linguagem ordinária (guiada pela linguagem do cotidiano). Essa distinção é enganosa porque a história da filosofia analítica mostrou que nada impede que uma investigação da linguagem ordinária seja conduzida sob um ponto de vista lógico, como de fato aconteceu em casos como o tratamento formalizado da teoria dos atos de fala através de uma lógica ilocucionária por J. R. Searle, ou como a explicação veritativo-funcional apresentada por P. F. Strawson para o conceito de pressuposição em On Referring; por outro lado, também nada nos impede de conduzir investigações da linguagem ideal sob a perspectiva de sua realização na linguagem ordinária, como é evidenciado, por exemplo, pelo estudo dos usos de partículas lógicas na linguagem ordinária.
A forma sintaticamente orientada de crítica da linguagem pode ser exemplificada pela observação de filósofos analíticos, como Russell e principalmente Ryle(9), de que uma razão subjacente à criação da doutrina das idéias por Platão pode ter sido uma confusão gerada pela similaridade superficial entre a gramática lingüística de sentenças como “A beleza é agradável” e “Sócrates é calvo”. Conduzido por tais similaridades, Platão teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um nome próprio se referindo a um particular, o sujeito de sentenças como a primeira também precisa ser um nome próprio e referir-se a um particular. Contudo, como não existe “a beleza” no mundo visível, “a beleza” deve habitar um mundo que é somente inteligível, o mundo das idéias, situado na “região supraceleste”. Contra essa conclusão, a crítica da linguagem, baseada na moderna lógica dos predicados, mostra que as estruturas lógicas de ambos os tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas, posto que a primeira sentença tem uma estrutura lógica que é muito diversa de sua estrutura lingüística superficial. Enquanto “Sócrates ( = s) é calvo ( = C)” tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é logicamente analisável como uma abreviação da sentença “Para todo x, se x é belo (= B), então x é agradável (= A)”, ou “(x) (Bx -> Ax)”, onde “belo” é evidenciado como não sendo realmente um nome próprio, mas uma expressão predicativa. A sugestão de críticos da linguagem como Ryle era a de que a identidade superficial na forma sujeito-predicado de ambos os tipos de sentença confundiu Platão, fornecendo-lhe uma razão ilusória para a construção de um castelo de cartas metafísico.
O segundo exemplo – agora da uma crítica da linguagem pragmaticamente orientada – concerne à exposição das distorções lingüísticas que estariam subjacentes ao argumento da ilusão, um argumento colocado por epistemologias representacionalistas (e fenomenalistas) opostas ao realismo. Nesse argumento, casos são considerados em que objetos parecem diferentes do que eles realmente são, como a colher que, parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A consideração desses casos leva-nos à conclusão de que percebemos as coisas indiretamente: aquilo que diretamente percebemos não são os objetos materiais, mas somente nossas representações (ou impressões sensíveis) deles. Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem como J. L. Austin argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos, mas apenas as suas representações; o que realmente dizemos é que nós vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não como eles realmente são. Assim, quando olho (com ambos os olhos) para o meu nariz, eu não digo que realmente vejo dois narizes, mas antes que vejo o meu próprio nariz duplicado; e quando vejo uma moeda como sendo elíptica, não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas que estou vendo um objeto redondo que parece elíptico(10).
Exemplos como esses servem para mostrar não somente as qualidades, mas também os limites da crítica da linguagem. Pois é evidente que a doutrina platônica das idéias, como uma tentativa de explicar nossa compreensão da função dos termos gerais (da generalidade e predicação), e as objeções representacionalistas ao realismo direto (tanto na forma fenomenal como científica do argumento da ilusão) permanecem além do alcance de uma crítica puramente lingüística. Uma razão para pensar assim é que os argumentos para a admissão de idéias como o fundamento explicativo da generalidade e predicação, assim como os argumentos para a admissão de representações (perceptos, sensações, fenômenos, sense data, qualia...) como os mais imediatos objetos da experiência, mediando inevitavelmente nosso acesso ao mundo externo, têm ambos um conteúdo substantivo que só parece capaz de ser definitivamente refutado através de considerações extralingüísticas. Isso se torna mais evidente quando consideramos que com base no resultado substantivo desses argumentos alguém poderia defender a necessidade de correção de nossos hábitos lingüísticos ordinários irrefletidos por meio da introdução de convenções mais adequadas, que tornassem correto falar de idéias não-psicológicas, não mentais, ou dizer que aquilo que imediatamente percebemos são de fato nossas sensações, perceptos, sense-data etc.
Geralmente, a crítica da linguagem não é vista como uma concepção da natureza da filosofia, mas somente como uma maneira crítica de fazê-la. Não obstante, a crítica da linguagem tornou-se uma concepção da natureza da filosofia nos escritos de Wittgenstein, que teria concebido a filosofia como uma espécie de terapia lingüística sem qualquer conteúdo positivo próprio(11). Mesmo sendo questionável em que extensão Wittgenstein teria endossado tal modo de ver, dado que ele também fez observações que se afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) facilmente retirada de seus textos, e irei expô-la aqui por aquilo que ela é capaz de nos ensinar(12).
A concepção terapêutica da filosofia afirma que muito dela (especialmente da filosofia tradicional) é resultado de confusão lingüística. Filósofos são indivíduos possuídos por um irresistível anseio por generalidade (craving for generality)(13), que os predispõem a serem enganados pelas estruturas superficiais de nossa linguagem, levando-os à construção de “castelos de cartas” teoréticos, ou, quando isso causa contradição, acabando por reduzi-los a desesperançados prisioneiros de “nós do pensamento”. Em face disso, a boa filosofia deve ser terapêutica: o objetivo do filósofo terapêutico é desmontar os castelos de carta teoréticos do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais pensadores mais austeros enlearam-se a si mesmos. E o modo de fazer isso não é por meio da construção de teorias, nem pela explicação de coisa alguma, mas através de uma descrição dos modos pelos quais efetivamente usamos nossas palavras – por trazer essas palavras, como Wittgenstein diria, de volta de suas férias metafísicas para o seu trabalho lingüístico cotidiano. Sendo assim, a filosofia deve tornar-se um empreendimento puramente destrutivo, somente bemsucedido quando o filósofo, liberto de suas preocupações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico liberto de suas fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a filosofia.
O problema com a concepção terapêutica da filosofia é que ela corta os galhos curto demais. Nenhuma crítica da linguagem tem sido bemsucedida em ser inteiramente não-teorética e não-explicativa. O próprio trabalho de Wittgenstein é um bom exemplo desse fracasso, embora esse fato seja geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos(14). Considerem-se, por exemplo, suas observações sobre nomes próprios nas Investigações Filosóficas(15). Elas são concebidas como uma crítica à “teoria do rótulo” dos nomes próprios, pela qual o significado de um nome próprio é o objeto apresentado por ele de modo similar ao rótulo de uma garrafa apresentando o seu conteúdo. No entanto, ao refutar essa teoria Wittgenstein está, intencionalmente ou não, ideando uma versão mais sofisticada da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios, a qual explica o significado de nomes como “Moisés” pelas diferentes descrições a ele associadas, como “o homem que conduziu os israelenses através do deserto”, “o homem que viveu naquele tempo e lugar e que foi chamado “Moisés”, ou “o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela filha do faraó”. (Usando o vocabulário próprio de Wittgenstein poderíamos adicionar que essas descrições são expressões de regras para a identificação do objeto nomeado, regras que devem constituir conjuntamente aquilo que queremos dizer com o nome próprio, mais precisamente, o seu sentido referencial.) Assim, as sugestões de Wittgenstein são teoréticas, posto que a sua eficácia terapêutica depende de uma sugerida generalização para todos os nomes próprios; e suas observações são também explicativas, posto que elas objetivam explicar como podemos identificar pessoas usando nomes próprios. Mais além, essas mesmas idéias foram independentemente retomadas mais tarde, na sugestão explicitamente teorética e explicativa de uma teoria do feixe para nomes próprios por J. R. Searle(16). Exemplos como esse mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a doença e não somente minorar esse ou aquele sintoma ocasional, deve ser baseada em generalizações dotadas de poder explicativo. Essas generalizações, quando desenvolvidas, forçam-nos a abandonar o terreno da descrição da linguagem ordinária em direção a construções teóricas cada vez mais elaboradas. Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente separadas uma da outra; elas são os lados opostos da mesma moeda filosófica, parecendo ser matéria meramente circunstancial quando um filósofo prefere enfatizar um ou outro lado.
A forma sintaticamente orientada de crítica da linguagem pode ser exemplificada pela observação de filósofos analíticos, como Russell e principalmente Ryle(9), de que uma razão subjacente à criação da doutrina das idéias por Platão pode ter sido uma confusão gerada pela similaridade superficial entre a gramática lingüística de sentenças como “A beleza é agradável” e “Sócrates é calvo”. Conduzido por tais similaridades, Platão teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um nome próprio se referindo a um particular, o sujeito de sentenças como a primeira também precisa ser um nome próprio e referir-se a um particular. Contudo, como não existe “a beleza” no mundo visível, “a beleza” deve habitar um mundo que é somente inteligível, o mundo das idéias, situado na “região supraceleste”. Contra essa conclusão, a crítica da linguagem, baseada na moderna lógica dos predicados, mostra que as estruturas lógicas de ambos os tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas, posto que a primeira sentença tem uma estrutura lógica que é muito diversa de sua estrutura lingüística superficial. Enquanto “Sócrates ( = s) é calvo ( = C)” tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é logicamente analisável como uma abreviação da sentença “Para todo x, se x é belo (= B), então x é agradável (= A)”, ou “(x) (Bx -> Ax)”, onde “belo” é evidenciado como não sendo realmente um nome próprio, mas uma expressão predicativa. A sugestão de críticos da linguagem como Ryle era a de que a identidade superficial na forma sujeito-predicado de ambos os tipos de sentença confundiu Platão, fornecendo-lhe uma razão ilusória para a construção de um castelo de cartas metafísico.
O segundo exemplo – agora da uma crítica da linguagem pragmaticamente orientada – concerne à exposição das distorções lingüísticas que estariam subjacentes ao argumento da ilusão, um argumento colocado por epistemologias representacionalistas (e fenomenalistas) opostas ao realismo. Nesse argumento, casos são considerados em que objetos parecem diferentes do que eles realmente são, como a colher que, parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A consideração desses casos leva-nos à conclusão de que percebemos as coisas indiretamente: aquilo que diretamente percebemos não são os objetos materiais, mas somente nossas representações (ou impressões sensíveis) deles. Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem como J. L. Austin argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos, mas apenas as suas representações; o que realmente dizemos é que nós vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não como eles realmente são. Assim, quando olho (com ambos os olhos) para o meu nariz, eu não digo que realmente vejo dois narizes, mas antes que vejo o meu próprio nariz duplicado; e quando vejo uma moeda como sendo elíptica, não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas que estou vendo um objeto redondo que parece elíptico(10).
Exemplos como esses servem para mostrar não somente as qualidades, mas também os limites da crítica da linguagem. Pois é evidente que a doutrina platônica das idéias, como uma tentativa de explicar nossa compreensão da função dos termos gerais (da generalidade e predicação), e as objeções representacionalistas ao realismo direto (tanto na forma fenomenal como científica do argumento da ilusão) permanecem além do alcance de uma crítica puramente lingüística. Uma razão para pensar assim é que os argumentos para a admissão de idéias como o fundamento explicativo da generalidade e predicação, assim como os argumentos para a admissão de representações (perceptos, sensações, fenômenos, sense data, qualia...) como os mais imediatos objetos da experiência, mediando inevitavelmente nosso acesso ao mundo externo, têm ambos um conteúdo substantivo que só parece capaz de ser definitivamente refutado através de considerações extralingüísticas. Isso se torna mais evidente quando consideramos que com base no resultado substantivo desses argumentos alguém poderia defender a necessidade de correção de nossos hábitos lingüísticos ordinários irrefletidos por meio da introdução de convenções mais adequadas, que tornassem correto falar de idéias não-psicológicas, não mentais, ou dizer que aquilo que imediatamente percebemos são de fato nossas sensações, perceptos, sense-data etc.
Geralmente, a crítica da linguagem não é vista como uma concepção da natureza da filosofia, mas somente como uma maneira crítica de fazê-la. Não obstante, a crítica da linguagem tornou-se uma concepção da natureza da filosofia nos escritos de Wittgenstein, que teria concebido a filosofia como uma espécie de terapia lingüística sem qualquer conteúdo positivo próprio(11). Mesmo sendo questionável em que extensão Wittgenstein teria endossado tal modo de ver, dado que ele também fez observações que se afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) facilmente retirada de seus textos, e irei expô-la aqui por aquilo que ela é capaz de nos ensinar(12).
A concepção terapêutica da filosofia afirma que muito dela (especialmente da filosofia tradicional) é resultado de confusão lingüística. Filósofos são indivíduos possuídos por um irresistível anseio por generalidade (craving for generality)(13), que os predispõem a serem enganados pelas estruturas superficiais de nossa linguagem, levando-os à construção de “castelos de cartas” teoréticos, ou, quando isso causa contradição, acabando por reduzi-los a desesperançados prisioneiros de “nós do pensamento”. Em face disso, a boa filosofia deve ser terapêutica: o objetivo do filósofo terapêutico é desmontar os castelos de carta teoréticos do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais pensadores mais austeros enlearam-se a si mesmos. E o modo de fazer isso não é por meio da construção de teorias, nem pela explicação de coisa alguma, mas através de uma descrição dos modos pelos quais efetivamente usamos nossas palavras – por trazer essas palavras, como Wittgenstein diria, de volta de suas férias metafísicas para o seu trabalho lingüístico cotidiano. Sendo assim, a filosofia deve tornar-se um empreendimento puramente destrutivo, somente bemsucedido quando o filósofo, liberto de suas preocupações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico liberto de suas fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a filosofia.
O problema com a concepção terapêutica da filosofia é que ela corta os galhos curto demais. Nenhuma crítica da linguagem tem sido bemsucedida em ser inteiramente não-teorética e não-explicativa. O próprio trabalho de Wittgenstein é um bom exemplo desse fracasso, embora esse fato seja geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos(14). Considerem-se, por exemplo, suas observações sobre nomes próprios nas Investigações Filosóficas(15). Elas são concebidas como uma crítica à “teoria do rótulo” dos nomes próprios, pela qual o significado de um nome próprio é o objeto apresentado por ele de modo similar ao rótulo de uma garrafa apresentando o seu conteúdo. No entanto, ao refutar essa teoria Wittgenstein está, intencionalmente ou não, ideando uma versão mais sofisticada da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios, a qual explica o significado de nomes como “Moisés” pelas diferentes descrições a ele associadas, como “o homem que conduziu os israelenses através do deserto”, “o homem que viveu naquele tempo e lugar e que foi chamado “Moisés”, ou “o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela filha do faraó”. (Usando o vocabulário próprio de Wittgenstein poderíamos adicionar que essas descrições são expressões de regras para a identificação do objeto nomeado, regras que devem constituir conjuntamente aquilo que queremos dizer com o nome próprio, mais precisamente, o seu sentido referencial.) Assim, as sugestões de Wittgenstein são teoréticas, posto que a sua eficácia terapêutica depende de uma sugerida generalização para todos os nomes próprios; e suas observações são também explicativas, posto que elas objetivam explicar como podemos identificar pessoas usando nomes próprios. Mais além, essas mesmas idéias foram independentemente retomadas mais tarde, na sugestão explicitamente teorética e explicativa de uma teoria do feixe para nomes próprios por J. R. Searle(16). Exemplos como esse mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a doença e não somente minorar esse ou aquele sintoma ocasional, deve ser baseada em generalizações dotadas de poder explicativo. Essas generalizações, quando desenvolvidas, forçam-nos a abandonar o terreno da descrição da linguagem ordinária em direção a construções teóricas cada vez mais elaboradas. Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente separadas uma da outra; elas são os lados opostos da mesma moeda filosófica, parecendo ser matéria meramente circunstancial quando um filósofo prefere enfatizar um ou outro lado.
2. FILOSOFIA COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM
O fracasso da concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos a considerar aquela da filosofia como análise da linguagem. Esse é o lado construtivo, teorético, da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à crítica da linguagem e possivelmente mesmo de torná-la uma extensão de si mesma. A análise da linguagem também pode ser feita de um modo sintaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”) ou de um modo pragmaticamente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”). Como exemplo da forma sintaticamente orientada está o esboço de uma estrutura geral requerida pela sintaxe de qualquer língua encontrado na distinção introduzida por Carnap entre regras de formação (especificando símbolos e sentenças bem formadas) e regras de transformação (determinando as possíveis relações entre as sentenças)(17). Por sua vez, um exemplo de análise da linguagem em sua forma pragmaticamente orientada é a teoria dos atos de fala de Searle, a qual sustenta que a estrutura de nossas ações comunicativas é geralmente redutível à forma F(p), em que p é o conteúdo proposicional e F é a força ilocucionária, esta última definindo o tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe que seja associado ao seu conteúdo(18).
Construções analíticas como essas são teorias muito gerais, possuidoras de interesse intrínseco, posto que elas são empreendimentos investigativos capazes de conduzir-nos à proximidade dos horizontes científicos. De fato, a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de transformação já foi há muito incorporada em diferentes domínios da lógica simbólica (que se desenvolve hoje como uma ciência formal), e a teoria dos atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática lingüística, mais do que à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser usadas como instrumentos críticos, essa não é a principal razão para o seu desenvolvimento, que é a de ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.
No que se segue, irei expor uma versão full-blooded da concepção da filosofia como análise da linguagem. Essa versão pertence à forma pragmaticamente orientada, estendendo-se aos limites de tolerância e defensabilidade, incorporando, quando necessário, até mesmo formas sintáticas de análise. Algo próximo dessa versão pode ser encontrado, com diferenças individuais, nas concepções de praticantes tardios e melhor aconselhados dos métodos analíticos, como Peter Strawson e Ernst Tugendhat.
Uma assunção básica da concepção full-blooded da filosofia como análise da linguagem é a idéia de que não temos consciência da estrutura extraordinariamente complexa dos conceitos mais centrais de nossa linguagem natural, os quais costumam ser intrinsecamente relacionados uns aos outros, como os conceitos de verdade, conhecimento, crença, percepção, causa, tempo, bem, justiça, beleza etc. Essa falta de consciência tem uma explicação: não aprendemos esses conceitos por meio de definições explícitas, mas, desde a infância, através de uma praxis não-cognitiva de exemplificações positivas e negativas, na qual nosso aprendizado é repetidamente submetido à correção interpessoal. Conseqüentemente, embora pareça claro que nós conhecemos os significados de palavras como “verdade”, “tempo” e “beleza”, posto que nós sabemos usá-las corretamente, nós permanecemos incapazes de descrever como usamos essas palavras, ou seja, de tornar as regras constitutivas de seus significados (conceitos) explícitas. Essa é a razão pela qual, embora sejamos plenamente capazes de usar essas palavras corretamente, nós nos embaraçamos seriamente quando nos é pedido que expliquemos o que queremos dizer com elas. Devido a essa falta de consciência das regras que governam o uso das palavras, confusões filosóficas podem facilmente surgir: filósofos, particularmente aqueles que se ocupam com metafísica especulativa, têm confundido sistematicamente os usos de nossas expressões; e já vimos como a crítica da linguagem funciona, analisando as estruturas lógico-sintáticas dos conceitos relevantes ou fazendo uma análise ou “descrição” dos usos das palavras que as expressam em situações concretas, de maneira a demonstrar a implausibilidade dessas tentativas. Em si mesma, a filosofia analítica da linguagem não é um empreendimento crítico; seu interesse principal é o de construir teorias objetivando explicitar e aprofundar as nossas estruturas conceituais mais centrais. Contendo generalizações, essas teorias também têm valor explicativo. E o seu objetivo mais distintivo é fornecer o que nós, junto com Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação sinóptica (übersichtliche Darstellung): uma sinopse da estrutura gramatical dos conceitos mais fundamentais de nossa linguagem(19). Desde que esses conceitos se encontram geralmente inter-relacionados, uma representação sinóptica também pode tornar explícita a relação sistemática entre eles, objetivando elucidar o que Tugendhat chamou de a malha conceitual (begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um todo(20).
Para completar nosso quadro, é importante dizer algo sobre o traço mais penetrante da filosofia analítica. É o que Quine chamou de acento semântico (21) e que eu – sem medo da intencionalidade – prefiro chamar de ênfase lingüístico-conceitual. Trata-se de uma espécie de ênfase discursiva nos elementos lingüísticos e conceituais. Por meio do acento semântico, aspectos lingüístico-conceituais de nossas expressões são focalizados de maneira a tornar explícitas distinções lingüístico-conceituais mais sutis e prevenir confusão. Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos, não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual ‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de acento semântico é reminiscente do conceito carnapiano de modo de dizer formal, que para ele é o modo de dizer adequado aos assuntos filosóficos, ou seja, às questões lingüístico-conceituais. Contudo, como foi notado com muita perspicácia por Quine, a distinção carnapiana é falsa na medida em que ele quer torná-la caracterizadora da filosofia enquanto tal. A noção de acento semântico difere do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não somente às sentenças filosóficas, mas a toda sentença concebível: “Acento semântico”, escreveu ele, “aplica-se em todo lugar. ‘Há masurpiais na Tasmânia” pode ser parafraseado como ‘’Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na Tasmânia’, se há qualquer ponto nisso. Apenas acontece de ser o acento semântico mais útil em conexões filosóficas”(22).
A noção de acento semântico ou lingüístico-conceitual pode ser explicada mais claramente quando consideramos que, por razões técnicas, ao fazermos filosofia analítica, apresentamos os nossos argumentos – de maneira mais ou menos explícita – em uma metalinguagem que nos permite centrar o discurso em nossas palavras e nos conceitos por elas expressos. Contudo, é importante sublinhar que isso é usualmente feito por meio de uma metalinguagem semântica e não meramente por uma metalinguagem sintática. Essa consideração torna possível responder à objeção de que a filosofia analítica, sendo um empreendimento lingüístico, inevitavelmente deixa de fora o mundo (ver nota 25). Para esclarecer esse ponto, compare as duas sentenças seguintes:
Construções analíticas como essas são teorias muito gerais, possuidoras de interesse intrínseco, posto que elas são empreendimentos investigativos capazes de conduzir-nos à proximidade dos horizontes científicos. De fato, a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de transformação já foi há muito incorporada em diferentes domínios da lógica simbólica (que se desenvolve hoje como uma ciência formal), e a teoria dos atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática lingüística, mais do que à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser usadas como instrumentos críticos, essa não é a principal razão para o seu desenvolvimento, que é a de ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.
No que se segue, irei expor uma versão full-blooded da concepção da filosofia como análise da linguagem. Essa versão pertence à forma pragmaticamente orientada, estendendo-se aos limites de tolerância e defensabilidade, incorporando, quando necessário, até mesmo formas sintáticas de análise. Algo próximo dessa versão pode ser encontrado, com diferenças individuais, nas concepções de praticantes tardios e melhor aconselhados dos métodos analíticos, como Peter Strawson e Ernst Tugendhat.
Uma assunção básica da concepção full-blooded da filosofia como análise da linguagem é a idéia de que não temos consciência da estrutura extraordinariamente complexa dos conceitos mais centrais de nossa linguagem natural, os quais costumam ser intrinsecamente relacionados uns aos outros, como os conceitos de verdade, conhecimento, crença, percepção, causa, tempo, bem, justiça, beleza etc. Essa falta de consciência tem uma explicação: não aprendemos esses conceitos por meio de definições explícitas, mas, desde a infância, através de uma praxis não-cognitiva de exemplificações positivas e negativas, na qual nosso aprendizado é repetidamente submetido à correção interpessoal. Conseqüentemente, embora pareça claro que nós conhecemos os significados de palavras como “verdade”, “tempo” e “beleza”, posto que nós sabemos usá-las corretamente, nós permanecemos incapazes de descrever como usamos essas palavras, ou seja, de tornar as regras constitutivas de seus significados (conceitos) explícitas. Essa é a razão pela qual, embora sejamos plenamente capazes de usar essas palavras corretamente, nós nos embaraçamos seriamente quando nos é pedido que expliquemos o que queremos dizer com elas. Devido a essa falta de consciência das regras que governam o uso das palavras, confusões filosóficas podem facilmente surgir: filósofos, particularmente aqueles que se ocupam com metafísica especulativa, têm confundido sistematicamente os usos de nossas expressões; e já vimos como a crítica da linguagem funciona, analisando as estruturas lógico-sintáticas dos conceitos relevantes ou fazendo uma análise ou “descrição” dos usos das palavras que as expressam em situações concretas, de maneira a demonstrar a implausibilidade dessas tentativas. Em si mesma, a filosofia analítica da linguagem não é um empreendimento crítico; seu interesse principal é o de construir teorias objetivando explicitar e aprofundar as nossas estruturas conceituais mais centrais. Contendo generalizações, essas teorias também têm valor explicativo. E o seu objetivo mais distintivo é fornecer o que nós, junto com Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação sinóptica (übersichtliche Darstellung): uma sinopse da estrutura gramatical dos conceitos mais fundamentais de nossa linguagem(19). Desde que esses conceitos se encontram geralmente inter-relacionados, uma representação sinóptica também pode tornar explícita a relação sistemática entre eles, objetivando elucidar o que Tugendhat chamou de a malha conceitual (begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um todo(20).
Para completar nosso quadro, é importante dizer algo sobre o traço mais penetrante da filosofia analítica. É o que Quine chamou de acento semântico (21) e que eu – sem medo da intencionalidade – prefiro chamar de ênfase lingüístico-conceitual. Trata-se de uma espécie de ênfase discursiva nos elementos lingüísticos e conceituais. Por meio do acento semântico, aspectos lingüístico-conceituais de nossas expressões são focalizados de maneira a tornar explícitas distinções lingüístico-conceituais mais sutis e prevenir confusão. Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos, não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual ‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de acento semântico é reminiscente do conceito carnapiano de modo de dizer formal, que para ele é o modo de dizer adequado aos assuntos filosóficos, ou seja, às questões lingüístico-conceituais. Contudo, como foi notado com muita perspicácia por Quine, a distinção carnapiana é falsa na medida em que ele quer torná-la caracterizadora da filosofia enquanto tal. A noção de acento semântico difere do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não somente às sentenças filosóficas, mas a toda sentença concebível: “Acento semântico”, escreveu ele, “aplica-se em todo lugar. ‘Há masurpiais na Tasmânia” pode ser parafraseado como ‘’Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na Tasmânia’, se há qualquer ponto nisso. Apenas acontece de ser o acento semântico mais útil em conexões filosóficas”(22).
A noção de acento semântico ou lingüístico-conceitual pode ser explicada mais claramente quando consideramos que, por razões técnicas, ao fazermos filosofia analítica, apresentamos os nossos argumentos – de maneira mais ou menos explícita – em uma metalinguagem que nos permite centrar o discurso em nossas palavras e nos conceitos por elas expressos. Contudo, é importante sublinhar que isso é usualmente feito por meio de uma metalinguagem semântica e não meramente por uma metalinguagem sintática. Essa consideração torna possível responder à objeção de que a filosofia analítica, sendo um empreendimento lingüístico, inevitavelmente deixa de fora o mundo (ver nota 25). Para esclarecer esse ponto, compare as duas sentenças seguintes:
(a) “’Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras”.
(b) “’Cracóvia’ é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”
(b) “’Cracóvia’ é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”
Na sentença (a) usamos a metalinguagem sintática para falar de uma palavra como sinal físico. Na sentença (b) usamos uma metalinguagem semântica para falar não somente de uma palavra, mas também sobre o que ela significa. Usando um vocabulário fregeano, podemos dizer que pela utilização de uma metalinguagem semântica estamos tornando explícitos os sentidos de nossas palavras, e que ao fazermos isso também estamos falando sobre aquilo a que elas se referem, ou seja, sobre o mundo, ao menos na medida em que essas referências, os objetos, eventos, propriedades... são avaliáveis para nós por meios conceituais (Frege chamou de sentido de um nome de Art des Gegebenseins eines Gegenstandes: o modo de se dar do objeto). Em suma: por meio de uma metalinguagem sintática, falamos somente dos signos em abstração de seus significados – esse é o caminho do formalismo seco. Já por meio de uma metalinguagem semântica, preservamos os sentidos e não só os signos, falando de ambos – esse é o caminho filosófico, pelo qual a análise da linguagem pode ser estendida das palavras ao que se quer dizer com elas e assim ao próprio mundo. A ênfase conceitual é um modo de centrar nossa atenção na linguagem sem excluir nada de valor que possa ser representado pela linguagem.
Embora a forma sintaticamente orientada de análise da linguagem praticada por filósofos como Carnap, Quine, Donald Davidson e Samuel Kripke também empregue o acento lingüístico-conceitual, ela difere de maneira importante da concepção full-blooded de análise em suas atitudes com relação às exigências do senso comum e da linguagem ordinária que o representa. Filósofos sintaticamente orientados dão muito mais peso à consistência interna de suas teorias formalmente orientadas do que ao eventual acordo dessas teorias com o senso comum que as intuições da linguagem ordinária exprimem, estando sempre preparados para sacrificar a última pela primeira.
Com efeito, muitas das idéias da forma sintaticamente orientada de análise da linguagem estão em flagrante contradição com essas intuições. Qual é a razão disso? Penso que a resposta não seja difícil de ser encontrada. Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem – as regras para a combinação de seus signos – em um estado de ignorância, sem conhecer as referências desses signos e suas combinações, sem conhecer os seus significados, e como usá-los em situações concretas. Mas o oposto é bem menos concebível: não podemos ter acesso adequado aos sentidos de combinações de signos e aos modos como esses signos são usados sem conhecer as suas funções sintáticas, ou seja, como eles podem ser combinados na construção de sentenças bem formadas. Isso significa que embora o entendimento da dimensão sintática da linguagem não pressuponha o entendimento da dimensão pragmática, para esta última ser adequadamente entendida, já é pressuposto o entendimento da dimensão sintática (e semântica) (ver capítulo VII, seção 3). Isso também significa que essa dimensão pragmática carrega consigo, ao menos como pressuposto, todo o conjunto de regras de significado da linguagem, um conjunto articulador de nossas intuições lingüístico-conceptuais, de nossas intuições de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser manifesto nos modos pelos quais as usamos. Isso quer dizer que a forma sintaticamente orientada de análise, sendo independente da dimensão pragmática, pode ser desenvolvida em abstração da dimensão pragmática e, conseqüentemente, também em desacordo com ela, sem perda de inteligibilidade. Uma conseqüência disso é que o analista conceitual sintaticamente orientado sente-se mais livre para confrontar assunções fundamentadoras da racionalidade da linguagem e de nossas visões comuns do mundo, mesmo que de maneira ilusória, quando o seu procedimento for redutivo e dependente de uma rejeição gratuita dessas assunções. (Isso explica, por exemplo, por que os argumentos de Quine ou Kripke podem facilmente se opor ao senso comum lingüístico, enquanto os argumentos de Searle ou Strawson só são capazes disso a preço de visível inconsistência.)
Na próxima seção as conseqüências teóricas que filósofos tiraram das concepções recém-descritas serão avaliadas criticamente, de maneira a mostrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem (e, conseqüentemente, também como crítica da linguagem), embora capaz de mostrar-nos como a filosofia pode dever ser, é incapaz de mostrar-nos o que a filosofia é.
Embora a forma sintaticamente orientada de análise da linguagem praticada por filósofos como Carnap, Quine, Donald Davidson e Samuel Kripke também empregue o acento lingüístico-conceitual, ela difere de maneira importante da concepção full-blooded de análise em suas atitudes com relação às exigências do senso comum e da linguagem ordinária que o representa. Filósofos sintaticamente orientados dão muito mais peso à consistência interna de suas teorias formalmente orientadas do que ao eventual acordo dessas teorias com o senso comum que as intuições da linguagem ordinária exprimem, estando sempre preparados para sacrificar a última pela primeira.
Com efeito, muitas das idéias da forma sintaticamente orientada de análise da linguagem estão em flagrante contradição com essas intuições. Qual é a razão disso? Penso que a resposta não seja difícil de ser encontrada. Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem – as regras para a combinação de seus signos – em um estado de ignorância, sem conhecer as referências desses signos e suas combinações, sem conhecer os seus significados, e como usá-los em situações concretas. Mas o oposto é bem menos concebível: não podemos ter acesso adequado aos sentidos de combinações de signos e aos modos como esses signos são usados sem conhecer as suas funções sintáticas, ou seja, como eles podem ser combinados na construção de sentenças bem formadas. Isso significa que embora o entendimento da dimensão sintática da linguagem não pressuponha o entendimento da dimensão pragmática, para esta última ser adequadamente entendida, já é pressuposto o entendimento da dimensão sintática (e semântica) (ver capítulo VII, seção 3). Isso também significa que essa dimensão pragmática carrega consigo, ao menos como pressuposto, todo o conjunto de regras de significado da linguagem, um conjunto articulador de nossas intuições lingüístico-conceptuais, de nossas intuições de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser manifesto nos modos pelos quais as usamos. Isso quer dizer que a forma sintaticamente orientada de análise, sendo independente da dimensão pragmática, pode ser desenvolvida em abstração da dimensão pragmática e, conseqüentemente, também em desacordo com ela, sem perda de inteligibilidade. Uma conseqüência disso é que o analista conceitual sintaticamente orientado sente-se mais livre para confrontar assunções fundamentadoras da racionalidade da linguagem e de nossas visões comuns do mundo, mesmo que de maneira ilusória, quando o seu procedimento for redutivo e dependente de uma rejeição gratuita dessas assunções. (Isso explica, por exemplo, por que os argumentos de Quine ou Kripke podem facilmente se opor ao senso comum lingüístico, enquanto os argumentos de Searle ou Strawson só são capazes disso a preço de visível inconsistência.)
Na próxima seção as conseqüências teóricas que filósofos tiraram das concepções recém-descritas serão avaliadas criticamente, de maneira a mostrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem (e, conseqüentemente, também como crítica da linguagem), embora capaz de mostrar-nos como a filosofia pode dever ser, é incapaz de mostrar-nos o que a filosofia é.
3. A FALÁCIA OBJETUAL NA FILOSOFIA ANALÍTICA
Muitos defensores da filosofia como análise conceitual pensam que suas concepções conduzem à conclusão de que, como o filósofo está expondo a estrutura conceitual de nossa linguagem, ele não está
(a) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese especulativa sobre o mundo, como o filósofo especulativo tradicional havia feito,
e ele também não está
(b) de modo algum desenvolvendo qualquer hipótese empírica sobre o mundo, como fazem os cientistas da natureza (mesmo que o empreendimento de descrição do modo como a linguagem realmente trabalha possa ser visto como empírico(23)).
Meu objetivo nesta seção é mostrar que nem a asserção (a) nem a asserção (b) pode ser satisfeita pela praxis efetiva da filosofia como análise da linguagem, e que a pretensão de que elas possam ser preenchidas repousa em uma insidiosa falácia objetual. Além disso, por mostrar que essas asserções são falaciosas, pretendo também demonstrar ser errônea a assunção de que do ponto de vista do objeto de investigação a filosofia analítica distingue-se de outras atividades investigativas, uma vez que ela tem como objetivo o esclarecimento de estruturas conceituais e, por conseqüência, não teria como objetivo uma explicação do mundo enquanto tal. O comprido argumento que usarei para evidenciar esse ponto não é um modelo de linearidade e transparência, mas aqui vai:
Para mostrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar que a análise conceitual possui um objeto de investigação diferente do objeto da filosofia tradicional e da ciência em geral, precisamos começar considerando a sua praxis efetiva. As teses (a) e (b) poderiam com efeito ser consistentemente mantidas se o analista conceitual tivesse se limitado à análise lógica da estrutura das sentenças, ou a uma tediosa, quasi-lexicográfica descrição dos significados das palavras-conceituais filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural. Mas isso não é o que ele efetivamente faz. De maneira a alcançar qualquer espécie de relevância filosófica, o analista conceitual deve dar um passo adiante: deve inquirir nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, descobrindo nessa praxis conceitos para os quais ainda não há qualquer palavra em nossa linguagem, tais conceitos sendo escolhidos em virtude de fatores tais como coerência e poder explicativo. Como esses conceitos recém-descobertos podem ser expressos somente através de novas concatenações de palavras, o analista conceitual é freqüentemente levado a substituir essas concatenações por novos termos de arte, inventados por razões de economia discursiva. Alguns exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações comunicativas pode fazer uma análise de nossos “atos de fala” sob a perspectiva de sua “força ilocucionária”; alguém engajado em filosofia do conteúdo pode tentar analisar a função representacional de nosso enunciados, o seu “significado factual”, em termos de “regras de verificabilidade”; um epistemólogo pode sugerir uma análise do conceito de “conhecimento proposicional” (knowing that) em termos de “crença verdadeira justificada ultimadamente não-refutada”.
Quando refletimos sobre esses procedimentos, um primeiro ponto a ser considerado é que o procedimento supostamente analítico contém um momento de síntese hipotética. Estruturas conceituais profundas são primeiramente descobertas para somente então serem analisadas (ver nota 57). Mas ao proceder assim o filósofo já está fazendo um trabalho de generalização – ou, como podemos também dizer, ele está tentando trazer à superfície um tipo de “unidade sintética” que (ao menos para o analista pragmaticamente orientado) já estaria presente nos usos de nossa linguagem. O problema é que a adequação dessas recém-descobertas unidades conceituais é altamente hipotética. Isso é mostrado pelo fato de que os significados dos termos gerais usados para explicar uma nova unidade conceitual são eles próprios controversos; de fato, o filósofo está tentando estabelecer conceitos recém-descobertos justificados por sua consistência com todo o tecido conceitual de crenças conscientemente ou inconscientemente assumidas por ele como o mais coerente e verdadeiro, o que torna o seu empreendimento inevitavelmente conjectural. Na busca de um equilíbrio reflexivo o filósofo sugere hipóteses eventualmente frutíferas. Essas hipóteses são sobre a estrutura empírica da linguagem, no caso da teoria dos atos de fala, sobre a função representacional de nossos enunciados, no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, e sobre a forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que”, no caso da definição proposicional de conhecimento. O esforço todo pode ser considerado em muitos casos e em certa medida análogo ao trabalho de descoberta de uma lei da natureza nas ciências naturais, ou seja, a algo capaz de explicar uma variedade de casos individuais e capaz de ser posteriormente confirmado ou infirmado pela experiência, mesmo que ela seja concernente a hábitos lingüísticos, no primeiro caso, ou à forma possível de certos processos cognitivos, nos outros casos.
Penso que um analista conceitual liberal não terá grande dificuldade em aceitar essas objeções. Mas ele usualmente insistirá que, mesmo sendo o seu procedimento analítico concreto precedido de um momento hipotético de síntese, ele está sempre tentando tornar explícito o que já pertence ao nosso sistema conceitual e nunca, como o cientista empírico ou o filósofo especulativo, indo além desse sistema ao elaborar hipóteses sobre o mundo real. No entanto, quando nós examinamos os exemplos dados, vemos que muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais e digam geralmente respeito ao relacionamento de nossas representações com o mundo, mais do que com o mundo em si mesmo. De fato, quando examinamos outros exemplos de análise, como os que são advindos do campo da metafísica analítica ou da filosofia da mente, vemos que esses fatos podem muito bem fazer parte do próprio mundo empírico. Considere, por exemplo, o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da mente. Seguindo uma sugestão introduzida por D. M. Armstrong, tornou-se hoje muito comum a distinção entre duas formas mais importantes de consciência: a consciência perceptiva (o estar em vigília, percebendo o mundo) e a consciência introspectiva (a submissão de estados mentais ditos “conscientes” a introspecções ou cognições de segunda ordem acerca deles)(24). Essa distinção pode ser dita conceitual, mas ela também diz respeito a classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais difusamente situados no espaço e no tempo.
Embora essa pareça ser uma conclusão claramente insatisfatória, o analista conceitual ainda tem uma resposta para ela. Ele poderá dizer que ela é aceitável pois, como o mundo é refletido na estrutura de nossos conceitos, ao analisá-los nós também estamos dizendo algo sobre o mundo. Como A. J. Ayer notou:
Meu objetivo nesta seção é mostrar que nem a asserção (a) nem a asserção (b) pode ser satisfeita pela praxis efetiva da filosofia como análise da linguagem, e que a pretensão de que elas possam ser preenchidas repousa em uma insidiosa falácia objetual. Além disso, por mostrar que essas asserções são falaciosas, pretendo também demonstrar ser errônea a assunção de que do ponto de vista do objeto de investigação a filosofia analítica distingue-se de outras atividades investigativas, uma vez que ela tem como objetivo o esclarecimento de estruturas conceituais e, por conseqüência, não teria como objetivo uma explicação do mundo enquanto tal. O comprido argumento que usarei para evidenciar esse ponto não é um modelo de linearidade e transparência, mas aqui vai:
Para mostrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar que a análise conceitual possui um objeto de investigação diferente do objeto da filosofia tradicional e da ciência em geral, precisamos começar considerando a sua praxis efetiva. As teses (a) e (b) poderiam com efeito ser consistentemente mantidas se o analista conceitual tivesse se limitado à análise lógica da estrutura das sentenças, ou a uma tediosa, quasi-lexicográfica descrição dos significados das palavras-conceituais filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural. Mas isso não é o que ele efetivamente faz. De maneira a alcançar qualquer espécie de relevância filosófica, o analista conceitual deve dar um passo adiante: deve inquirir nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, descobrindo nessa praxis conceitos para os quais ainda não há qualquer palavra em nossa linguagem, tais conceitos sendo escolhidos em virtude de fatores tais como coerência e poder explicativo. Como esses conceitos recém-descobertos podem ser expressos somente através de novas concatenações de palavras, o analista conceitual é freqüentemente levado a substituir essas concatenações por novos termos de arte, inventados por razões de economia discursiva. Alguns exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações comunicativas pode fazer uma análise de nossos “atos de fala” sob a perspectiva de sua “força ilocucionária”; alguém engajado em filosofia do conteúdo pode tentar analisar a função representacional de nosso enunciados, o seu “significado factual”, em termos de “regras de verificabilidade”; um epistemólogo pode sugerir uma análise do conceito de “conhecimento proposicional” (knowing that) em termos de “crença verdadeira justificada ultimadamente não-refutada”.
Quando refletimos sobre esses procedimentos, um primeiro ponto a ser considerado é que o procedimento supostamente analítico contém um momento de síntese hipotética. Estruturas conceituais profundas são primeiramente descobertas para somente então serem analisadas (ver nota 57). Mas ao proceder assim o filósofo já está fazendo um trabalho de generalização – ou, como podemos também dizer, ele está tentando trazer à superfície um tipo de “unidade sintética” que (ao menos para o analista pragmaticamente orientado) já estaria presente nos usos de nossa linguagem. O problema é que a adequação dessas recém-descobertas unidades conceituais é altamente hipotética. Isso é mostrado pelo fato de que os significados dos termos gerais usados para explicar uma nova unidade conceitual são eles próprios controversos; de fato, o filósofo está tentando estabelecer conceitos recém-descobertos justificados por sua consistência com todo o tecido conceitual de crenças conscientemente ou inconscientemente assumidas por ele como o mais coerente e verdadeiro, o que torna o seu empreendimento inevitavelmente conjectural. Na busca de um equilíbrio reflexivo o filósofo sugere hipóteses eventualmente frutíferas. Essas hipóteses são sobre a estrutura empírica da linguagem, no caso da teoria dos atos de fala, sobre a função representacional de nossos enunciados, no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, e sobre a forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que”, no caso da definição proposicional de conhecimento. O esforço todo pode ser considerado em muitos casos e em certa medida análogo ao trabalho de descoberta de uma lei da natureza nas ciências naturais, ou seja, a algo capaz de explicar uma variedade de casos individuais e capaz de ser posteriormente confirmado ou infirmado pela experiência, mesmo que ela seja concernente a hábitos lingüísticos, no primeiro caso, ou à forma possível de certos processos cognitivos, nos outros casos.
Penso que um analista conceitual liberal não terá grande dificuldade em aceitar essas objeções. Mas ele usualmente insistirá que, mesmo sendo o seu procedimento analítico concreto precedido de um momento hipotético de síntese, ele está sempre tentando tornar explícito o que já pertence ao nosso sistema conceitual e nunca, como o cientista empírico ou o filósofo especulativo, indo além desse sistema ao elaborar hipóteses sobre o mundo real. No entanto, quando nós examinamos os exemplos dados, vemos que muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais e digam geralmente respeito ao relacionamento de nossas representações com o mundo, mais do que com o mundo em si mesmo. De fato, quando examinamos outros exemplos de análise, como os que são advindos do campo da metafísica analítica ou da filosofia da mente, vemos que esses fatos podem muito bem fazer parte do próprio mundo empírico. Considere, por exemplo, o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da mente. Seguindo uma sugestão introduzida por D. M. Armstrong, tornou-se hoje muito comum a distinção entre duas formas mais importantes de consciência: a consciência perceptiva (o estar em vigília, percebendo o mundo) e a consciência introspectiva (a submissão de estados mentais ditos “conscientes” a introspecções ou cognições de segunda ordem acerca deles)(24). Essa distinção pode ser dita conceitual, mas ela também diz respeito a classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais difusamente situados no espaço e no tempo.
Embora essa pareça ser uma conclusão claramente insatisfatória, o analista conceitual ainda tem uma resposta para ela. Ele poderá dizer que ela é aceitável pois, como o mundo é refletido na estrutura de nossos conceitos, ao analisá-los nós também estamos dizendo algo sobre o mundo. Como A. J. Ayer notou:
A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo algum abrupta, pois o mundo é o mundo que nós descrevemos, o mundo como ele figura em nosso sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema conceitual você está, ao mesmo tempo, explorando o mundo(25).
Embora isso seja verdadeiro e confirmado por nossas considerações anteriores acerca da ênfase conceitual, a resposta de Ayer aponta claramente para o fato de que não podemos distinguir o objeto de investigação próprio da filosofia por referência à análise de nossas estruturas conceituais. Pois em um sentido similar podemos sugerir que o cientista empírico e o metafísico especulativo estão fazendo um trabalho de “análise conceitual”, a única diferença sendo a de que eles não são conscientes disso, posto que não têm a preocupação em focalizar os aspectos lingüístico-conceituais de suas investigações por meio de uma metalinguagem semântica. Tentarei tornar este último ponto mais claro levantando objeções separadas contra as teses (a) e (b).
Considere-se a tese (a): diversamente dos filósofos especulativos, os filósofos analíticos não estão fazendo asserções conjecturais sobre o mundo.
Contra essa tese é importante ressaltar que a história recente da filosofia tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional podem ser identificados no trabalho de filósofos ditos analíticos (e por alguns mesmo chamados de pós-analíticos). Sequer faz sentido defender que a filosofia analítica não é especulativa, pois essa história mostra que as distinções que os filósofos mantiveram entre
Filosofia crítica e Filosofia especulativa
(ocupada com a defini- (objetivando alcançar conclusões gerais
ção e análise crítica sobre a natureza do universo e sobre
dos conceitos de nossa nosso lugar e expectativas nele)
vida diária e ciências) (C. D. Broad),
Metafísica imanente e Metafísica transcendente
(limitando-se ao mundo (objetivando ir além dos sentidos,
dos sentidos) relacionando-se com o mundo
supra-sensível) (W. H. Walsh),
Considere-se a tese (a): diversamente dos filósofos especulativos, os filósofos analíticos não estão fazendo asserções conjecturais sobre o mundo.
Contra essa tese é importante ressaltar que a história recente da filosofia tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional podem ser identificados no trabalho de filósofos ditos analíticos (e por alguns mesmo chamados de pós-analíticos). Sequer faz sentido defender que a filosofia analítica não é especulativa, pois essa história mostra que as distinções que os filósofos mantiveram entre
Filosofia crítica e Filosofia especulativa
(ocupada com a defini- (objetivando alcançar conclusões gerais
ção e análise crítica sobre a natureza do universo e sobre
dos conceitos de nossa nosso lugar e expectativas nele)
vida diária e ciências) (C. D. Broad),
Metafísica imanente e Metafísica transcendente
(limitando-se ao mundo (objetivando ir além dos sentidos,
dos sentidos) relacionando-se com o mundo
supra-sensível) (W. H. Walsh),
Metafísica descritiva e Metafísica revisionária
(ocupada com a descrição (tentando criar uma nova
de nossas estruturas reais estrutura de pensamento)
de pensamento) (P. F. Strawson),
(ocupada com a descrição (tentando criar uma nova
de nossas estruturas reais estrutura de pensamento)
de pensamento) (P. F. Strawson),
encontram um certo paralelo no domínio da filosofia analítica na distinção entre
os resultados da análise e os resultados da análise da linguagem
da linguagem pragmati- sintaticamente orientada.
camente orientada (filo- (filosofia da linguagem ideal)
sofia da linguagem or-
dinária)
De fato, há uma razão profunda para a existência desse paralelo. É que a dependência das intuições de senso comum e das correspondentes intuições lingüísticas mantida pela filosofia crítica e pelas metafísicas imanente e descritiva corresponde a uma similar dependência mantida pelo analista conceitual pragmaticamente orientado. Em contrapartida, nós vimos que o analista conceitual sintaticamente orientado quase não sente a necessidade de ter a mesma consideração com nossas intuições ordinárias espelhadas na linguagem, lembrando sob esse aspecto o filósofo especulativo.
Essas observações sugerem que a distinção entre filosofia analítica e tradicional não chega a ser uma distinção de objeto de investigação. De fato, se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode ser traduzida em um modo de discurso lingüístico-conceitualmente acentuado, ou seja, expressa de maneira a legitimar uma pretensão do filósofo especulativo de estar fazendo análise filosófica da mesma maneira que o analista conceitual. Para considerar um exemplo radical, considere o conceito de eu puro na metafísica transcendental de Fichte. O eu puro é algo apenas intelectualmente acessível, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-se a si mesmo (pôr Selbstsetzung) simultaneamente como uma necessária oposição a ele. Ora, seria hoje pouco surpreendente se filósofos analíticos contemporânos simpáticos ao idealismo decidissem traduzir tais asserções em uma análise do conceito de “eu elusivo” como constituindo e sendo constituído pela realidade social sob assunções anti-realistas. Mesmo que tal anti-realismo venha a ser no fundo tão escassamente inteligível e especulativo quanto o modelo fichteano, ele não será menos defensável do que algumas idéias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da ciência(26).
Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo analista conceitual sintaticamente orientado, já vimos que ele daria algum trabalho ao analista conceitual pragmaticamente orientado, posto que parece chocar-se contra as intuições de senso comum que a linguagem ordinária espelha. Não obstante, mesmo aqui tal estratégia não é inviável: o analista pragmaticamente orientado pode manter que o desacordo com nossas intuições é apenas aparente, e tentar mostrar que há um modo de harmonizar o que está dizendo com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias (Berkeley antecipou tal estratégia quando pretendeu que seu imaterialismo estava apenas refletindo as verdadeiras expectativas do senso comum de pessoas ainda intocadas pela filosofia!).
Para sumarizar: porque o trabalho dos filósofos analíticos pragmaticamente orientados inclui momentos de síntese hipotética em que novos conceitos são pensados e descobertos, esse trabalho é capaz de conter (mesmo que apenas indiretamente) inesperadas especulações metafísicas, as quais podem ter conseqüências até mesmo no modo como fundamos nossa apreensão da realidade empírica. O analista conceitual sintaticamente orientado pode fazer tais especulações com consciência mais leve, pois ele pode sacrificar o acordo com as suas expectativas intuitivas acerca do mundo, sem fazer com que se perca a inteligibilidade de seus argumentos, dado que para ele essa inteligibilidade é fortemente sustentada por sua própria coerência formal. Mas mesmo o analista pragmaticamente orientado pode fazer especulações metafísicas ao afirmar que os conceitos que introduz podem ser requeridos para uma mais adequada tomada de consciência de nossas concepções ordinárias acerca do mundo. Parece, pois, que todos os domínios da metafísica tradicional podem de um ou de outro modo ser alcançados pela análise lingüístico-conceitual. Portanto, manter que há realmente uma distinção de objeto de investigação entre filosofia como análise conceitual e filosofia tradicional, mesmo em suas formas mais especulativas, é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase lingüístico-conceitual.
Um argumento similar se aplica à tese (b), a qual afirma que a filosofia difere das ciências empíricas por restringir-se à investigação conceitual.
Que essa tese é falsa já deveria se ter tornado claro, posto que nosso último exemplo de análise conceitual dizia respeito também ao mundo natural, mesmo que de uma forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser apresentado de forma mais dramática. Suponha, primeiramente, que exista um analista conceitual inteiramente conseqüente, o qual, assumindo a concepção ampla de análise por nós descrita, crê que conceitos e relações entre conceitos sejam o objeto de investigação próprio da filosofia, o objeto capaz de distingui-la de outras áreas do conhecimento. Então, como ele iria considerar a ciência? Não seria difícil para ele perceber que Einstein, para chegar à conclusão de que a velocidade da luz é a mesma para todos os observadores, teve de analisar o conceito de simultaneidade quando o aplicava a observadores movendo-se a grandes velocidades relativas, pois é certo que ele não estava analisando objetos empíricos reais movendo-se no espaço. Quanto ao trabalho do famoso cosmologista contemporâneo Stephen Hawking, nosso analista conceitual poderia facilmente perceber que esse cientista não estava envolvido em nenhuma divisão dos buracos negros em si mesmos, mas em importantes análises astrofísicas do que precisa ser entendido pelo conceito de buraco negro, se desejamos obter uma compreensão coerente do fenômeno. O conceito de evolução natural, como logo perceberia o nosso analista conceitual perfeitamente conseqüente, foi primeiramente assim denominado e analisado de forma correta por Charles Darwin (e Wallace), como um resultado de reflexões baseadas em observações zoológicas e botânicas. G. J. Mendel analisou o conceito de gene, por ele chamado de fator, Watson e Cricke o conceito de DNA. O psicólogo Carl Jung vislumbrou o conceito de inconsciente coletivo, o sociólogo T. B. Veblen o de classe ociosa... Estavam todas essas pessoas fazendo filosofia? Aceitando, como o faz nosso analista conceitual inteiramente conseqüente, que nosso mundo conceitual é o objeto da filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo o trabalho teorético do pensamento parece tornar-se, de um modo ou de outro, um trabalho de análise conceitual e portanto filosófico.
Contudo, a situação oposta também pode ser imaginada: suponha que tenhamos junto a nós um empirista de cabeça dura, que decide começar com a premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente conceitual, mesmo que ele só seja acessível conceitualmente, posto que seus conceitos aplicam-se somente a fatos empíricos, mesmo que muito abrangentes. Como iria ele considerar a maioria das questões apresentadas pela filosofia? Como a teoria dos atos de fala é sobre ações comunicativas humanas em contextos reais, como a análise verificacionista dos sentidos factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como as mentes podem adquirir conhecimento acerca do mundo, como o realismo sobre leis científicas é uma tese acerca da constituição possível da realidade, ele será levado a conceber muito da filosofia como tratando de fenômenos empíricos a serem abordados pela ciência empírica, mesmo no caso deles serem pervasivos e multiabrangentes.
O caso do analista conceitual inteiramente conseqüente mostra que uma investigação que não é sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode ser sempre interpretada de uma maneira que a torne concernente a conteúdos conceituais. Já o caso do empirista de cabeça dura mostra que uma investigação usualmente concebida como sendo sobre conceitos, como a praticada por filósofos ditos analíticos, pode na maioria das vezes ser interpretada de um modo que a torne uma indagação que vá além dos conceitos e caia no domínio da ciência empírica.
Que conclusões podem ser tiradas disso? A primeira é que os objetos da filosofia não precisam diferir essencialmente daqueles da filosofia especulativa tradicional, nem daqueles da ciência, posto que a filosofia analítica não pode pretender divergir desses empreendimentos só porque trabalha com as nossas estruturas conceituais. Sendo assim, os nossos dois casos mostram que a pretensão de que o objeto de investigação próprio da filosofia deva ser a estrutura de nossos conceitos, se tomado seriamente, termina por obstruir qualquer distinção objetual entre filosofia analítica e outros empreendimentos teoréticos. Uma conclusão subseqüente é a de que mesmo o método de análise conceitual não pode ser visto como o método próprio da filosofia. Pois se o filósofo analítico trabalha com conceitos da maneira liberal acima descrita, é certo que ao cientista também é permitido proceder da mesma forma, caso considere apropriado.
Essas observações sugerem que a distinção entre filosofia analítica e tradicional não chega a ser uma distinção de objeto de investigação. De fato, se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode ser traduzida em um modo de discurso lingüístico-conceitualmente acentuado, ou seja, expressa de maneira a legitimar uma pretensão do filósofo especulativo de estar fazendo análise filosófica da mesma maneira que o analista conceitual. Para considerar um exemplo radical, considere o conceito de eu puro na metafísica transcendental de Fichte. O eu puro é algo apenas intelectualmente acessível, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-se a si mesmo (pôr Selbstsetzung) simultaneamente como uma necessária oposição a ele. Ora, seria hoje pouco surpreendente se filósofos analíticos contemporânos simpáticos ao idealismo decidissem traduzir tais asserções em uma análise do conceito de “eu elusivo” como constituindo e sendo constituído pela realidade social sob assunções anti-realistas. Mesmo que tal anti-realismo venha a ser no fundo tão escassamente inteligível e especulativo quanto o modelo fichteano, ele não será menos defensável do que algumas idéias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da ciência(26).
Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo analista conceitual sintaticamente orientado, já vimos que ele daria algum trabalho ao analista conceitual pragmaticamente orientado, posto que parece chocar-se contra as intuições de senso comum que a linguagem ordinária espelha. Não obstante, mesmo aqui tal estratégia não é inviável: o analista pragmaticamente orientado pode manter que o desacordo com nossas intuições é apenas aparente, e tentar mostrar que há um modo de harmonizar o que está dizendo com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias (Berkeley antecipou tal estratégia quando pretendeu que seu imaterialismo estava apenas refletindo as verdadeiras expectativas do senso comum de pessoas ainda intocadas pela filosofia!).
Para sumarizar: porque o trabalho dos filósofos analíticos pragmaticamente orientados inclui momentos de síntese hipotética em que novos conceitos são pensados e descobertos, esse trabalho é capaz de conter (mesmo que apenas indiretamente) inesperadas especulações metafísicas, as quais podem ter conseqüências até mesmo no modo como fundamos nossa apreensão da realidade empírica. O analista conceitual sintaticamente orientado pode fazer tais especulações com consciência mais leve, pois ele pode sacrificar o acordo com as suas expectativas intuitivas acerca do mundo, sem fazer com que se perca a inteligibilidade de seus argumentos, dado que para ele essa inteligibilidade é fortemente sustentada por sua própria coerência formal. Mas mesmo o analista pragmaticamente orientado pode fazer especulações metafísicas ao afirmar que os conceitos que introduz podem ser requeridos para uma mais adequada tomada de consciência de nossas concepções ordinárias acerca do mundo. Parece, pois, que todos os domínios da metafísica tradicional podem de um ou de outro modo ser alcançados pela análise lingüístico-conceitual. Portanto, manter que há realmente uma distinção de objeto de investigação entre filosofia como análise conceitual e filosofia tradicional, mesmo em suas formas mais especulativas, é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase lingüístico-conceitual.
Um argumento similar se aplica à tese (b), a qual afirma que a filosofia difere das ciências empíricas por restringir-se à investigação conceitual.
Que essa tese é falsa já deveria se ter tornado claro, posto que nosso último exemplo de análise conceitual dizia respeito também ao mundo natural, mesmo que de uma forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser apresentado de forma mais dramática. Suponha, primeiramente, que exista um analista conceitual inteiramente conseqüente, o qual, assumindo a concepção ampla de análise por nós descrita, crê que conceitos e relações entre conceitos sejam o objeto de investigação próprio da filosofia, o objeto capaz de distingui-la de outras áreas do conhecimento. Então, como ele iria considerar a ciência? Não seria difícil para ele perceber que Einstein, para chegar à conclusão de que a velocidade da luz é a mesma para todos os observadores, teve de analisar o conceito de simultaneidade quando o aplicava a observadores movendo-se a grandes velocidades relativas, pois é certo que ele não estava analisando objetos empíricos reais movendo-se no espaço. Quanto ao trabalho do famoso cosmologista contemporâneo Stephen Hawking, nosso analista conceitual poderia facilmente perceber que esse cientista não estava envolvido em nenhuma divisão dos buracos negros em si mesmos, mas em importantes análises astrofísicas do que precisa ser entendido pelo conceito de buraco negro, se desejamos obter uma compreensão coerente do fenômeno. O conceito de evolução natural, como logo perceberia o nosso analista conceitual perfeitamente conseqüente, foi primeiramente assim denominado e analisado de forma correta por Charles Darwin (e Wallace), como um resultado de reflexões baseadas em observações zoológicas e botânicas. G. J. Mendel analisou o conceito de gene, por ele chamado de fator, Watson e Cricke o conceito de DNA. O psicólogo Carl Jung vislumbrou o conceito de inconsciente coletivo, o sociólogo T. B. Veblen o de classe ociosa... Estavam todas essas pessoas fazendo filosofia? Aceitando, como o faz nosso analista conceitual inteiramente conseqüente, que nosso mundo conceitual é o objeto da filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo o trabalho teorético do pensamento parece tornar-se, de um modo ou de outro, um trabalho de análise conceitual e portanto filosófico.
Contudo, a situação oposta também pode ser imaginada: suponha que tenhamos junto a nós um empirista de cabeça dura, que decide começar com a premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente conceitual, mesmo que ele só seja acessível conceitualmente, posto que seus conceitos aplicam-se somente a fatos empíricos, mesmo que muito abrangentes. Como iria ele considerar a maioria das questões apresentadas pela filosofia? Como a teoria dos atos de fala é sobre ações comunicativas humanas em contextos reais, como a análise verificacionista dos sentidos factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como as mentes podem adquirir conhecimento acerca do mundo, como o realismo sobre leis científicas é uma tese acerca da constituição possível da realidade, ele será levado a conceber muito da filosofia como tratando de fenômenos empíricos a serem abordados pela ciência empírica, mesmo no caso deles serem pervasivos e multiabrangentes.
O caso do analista conceitual inteiramente conseqüente mostra que uma investigação que não é sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode ser sempre interpretada de uma maneira que a torne concernente a conteúdos conceituais. Já o caso do empirista de cabeça dura mostra que uma investigação usualmente concebida como sendo sobre conceitos, como a praticada por filósofos ditos analíticos, pode na maioria das vezes ser interpretada de um modo que a torne uma indagação que vá além dos conceitos e caia no domínio da ciência empírica.
Que conclusões podem ser tiradas disso? A primeira é que os objetos da filosofia não precisam diferir essencialmente daqueles da filosofia especulativa tradicional, nem daqueles da ciência, posto que a filosofia analítica não pode pretender divergir desses empreendimentos só porque trabalha com as nossas estruturas conceituais. Sendo assim, os nossos dois casos mostram que a pretensão de que o objeto de investigação próprio da filosofia deva ser a estrutura de nossos conceitos, se tomado seriamente, termina por obstruir qualquer distinção objetual entre filosofia analítica e outros empreendimentos teoréticos. Uma conclusão subseqüente é a de que mesmo o método de análise conceitual não pode ser visto como o método próprio da filosofia. Pois se o filósofo analítico trabalha com conceitos da maneira liberal acima descrita, é certo que ao cientista também é permitido proceder da mesma forma, caso considere apropriado.
4. CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O ORGANON ARISTOTÉLICO
Qual é então a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise conceitual e, de outro, a filosofia especulativa e ciência, se essa não é uma diferença no objeto de investigação? A resposta parece ser a de que há aqui uma diferença metodológica contingente, uma diferença nos modos como o objeto de investigação é questionado. Filósofos analíticos submetem o seu questionamento a um controle metodológico muito mais rigoroso ao apresentar as suas concepções em uma metalinguagem semântica, ao escrutiná-las através de um novo instrumental lógico e lingüístico, e ainda, o que tem se tornado sempre mais importante, ao opô-las sempre ao pano de fundo de nossa visão de mundo contemporânea, cientificamente informada. Sendo assim, somos levados a concluir que filosofia analítica é somente o nome que damos a uma mais maneira mais refinada de fazer filosofia desenvolvida durante o século XX, a qual requer a ênfase do meio lingüístico-conceitual, principalmente por razões de rigor metodológico. Como a filosofia é uma espécie de jogo heurístico com lances argumentativos realizados com um material de símbolos lingüísticos, é fácil entender por que o uso de instrumentos analíticos tornou-se uma característica distintiva da filosofia atual, ao menos em suas áreas mais centrais como a epistemologia, a metafísica, a filosofia da linguagem etc.
Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a assimilação de procedimentos analíticos por domínios centrais da filosofia contemporânea.
Aristóteles considerou as novas doutrinas lógicas e metodológicas contidas em seu Organon um instrumento necessário para um adequado exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon continha uma teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio dedutivo (a silogística), observações sobre a natureza das definições, o esboço de uma teoria do raciocínio científico e da explicação científica, uma classificação das falácias e suas soluções... Com efeito, a assimilação das doutrinas contidas no Organon mudou lenta mas definitivamente nossos modos de fazer filosofia em seus domínios centrais. Os instrumentos aristotélicos de investigação foram assimilados e aperfeiçoados durante a Idade Média, geralmente sob o nome de dialética, estabelecendo novos e irreversíveis padrões argumentativos em filosofia, que uma vez adotados nunca mais puderam ser ignorados.
Ora, a assim chamada filosofia analítica pode ser explicada como a conseqüência de uma revolução metodológica similar. Desde o final do século XIX, desenvolvimentos extremamente importantes em domínios similares aos cobertos pelo Organon aristotélicos surgiram. Alguns diziam respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana), outros concerniam à lógica dedutiva (a lógica predicativa de primeira e segunda ordem, a lógica modal, a lógica epistêmica...), ao raciocínio indutivo (teorias da probabilidade, da decisão...), à pragmática (teorias da verificação, concepções contextualistas do significado como função do uso, a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da explicação, da confirmação...). Seria deveras surpreendente se a filosofia, ao menos em muitos de seus domínios, não acabasse sendo definitivamente alterada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões superiores de claridade e rigor e aumentando de modo impressivo o seu potencial heurístico. A assimilação de todos esses novos procedimentos em uma investigação que além disso não deixa de levar em conta os resultados da ciência tem permitido e irá permitir que vejamos mais coisas de modos mais claros e distintos, em uma revolução comparável àquela que a descoberta do telescópio representou para a astronomia.
Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a filosofia analítica parece ter somente a linguagem como objeto é a sua preocupação propedêutica geral com o elemento lingüístico-conceitual, tornada perceptível principalmente através do que Quine chamou de acento semântico. Esse fato confundiu filósofos analíticos, levando-os a tomar novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser usados em outro lugar – pelo método peculiar da filosofia, levando-os ao erro subseqüente de confundir o objeto de aplicação desses instrumentos com o objeto peculiar da filosofia. O fato de em filosofia nós geralmente apelarmos a uma metalinguagem semântica a sublinhar a linguagem, a qual nos compele a um tratamento mais rigoroso das estruturas lingüístico-conceituais sem ignorar seus sentidos ou mesmo as suas referências (concebidas através de seus sentidos), portanto, sem fechar o caminho para o mundo, é um elemento constitutivo essencial do que, de um modo um tanto enganoso, tem sido chamado de filosofia analítica. De fato, se “análise conceitual” é o nome de algo, então, é o nome dos modos filosóficos de indagação que incorporam em si mesmos uma certa ênfase conceitual, junto com os procedimentos heurísticos que se foram tornando comuns a domínios centrais da filosofia no decorrer do século XX. Em suma: “análise conceitual” é o nome dado aos mais salientes traços procedimentais de um estado da arte historicamente contingente – de um estilo, mais do que de uma coisa. Mais tarde (capítulo VII, 3) veremos que a emergência da filosofia analítica pode ser muito melhor compreendida como um evento histórico contingente, gerado pelo desenvolvimento do que poderia ser chamado de “ciências semióticas”, nada tendo a ver com a descoberta do verdadeiro objeto da filosofia ou de seu próprio e inalienável método.
Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a assimilação de procedimentos analíticos por domínios centrais da filosofia contemporânea.
Aristóteles considerou as novas doutrinas lógicas e metodológicas contidas em seu Organon um instrumento necessário para um adequado exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon continha uma teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio dedutivo (a silogística), observações sobre a natureza das definições, o esboço de uma teoria do raciocínio científico e da explicação científica, uma classificação das falácias e suas soluções... Com efeito, a assimilação das doutrinas contidas no Organon mudou lenta mas definitivamente nossos modos de fazer filosofia em seus domínios centrais. Os instrumentos aristotélicos de investigação foram assimilados e aperfeiçoados durante a Idade Média, geralmente sob o nome de dialética, estabelecendo novos e irreversíveis padrões argumentativos em filosofia, que uma vez adotados nunca mais puderam ser ignorados.
Ora, a assim chamada filosofia analítica pode ser explicada como a conseqüência de uma revolução metodológica similar. Desde o final do século XIX, desenvolvimentos extremamente importantes em domínios similares aos cobertos pelo Organon aristotélicos surgiram. Alguns diziam respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana), outros concerniam à lógica dedutiva (a lógica predicativa de primeira e segunda ordem, a lógica modal, a lógica epistêmica...), ao raciocínio indutivo (teorias da probabilidade, da decisão...), à pragmática (teorias da verificação, concepções contextualistas do significado como função do uso, a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da explicação, da confirmação...). Seria deveras surpreendente se a filosofia, ao menos em muitos de seus domínios, não acabasse sendo definitivamente alterada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões superiores de claridade e rigor e aumentando de modo impressivo o seu potencial heurístico. A assimilação de todos esses novos procedimentos em uma investigação que além disso não deixa de levar em conta os resultados da ciência tem permitido e irá permitir que vejamos mais coisas de modos mais claros e distintos, em uma revolução comparável àquela que a descoberta do telescópio representou para a astronomia.
Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a filosofia analítica parece ter somente a linguagem como objeto é a sua preocupação propedêutica geral com o elemento lingüístico-conceitual, tornada perceptível principalmente através do que Quine chamou de acento semântico. Esse fato confundiu filósofos analíticos, levando-os a tomar novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser usados em outro lugar – pelo método peculiar da filosofia, levando-os ao erro subseqüente de confundir o objeto de aplicação desses instrumentos com o objeto peculiar da filosofia. O fato de em filosofia nós geralmente apelarmos a uma metalinguagem semântica a sublinhar a linguagem, a qual nos compele a um tratamento mais rigoroso das estruturas lingüístico-conceituais sem ignorar seus sentidos ou mesmo as suas referências (concebidas através de seus sentidos), portanto, sem fechar o caminho para o mundo, é um elemento constitutivo essencial do que, de um modo um tanto enganoso, tem sido chamado de filosofia analítica. De fato, se “análise conceitual” é o nome de algo, então, é o nome dos modos filosóficos de indagação que incorporam em si mesmos uma certa ênfase conceitual, junto com os procedimentos heurísticos que se foram tornando comuns a domínios centrais da filosofia no decorrer do século XX. Em suma: “análise conceitual” é o nome dado aos mais salientes traços procedimentais de um estado da arte historicamente contingente – de um estilo, mais do que de uma coisa. Mais tarde (capítulo VII, 3) veremos que a emergência da filosofia analítica pode ser muito melhor compreendida como um evento histórico contingente, gerado pelo desenvolvimento do que poderia ser chamado de “ciências semióticas”, nada tendo a ver com a descoberta do verdadeiro objeto da filosofia ou de seu próprio e inalienável método.
III
FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA
Onde a filosofia esteve, lá deverá estar a ciência.
Robert Nozick
’Filosofia’ poderia ser também chamado o que
é possível antes de todas as novas descobertas
e invenções.
Wittgenstein
Robert Nozick
’Filosofia’ poderia ser também chamado o que
é possível antes de todas as novas descobertas
e invenções.
Wittgenstein
Neste capítulo começo a busca descritivista pelos critérios usados para identificar o discurso e pensamento filosóficos. Minha sugestão inicial é que, mesmo que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação filosófica, ou nada de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo, ainda assim seremos capazes de encontrar algo muito peculiar à filosofia se prestarmos atenção a sua forma.
1. O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL
DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA
Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço identificador da filosofia nos aspectos materiais da investigação, ele poderá sempre encontrar um traço formal muito peculiar e comum a toda indagação filosófica, qual seja, o seu caráter conjectural. Filosofia é essencialmente um empreendimento conjectural ou especulativo, no sentido de que filósofos não são capazes de produzir acordo consensual suficiente no que concerne a suas idéias, doutrinas e mesmo aos seus valores e concepções mais fundamentais. Não há filosofia cujos resultados possam ser tomados por certos ou indiscutíveis. A razão dessa dificuldade não é difícil de ser encontrada. Para alcançarmos acordo consensual sobre os resultados de nossos questionamentos intelectuais, precisamos compartilhar de alguns pressupostos fundamentadores. Mas a filosofia carece de um mínimo de compartilhamento de pressupostos em quase todos os passos de sua indagação. Particularmente importante nesse aspecto é a ausência de pressupostos compartilhados capazes de produzir acordo consensual sobre
(A) o que são as verdadeiras questões, os problemas, como devem ser as suas formulações, quais são as assunções gerais que formam o pano de fundo do campo de investigação em questão. (Filósofos nunca concordam sobre quais são as questões e preocupações relevantes, ou sobre se elas realmente fazem sentido, se não são pseudo-problemas.)
E também sobre
(B) o que deve contar como procedimento de avaliação da verdade, ou seja, como procedimento verificacional e/ou falsificacional de argumentação, capaz de confirmar ou desconfirmar as soluções aventadas, sejam elas empíricas ou conceituais. (Filósofos nunca concordam quanto ao peso dos seus argumentos; argumentos convincentes para uns podem parecer falaciosos ou irrelevantes para outros.)
Sem o compartilhamento de semelhantes assunções (que não existe na filosofia, embora exista na ciência) parece impossível esperar qualquer coisa como um acordo sobre resultados.
Para exemplificar, consideremos uma vez mais a doutrina platônica das idéias. Essa doutrina foi sugerida como uma solução para o problema da generalidade ou predicação e construída sob o pressuposto de que para algo ser um objeto de conhecimento, esse algo deve ser imutável. Ora, como o mundo visível é sempre passível de mudança, o único objeto próprio do conhecimento deve ser aquilo que Platão chamou de idéias ou formas, objetos existindo fora do tempo em um mundo puramente inteligível. Como conseqüência podemos, por exemplo, generalizar, dizendo que muitas coisas são belas e predicar beleza de uma grande diversidade de coisas visíveis, na medida em que elas exemplificam a idéia abstrata do belo. Contudo, a doutrina também conduz a dificuldades. Uma delas é a seguinte: como pode a idéia preservar a sua unidade quando compartilhada pelos muitos indivíduos aos quais se aplica? Para resolver esse problema, Platão apela para os conceitos de participação e de cópia, por ele usados de uma maneira metafísica e, aparentemente, inconsistente. Assim, ele é forçado a defender que muitas coisas podem participar de uma mesma idéia, mas sem a dividir em partes, o que parece ser inconsistente com o conceito de participação. E ele é também forçado a pensar que uma coisa deve ser similar à idéia da qual é cópia, mas que a idéia não pode ser similar à coisa, o que é inconsistente com o caráter simétrico da relação de similaridade.
O que têm os críticos da doutrina platônica a dizer acerca disso? Primeiro, eles estão livres para rejeitar o pressuposto platônico de que o conhecimento deve ter por objeto algo imutável, e a questionar a necessidade de se recorrer a objetos não-empíricos do conhecimento não-analítico. Ademais, eles podem se sentir tentados a considerar o conceito platônico de idéia em última análise incoerente, posto que a tentativa de explicá-lo é feita através de metáforas irresgatáveis. São essas objeções justificadas? Sim, talvez. Mas para ser mais justo, não sabemos ao certo. A incerteza é de fato esperada, visto que a filosofia consiste na criação de teorias sempre dubiosas, fundadas sobre bases incertas. Essa é uma conclusão falibilista um tanto deprimente, que filósofos tradicionais tentaram negar, mas que filósofos contemporâneos já há algum tempo aprenderam a admitir como inevitável. De fato, não há exceção. Mesmo a filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser puramente descritiva, acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo consensual: onde Wittgenstein viu um remédio, outros viam um placebo ou mesmo um veneno.
Essa impossibilidade de acordo consensual também provê o mais saliente termo de contraste entre filosofia e ciência: diversamente da filosofia, em todas as ciências, tanto empíricas quanto formais, encontramos sempre um suficiente acordo prévio acerca de assunções gerais (que tornam possível a existência de problemas comuns), bem como suficiente acordo prévio acerca de procedimentos de avaliação da verdade (que possibilitam que se chegue a soluções comuns). Tais acordos prévios possibilitam o acordo ulterior acerca dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação/refutação em ciências empíricas, quanto no que concerne às provas de teoremas em ciências formais. É porque cientistas, diversamente de filósofos, foram capazes de estabelecer tais pressupostos comuns, que eles conseguem alcançar acordos acerca dos resultados de suas investigações e ter a esperança de chegar a um desenvolvimento progressivo.
Prestar atenção à natureza conjectural do esforço filosófico ajuda-nos a explicar duas outras características formais suas, que são o caráter tipicamente argumentativo e aporético de seu discurso, com poucas (e questionáveis) exceções. Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo certos princípios incertos e tentando validá-los ao mostrar o quanto deles se segue. Tal procedimento é dependente do caráter conjectural da indagação filosófica, posto que pelo próprio fato de trabalharem com conjecturas, filósofos procedem a uma constante comparação crítica entre as conseqüências argumentativas das assunções que eles crêem ser corretas, adicionada a uma comparação crítica entre as qualidades dos argumentos usados para se chegar a essas conseqüências, em uma tarefa aparentemente sem fim. O caráter conjectural da filosofia gera a sua praxis caracteristicamente argumentativa, dialógica e aporética.
Poderia a filosofia ser definida apenas em termos de seu caráter conjectural e especulativo? Não sem qualificações, posto que nem todas as conjecturas são filosóficas. Podemos, por exemplo, fazer conjecturas sobre as condições climáticas da Terra nos próximos cinqüenta anos, mas isso não chega a constituir uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa conjectura não é filosófica pode ser a falta de um ponto teorético: ela não passa de uma projeção plausível de eventos empíricos. Por outro lado, a conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática universal inata a todos os homens não pode ser facilmente provada, sendo em uma certa medida filosófica. Mas ela só é filosófica em um sentido muito enfraquecido, posto que esse é um problema bastante específico, cujos caminhos de verificação experimental seriam facilmente reconhecíveis quando encontrados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física contemporânea, como a teoria das cordas, não são atualmente testáveis. Elas possuem, diríamos, algo de filosófico, mas são consideradas científicas na medida em que os físicos não as considerarem tão especulativas a ponto de parecer absurda a idéia de se encontrar um meio de fazê-las passar pelo tribunal da experiência. Vemos, pois, que a diferença entre especulação científica e filosófica não é tão abrupta, dependendo também do grau de impossibilidade de comprovação consensual. Poderíamos então qualificar como filosóficos todos os esforços argumentativos e definitivamente conjecturais, geralmente com um ponto teorético e uma preocupação ampla? Isso parece correto, embora ainda breve e pouco informativo.
O que têm os críticos da doutrina platônica a dizer acerca disso? Primeiro, eles estão livres para rejeitar o pressuposto platônico de que o conhecimento deve ter por objeto algo imutável, e a questionar a necessidade de se recorrer a objetos não-empíricos do conhecimento não-analítico. Ademais, eles podem se sentir tentados a considerar o conceito platônico de idéia em última análise incoerente, posto que a tentativa de explicá-lo é feita através de metáforas irresgatáveis. São essas objeções justificadas? Sim, talvez. Mas para ser mais justo, não sabemos ao certo. A incerteza é de fato esperada, visto que a filosofia consiste na criação de teorias sempre dubiosas, fundadas sobre bases incertas. Essa é uma conclusão falibilista um tanto deprimente, que filósofos tradicionais tentaram negar, mas que filósofos contemporâneos já há algum tempo aprenderam a admitir como inevitável. De fato, não há exceção. Mesmo a filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser puramente descritiva, acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo consensual: onde Wittgenstein viu um remédio, outros viam um placebo ou mesmo um veneno.
Essa impossibilidade de acordo consensual também provê o mais saliente termo de contraste entre filosofia e ciência: diversamente da filosofia, em todas as ciências, tanto empíricas quanto formais, encontramos sempre um suficiente acordo prévio acerca de assunções gerais (que tornam possível a existência de problemas comuns), bem como suficiente acordo prévio acerca de procedimentos de avaliação da verdade (que possibilitam que se chegue a soluções comuns). Tais acordos prévios possibilitam o acordo ulterior acerca dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação/refutação em ciências empíricas, quanto no que concerne às provas de teoremas em ciências formais. É porque cientistas, diversamente de filósofos, foram capazes de estabelecer tais pressupostos comuns, que eles conseguem alcançar acordos acerca dos resultados de suas investigações e ter a esperança de chegar a um desenvolvimento progressivo.
Prestar atenção à natureza conjectural do esforço filosófico ajuda-nos a explicar duas outras características formais suas, que são o caráter tipicamente argumentativo e aporético de seu discurso, com poucas (e questionáveis) exceções. Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo certos princípios incertos e tentando validá-los ao mostrar o quanto deles se segue. Tal procedimento é dependente do caráter conjectural da indagação filosófica, posto que pelo próprio fato de trabalharem com conjecturas, filósofos procedem a uma constante comparação crítica entre as conseqüências argumentativas das assunções que eles crêem ser corretas, adicionada a uma comparação crítica entre as qualidades dos argumentos usados para se chegar a essas conseqüências, em uma tarefa aparentemente sem fim. O caráter conjectural da filosofia gera a sua praxis caracteristicamente argumentativa, dialógica e aporética.
Poderia a filosofia ser definida apenas em termos de seu caráter conjectural e especulativo? Não sem qualificações, posto que nem todas as conjecturas são filosóficas. Podemos, por exemplo, fazer conjecturas sobre as condições climáticas da Terra nos próximos cinqüenta anos, mas isso não chega a constituir uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa conjectura não é filosófica pode ser a falta de um ponto teorético: ela não passa de uma projeção plausível de eventos empíricos. Por outro lado, a conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática universal inata a todos os homens não pode ser facilmente provada, sendo em uma certa medida filosófica. Mas ela só é filosófica em um sentido muito enfraquecido, posto que esse é um problema bastante específico, cujos caminhos de verificação experimental seriam facilmente reconhecíveis quando encontrados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física contemporânea, como a teoria das cordas, não são atualmente testáveis. Elas possuem, diríamos, algo de filosófico, mas são consideradas científicas na medida em que os físicos não as considerarem tão especulativas a ponto de parecer absurda a idéia de se encontrar um meio de fazê-las passar pelo tribunal da experiência. Vemos, pois, que a diferença entre especulação científica e filosófica não é tão abrupta, dependendo também do grau de impossibilidade de comprovação consensual. Poderíamos então qualificar como filosóficos todos os esforços argumentativos e definitivamente conjecturais, geralmente com um ponto teorético e uma preocupação ampla? Isso parece correto, embora ainda breve e pouco informativo.
2. A IDÉIA DA FILOSOFIA COMO UMA PROTOCIÊNCIA
Uma resposta mais profunda à questão “Por que a filosofia é uma forma conjectural de investigação?” poderia ser dada no caso de admitirmos a tese de que ela é uma protociência, ou seja, um empreendimento conjectural antecipador da ciência, e que a duradoura atualidade das teorias filosóficas têm a sua origem nas verdades científicas que nelas vêm antecipadas.
Que ao menos parte da filosofia é (ou foi) uma antecipação da ciência não é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos, quando todas as ciências empíricas fundamentais ainda estavam para ser formadas, a palavra “filosofia” era indistintamente aplicada ao completo domínio da investigação humana. Somente muito mais tarde, com a emergência daquelas ciências, a aplicação da palavra “filosofia” tornou-se gradualmente mais e mais restrita. Ao ceder partes de seus domínios à ciência a filosofia tem se revelado, como Antony Kenny escreveu, o útero do qual as ciências particulares nasceram(27). Essa constatação do papel da filosofia como protociência foi sintetizada de maneira impressiva em uma bem conhecida metáfora de J. L. Austin:
Que ao menos parte da filosofia é (ou foi) uma antecipação da ciência não é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos, quando todas as ciências empíricas fundamentais ainda estavam para ser formadas, a palavra “filosofia” era indistintamente aplicada ao completo domínio da investigação humana. Somente muito mais tarde, com a emergência daquelas ciências, a aplicação da palavra “filosofia” tornou-se gradualmente mais e mais restrita. Ao ceder partes de seus domínios à ciência a filosofia tem se revelado, como Antony Kenny escreveu, o útero do qual as ciências particulares nasceram(27). Essa constatação do papel da filosofia como protociência foi sintetizada de maneira impressiva em uma bem conhecida metáfora de J. L. Austin:
A filosofia é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que de tempos em tempos perde uma porção de si mesmo que se torna ciência, um planeta, frio e bem regulado, progredindo constantemente em direção a um estado final distante. Isso aconteceu há longo tempo atrás, com o nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física; somente no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra vez, lento e naquele tempo quase imperceptível, no nascimento da ciência da lógica matemática, através do trabalho conjunto de filósofos e matemáticos.(28)
Na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação especulativa trabalhada em um material de pensamento que ao menos potencialmente é capaz de receber um lugar na ciência, nós temos uma razão mais profunda para explicar a sua natureza conjectural, argumentativa e aporética. Essa razão é que se a filosofia é o que pode ser feito antes da investigação científica se tornar possível, então torna-se mais compreensível que as mais diversas hipóteses possam ser sugeridas, que as mais diversas linhas de pensamento possam ser desenvolvidas na tentativa de justificá-las, e que a disputa sobre a hipótese certa e o melhor argumento perdure indefinidamente. Esse estado de coisas somente termina quando o caminho da inquirição científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando os investigadores finalmente alcançam suficiente acordo sobre os pressupostos fundamentadores subjacentes a um certo campo de investigação, o que estabelece uma clara delimitação para as questões a serem admitidas e para os procedimentos pelos quais as suas respostas podem ser avaliadas. Quando esse acordo prévio é suficientemente amplo para permitir a produção de resultados consensuais, os investigadores não continuam a chamar o seu objeto de pesquisa de “filosófico”: eles simplesmente o redefinem como objeto da ciência. Por isso é que se diz que a tragédia do filósofo é que sempre que ele alcança uma verdade definitiva, ele a perde para o cientista.
3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA
Antes de discutirmos em maiores detalhes as possibilidades de derivação da ciência a partir da filosofia é aconselhável dizer alguma coisa sobre a classificação e emergência das ciências mais fundamentais.
Ciências são obviamente de dois tipos: formal e empírico. Estes dois tipos de ciência sempre foram em certa medida interdependentes em seus desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais foram a lógica e a matemática. A matemática teve a sua origem na Antiguidade. A aritmética elementar separou-se da filosofia já entre os gregos, quando o seu objeto, o elemento numérico, foi pela primeira vez considerado em separação dos problemas práticos que a aritmética deveria resolver. Uma parte muito limitada da lógica, ao menos, começou muito cedo, já com a silogística aristotélica.
Poderíamos falar de protomatemática e protológica filosóficas? Por que não? O poema de Parmênides, por exemplo, contém uma sugestão metafisicamente formulada da lei lógica da não-contradição, ao afirmar que o Ser é e que o não-Ser não pode ser, enquanto Platão dispunha de uma teoria rudimentar da predicação. Além disso, os filósofos pitagóricos, impressionados com as realizações da matemática abstrata, acreditavam que os números fossem o princípio sustentador de toda a realidade, confundindo à sua maneira o formal com o empírico. Contudo, a verdadeira questão sobre a natureza dos números ainda estava por esse tempo oculta na mais completa escuridão.
Voltando-nos para as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão corrigida e atualizada da velha classificação das ciências empíricas fundamentais proposta por Auguste Comte, posto que ela ainda parece bastante razoável, além do fato de ser capaz de prover-nos de um rationale para a compreensão da ordem do aparecimento dessas ciências. O seu princípio de classificação mantém que as ciências fundamentais estão relacionadas umas às outras em uma ordem que vai (a) da maior para a menor generalidade no escopo, correspondendo isso a uma ordem inversa, que vai (b) da menor para a maior complexidade dos fenômenos por elas investigados. Modificando um pouco a classificação original de modo a atualizá-la podemos, aplicando esse princípio, distinguir cinco ciências fundamentais: física, química, biologia, psicologia e sociologia(29). O seguinte esquema sumariza essa classificação:
Ciências são obviamente de dois tipos: formal e empírico. Estes dois tipos de ciência sempre foram em certa medida interdependentes em seus desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais foram a lógica e a matemática. A matemática teve a sua origem na Antiguidade. A aritmética elementar separou-se da filosofia já entre os gregos, quando o seu objeto, o elemento numérico, foi pela primeira vez considerado em separação dos problemas práticos que a aritmética deveria resolver. Uma parte muito limitada da lógica, ao menos, começou muito cedo, já com a silogística aristotélica.
Poderíamos falar de protomatemática e protológica filosóficas? Por que não? O poema de Parmênides, por exemplo, contém uma sugestão metafisicamente formulada da lei lógica da não-contradição, ao afirmar que o Ser é e que o não-Ser não pode ser, enquanto Platão dispunha de uma teoria rudimentar da predicação. Além disso, os filósofos pitagóricos, impressionados com as realizações da matemática abstrata, acreditavam que os números fossem o princípio sustentador de toda a realidade, confundindo à sua maneira o formal com o empírico. Contudo, a verdadeira questão sobre a natureza dos números ainda estava por esse tempo oculta na mais completa escuridão.
Voltando-nos para as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão corrigida e atualizada da velha classificação das ciências empíricas fundamentais proposta por Auguste Comte, posto que ela ainda parece bastante razoável, além do fato de ser capaz de prover-nos de um rationale para a compreensão da ordem do aparecimento dessas ciências. O seu princípio de classificação mantém que as ciências fundamentais estão relacionadas umas às outras em uma ordem que vai (a) da maior para a menor generalidade no escopo, correspondendo isso a uma ordem inversa, que vai (b) da menor para a maior complexidade dos fenômenos por elas investigados. Modificando um pouco a classificação original de modo a atualizá-la podemos, aplicando esse princípio, distinguir cinco ciências fundamentais: física, química, biologia, psicologia e sociologia(29). O seguinte esquema sumariza essa classificação:
PARTICULARIDADE COMPLEXIDADE
5. sociologia ciências
4. psicologia humanas
(a) (b)
3. biologia ciências
2. química naturais
1. física
4. psicologia humanas
(a) (b)
3. biologia ciências
2. química naturais
1. física
GENERALIDADE SIMPLICIDADE
A física é a primeira ciência fundamental, abrangendo em seu escopo toda a realidade empíricas, sem exceção. A química tem um escopo mais restrito, aplicando-se à realidade empírica formada pela combinação de elementos atômicos. A biologia se aplica somente a compostos químicos que constituem organismos vivos. A psicologia se aplica somente a organismos que possuem consciência. E a ciência social restringe o seu escopo a organismos conscientes, na medida em que eles se estruturam socialmente. À progressiva perda de generalidade dos fenômenos investigados corresponde um ganho em complexidade, o que se dá pelo fato da complexidade ser inconcebível no domínio do mais geral.
As relações de generalidade e complexidade também nos ajudam a explicar a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências fundamentais e, relacionada a isso, também a própria ordem de seu desenvolvimento histórico. De fato, para aprender física nós não precisamos geralmente aprender qualquer coisa de química, mas a química pressupõe algum entendimento de física em seus fundamentos. Também o aprendizado e a aceitação da psicologia pressupõe algum entendimento de biologia, mas não o contrário etc. O desenvolvimento das ciências fundamentais mais específicas e complexas depende de um ou de outro modo do desenvolvimento das ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência também envolve os desenvolvimentos das aplicações das ciências mais gerais: como poderia, por exemplo, a biologia se desenvolver sem o microscópio, cuja construção depende de desenvolvimentos prévios no âmbito da física? Isso nos faz entender por que, com o Renascimento, a primeira ciência a emergir foi a física. Embora houvesse rudimentos de física mesmo na antiguidade (ex.: a descoberta da densidade específica por Arquimedes), somente após Galileu a física experimental foi capaz de emergir como um corpus unificado de idéias científicas. Depois da física, as outras ciências fundamentais, a química, a biologia, a psicologia, a ciência social, separaram-se subseqüentemente da filosofia – as últimas duas parece que até hoje só parcialmente, em um processo escalonado, gradual e convulsionado.
Mais além, essas dependências nos ajudam a explicar por que o processo de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito mais lento, laborioso e escalonado. Nós encontramos uma ruptura epistemológica(30) clara no nascimento da física como um corpo de conhecimento científico com Galileu e Newton nos séculos XVII e XVIII, no nascimento da química com Lavoisier, Cavendish e outros no final do século XVIII, e mesmo na mais escalonada organização da biologia como um corpo de conhecimento científico durante todo o século XIX, por cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin. Rupturas ocorreram nessas ciências quando, além do acúmulo do conhecimento, apropriados métodos de investigação foram encontrados, os quais proveram a possibilidade de acordo consensual sobre o poder preditivo e explicativo de suas teorias dentro de um corpus unificado. Não obstante, não encontramos ruptura abrupta nos domínios mais complexos da psicologia e da ciência social. Uma razão para isso pode ser o irredutível elemento de evidência interna, introspectiva, que sempre desempenha um papel nas ciências humanas e sociais. Esse elemento de evidência interna não é aberto à observação interpessoal e por essa razão não pode ser tão facilmente considerado objetivamente – embora ele não seja de modo algum desesperadamente subjetivo, como alguns ainda pretendem(31). Mas uma outra razão para a constituição mais gradual das ciências humanas pode estar no fato de que em domínios de maior complexidade e diversidade dos fenômenos estudados os procedimentos avaliativos requerem um considerável conhecimento de fundo, o qual é provido pelas ciências mais fundamentais. Para sintetizar: de um modo ou de outro as ciências humanas requerem, para o seu desenvolvimento, a maturidade das ciências mais fundamentais e, em adição a isso, o desenvolvimento de suas possibilidades de aplicação técnica. (Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais científica a psicologia poderá apresentar-se no futuro, após uma explicação adequada das bases neurofisiológicas dos fenômenos mentais por uma neurociência suficientemente desenvolvida).
Há uma razão pela qual as ciências que estivemos considerando merecem ser chamadas de “fundamentais”. As outras ciências empíricas disponíveis são, ou subdivisões particularizadas dessas ciências fundamentais (como a lingüística e a economia como partes da ciência social) ou combinações dos resultados das ciências fundamentais, os quais são aplicados localmente a certos tipos específicos de objetos ou regiões do espaço e do tempo. Exemplos do último tipo são a história, que aplica (entre outras coisas) insights psicológicos e sociológicos ao entendimento das mudanças no mundo humano; a etnologia, que aplica a psicologia e a sociologia ao estudo de grupos étnicos culturalmente distintos; a geologia, que aplica física e química ao estudo da Terra; a neurofisiologia, que aplica a bioquímica e biofísica à investigação do funcionamento do cérebro... (Pode haver, obviamente, combinações dessas aplicações e assim por diante.)
Finalmente, devemos notar que a emergência de ciências fundamentais sempre substituiu a especulação metafísica. A emergência da física como ciência experimental pôs um fim ao reino da física aristotélica especulativa (na medida em que esta não se mesclava confusamente à metafísica), um destino similar tendo a doutrina dos quatro elementos após o desenvolvimento da química e também o vitalismo (a doutrina segundo a qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais diferentes das forças físicas) após o desenvolvimento da biologia.
Neste e nos próximos capítulos irei assumir essa classificação comtiana modificada das ciências fundamentais, posto que ela permanence a mais intuitiva e indisputável, ao menos enquanto não a subordinarmos a questões subseqüentes sobre redução teórica ou a um problema metafísico acerca da unidade das ciências.
As relações de generalidade e complexidade também nos ajudam a explicar a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências fundamentais e, relacionada a isso, também a própria ordem de seu desenvolvimento histórico. De fato, para aprender física nós não precisamos geralmente aprender qualquer coisa de química, mas a química pressupõe algum entendimento de física em seus fundamentos. Também o aprendizado e a aceitação da psicologia pressupõe algum entendimento de biologia, mas não o contrário etc. O desenvolvimento das ciências fundamentais mais específicas e complexas depende de um ou de outro modo do desenvolvimento das ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência também envolve os desenvolvimentos das aplicações das ciências mais gerais: como poderia, por exemplo, a biologia se desenvolver sem o microscópio, cuja construção depende de desenvolvimentos prévios no âmbito da física? Isso nos faz entender por que, com o Renascimento, a primeira ciência a emergir foi a física. Embora houvesse rudimentos de física mesmo na antiguidade (ex.: a descoberta da densidade específica por Arquimedes), somente após Galileu a física experimental foi capaz de emergir como um corpus unificado de idéias científicas. Depois da física, as outras ciências fundamentais, a química, a biologia, a psicologia, a ciência social, separaram-se subseqüentemente da filosofia – as últimas duas parece que até hoje só parcialmente, em um processo escalonado, gradual e convulsionado.
Mais além, essas dependências nos ajudam a explicar por que o processo de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito mais lento, laborioso e escalonado. Nós encontramos uma ruptura epistemológica(30) clara no nascimento da física como um corpo de conhecimento científico com Galileu e Newton nos séculos XVII e XVIII, no nascimento da química com Lavoisier, Cavendish e outros no final do século XVIII, e mesmo na mais escalonada organização da biologia como um corpo de conhecimento científico durante todo o século XIX, por cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin. Rupturas ocorreram nessas ciências quando, além do acúmulo do conhecimento, apropriados métodos de investigação foram encontrados, os quais proveram a possibilidade de acordo consensual sobre o poder preditivo e explicativo de suas teorias dentro de um corpus unificado. Não obstante, não encontramos ruptura abrupta nos domínios mais complexos da psicologia e da ciência social. Uma razão para isso pode ser o irredutível elemento de evidência interna, introspectiva, que sempre desempenha um papel nas ciências humanas e sociais. Esse elemento de evidência interna não é aberto à observação interpessoal e por essa razão não pode ser tão facilmente considerado objetivamente – embora ele não seja de modo algum desesperadamente subjetivo, como alguns ainda pretendem(31). Mas uma outra razão para a constituição mais gradual das ciências humanas pode estar no fato de que em domínios de maior complexidade e diversidade dos fenômenos estudados os procedimentos avaliativos requerem um considerável conhecimento de fundo, o qual é provido pelas ciências mais fundamentais. Para sintetizar: de um modo ou de outro as ciências humanas requerem, para o seu desenvolvimento, a maturidade das ciências mais fundamentais e, em adição a isso, o desenvolvimento de suas possibilidades de aplicação técnica. (Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais científica a psicologia poderá apresentar-se no futuro, após uma explicação adequada das bases neurofisiológicas dos fenômenos mentais por uma neurociência suficientemente desenvolvida).
Há uma razão pela qual as ciências que estivemos considerando merecem ser chamadas de “fundamentais”. As outras ciências empíricas disponíveis são, ou subdivisões particularizadas dessas ciências fundamentais (como a lingüística e a economia como partes da ciência social) ou combinações dos resultados das ciências fundamentais, os quais são aplicados localmente a certos tipos específicos de objetos ou regiões do espaço e do tempo. Exemplos do último tipo são a história, que aplica (entre outras coisas) insights psicológicos e sociológicos ao entendimento das mudanças no mundo humano; a etnologia, que aplica a psicologia e a sociologia ao estudo de grupos étnicos culturalmente distintos; a geologia, que aplica física e química ao estudo da Terra; a neurofisiologia, que aplica a bioquímica e biofísica à investigação do funcionamento do cérebro... (Pode haver, obviamente, combinações dessas aplicações e assim por diante.)
Finalmente, devemos notar que a emergência de ciências fundamentais sempre substituiu a especulação metafísica. A emergência da física como ciência experimental pôs um fim ao reino da física aristotélica especulativa (na medida em que esta não se mesclava confusamente à metafísica), um destino similar tendo a doutrina dos quatro elementos após o desenvolvimento da química e também o vitalismo (a doutrina segundo a qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais diferentes das forças físicas) após o desenvolvimento da biologia.
Neste e nos próximos capítulos irei assumir essa classificação comtiana modificada das ciências fundamentais, posto que ela permanence a mais intuitiva e indisputável, ao menos enquanto não a subordinarmos a questões subseqüentes sobre redução teórica ou a um problema metafísico acerca da unidade das ciências.
4. ALGUNS EXEMPLOS DE INSIGHTS FILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS
Nesta seção considerarei alguns exemplos de idéias filosóficas antecipando idéias científicas respectivamente nos campos da física, da química, da biologia e da psicologia. Esses exemplos podem confundir-nos, como veremos mais adiante, pois eles dizem respeito somente a antecipações de ciências bem conhecidas, e não às desconhecidas, certamente bastante diversas, sugerindo enganosamente que as nossas indagações filosóficas atuais deveriam ser relacionadas a ciências futuras exatamente do mesmo modo que a filosofia do passado tem sido relacionada a nossas ciências empíricas mais fundamentais. Se mantivermos isso em mente, não deixa de ser instrutivo considerá-los.
O primeiro exemplo é a idéia defendida por Anaximandro (647-610 a.C.), de que a Terra não é sustentada por nada, encontrando-se estacionariamente suspensa, já que igualmente distante de todas as coisas, sendo impossível para ela mover-se simultaneamente em direções opostas(32). Karl Popper mantém com suficiente verdade que essa foi uma das idéias mais ousadas de toda a história do pensamento humano, tornando possível as teorias de Aristarco, de Copérnico e mesmo de outros, porque
O primeiro exemplo é a idéia defendida por Anaximandro (647-610 a.C.), de que a Terra não é sustentada por nada, encontrando-se estacionariamente suspensa, já que igualmente distante de todas as coisas, sendo impossível para ela mover-se simultaneamente em direções opostas(32). Karl Popper mantém com suficiente verdade que essa foi uma das idéias mais ousadas de toda a história do pensamento humano, tornando possível as teorias de Aristarco, de Copérnico e mesmo de outros, porque
...conceber a terra como livremente disposta no meio do espaço, e dizer “que ela permanece sem movimento por causa da eqüidistância e do equilíbrio” é antecipar em alguma extensão mesmo a idéia de Newton de forças gravitacionais imateriais e invisíveis.(33)
Embora antecipadora da ciência, a hipótese de Anaximandro não poderia de modo algum ser vista como científica, posto que no tempo em que ela foi formulada não era concebível nenhum procedimento de avaliação da verdade que pudesse conduzir a um acordo consensual. Por contraste, as idéias de Copérnico e Newton foram capazes de ser avaliadas e de obter acordo consensual acerca de sua verdade ou falsidade, posto que uma tal condição de cientificidade já havia se tornado alcançável pela época de sua formulação.
Um exemplo por demais conhecido de antecipação é também a teoria atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual pedaços visíveis de matéria são agregados de átomos invisíveis e fisicamente indivisíveis, os quais possuem inúmeras formas distintivas. Essa teoria é uma antecipação especulativa da forma de uma teoria atômica da matéria, ainda que não de seu conteúdo. E a teoria dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, mantida por filósofos como Empédocles, antecipa em termos de forma ou similaridade de concepção a tabela periódica de Mendeleev, com a sua seqüência de elementos químicos fundamentais.
O terceiro exemplo é o da primeira hipótese na direção de um evolucionismo biológico, também sugerida por Anaximandro. Ele afirmava que a vida começa na água, que criaturas vivas podem ser espontaneamente geradas da umidade e que seres humanos evolveram de espécies inferiores (talvez peixes), posto que nos primeiros anos eles teriam morrido se fossem tão indefesos como são hoje após o nascimento.(34) É verdade que as idéias de Anaximandro, quando tomadas em um sentido estrito, estavam erradas, pois ele acreditava em geração espontânea e que os homens tivessem sido inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo completamente formados de dentro deles, ao invés de se desenvolverem gradualmente(35). Contudo, é certo que já existe nessas idéias um quê de evolucionismo, apontando para caminhos de pensamento que só puderam ser adequadamente trilhados dentro de um quadro categorial científico mais de dois mil anos depois, quando a existência de um adequado pano de fundo de desenvolvimentos tornou possível a busca de respostas precisas, detalhadas e não-especulativas para indagações acerca da origem das espécies.
Alguém poderia aqui objetar que sentenças com “A terra está suspensa no espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se a partir de formas inferiores de vida”, que podem ser abstraidas da obra de filósofos pré-socráticos são de fato verdade verdades científicas. Será então que elas foram filosóficas e hoje se tornaram científicas? Em certo sentido, a resposta é afirmativa. As idéias por elas expressas passaram a ser consideradas científicas para nós. Não obstante, isso não significa que elas não fossem filosóficas para outros homens em outros tempos, pois elas só se completam quando vinculadas ao contexto de sua enunciação. Ora, precisamente porque estamos examinando idéias de pensadores do passado, tais idéias precisam ser consideradas nos contextos onde nasceram, nos quais elas só poderiam ser endereçadas especulativamente. Ou seja: o predicado ‘...é filosófico’ somente faz sentido pleno quando relacionado ao contexto histórico no qual as idéias são consideradas. Como nós situamos as sentenças acima no contexto da obra de filósofos pré-socráticos, nós as consideramos filosóficas, mas do contrário nós as consideraríamos científicas.
O último exemplo, relacionado à psicologia – um campo de investigação que ainda não foi completamente desenvolvido como ciência –, diz respeito à doutrina platônica da tripartição da alma (Republica, IV, 446 A ss.). De acordo com essa doutrina, a mais primitiva parte da alma é formada de seus apetites corporais, desejos e necessidades. A segunda parte é a do elemento animoso, formado por impulsos emocionais tais como coragem, raiva, ambição, orgulho, amizade, honra, lealdade etc. A terceira parte da alma é formada pela razão atuando como um princípio inibitório que comanda os outros. No diálogo Phaedrus (246 ss.) Platão comparou a razão com o condutor de um carro de guerra ao qual está atrelado um par de cavalos alados, um deles bom, que representa o elemento animado e que se esforça para se alçar ao reino das idéias, e outro mau, representando os maus apetites, esforçando-se para trazer a todos de volta para o reino terreno e dando muito trabalho ao condutor.
Ora, a doutrina platônica da tripartição da alma pode ser vista como um antecessor da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund Freud(36). Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias: o id (Es), que é inconsciente e representa nossos instintos; o superego (über-Ich), em geral inconsciente, que representa a figura introjetada do pai, fazendo restrições morais e exigindo a realização de ideais; e o ego (Ich), geralmente consciente, o qual está imediatamente vinculado à vontade consciente, à percepção e ao controle motor. Mais além, a relação dinâmica entre as instâncias se deve, para Freud, ao fato de que o ego tem a função de mediar entre as necessidades do id e as restrições e exigências do superego.
Como parece claro, as duas teorias se correspondem em certa medida: o id freudiano corresponde aos apetites corporais, mas inclui também elementos volitivos atribuídos por Platão ao elemento animoso da alma, como a raiva; o superego corresponde em alguma medida ao elemento animoso, ao bom cavalo da analogia platônica; e o ego parece corresponder ao elemento racional, ao condutor, tentando satisfazer as demandas opostas do id e do superego.
O presente exemplo é um pouco diverso dos anteriores. Quando confrontamos essas duas teorias, deparamos com uma dificuldade similar àquela que encontramos quando tentamos comparar duas teorias filosóficas. De fato, a psicanálise não satisfaz as condições da investigação científica, se estas exigirem que os especialistas sejam capazes de chegar a um acordo consensual sobre os seus resultados, pois os seus praticantes nunca conseguiram chegar a tal acordo, por mais preparados que fossem, o que levou a psicanálise a fragmentar-se em uma variedade de escolas competidoras, cada qual dirigida por seus próprios “líderes intelectuais”. Não obstante, enquanto a sugestão de Platão era baseada somente em sua experiência introspectiva e em suas observações circunstanciais do comportamento humano em geral, a teoria freudiana tira as suas conclusões de um método de associações livres, comparativamente aplicado a inúmeros pacientes, além de introduzir um novo elemento teórico, o inconsciente, e de ser desenvolvida de maneira menos metafórica e mais detalhadamente articulada. A teoria estrutural da mente pretende dizer-nos mais e parece realmente fazê-lo. Mesmo incerta, ela sugere um quadro conceitual mais apto a ser avaliado dentro dos quadros categoriais inerentes à psicologia científica contemporânea.
Quero concluir esta seção com uma observação terminológica acerca do conceito de antecipação da ciência. Precisamos distinguir entre boas e más antecipações. Os exemplos considerados podem ser considerados boas antecipações: as idéias de Anaximandro sobre a forma e localização da Terra, ou sobre a evolução biológica, mostram de um modo obviamente muito grosseiro a direção a ser seguida pela ciência, e a teoria platônica da tripartição da alma antecipa a forma da teoria freudiana posterior, a qual tentativamente acerca-se da ciência. Contudo, muitos empreendimentos filosóficos podem ser vistos como más antecipações no sentido de que eles apontaram para a direção errada. Um caso famoso foi, no século XVIII, a hipótese do flogisto, sugerindo a existência de um elemento liberado pelo fogo e responsável por ele, o que era completamente errado e retardou o desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo ainda mais notório de má antecipação foi o da física aristotélica apriorista, a qual, aceita pela Igreja como matéria de dogma, retardou o desenvolvimento da física experimental durante toda a Idade Média, até que os experimentos de Galileu a tornaram insustentável. Finalmente, os conceitos de boa e má antecipação são relativos à extensão do desvio da verdade que estamos dispostos a tolerar, o que pode variar de acordo com o contexto: o evolucionismo de Anaximandro, por exemplo, seria visto como uma má antecipação em um contexto mais estrito, no qual desejamos excluir explicações não-darwinianas da evolução como fundamentalmente errôneas.
Um exemplo por demais conhecido de antecipação é também a teoria atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual pedaços visíveis de matéria são agregados de átomos invisíveis e fisicamente indivisíveis, os quais possuem inúmeras formas distintivas. Essa teoria é uma antecipação especulativa da forma de uma teoria atômica da matéria, ainda que não de seu conteúdo. E a teoria dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, mantida por filósofos como Empédocles, antecipa em termos de forma ou similaridade de concepção a tabela periódica de Mendeleev, com a sua seqüência de elementos químicos fundamentais.
O terceiro exemplo é o da primeira hipótese na direção de um evolucionismo biológico, também sugerida por Anaximandro. Ele afirmava que a vida começa na água, que criaturas vivas podem ser espontaneamente geradas da umidade e que seres humanos evolveram de espécies inferiores (talvez peixes), posto que nos primeiros anos eles teriam morrido se fossem tão indefesos como são hoje após o nascimento.(34) É verdade que as idéias de Anaximandro, quando tomadas em um sentido estrito, estavam erradas, pois ele acreditava em geração espontânea e que os homens tivessem sido inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo completamente formados de dentro deles, ao invés de se desenvolverem gradualmente(35). Contudo, é certo que já existe nessas idéias um quê de evolucionismo, apontando para caminhos de pensamento que só puderam ser adequadamente trilhados dentro de um quadro categorial científico mais de dois mil anos depois, quando a existência de um adequado pano de fundo de desenvolvimentos tornou possível a busca de respostas precisas, detalhadas e não-especulativas para indagações acerca da origem das espécies.
Alguém poderia aqui objetar que sentenças com “A terra está suspensa no espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se a partir de formas inferiores de vida”, que podem ser abstraidas da obra de filósofos pré-socráticos são de fato verdade verdades científicas. Será então que elas foram filosóficas e hoje se tornaram científicas? Em certo sentido, a resposta é afirmativa. As idéias por elas expressas passaram a ser consideradas científicas para nós. Não obstante, isso não significa que elas não fossem filosóficas para outros homens em outros tempos, pois elas só se completam quando vinculadas ao contexto de sua enunciação. Ora, precisamente porque estamos examinando idéias de pensadores do passado, tais idéias precisam ser consideradas nos contextos onde nasceram, nos quais elas só poderiam ser endereçadas especulativamente. Ou seja: o predicado ‘...é filosófico’ somente faz sentido pleno quando relacionado ao contexto histórico no qual as idéias são consideradas. Como nós situamos as sentenças acima no contexto da obra de filósofos pré-socráticos, nós as consideramos filosóficas, mas do contrário nós as consideraríamos científicas.
O último exemplo, relacionado à psicologia – um campo de investigação que ainda não foi completamente desenvolvido como ciência –, diz respeito à doutrina platônica da tripartição da alma (Republica, IV, 446 A ss.). De acordo com essa doutrina, a mais primitiva parte da alma é formada de seus apetites corporais, desejos e necessidades. A segunda parte é a do elemento animoso, formado por impulsos emocionais tais como coragem, raiva, ambição, orgulho, amizade, honra, lealdade etc. A terceira parte da alma é formada pela razão atuando como um princípio inibitório que comanda os outros. No diálogo Phaedrus (246 ss.) Platão comparou a razão com o condutor de um carro de guerra ao qual está atrelado um par de cavalos alados, um deles bom, que representa o elemento animado e que se esforça para se alçar ao reino das idéias, e outro mau, representando os maus apetites, esforçando-se para trazer a todos de volta para o reino terreno e dando muito trabalho ao condutor.
Ora, a doutrina platônica da tripartição da alma pode ser vista como um antecessor da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund Freud(36). Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias: o id (Es), que é inconsciente e representa nossos instintos; o superego (über-Ich), em geral inconsciente, que representa a figura introjetada do pai, fazendo restrições morais e exigindo a realização de ideais; e o ego (Ich), geralmente consciente, o qual está imediatamente vinculado à vontade consciente, à percepção e ao controle motor. Mais além, a relação dinâmica entre as instâncias se deve, para Freud, ao fato de que o ego tem a função de mediar entre as necessidades do id e as restrições e exigências do superego.
Como parece claro, as duas teorias se correspondem em certa medida: o id freudiano corresponde aos apetites corporais, mas inclui também elementos volitivos atribuídos por Platão ao elemento animoso da alma, como a raiva; o superego corresponde em alguma medida ao elemento animoso, ao bom cavalo da analogia platônica; e o ego parece corresponder ao elemento racional, ao condutor, tentando satisfazer as demandas opostas do id e do superego.
O presente exemplo é um pouco diverso dos anteriores. Quando confrontamos essas duas teorias, deparamos com uma dificuldade similar àquela que encontramos quando tentamos comparar duas teorias filosóficas. De fato, a psicanálise não satisfaz as condições da investigação científica, se estas exigirem que os especialistas sejam capazes de chegar a um acordo consensual sobre os seus resultados, pois os seus praticantes nunca conseguiram chegar a tal acordo, por mais preparados que fossem, o que levou a psicanálise a fragmentar-se em uma variedade de escolas competidoras, cada qual dirigida por seus próprios “líderes intelectuais”. Não obstante, enquanto a sugestão de Platão era baseada somente em sua experiência introspectiva e em suas observações circunstanciais do comportamento humano em geral, a teoria freudiana tira as suas conclusões de um método de associações livres, comparativamente aplicado a inúmeros pacientes, além de introduzir um novo elemento teórico, o inconsciente, e de ser desenvolvida de maneira menos metafórica e mais detalhadamente articulada. A teoria estrutural da mente pretende dizer-nos mais e parece realmente fazê-lo. Mesmo incerta, ela sugere um quadro conceitual mais apto a ser avaliado dentro dos quadros categoriais inerentes à psicologia científica contemporânea.
Quero concluir esta seção com uma observação terminológica acerca do conceito de antecipação da ciência. Precisamos distinguir entre boas e más antecipações. Os exemplos considerados podem ser considerados boas antecipações: as idéias de Anaximandro sobre a forma e localização da Terra, ou sobre a evolução biológica, mostram de um modo obviamente muito grosseiro a direção a ser seguida pela ciência, e a teoria platônica da tripartição da alma antecipa a forma da teoria freudiana posterior, a qual tentativamente acerca-se da ciência. Contudo, muitos empreendimentos filosóficos podem ser vistos como más antecipações no sentido de que eles apontaram para a direção errada. Um caso famoso foi, no século XVIII, a hipótese do flogisto, sugerindo a existência de um elemento liberado pelo fogo e responsável por ele, o que era completamente errado e retardou o desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo ainda mais notório de má antecipação foi o da física aristotélica apriorista, a qual, aceita pela Igreja como matéria de dogma, retardou o desenvolvimento da física experimental durante toda a Idade Média, até que os experimentos de Galileu a tornaram insustentável. Finalmente, os conceitos de boa e má antecipação são relativos à extensão do desvio da verdade que estamos dispostos a tolerar, o que pode variar de acordo com o contexto: o evolucionismo de Anaximandro, por exemplo, seria visto como uma má antecipação em um contexto mais estrito, no qual desejamos excluir explicações não-darwinianas da evolução como fundamentalmente errôneas.
5. FISSÃO
Antony Kenny, considerando o modo pelo qual o pensamento filosófico dá lugar à ciência, notou que isso ocorre por um processo de parturição que ele chama de fissão(37). Ele tornou esse processo claro com um exemplo relativo a um dos problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão das idéias inatas. Inicialmente o problema era o seguinte: quais de nossas idéias são inatas e quais são adquiridas? Após Kant essa questão confusa dividiu-se em duas outras: por um lado, a questão dos papéis da herança e do meio ambiente na constituição de nossas idéias, por outro, a questão de quanto de nosso conhecimento é a priori. A primeira questão, diz Kenny, era anterior e foi passada adiante para a psicologia, enquanto a segunda, relativa à justificação de nosso conhecimento, permaneceu filosófica. Algum tempo depois a questão remanescente sobre o a priori dividiu-se outra vez em questões filosóficas e não-filosóficas, ramificando-se em um número de questões, uma delas sendo: quais proposições são analíticas e quais são sintéticas? Para Kenny, a noção de analiticidade encontrou formulação precisa nos trabalhos de Frege e Russell, em termos de lógica matemática, e a questão “É a aritmética analítica?” encontrou uma resposta matemática precisa no teorema da incompletude de Kurt Gödel; todavia, problemas residuais relativos à natureza e justificação da verdade matemática foram deixados para trás, permanecendo questões de disputa filosófica. O seguinte esquema resume essa versão do processo:
problema filosófico das
idéias inatas
idéias inatas
fissão
V V
questão psicológica sobre o problema filosófico de se saber o
papel da hereditariedade e quanto de nosso conhecimento é
do meio ambiente na consti- a priori
tuição de nossas idéias V
questão psicológica sobre o problema filosófico de se saber o
papel da hereditariedade e quanto de nosso conhecimento é
do meio ambiente na consti- a priori
tuição de nossas idéias V
fissão
V V
questões lógico-matemá- questões filosóficas rema-
ticas sobre a definição e nescentes sobre a natureza
extensão da aprioridade e extensão do conhecimen-
em matemática to a priori em geral
questões lógico-matemá- questões filosóficas rema-
ticas sobre a definição e nescentes sobre a natureza
extensão da aprioridade e extensão do conhecimen-
em matemática to a priori em geral
O modelo de desenvolvimento aqui sugerido é aquele em que os amplos e confusos problemas filosóficos dividem-se em partes; umas delas condensam-se em questões científicas, capazes de alcançar respostas consensuais, enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo tende a repetir-se outras vezes com as questões filosóficas remanescentes, talvez até o seu desaparecimento final.
Quando consideramos esse processo, o ponto mais importante a ser ressaltado é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz mudanças que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação filosófica. Como o exemplo mostra, após a fissão a parte do problema que permanece filosófica precisa ser reformulada, gerando novas respostas. Mas as mudanças não permanecem a ela circunscritas. Todos os problemas relacionados, que pertencem ao mesmo domínio de investigação filosófica, podem precisar ser acomodados ao novo estado de coisas, junto com as suas respostas especulativas. Isso é feito por meio de uma reformulação mais ou menos extensa dos problemas e de suas respostas, assim como por uma relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente aos outros problemas e respostas. Para dar um exemplo: a reformulação kantiana do problema filosófico remanescente das idéias inatas em termos de sua doutrina sobre um conhecimento e conceitos a priori levou a reformulações subseqüentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus. Kant deixou de conceber esses conceitos como realmente designando seus objetos, passando a vê-los como idéias da razão: conceitos a priori do tipo “como se” (als ob), gerados pela natureza da razão, cuja função não é a de designar seus objetos, mas somente a de orientar nossos processos de inferência como se tais objetos pudessem ser designados. Assim, devemos proceder intelectualmente como se existisse um mundo externo que fosse uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se houvesse um objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir um entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder como se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa e interna –, como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar nosso conhecimento da natureza como um todo. Como conseqüência dessa reformulação dos conceitos de natureza, alma e Deus como conceitos a priori diretivos, segue-se uma relocação de seus lugares dentro do sistema conceitual da filosofia teórica; nesse contexto, ao menos o conceito de Deus, por exemplo, não precisa nem pode mais ser visto como sendo o de uma entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o todo-poderoso Deus veraz ainda mantido na filosofia “pré-crítica” de Descartes.
Quando consideramos esse processo, o ponto mais importante a ser ressaltado é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz mudanças que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação filosófica. Como o exemplo mostra, após a fissão a parte do problema que permanece filosófica precisa ser reformulada, gerando novas respostas. Mas as mudanças não permanecem a ela circunscritas. Todos os problemas relacionados, que pertencem ao mesmo domínio de investigação filosófica, podem precisar ser acomodados ao novo estado de coisas, junto com as suas respostas especulativas. Isso é feito por meio de uma reformulação mais ou menos extensa dos problemas e de suas respostas, assim como por uma relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente aos outros problemas e respostas. Para dar um exemplo: a reformulação kantiana do problema filosófico remanescente das idéias inatas em termos de sua doutrina sobre um conhecimento e conceitos a priori levou a reformulações subseqüentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus. Kant deixou de conceber esses conceitos como realmente designando seus objetos, passando a vê-los como idéias da razão: conceitos a priori do tipo “como se” (als ob), gerados pela natureza da razão, cuja função não é a de designar seus objetos, mas somente a de orientar nossos processos de inferência como se tais objetos pudessem ser designados. Assim, devemos proceder intelectualmente como se existisse um mundo externo que fosse uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se houvesse um objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir um entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder como se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa e interna –, como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar nosso conhecimento da natureza como um todo. Como conseqüência dessa reformulação dos conceitos de natureza, alma e Deus como conceitos a priori diretivos, segue-se uma relocação de seus lugares dentro do sistema conceitual da filosofia teórica; nesse contexto, ao menos o conceito de Deus, por exemplo, não precisa nem pode mais ser visto como sendo o de uma entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o todo-poderoso Deus veraz ainda mantido na filosofia “pré-crítica” de Descartes.
6. O NÚCLEO RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS
RESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES
Como um resultado dos processos descritos, a filosofia tem se contraído em um conjunto resistente de questionamentos. Esses questionamentos certamente incluem os das filosofias das ciências fundamentais, os quais tomam as já existentes ciências particulares como seus objetos. Como essas filosofias são dependentes do desenvolvimento dessas ciências, elas devem se desenvolver mais tarde. Conseqüentemente, não é desarrazoado esperar que essas filosofias um dia venham a alcançar acordo consensual como metaciências (ciências de ciências).
Contudo, o núcleo mais resistente do presente conjunto de questionamentos filosóficos consiste essencialmente das disciplinas tradicionais mais centrais e difíceis da filosofia, como a epistemologia, a metafísica, a filosofia do conteúdo, a ética. Esses domínios centrais têm até agora resistido a qualquer conversão em ciência, sendo importante perceber a sua peculiaridade. Eles não estão no mesmo nível das ciências fundamentais ou mesmo das filosofias das ciências. De fato, o que chama atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é a sua extraordinária abrangência. No caso da metafísica são tratados problemas últimos como o dos universais, da substância, da natureza da causalidade, do espaço e do tempo, da identidade... que dizem respeito ao mundo de modo mais geral, envolvendo objetos da experiência, tanto externos quanto internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências fundamentais, visto que tanto os da física quanto os da biologia, da psicologia... também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo, seguem leis causais etc. No caso da epistemologia, as questões não são menos abrangentes, posto que elas não dizem respeito a esta ou aquela forma de conhecimento, mas ao conhecimento em geral, sendo comuns a todas as inquirições da mente. Considerando a dificuldade e relevância desses domínios de investigação, nossa questão sobre qual é a natureza da filosofia poderia ser nesse ponto substituída por outra não menos importante: qual é a natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?
A mais séria questão relativa à idéia de filosofia como antecipação da ciência não é sobre o fato indiscutível da ciência ter se estabelecido a partir da filosofia, mas sobre a extensão dessa derivação. Pode ser que o conjunto remanescente de questionamentos filosóficos, ou ao menos parte dele, pertença essencialmente à filosofia de um modo que o torne resistente à transformação em ciência. Ou será que tudo o que é filosófico pode, em princípio, tornar-se ciência?
Filósofos dividem-se acerca disso. Alguns, como Keith Lehrer, sugeriram a hipótese progressista de que a filosofia é “apenas o nome coletivo do pote de problemas ainda intocado pela ciência”(38). Para ele o fato de que algumas questões filosóficas há mais de dois mil anos esperam por uma resposta consensual não significa que essa resposta jamais será encontrada. A maioria dos filósofos, porém, mantém-se mais reservada. Antony Kenny, por exemplo, sustenta em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de Aquino a hipótese, que chamarei de conservadora, segundo a qual, mesmo que a filosofia tenha em seu passado entregue à ciência partes de si mesma, essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos remanescentes e centrais são os genuinamente filosóficos. Eles compreendem para Kenny a epistemologia, a metafísica, a ética e a teoria do significado. Esses problemas permanecerão para sempre filosóficos(39).
Tentando justificar essa afirmação, Kenny, influenciado pela idéia wittgensteiniana de representação sinóptica (ver nota 19), sugeriu que a filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos de maneira a nos prover de uma sinopse, ou seja, de uma visão geral de nosso próprio conhecimento, mais do que da aquisição de novas verdades. Essa finalidade dá à filosofia uma espécie de abrangência que não pode ser encontrada em nenhuma ciência particular. Essa abrangência, argumenta Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em Aquino permanence de muitos modos relevante:
Contudo, o núcleo mais resistente do presente conjunto de questionamentos filosóficos consiste essencialmente das disciplinas tradicionais mais centrais e difíceis da filosofia, como a epistemologia, a metafísica, a filosofia do conteúdo, a ética. Esses domínios centrais têm até agora resistido a qualquer conversão em ciência, sendo importante perceber a sua peculiaridade. Eles não estão no mesmo nível das ciências fundamentais ou mesmo das filosofias das ciências. De fato, o que chama atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é a sua extraordinária abrangência. No caso da metafísica são tratados problemas últimos como o dos universais, da substância, da natureza da causalidade, do espaço e do tempo, da identidade... que dizem respeito ao mundo de modo mais geral, envolvendo objetos da experiência, tanto externos quanto internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências fundamentais, visto que tanto os da física quanto os da biologia, da psicologia... também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo, seguem leis causais etc. No caso da epistemologia, as questões não são menos abrangentes, posto que elas não dizem respeito a esta ou aquela forma de conhecimento, mas ao conhecimento em geral, sendo comuns a todas as inquirições da mente. Considerando a dificuldade e relevância desses domínios de investigação, nossa questão sobre qual é a natureza da filosofia poderia ser nesse ponto substituída por outra não menos importante: qual é a natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?
A mais séria questão relativa à idéia de filosofia como antecipação da ciência não é sobre o fato indiscutível da ciência ter se estabelecido a partir da filosofia, mas sobre a extensão dessa derivação. Pode ser que o conjunto remanescente de questionamentos filosóficos, ou ao menos parte dele, pertença essencialmente à filosofia de um modo que o torne resistente à transformação em ciência. Ou será que tudo o que é filosófico pode, em princípio, tornar-se ciência?
Filósofos dividem-se acerca disso. Alguns, como Keith Lehrer, sugeriram a hipótese progressista de que a filosofia é “apenas o nome coletivo do pote de problemas ainda intocado pela ciência”(38). Para ele o fato de que algumas questões filosóficas há mais de dois mil anos esperam por uma resposta consensual não significa que essa resposta jamais será encontrada. A maioria dos filósofos, porém, mantém-se mais reservada. Antony Kenny, por exemplo, sustenta em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de Aquino a hipótese, que chamarei de conservadora, segundo a qual, mesmo que a filosofia tenha em seu passado entregue à ciência partes de si mesma, essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos remanescentes e centrais são os genuinamente filosóficos. Eles compreendem para Kenny a epistemologia, a metafísica, a ética e a teoria do significado. Esses problemas permanecerão para sempre filosóficos(39).
Tentando justificar essa afirmação, Kenny, influenciado pela idéia wittgensteiniana de representação sinóptica (ver nota 19), sugeriu que a filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos de maneira a nos prover de uma sinopse, ou seja, de uma visão geral de nosso próprio conhecimento, mais do que da aquisição de novas verdades. Essa finalidade dá à filosofia uma espécie de abrangência que não pode ser encontrada em nenhuma ciência particular. Essa abrangência, argumenta Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em Aquino permanence de muitos modos relevante:
A filosofia é tão omniabrangente em seu objeto de investigação, tão ampla em seu campo de operação, que a conquista de uma sinopse filosófica sistemática do conhecimento humano é algo tão difícil que só um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente completamente excepcional pode ver as conseqüências mesmo dos mais simples argumentos e conclusões filosóficas.(40)
No que se segue irei argumentar a favor da primeira e mais progressista hipótese, embora não da maneira que o leitor possa estar supondo.
7. NOSSA IDÉIA GERAL DE CIÊNCIA
Meu argumento, sugerindo que todas as questões filosóficas no final deverão ser absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não tentarei demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja possível. Mas pretendo mostrar que a tese progressista, de que as questões filosóficas podem ser todas absorvidas pela ciência, pode ser tornada plausível, na medida em que as razões que o filósofo tem para rejeitá-la podem ser removidas.
Parece haver duas razões profundas com base nas quais muitos filósofos vieram a rejeitar a idéia de que a totalidade da filosofia é antecipadora da ciência(41). A primeira é que quando eles pensam em ciência eles têm em mente as já bem estabelecidas ciências experimentais da natureza. Considerando não somente a limitação de escopo da maioria dessas ciências, mas também o seu caráter empírico mais direto, aceitar a tese progressista sobre a natureza da filosofia parece comprometer-nos com uma concepção empobrecedora e redutiva do núcleo de problemas filosóficos remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia toda a sua abrangência e relevância ao colocar os seus problemas no mesmo nível das ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece então deixar-nos sem nada, exceto algum tipo de cientismo pedestre, intrinsecamente estreito e inimigo da abrangência e abstração às quais mais pertence o genuíno filosofar.
A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista é a adoção implícita de concepções da natureza da ciência mais influentes do século XX, como a do positivismo lógico e as subseqüentes reações à sua influência. Filósofos da ciência só foram capazes de construir teorias interessantes e detalhadas na medida em que tomavam as ciências mais desenvolvidas como modelos. Mas como nem todos os domínios científicos são muito desenvolvidos, havendo certamente outros que sequer emergiram, os filósofos da ciência geralmente tomaram as ciências naturais – a física em particular – como os modelos exemplares, posto que elas são as mais avançadas formas avaliáveis de seu objeto. Esse procedimento pode produzir resultados frutíferos no que concerne à filosofia dessas bem estabelecidas ciências quando consideradas em si mesmas. Não obstante, quando os resultados são interpretados como caracterizadores da ciência em geral, ou como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à ciência, válido para todos os futuros candidatos, a conseqüência é uma concepção estreita e obstrutiva dos limites da ciência. Isso é verdade, mesmo para domínios de uma ciência natural fundamental, como a biologia, como o evidencia o critério popperiano de cientificidade como falseabilidade de nossas teorias através de experimentos decisivos. Seu critério pode se aplicar de forma razoável à sua ciência modelo, a física, como no caso da teoria da relatividade, que Popper gosta de usar como exemplo. Mas o mesmo critério conduz à rejeição do caráter científico de muitas teorias psicológicas e sócio-históricas, incluindo até mesmo a teoria da evolução – uma teoria biológica cuja cientificidade ninguém ousaria negar. Que tipo de experimento poderia capacitar-nos a falsificar uma teoria que explica uma infinidade de processos que se estendem por um período de muitos milhões de anos no passado? E mesmo que a teoria possa ser testada de algum modo indireto, falhar em passar em tal teste não seria visto como um falseamento decisivo(42). Por razões como essa eu penso que Popper estava certo quando pretendeu que a sua metodologia não era descritiva do que pessoas (incluindo os cientistas) pensam como pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão racionalmente argumentada, embora, ao que tudo indica, estreita e artificial, sobre o tipo de investigação que merece ser chamado de ciência(43). O resultado da adoção de semelhante modelo de cientificidade pelo filósofo é que ele não tem mais como permitir a admissão de que a filosofia seja antecipação da ciência, pois é claro que segundo ele as áreas centrais da investigação filosófica contemporânea, por sua própria natureza, nunca se tornarão capazes de acomodar semelhantes exigências.
Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir a hipótese progressista não são adequadas ao nosso caso. Pois quando mantemos que a filosofia tem uma função antecipadora da ciência, não precisamos limitar a aplicação da palavra “ciência” a algo similar às já existentes ciências particulares; e também não somos de modo algum forçados a aceitar o que filósofos da ciência do século XX nos contaram sobre como a ciência deve ser. De fato, o que mais naturalmente vem à mente quando contrastamos filosofia com ciência é a oposição entre o pensamento conjectural (o da filosofia), no qual não há possibilidade de acordo sobre os resultados, e um empreendimento não-conjectural (o da ciência), no qual o acordo sobre a verdade ou falsidade dos resultados pode ser efetivamente alcançado, juntamente com o progresso resultante dele. Mais além, parece que a idéia de ciência como um empreendimento não-conjectural e produtor da verdade concorda muito bem com o que nós – cientistas e pessoas cultas, com exceção eventual de algum filósofo da ciência de herança positivista – naturalmente queremos dizer com a palavra ‘ciência’. De fato, para julgar se uma teoria pertence à ciência, não perguntamos em primeiro lugar se ela pode ser submetida à confirmação ou desconfirmação empírica (embora isso também tenha, como veremos, o seu ponto!). O que primeiramente perguntamos é se a comunidade científica pode alcançar um acordo interpessoal sobre a sua verdade ou falsidade, mesmo que tal acordo geralmente resulte de alguma forma de verificação (ou resistência à falsificação) empírica nas ciências não-formais. A possibilidade de resultados consensuais entre os cientistas parece ser um requerimento mais geral e decisivo, diversamente dos variados modos através dos quais tais acordos podem ser alcançados.
Como a idéia de que o empreendimento científico coneça a ser definido a partir de sua possibilidade de consenso me pareceu óbvia demais para ser passada despercebida, consultando a literatura em filosofia da ciência encontrei defesas de pontos de vista similares da parte de sócio-epistemólogos da ciência, particularmente John Ziman. Já na década de 1960, esse autor chamou a atenção para essa idéia ao consistentemente manter que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos, repousa “no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser público e consensualizável”(44). Ora, parece que a admissão de uma concepção tão liberal da natureza da ciência, liberta-nos de um compromisso estrito com esse ou aquele modelo de cientificidade diretamente derivado de alguma ciência particular e mesmo de qualquer ciência já existente. Adotar uma tal conceito aberto da natureza da ciência como contraponto para a conjectura filosófica deixaria, pois, de envolver o risco de passarmos a pensar esta última sob a perspectiva de algum cientismo positivista.
No que se segue irei aprofundar a concepção geral da ciência vagamente esboçada por Ziman. Ao contrário de Popper, não farei uma proposta: toda a minha abordagem será descritivista. O que quero fazer é resgatar, em seus traços gerais, o sentido técnico ou acadêmico ou próprio da palavra “ciência” ao tornar explícitos os principais critérios através dos quais pessoas cientificamente educadas identificam a ciência. Esse será, aliás, um procedimento paralelo ao procedimento descritivista em metafilosofia. De fato, se o procedimento descritivista nos leva à idéia de que a filosofia é uma protociência no sentido de não ser capaz de obter consenso, parece que por razões de paridade a “ciência” da qual a filosofia é “proto” deve ser tratada dentro de uma abordagem igualmente descritivista, coincidente com a premissa de que a ciência é, por oposição, uma investigação capaz de alcançar consenso verdadeiro. Sendo assim, uma explicação descritivista da ciência parece ser o modo verdadeiramente coerente de imaginar o contraste entre filosofia e ciência sob uma abordagem metafilosófica ela própria descritivista. Somente após termos explorado essa maneira de conceber a ciência em maiores detalhes é que seremos capazes de julgar se o conceito de filosofia como antecipação da ciência é realmente restritivo.
Parece haver duas razões profundas com base nas quais muitos filósofos vieram a rejeitar a idéia de que a totalidade da filosofia é antecipadora da ciência(41). A primeira é que quando eles pensam em ciência eles têm em mente as já bem estabelecidas ciências experimentais da natureza. Considerando não somente a limitação de escopo da maioria dessas ciências, mas também o seu caráter empírico mais direto, aceitar a tese progressista sobre a natureza da filosofia parece comprometer-nos com uma concepção empobrecedora e redutiva do núcleo de problemas filosóficos remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia toda a sua abrangência e relevância ao colocar os seus problemas no mesmo nível das ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece então deixar-nos sem nada, exceto algum tipo de cientismo pedestre, intrinsecamente estreito e inimigo da abrangência e abstração às quais mais pertence o genuíno filosofar.
A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista é a adoção implícita de concepções da natureza da ciência mais influentes do século XX, como a do positivismo lógico e as subseqüentes reações à sua influência. Filósofos da ciência só foram capazes de construir teorias interessantes e detalhadas na medida em que tomavam as ciências mais desenvolvidas como modelos. Mas como nem todos os domínios científicos são muito desenvolvidos, havendo certamente outros que sequer emergiram, os filósofos da ciência geralmente tomaram as ciências naturais – a física em particular – como os modelos exemplares, posto que elas são as mais avançadas formas avaliáveis de seu objeto. Esse procedimento pode produzir resultados frutíferos no que concerne à filosofia dessas bem estabelecidas ciências quando consideradas em si mesmas. Não obstante, quando os resultados são interpretados como caracterizadores da ciência em geral, ou como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à ciência, válido para todos os futuros candidatos, a conseqüência é uma concepção estreita e obstrutiva dos limites da ciência. Isso é verdade, mesmo para domínios de uma ciência natural fundamental, como a biologia, como o evidencia o critério popperiano de cientificidade como falseabilidade de nossas teorias através de experimentos decisivos. Seu critério pode se aplicar de forma razoável à sua ciência modelo, a física, como no caso da teoria da relatividade, que Popper gosta de usar como exemplo. Mas o mesmo critério conduz à rejeição do caráter científico de muitas teorias psicológicas e sócio-históricas, incluindo até mesmo a teoria da evolução – uma teoria biológica cuja cientificidade ninguém ousaria negar. Que tipo de experimento poderia capacitar-nos a falsificar uma teoria que explica uma infinidade de processos que se estendem por um período de muitos milhões de anos no passado? E mesmo que a teoria possa ser testada de algum modo indireto, falhar em passar em tal teste não seria visto como um falseamento decisivo(42). Por razões como essa eu penso que Popper estava certo quando pretendeu que a sua metodologia não era descritiva do que pessoas (incluindo os cientistas) pensam como pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão racionalmente argumentada, embora, ao que tudo indica, estreita e artificial, sobre o tipo de investigação que merece ser chamado de ciência(43). O resultado da adoção de semelhante modelo de cientificidade pelo filósofo é que ele não tem mais como permitir a admissão de que a filosofia seja antecipação da ciência, pois é claro que segundo ele as áreas centrais da investigação filosófica contemporânea, por sua própria natureza, nunca se tornarão capazes de acomodar semelhantes exigências.
Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir a hipótese progressista não são adequadas ao nosso caso. Pois quando mantemos que a filosofia tem uma função antecipadora da ciência, não precisamos limitar a aplicação da palavra “ciência” a algo similar às já existentes ciências particulares; e também não somos de modo algum forçados a aceitar o que filósofos da ciência do século XX nos contaram sobre como a ciência deve ser. De fato, o que mais naturalmente vem à mente quando contrastamos filosofia com ciência é a oposição entre o pensamento conjectural (o da filosofia), no qual não há possibilidade de acordo sobre os resultados, e um empreendimento não-conjectural (o da ciência), no qual o acordo sobre a verdade ou falsidade dos resultados pode ser efetivamente alcançado, juntamente com o progresso resultante dele. Mais além, parece que a idéia de ciência como um empreendimento não-conjectural e produtor da verdade concorda muito bem com o que nós – cientistas e pessoas cultas, com exceção eventual de algum filósofo da ciência de herança positivista – naturalmente queremos dizer com a palavra ‘ciência’. De fato, para julgar se uma teoria pertence à ciência, não perguntamos em primeiro lugar se ela pode ser submetida à confirmação ou desconfirmação empírica (embora isso também tenha, como veremos, o seu ponto!). O que primeiramente perguntamos é se a comunidade científica pode alcançar um acordo interpessoal sobre a sua verdade ou falsidade, mesmo que tal acordo geralmente resulte de alguma forma de verificação (ou resistência à falsificação) empírica nas ciências não-formais. A possibilidade de resultados consensuais entre os cientistas parece ser um requerimento mais geral e decisivo, diversamente dos variados modos através dos quais tais acordos podem ser alcançados.
Como a idéia de que o empreendimento científico coneça a ser definido a partir de sua possibilidade de consenso me pareceu óbvia demais para ser passada despercebida, consultando a literatura em filosofia da ciência encontrei defesas de pontos de vista similares da parte de sócio-epistemólogos da ciência, particularmente John Ziman. Já na década de 1960, esse autor chamou a atenção para essa idéia ao consistentemente manter que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos, repousa “no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser público e consensualizável”(44). Ora, parece que a admissão de uma concepção tão liberal da natureza da ciência, liberta-nos de um compromisso estrito com esse ou aquele modelo de cientificidade diretamente derivado de alguma ciência particular e mesmo de qualquer ciência já existente. Adotar uma tal conceito aberto da natureza da ciência como contraponto para a conjectura filosófica deixaria, pois, de envolver o risco de passarmos a pensar esta última sob a perspectiva de algum cientismo positivista.
No que se segue irei aprofundar a concepção geral da ciência vagamente esboçada por Ziman. Ao contrário de Popper, não farei uma proposta: toda a minha abordagem será descritivista. O que quero fazer é resgatar, em seus traços gerais, o sentido técnico ou acadêmico ou próprio da palavra “ciência” ao tornar explícitos os principais critérios através dos quais pessoas cientificamente educadas identificam a ciência. Esse será, aliás, um procedimento paralelo ao procedimento descritivista em metafilosofia. De fato, se o procedimento descritivista nos leva à idéia de que a filosofia é uma protociência no sentido de não ser capaz de obter consenso, parece que por razões de paridade a “ciência” da qual a filosofia é “proto” deve ser tratada dentro de uma abordagem igualmente descritivista, coincidente com a premissa de que a ciência é, por oposição, uma investigação capaz de alcançar consenso verdadeiro. Sendo assim, uma explicação descritivista da ciência parece ser o modo verdadeiramente coerente de imaginar o contraste entre filosofia e ciência sob uma abordagem metafilosófica ela própria descritivista. Somente após termos explorado essa maneira de conceber a ciência em maiores detalhes é que seremos capazes de julgar se o conceito de filosofia como antecipação da ciência é realmente restritivo.
8. RUMO A UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVA DE CIÊNCIA
Meu objetivo aqui não será o de desenvolver uma completa caracterização descritivista da ciência, baseada na análise dos critérios de demarcação realmente usados pelos cientistas, mas o de tornar disponíveis os seus fundamentos. A intenção é tornar suficientemente explícita – para o propósito único de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da natureza da ciência que podemos chamar de consensualista-objetivista, na falta de um nome melhor. Segundo essa concepção, o princípio unificador de toda a ciência é que ela consiste em uma investigação avaliadora de verdades objetivas, possibilitando o progresso através da obtenção de acordos consensuais entre os membros da comunidade científica sobre os resultados dessas avaliações. Para alcançarmos uma compreensão detalhada dessa idéia e de suas ramificações, podemos identificar três condições de cientificidade, que são as de progressividade, consensualidade e objetividade. Essas condições são tão abrangentes que podem ser entendidas como aplicáveis a todas as ciências, tanto empíricas quanto formais.
A primeira condição é a de que em seu período de desenvolvimento uma ciência deva se comportar como um empreendimento progressivo no sentido de que as suas teorias, uma vez sugeridas, devam ser capazes de ser refinadas ou substituídas por outras possuidoras de maior poder explicativo. Mais além, essa condição nos diz que no processo de sua constituição uma ciência deve ser acumuladora de conhecimento no sentido de que permite à comunidade de idéias reconhecer a verdade de um número crescente de proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como
A primeira condição é a de que em seu período de desenvolvimento uma ciência deva se comportar como um empreendimento progressivo no sentido de que as suas teorias, uma vez sugeridas, devam ser capazes de ser refinadas ou substituídas por outras possuidoras de maior poder explicativo. Mais além, essa condição nos diz que no processo de sua constituição uma ciência deve ser acumuladora de conhecimento no sentido de que permite à comunidade de idéias reconhecer a verdade de um número crescente de proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como
C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz de se revelar potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento
A condição C1 se aplica primariamente à totalidade da ciência, entendida como constituida por um conjunto de ciências particulares, empíricas ou formais, as quais são formadas por áreas e feixes de teorias mais ou menos inter-relacionados. Tal princípio também se aplica, contudo, derivadamente, às ciências particulares e à aceitação de suas teorias.
A satisfação da condição C1 pressupõe a satisfação da condição C2. A condição C2 é prevalecente, aplicável primariamente a teorias (hipóteses e sistemas de hipóteses) que aspiram à cientificidade, sendo só derivadamente aplicável ao corpus do conhecimento científico. Essa é a condição central de consensualidade, que pode ser enunciada como
A satisfação da condição C1 pressupõe a satisfação da condição C2. A condição C2 é prevalecente, aplicável primariamente a teorias (hipóteses e sistemas de hipóteses) que aspiram à cientificidade, sendo só derivadamente aplicável ao corpus do conhecimento científico. Essa é a condição central de consensualidade, que pode ser enunciada como
C2: A ciência é um empreendimento epistêmico através do qual é possível se chegar a um acordo consensual sobre a verdade ou falsidade de suas teorias, um acordo a ser racionalmente alcançado pela comunidade crítica de idéias que as propõe.
Necessária a um adequado entendimento da condição S2 é uma apropriada análise do conceito de comunidade crítica de idéias, que nos permite estabelecer quem está intitulado a avaliar as idéias supostamente científicas e como. Há razões para a introdução desse conceito. Se há pessoas que não acreditam que a teoria da evolução natural tem recebido suficiente confirmação, não iremos concluir que isso falseia a nossa crença de que pode haver um acordo científico sobre a verdade dessa teoria, dado que esse acordo efetivamente existe. Se um governo totalitário decide chamar alguma ideologia espúria de ciência, impondo um acordo na comunidade científica (como ocorreu na União Soviética com a genética de Lysenko e na Alemanha nazista com a ciência “ariana”), não concluiremos que essa ideologia é de fato uma ciência. E também não pensamos que uma comunidade de idéias que baseia a sua verdade na autoridade das escrituras sagradas ou nas visões de adivinhos está atuando como uma comunidade científica.
Para eliminar tais interpretações inadequadas, que tornam a caracterização consensualista da natureza da ciência inevitavelmente falha, faremos uso aqui de uma idéia inspirada na sugestão de Jürgen Habermas em sua teoria consensual da verdade. Segundo essa idéia, a decisão sobre o que conta como verdade deve repousar em uma discussão (Diskurs) ocorrida sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale Sprachsituation), sendo tal situação aquela na qual há uma possibilidade simétrica de todos os participantes do discurso de realizarem os diversos tipos de ação comunicativa, o que impede a existência de coerção que não seja a do melhor argumento. Pelo recurso à situação ideal de fala temos uma garantia de chegar a decisões sobre a verdade pertencentes a um consenso legítimo, as quais precisam ser distinguidas de decisões tomadas fora dessa situação e que podem peretencer a um consenso falso ou ilegítimo(45).
Sem dúvida, parece claro que uma comunidade de idéias, para ser capaz de avaliar hipóteses científicas, deve fazê-lo sob certos pressupostos, como o da racionalidade e da liberdade de quem as avalia – pressupostos que dependem de algo que funcione como uma situação ideal de fala. Isso significa que uma comunidade crítica de idéias pode ser caracterizada como aquela que, tanto quanto possível, satisfaz um conjunto de critérios de legitimidade consensual. Sem querer ser sistemático nem exaustivo, eis uma lista de critérios particularmente importantes:
Para eliminar tais interpretações inadequadas, que tornam a caracterização consensualista da natureza da ciência inevitavelmente falha, faremos uso aqui de uma idéia inspirada na sugestão de Jürgen Habermas em sua teoria consensual da verdade. Segundo essa idéia, a decisão sobre o que conta como verdade deve repousar em uma discussão (Diskurs) ocorrida sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale Sprachsituation), sendo tal situação aquela na qual há uma possibilidade simétrica de todos os participantes do discurso de realizarem os diversos tipos de ação comunicativa, o que impede a existência de coerção que não seja a do melhor argumento. Pelo recurso à situação ideal de fala temos uma garantia de chegar a decisões sobre a verdade pertencentes a um consenso legítimo, as quais precisam ser distinguidas de decisões tomadas fora dessa situação e que podem peretencer a um consenso falso ou ilegítimo(45).
Sem dúvida, parece claro que uma comunidade de idéias, para ser capaz de avaliar hipóteses científicas, deve fazê-lo sob certos pressupostos, como o da racionalidade e da liberdade de quem as avalia – pressupostos que dependem de algo que funcione como uma situação ideal de fala. Isso significa que uma comunidade crítica de idéias pode ser caracterizada como aquela que, tanto quanto possível, satisfaz um conjunto de critérios de legitimidade consensual. Sem querer ser sistemático nem exaustivo, eis uma lista de critérios particularmente importantes:
(a) Uma comunidade crítica de idéias deve ser composta por membros igualmente bem treinados e informados sobre as matérias que devem avaliar (os cientistas).
(b) Os membros da comunidade crítica de idéias devem estar engajados em buscar a verdade e em submeter as suas idéias a um escrutínio crítico racional.
(c) Os membros de uma comunidade crítica de idéias devem ter completo acesso à informação, iguais chances de avaliar idéias e direitos similares de intercâmbio intelectual.
(d) Os membros de uma comunidade crítica de idéias não podem ser sujeitos a nenhuma coerção em seus procedimentos de avaliação e conclusões, a não ser a coerção imposta pela melhor justificação.
(b) Os membros da comunidade crítica de idéias devem estar engajados em buscar a verdade e em submeter as suas idéias a um escrutínio crítico racional.
(c) Os membros de uma comunidade crítica de idéias devem ter completo acesso à informação, iguais chances de avaliar idéias e direitos similares de intercâmbio intelectual.
(d) Os membros de uma comunidade crítica de idéias não podem ser sujeitos a nenhuma coerção em seus procedimentos de avaliação e conclusões, a não ser a coerção imposta pela melhor justificação.
Aqui os dois primeiros critérios se referem a características dos membros individuais de uma comunidade crítica de idéias, enquanto os dois últimos se referem a características da própria comunidade de idéias com relação aos seus membros.
É importante perceber que tais critérios formam uma constelação ideal que nunca chega a ser completamente satisfeita por nenhuma comunidade científica. Contudo, eles devem ser preenchidos ao menos em uma medida suficiente, posto que nenhuma comunidade científica poderia alcançar confiabilidade sem que eles fossem minimamente satisfeitos. Com efeito, quando aceitamos uma descoberta científica que se pretende verdadeira (por exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais critérios estão sendo suficientemente preenchidos (que os cientistas estão sendo suficientemente honestos, que não estão sendo pressionados a manipular dados etc.). Além disso, o cientista trabalhando em pesquisa deve realizar o seu trabalho sob a constante assunção de uma eventual avaliação de seus resultados por uma comunidade de idéias que satisfaça critérios que garantem a legitimidade consensual, usando essa assunção como guia para uma avaliação pessoal do que está fazendo, mesmo nos casos em que tal avaliação não ocorra e talvez nunca venha a ocorrer. Assim entendida, a condição C2 torna-se a exigência central para podermos aceitar teorias como pertencendo à ciência.
O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias dentro de uma comunidade crítica de idéias requer ainda uma terceira condição de cientificidade. Como já notamos, o acordo consensual sobre a verdade entre os membros de uma comunidade de idéias só é possível se houver um acordo prévio acerca de assunções concernentes a critérios e métodos de avaliação da verdade. Assim, a possibilidade de satisfação da condição C2 pressupõe a satisfação de C3, uma condição material que a comunidade crítica deve satisfazer para ser considerada científica. Essa é a condição de objetividade, que pode ser enunciada da seguinte maneira:
É importante perceber que tais critérios formam uma constelação ideal que nunca chega a ser completamente satisfeita por nenhuma comunidade científica. Contudo, eles devem ser preenchidos ao menos em uma medida suficiente, posto que nenhuma comunidade científica poderia alcançar confiabilidade sem que eles fossem minimamente satisfeitos. Com efeito, quando aceitamos uma descoberta científica que se pretende verdadeira (por exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais critérios estão sendo suficientemente preenchidos (que os cientistas estão sendo suficientemente honestos, que não estão sendo pressionados a manipular dados etc.). Além disso, o cientista trabalhando em pesquisa deve realizar o seu trabalho sob a constante assunção de uma eventual avaliação de seus resultados por uma comunidade de idéias que satisfaça critérios que garantem a legitimidade consensual, usando essa assunção como guia para uma avaliação pessoal do que está fazendo, mesmo nos casos em que tal avaliação não ocorra e talvez nunca venha a ocorrer. Assim entendida, a condição C2 torna-se a exigência central para podermos aceitar teorias como pertencendo à ciência.
O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias dentro de uma comunidade crítica de idéias requer ainda uma terceira condição de cientificidade. Como já notamos, o acordo consensual sobre a verdade entre os membros de uma comunidade de idéias só é possível se houver um acordo prévio acerca de assunções concernentes a critérios e métodos de avaliação da verdade. Assim, a possibilidade de satisfação da condição C2 pressupõe a satisfação de C3, uma condição material que a comunidade crítica deve satisfazer para ser considerada científica. Essa é a condição de objetividade, que pode ser enunciada da seguinte maneira:
C3: A comunidade crítica de idéias responsável pela investigação científica deve ter encontrado um acordo consensual prévio sobre o que conta como pressupostos fundamentadores para a avaliação das teorias que neloa são pressupostas. Esses pressupostos são o que confere objetividade ao discurso científico.
O acordo sobre a verdade ou falsidade de teorias requer, pois, um acordo consensual prévio, relativo à satisfação de vários pressupostos fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem ambicionar um esclarecimento sistemático e entendendo por domínio epistêmico o conjunto daquilo que pode ser dado como objeto em uma área do conhecimento, quero listar os seguintes pressupostos:
(i) Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados elementares (empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual a teoria pertence;
(ii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como questões adequadamente formuladas a serem levantadas nesse domínio (a teoria deve responder a questões significativas, relevantes etc.);
(iii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria adequadamente construída no domínio epistêmico (em sua consistência interna tanto quanto em sua coerência com o sistema de crenças constitutivo do domínio epistêmico);
(iv) Pressupostos sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria em seu domínio epistêmico (o que envolve a avaliação de algum tipo de corrrepondência com os fatos que a teoria tenta explicar).
(ii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como questões adequadamente formuladas a serem levantadas nesse domínio (a teoria deve responder a questões significativas, relevantes etc.);
(iii) Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria adequadamente construída no domínio epistêmico (em sua consistência interna tanto quanto em sua coerência com o sistema de crenças constitutivo do domínio epistêmico);
(iv) Pressupostos sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria em seu domínio epistêmico (o que envolve a avaliação de algum tipo de corrrepondência com os fatos que a teoria tenta explicar).
Note-se que esses pressupostos fundamentadores cobrem um terreno muito amplo: os elementos e fatos em questão, por exemplo, podem ser desde entidades empíricas quaisquer a abstrações numéricas. A admissão de pressupostos de objetividade nos permite estabelecer conexão entre a concepção de ciência como saber consensualizável, obtido por uma comunidade crítica de idéias, e a concepção tradicional do método científico em ciências empíricas como sendo indutivo-dedutivo e/ou hipotético-dedutivo. É que as condições da aplicação desses métodos científicos acabam coincidindo com condições da aplicação dos pressupostos de objetividade em ciências empíricas. Vejamos como: o pressuposto (i) está associado à questão da generalidade, ao poder explicativo das teorias científicas; o pressuposto (ii) está associado a questões de simplicidade; o pressuposto (iii) está associado a questões como a de coerência, entrincheiramento, cooperação explicativa; e o pressuposto (iv) está associado a questões de predição, explicação e testabilidade.
São tais associações inevitáveis? Não seria possível um acordo consensual sem que as condições de objetividade estejam sendo satisfeitas, digamos, pela comunidade crítica dos videntes de bolas de cristal? Penso que não. Parece ser indispensável que os pressupostos fundamentadores constitutivos da condição de objetividade estejam sendo satisfeitos para que um acordo consensual legítimo se torne possível. Mas, dirá o cético, o que garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece ser problemática, na medida em que o cético espera dela uma solução a priori que de fato não existe. Na verdade, a resposta só pode ser empírica. Ou seja: a necessidade de se admitir condições de objetividade é uma verdade experiencial incontornável que a comunidade crítica de idéias tem sido forçada a aprender desde o início de seu funcionamento. Ela simplesmente verificou, por certo a contragosto, que o consenso legítimo só pode ser atingido quando tais condições são satisfeitas. O fato da aceitação das condições de objetividade não ser a priori explica a tentação que sentimos de prescindir do esforço que ela implica. E a sua admissão responde à eventual objeção de que uma definição consensualista do empreendimento científico não reconhece tal objetividade, descambando para um relativismo sociologizador da ciência.
Assim entendidas, as condições de progressividade, de consensualidade e de objetividade parecem constituir um critério descritivista suficientemente confiável, ainda que reconhecidamente vago e esquemático, para a demarcação entre ciência (formal ou empírica) e não-ciência. Vejamos agora o que acontece quando o aplicamos à filosofia.
São tais associações inevitáveis? Não seria possível um acordo consensual sem que as condições de objetividade estejam sendo satisfeitas, digamos, pela comunidade crítica dos videntes de bolas de cristal? Penso que não. Parece ser indispensável que os pressupostos fundamentadores constitutivos da condição de objetividade estejam sendo satisfeitos para que um acordo consensual legítimo se torne possível. Mas, dirá o cético, o que garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece ser problemática, na medida em que o cético espera dela uma solução a priori que de fato não existe. Na verdade, a resposta só pode ser empírica. Ou seja: a necessidade de se admitir condições de objetividade é uma verdade experiencial incontornável que a comunidade crítica de idéias tem sido forçada a aprender desde o início de seu funcionamento. Ela simplesmente verificou, por certo a contragosto, que o consenso legítimo só pode ser atingido quando tais condições são satisfeitas. O fato da aceitação das condições de objetividade não ser a priori explica a tentação que sentimos de prescindir do esforço que ela implica. E a sua admissão responde à eventual objeção de que uma definição consensualista do empreendimento científico não reconhece tal objetividade, descambando para um relativismo sociologizador da ciência.
Assim entendidas, as condições de progressividade, de consensualidade e de objetividade parecem constituir um critério descritivista suficientemente confiável, ainda que reconhecidamente vago e esquemático, para a demarcação entre ciência (formal ou empírica) e não-ciência. Vejamos agora o que acontece quando o aplicamos à filosofia.
9. POR QUE CONCEBER A FILOSOFIA COMO UM
EMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?
O ponto a ser sublinhado é que a nossa concepção consensualista de ciência coloca esta última em contraste direto com a filosofia. Em filosofia, como em ciência, uma comunidade crítica de idéias deve ser pressuposta, mesmo que por vezes de modo contrafactual. Com efeito, é esperado que filósofos tenham competência em suas atividades, que eles busquem a verdade e se disponham (mesmo que aos resmungos) a submeter as suas teorias filosóficas ao livre escrutínio por parte de outros pensadores igualmente competentes, que eles tenham igual informação e possibilidades de interação (uma queixa contra a filosofia dogmática é que ela falha em satisfazer essa exigência), e que suas idéias não sejam submetidas a nenhuma coação ideológica (de fato, a principal queixa contra a filosofia medieval é a de que nela essa condição nunca pôde ser suficientemente satisfeita).
Mesmo constituindo uma comunidade crítica de idéias que satisfaça a idéia da ciência, da qual a filosofia sempre esteve imbuida, as reflexões dos filósofos não são capazes de satisfazer nenhuma das três condições de cientificidade por nós consideradas. Isso nos possibilita caracterizar a filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento heurístico em uma comunidade crítica de idéias na qual tais condições não são satisfeitas. As condições negativas são, primeiro
Mesmo constituindo uma comunidade crítica de idéias que satisfaça a idéia da ciência, da qual a filosofia sempre esteve imbuida, as reflexões dos filósofos não são capazes de satisfazer nenhuma das três condições de cientificidade por nós consideradas. Isso nos possibilita caracterizar a filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento heurístico em uma comunidade crítica de idéias na qual tais condições não são satisfeitas. As condições negativas são, primeiro
NC1: A filosofia falha em satisfazer a condição de progressividade,
pois ela não é um empreendimento progressivo e acumulador
de conhecimento.
A filosofia é de fato acumuladora, mas somente no sentido de acumular um conteúdo hipotético, isto é, no sentido de que nossas concepções filosóficas podem ser tornadas mais complexas e aumentar em número. Ela acumula um número sempre maior de possíveis verdades, as quais tendem a tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas em seus diferentes domínios sempre mais estreitas. O caráter acumulador de hipóteses mas não-acumulador de conhecimento da filosofia pode ser facilmente percebido quando comparamos diferentes teorias filosóficas sobre uma mesma coisa. Considere, por exemplo, as doutrinas dos tipos de conhecimento em Locke e Spinoza. O primeiro é um filósofo empirista, preocupado em distinguir o conhecimento formal do saber empírico, o segundo é um metafísico racionalista tentando especular acerca de uma fonte única de todo o conhecimento. Cada teoria parece iluminar diferentes aspectos do problema, cada uma parece deter alguma verdade, e ambas juntas parecem ter mais verdade do que cada uma delas em separado. O problema é que nós não estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde as verdades se encontram, ou mesmo de excluir qualquer dúvida cética sobre a sua existência.
A condição C1 não é satisfeita pela filosofia porque esta última não satisfaz a sua precondição, que é a de consensualidade. Daí que para ela vale
A condição C1 não é satisfeita pela filosofia porque esta última não satisfaz a sua precondição, que é a de consensualidade. Daí que para ela vale
NC2: A filosofia falha em satisfazer a condição de consensualidade,
Uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade de
suas idéias pode ser alcançado em sua comunidade crítica de
idéias.
E isso ocorre porque de um modo ou de outro a condição de objetividade não chega a ser satisfeita:
Uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade de
suas idéias pode ser alcançado em sua comunidade crítica de
idéias.
E isso ocorre porque de um modo ou de outro a condição de objetividade não chega a ser satisfeita:
NC3 A filosofia falha em satisfazer as condições de objetividade S3,
posto que o filósofo não é capaz de, diante da comunidade crí-
tica de idéias, satisfazer pressupostos fundamentadores.
posto que o filósofo não é capaz de, diante da comunidade crí-
tica de idéias, satisfazer pressupostos fundamentadores.
Com efeito, o filósofo não é capaz de
(i) alcançar aceitação geral acerca do que pode ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;
(ii) assegurar a outros filósofos que as suas questões não são basicamente enganosas (pseudoproblemas);
(iii) conseguir aceitação geral da adequação de suas teorias (coerência interna e externa);
(iv) desenvolver procedimentos de avaliação da verdade (argumentos) que sejam geralmente aceitos por seus vizinhos filósofos (mostrando que a sua teoria concorda com os fatos que tenta explicar, seja qual for a natureza dos últimos).
(i) alcançar aceitação geral acerca do que pode ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;
(ii) assegurar a outros filósofos que as suas questões não são basicamente enganosas (pseudoproblemas);
(iii) conseguir aceitação geral da adequação de suas teorias (coerência interna e externa);
(iv) desenvolver procedimentos de avaliação da verdade (argumentos) que sejam geralmente aceitos por seus vizinhos filósofos (mostrando que a sua teoria concorda com os fatos que tenta explicar, seja qual for a natureza dos últimos).
Como C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos fundamentadores, fica claro que, ultimadamente, a filosofia não é ciência porque é incapaz de satisfazer tais condições de objetividade. Em casos como os das ciências naturais, isso significa que a filosofia não é capaz de satisfazer as condições impostas pelos métodos da ciência, para o prazer dos filósofos da ciência com herança positivista. Contudo, trata-se agora de um prazer restrito aos seus merecidos limites, posto que as condições de progressividade, consensualidade e objetividade ampliam o horizonte da ciência para muito além do que é sugerido pela simples investigação da aplicação do método científico nas ciências naturais.
Vimos, pois, que as condições de progressividade, consensualidade e objetividade correspondem otimamente aos critérios que intuitivamente usamos quando somos chamados a distinguir o que pertence à ciência do que pertence somente à filosofia.
Vimos, pois, que as condições de progressividade, consensualidade e objetividade correspondem otimamente aos critérios que intuitivamente usamos quando somos chamados a distinguir o que pertence à ciência do que pertence somente à filosofia.
10. CONSEQÜÊNCIAS DA TESE PROPOSTA
Quando consideramos a totalidade da filosofia como um empreendimento antecipador da ciência, a adoção da concepção de ciência recém exposta conduz-nos a algumas conseqüências interessantes.
Primeiro, considerando que nossos critérios para o que pode contar como ciência deixam em aberto os modos concretos pelos quais a investigação pode vir a ser considerada científica, a identidade própria da investigação que há de surgir permanece em aberto. Em outras palavras, os critérios sugeridos não antecipam o caráter próprio de nenhum campo científico ainda por surgir; em especial, eles não antecipam que as ciências eventualmente destinadas a tomar o lugar dos presentes domínios da indagação filosófica devam ter qualquer similaridade com as ciências experimentais já conhecidas por nós. Dada a concepção proposta da natureza da ciência, mesmo teorias especulativas de amplo escopo, como a metapsicanálise freudiana, ou a lei comtiana dos três estágios, poderiam tornar-se científicas, bastando para isso que fossem construídas sobre um pano de fundo de informações que as tornasse capazes de alcançar acordo consensual em uma comunidade crítica de idéias. Mais além, quaisquer doutrinas filosóficas especulativas, como a doutrina fichteana do Eu puro, a escatologia scotista, a doutrina do Uno em Plotino, poderiam, em princípio, ainda que muito improvavelmente, tornar-se científicas na medida em que pudessem ser reconstruídas de modo o tornar um acordo consensual legítimo sobre a sua verdade realizável.
Mesmo uma concepção da natureza da filosofia como a que estamos sugerindo aqui poderia deixar de ser filosófica para se tornar científica quando, aplicada a ela mesma, se revelasse objeto de consenso em sua verdade. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como uma protociência similar à concepção consensualista-objetivista seja mais adequadamente e mais completamente desenvolvida, e que essa concepção receba no futuro mais e mais confirmação pela emergência de novos campos científicos que substituam aos poucos as nossas atuais discussões filosóficas. Uma conseqüência será que uma comunidade crítica de idéias no futuro acabará por aceitar a verdade da idéia de que a filosofia é uma protociência em termos de acordo consensual autêntico, vindo a admitir isso como uma verdade científica inobjetável. A idéia de que a filosofia é uma protociência teria então auto-satisfeito a condição de cientificidade por ela mesma construida.
Uma segunda conseqüência interessante de nossa concepção de ciência em relação à filosofia é que nós não precisamos necessariamente eliminar a abrangência de nossas visões filosóficas por admiti-las como substituiveis pela ciência. De fato, há razões para esperar algo diverso. Falando sobre a interdependência dos problemas filosóficos pertencentes ao núcleo residual – como os da metafísica e epistemologia –, filósofos como Wittgenstein já notaram, com certo exagero, que tais problemas são tão profundamente interligados uns aos outros que cada um deles só poderá ser resolvido quando todos os outros já tiverem sido resolvidos. Essa observação mostra uma maneira como os nossos problemas filosóficos centrais podem dar lugar à ciência: não tanto por meio da construção de teorias diretamente demonstráveis como correspondendo ou não aos fatos que elas devem explicar, mas por meio do suporte heurístico que teorias são capazes de oferecer umas às outras, pela sua cooperação explicativa, pelo entrincheiramente das crenças delas derivadas. Um certo grau de suporte interteórico, ou seja, de cooperação explicativa entre teorias, pode ser facilmente encontrado, mesmo nas ciências naturais: a teoria evolucionária de Darwin, por exemplo, chegou a ser abandonada pelo autor quando este não soube responder à objeção de que os novos caracteres deveriam se diluir com o cruzamento dos indivíduos que os portassem com a multidão dos membros menos dotados da espécie. Problemas como esse, contudo, foram resolvidos a favor da teoria da evolução por seleção natural quando, muitos anos mais tarde, ela recebeu o suporte heurístico da descoberta, dentro da comunidade científica, dos artigos de Gregor Mendel, fundando a ciência da genética (embora, como é sabido, esses tivessem sido publicados no tempo de Darwin sem que fossem lidos). Algo similar pode ocorrer com os problemas inter-relacionados da filosofia: o acordo consensual poderá surgir nesses domínios, não tanto como resultado do que conta como confirmação experiencial objetiva, embora algum tipo de confirmação objetiva deva ser necessário, mas através do suporte interteórico que a solução de um problema pode dar à solução de outros e vice-versa.
Há, finalmente, algumas conclusões a serem tiradas da constatação de que em muito da indagação filosófica o suporte interteórico deve prevalecer como meio de avaliação da verdade.
A primeira é que há menos razões para suspender a crença otimista de que mesmo nos mais resistentes domínios da filosofia seremos capazes de, em um algum momento futuro, encontrar o caminho de um acordo consensual (a existência de apenas cinco ciências fundamentais parece falar a favor disso).
A segunda é que também temos razões para esperar que o objeto de investigação após tais acordos não venha a ser compreendido por um grande número de teorias de pequeno escopo e independentes umas das outras, mas, ao invés, por abrangentes constelações de teorias científicas mais ou menos interligadas; nesse caso somente a forma conjectural de nossos problemas será necessariamente perdida – não a sua abrangência.
Uma terceira conclusão, pelo menos indicada pela interdependência heurística das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas filosóficas em áreas como epistemologia, metafísica e ética, pela simples comparação com o que aconteceu com conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências como a física, a química ou a biologia, as quais mostraram-se simplesmente demasiado errôneas ou grosseiras para continuarem preservando mais do que uma importância meramente histórica. De fato, no caso das ciências naturais, há profundas rupturas epistemológicas distinguindo a ciência da indagação filosófica pré-científica (ou não consensualizável). Contudo, em níveis posteriores de conhecimento, em que o entrincheiramento e suporte interteórico podem ser marcas prevalecentes da verdade, parece que a transição da filosofia para a ciência tende a ser mais gradual, posto que envolve correções de teorias inter-relacionadas, correções talvez profundas, embora muitas vezes sem o salto para o totalmente novo. Isso significa que a especulação filosófica em seus domínios centrais pode ser heuristicamente mais relevante, uma vez que ela deve acumular verdades (embora não saibamos onde elas estão) antes que acordos consensuais se tornem fortes o suficiente para produzir, de maneira mais urbana e discreta, uma mudança qualitativa mais significante. A atenção a isso pode resgatar muito da importância das disciplinas filosóficas fundamentais do descaso positivista e cientificista.
Primeiro, considerando que nossos critérios para o que pode contar como ciência deixam em aberto os modos concretos pelos quais a investigação pode vir a ser considerada científica, a identidade própria da investigação que há de surgir permanece em aberto. Em outras palavras, os critérios sugeridos não antecipam o caráter próprio de nenhum campo científico ainda por surgir; em especial, eles não antecipam que as ciências eventualmente destinadas a tomar o lugar dos presentes domínios da indagação filosófica devam ter qualquer similaridade com as ciências experimentais já conhecidas por nós. Dada a concepção proposta da natureza da ciência, mesmo teorias especulativas de amplo escopo, como a metapsicanálise freudiana, ou a lei comtiana dos três estágios, poderiam tornar-se científicas, bastando para isso que fossem construídas sobre um pano de fundo de informações que as tornasse capazes de alcançar acordo consensual em uma comunidade crítica de idéias. Mais além, quaisquer doutrinas filosóficas especulativas, como a doutrina fichteana do Eu puro, a escatologia scotista, a doutrina do Uno em Plotino, poderiam, em princípio, ainda que muito improvavelmente, tornar-se científicas na medida em que pudessem ser reconstruídas de modo o tornar um acordo consensual legítimo sobre a sua verdade realizável.
Mesmo uma concepção da natureza da filosofia como a que estamos sugerindo aqui poderia deixar de ser filosófica para se tornar científica quando, aplicada a ela mesma, se revelasse objeto de consenso em sua verdade. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como uma protociência similar à concepção consensualista-objetivista seja mais adequadamente e mais completamente desenvolvida, e que essa concepção receba no futuro mais e mais confirmação pela emergência de novos campos científicos que substituam aos poucos as nossas atuais discussões filosóficas. Uma conseqüência será que uma comunidade crítica de idéias no futuro acabará por aceitar a verdade da idéia de que a filosofia é uma protociência em termos de acordo consensual autêntico, vindo a admitir isso como uma verdade científica inobjetável. A idéia de que a filosofia é uma protociência teria então auto-satisfeito a condição de cientificidade por ela mesma construida.
Uma segunda conseqüência interessante de nossa concepção de ciência em relação à filosofia é que nós não precisamos necessariamente eliminar a abrangência de nossas visões filosóficas por admiti-las como substituiveis pela ciência. De fato, há razões para esperar algo diverso. Falando sobre a interdependência dos problemas filosóficos pertencentes ao núcleo residual – como os da metafísica e epistemologia –, filósofos como Wittgenstein já notaram, com certo exagero, que tais problemas são tão profundamente interligados uns aos outros que cada um deles só poderá ser resolvido quando todos os outros já tiverem sido resolvidos. Essa observação mostra uma maneira como os nossos problemas filosóficos centrais podem dar lugar à ciência: não tanto por meio da construção de teorias diretamente demonstráveis como correspondendo ou não aos fatos que elas devem explicar, mas por meio do suporte heurístico que teorias são capazes de oferecer umas às outras, pela sua cooperação explicativa, pelo entrincheiramente das crenças delas derivadas. Um certo grau de suporte interteórico, ou seja, de cooperação explicativa entre teorias, pode ser facilmente encontrado, mesmo nas ciências naturais: a teoria evolucionária de Darwin, por exemplo, chegou a ser abandonada pelo autor quando este não soube responder à objeção de que os novos caracteres deveriam se diluir com o cruzamento dos indivíduos que os portassem com a multidão dos membros menos dotados da espécie. Problemas como esse, contudo, foram resolvidos a favor da teoria da evolução por seleção natural quando, muitos anos mais tarde, ela recebeu o suporte heurístico da descoberta, dentro da comunidade científica, dos artigos de Gregor Mendel, fundando a ciência da genética (embora, como é sabido, esses tivessem sido publicados no tempo de Darwin sem que fossem lidos). Algo similar pode ocorrer com os problemas inter-relacionados da filosofia: o acordo consensual poderá surgir nesses domínios, não tanto como resultado do que conta como confirmação experiencial objetiva, embora algum tipo de confirmação objetiva deva ser necessário, mas através do suporte interteórico que a solução de um problema pode dar à solução de outros e vice-versa.
Há, finalmente, algumas conclusões a serem tiradas da constatação de que em muito da indagação filosófica o suporte interteórico deve prevalecer como meio de avaliação da verdade.
A primeira é que há menos razões para suspender a crença otimista de que mesmo nos mais resistentes domínios da filosofia seremos capazes de, em um algum momento futuro, encontrar o caminho de um acordo consensual (a existência de apenas cinco ciências fundamentais parece falar a favor disso).
A segunda é que também temos razões para esperar que o objeto de investigação após tais acordos não venha a ser compreendido por um grande número de teorias de pequeno escopo e independentes umas das outras, mas, ao invés, por abrangentes constelações de teorias científicas mais ou menos interligadas; nesse caso somente a forma conjectural de nossos problemas será necessariamente perdida – não a sua abrangência.
Uma terceira conclusão, pelo menos indicada pela interdependência heurística das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas filosóficas em áreas como epistemologia, metafísica e ética, pela simples comparação com o que aconteceu com conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências como a física, a química ou a biologia, as quais mostraram-se simplesmente demasiado errôneas ou grosseiras para continuarem preservando mais do que uma importância meramente histórica. De fato, no caso das ciências naturais, há profundas rupturas epistemológicas distinguindo a ciência da indagação filosófica pré-científica (ou não consensualizável). Contudo, em níveis posteriores de conhecimento, em que o entrincheiramento e suporte interteórico podem ser marcas prevalecentes da verdade, parece que a transição da filosofia para a ciência tende a ser mais gradual, posto que envolve correções de teorias inter-relacionadas, correções talvez profundas, embora muitas vezes sem o salto para o totalmente novo. Isso significa que a especulação filosófica em seus domínios centrais pode ser heuristicamente mais relevante, uma vez que ela deve acumular verdades (embora não saibamos onde elas estão) antes que acordos consensuais se tornem fortes o suficiente para produzir, de maneira mais urbana e discreta, uma mudança qualitativa mais significante. A atenção a isso pode resgatar muito da importância das disciplinas filosóficas fundamentais do descaso positivista e cientificista.
IV
RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS
DA FILOSOFIA
DA FILOSOFIA
Em todo lugar buscamos o incondicionado,
e o que encontramos são apenas coisas.
Novalis
e o que encontramos são apenas coisas.
Novalis
Podemos entender por que a filosofia é uma forma conjectural de investigação ao concebê-la como uma antecipação da ciência. Mas nem todos os traços característicos da indagação filosófica podem ser explicados dessa maneira. Os traços indicados nas definições históricas de filosofia como a busca da sabedoria, o espanto, o apelo freqüente a princípios transcendentais de explicação, o impulso que objetiva integrar nossas experiências em uma visão abrangente, capaz de nos fazer compreender o mundo como um todo e o nosso lugar nele, a produção de sistemas filosóficos tentando desenvolver e justificar tais visões do mundo – todos esses aspectos dificilmente podem ser entendidos se persistirmos em pensar a filosofia como limitando-se apenas a um empreendimento cognitivo antecipatório, direcionado à ciência. Neste capítulo tentarei mostrar que uma resposta a essas questões pode ser encontrada quando, ao invés de investigarmos o modo como a filosofia dá lugar à ciência, perquirirmos o modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a filosofia com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.
1. FILOSOFIA E RELIGIÃO: A ABORDAGEM GENÉTICA
Há duas características particularmente importantes que a filosofia compartilha com o pensamento religioso, as quais podem ser chamadas de abrangência e transcendência. Religiões monoteístas, como a judaico-cristã, chegam à característica de transcendência por apelo a um Deus que se encontra além do mundo da experiência, mas que é misteriosamente concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora desse mundo. Por essa via as religiões também alcançam abrangência: o conceito de Deus está no centro de uma doutrina que objetiva integrar nossos modos de ver em uma explicação do mundo onde vivemos e do lugar que o homem nele ocupa, daí se deixando derivar um conjunto de diretivas para a conduta e vida humana. Muito da filosofia tem preservado aspirações similares de transcendência e abrangência, embora realizando-as sem o apelo a um Deus pessoal.
Filósofos tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, a qual conduziu os seus maiores expoentes à construção de sistemas filosóficos abarcantes, buscando explicar a realidade como um todo e freqüentemente derivando dessa explicação diretivas gerais para a conduta humana. Embora as aspirações da filosofia contemporânea não sejam tão elevadas, a amplitude de propósito ainda permanece um elemento importante na avaliação da pertinência e importância da investigação filosófica.
Quanto à transcendência, embora a filosofia não apele ao sobrenatural da mesma maneira que a religião, ela apela a princípios metafísicos de explicação que permanecem além das possibilidades reais de experiência e entendimento. Embora esses princípios não sejam seres espirituais, como os deuses das religiões, eles podem não se deixar distinguir completamente deles. Pois como os deuses, é comum que não possam ser adequadamente alcançados através do entendimento humano, que possuam algum atributo mental, que se relacionem ao mundo experienciavel um modo obscuro e misterioso. Para entendermos a imensa importância de tais princípios metafísicos, precisamos apenas considerar o lugar central que eles sempre ocuparam na história da filosofia. Aqui vai uma lista, de Tales a Wittgenstein:
- água (Tales); ilimitado (Anaximandro); ar (Anaxímenes); terra (Xenófanes); fogo (Heráclito); Ser (Parmênides); os átomos (Demócrito); o número (Pitágoras).
- as idéias, especialmente a idéia do bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (John Scotus); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e muitos outros);
- a substância pensante finita ou infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); mentes (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental (Kant); o eu puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); a seridade do ser (Heidegger); o indizível (Wittgenstein).
- as idéias, especialmente a idéia do bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (John Scotus); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e muitos outros);
- a substância pensante finita ou infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); mentes (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental (Kant); o eu puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); a seridade do ser (Heidegger); o indizível (Wittgenstein).
O relacionamento entre filosofia e religião pode ser historica e geneticamente abordado por meio da consideração de princípios ou entidades-princípio, dado que são entidades que atuam como princípios capazes de produzir ou determinar ou sustentar alguma coisa. É bem conhecido o fato histórico de que a filosofia ocidental nasceu do solo da mitologia grega e da religião. Em algum ponto os pensadores gregos se tornaram insatisfeitos com as explicações dos eventos da natureza e da vida humana fornecidas pela mitologia e começaram a substituí-las por explicações filosóficas. Historiadores da filosofia já sugeriram que o contato com outras culturas, com seus diferentes deuses e valores, poderia ter contribuído para enfraquecer a crença dos gregos em suas explicações mitológicas(46). Mas esse fato nunca poderia em si mesmo ter sido suficiente para dar início à especulação filosófica, posto que muitas outras culturas foram similarmente expostas, a outras sem que desenvolvessem qualquer tipo de filosofia argumentativa (algumas, ainda, reagiram a tal exposição pela revigoração reativa de suas próprias crenças, considere, por exemplo, a sobrevivência do judaismo na Europa). Uma explicação mais plausível e por muitos aceita para o nascimento da filosofia ocidental é a exposta por W. K. C. Guthrie, de que a descoberta da ciência abstrata entre os gregos sugeriu à mente humana o uso da generalização(47). Contudo, só isso não seria suficiente para produzir a emergência do pensamento filosófico, posto que generalizações de senso comum sobre fenômenos ordinários sempre existiram: que o Sol nasce a cada dia ou que dois e dois são quatro eram generalizações já sabidas antes do surgimento de qualquer ciência.
Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação filosófica ocidental, que incorpora a aceita por Guthrie, seria a seguinte. Os gregos, muito em conseqüência de sua exposição a outras culturas, produziram desenvolvimentos científicos em aritmética, geometria, física e astronomia. Mas enquanto outros povos viam os resultados da ciência apenas como um instrumento para a realização de fins práticos, os gregos pela primeira vez os consideraram em abstração dessas finalidades práticas, ou seja, como generalizações científicas. Essa abstração capacitou-os a se tornarem conscientes das características intrínsecas desse tipo de generalização. Eles puderam ver que as generalizações científicas têm um poder explicativo, que lhes faculta, não apenas a explicar o que é abertamente avaliável, como é o caso das generalizações de senso comum, mas também a “natureza oculta das coisas”. Nesse contexto teriam também percebido que a forma científica de explicação é baseada na assunção da existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nas matemáticas, regularidades não só capazes de ser refletidas nas generalizações, mas também, quando empíricas, de possibilitar explicações dos fatos e previsões (como o haviam demonstrado as predições astronômicas) e, quando matemáticas, possibilitar justificações e inferências (como nas provas dos teoremas) em um procedimento em certa medida análogo. Com efeito, assumindo a possibilidade geral de tais generalizações abstratas apoiadas na inferência a partir de regularidades dadas, seguida de explicação e previsão, os Gregos teriam alcançado o que poderíamos chamar de uma idéia de ciência, tanto empírica quanto formal, ou seja, dos procedimentos de (a) generalização de regras ou leis, e (b) de inferência ou explicação. Essa idéia equivalia a um novo tipo de explicação dos fatos, muito diferente daquela provida pelo antropomorfismo religioso. De fato, parece que foi a descoberta da possibilidade de substituir explicações religiosas por explicações por meio de regras, princípios ou leis, aplicáveis mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a fagulha que acendeu o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-socráticos. A idéia subjacente que veio à mente desses primeiros filósofos deve ter sido simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado, não por apelo à vontade dos deuses, mas a regularidades semelhantes àquelas descobertas pela ciência. Claro que a maior parte das questões não era passível de ser realmente abordada em termos científicos. Mas ainda assim poderiam ser abordadas especulativamente, conjecturalmente, respaldadas pela idéia de ciência e por resultados que, mesmo não sendo consensuais, permaneceriam intelectualmente estimulantes. A prática disso é o que veio a ser chamado de filosofia.
Devido a essa influência do modelo científico, seja ele empírico ou formal, no surgimento da filosofia grega, não é surpreendente que o primeiro filósofo da tradição ocidental – Tales de Mileto – fosse também um astrônomo e um competente matemático, que uma vez predisse um eclipse solar. Sua hipótese de que a água poderia ser o princípio (arché), ou seja, a causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de substituir a explicação pelo apelo a deuses por algo mais próximo da explicação não-antropomórfica provida pela ciência. Certamente, uma tal explicação não poderia ser adequadamente construída em termos científicos, pois não haveria como possibilitar a ela o tipo de acordo consensual que vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem os seus sucessores poderiam alcançar um entendimento científico de uma questão tão ampla como a dos constituintes últimos da natureza, posto que acordos consensuais acerca disso dependem da realização de sofisticadas observações científicas, o que somente hoje é possível. Contudo, os pensadores pré-socráticos eram pelo menos capazes de filosofar sobre um tal assunto, ou seja, eles já eram capazes de ter vislumbres conjecturais sobre a natureza das coisas. Ou seja: sugestões necessariamente vagas, incompletas, inevitavelmente falhas, mas mesmo assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar o nosso entendimento da realidade. O que filósofos como Tales e, com maior refinamento, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram idéias esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja, formas de teorias funcionando como realizações protocientíficas da imaginação especulativa. Entre os pré-socráticos as entidades-princípio tomaram muitas vezes a forma de causas eficientes e sustentadoras do mundo experienciado por nós, sendo inicialmente coisas sensíveis, como água e terra, mas rapidamente se tornando coisas mais evanescentes, como o ar invisível, sendo ao final mais consistentemente substituídas por entidades não-experienciáveis empiricamente, como o ilimitado de Anaximandro, o Ser de Parmênides e o número de Pitágoras, as quais foram substituidas inevitavelmente por muitas outras em toda a história da filosofia. Irei aprofundar a análise desses princípios, mas devo primeiro considerar algumas idéias de Auguste Comte, capazes de nos oferecerem uma orientação importante.
Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação filosófica ocidental, que incorpora a aceita por Guthrie, seria a seguinte. Os gregos, muito em conseqüência de sua exposição a outras culturas, produziram desenvolvimentos científicos em aritmética, geometria, física e astronomia. Mas enquanto outros povos viam os resultados da ciência apenas como um instrumento para a realização de fins práticos, os gregos pela primeira vez os consideraram em abstração dessas finalidades práticas, ou seja, como generalizações científicas. Essa abstração capacitou-os a se tornarem conscientes das características intrínsecas desse tipo de generalização. Eles puderam ver que as generalizações científicas têm um poder explicativo, que lhes faculta, não apenas a explicar o que é abertamente avaliável, como é o caso das generalizações de senso comum, mas também a “natureza oculta das coisas”. Nesse contexto teriam também percebido que a forma científica de explicação é baseada na assunção da existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nas matemáticas, regularidades não só capazes de ser refletidas nas generalizações, mas também, quando empíricas, de possibilitar explicações dos fatos e previsões (como o haviam demonstrado as predições astronômicas) e, quando matemáticas, possibilitar justificações e inferências (como nas provas dos teoremas) em um procedimento em certa medida análogo. Com efeito, assumindo a possibilidade geral de tais generalizações abstratas apoiadas na inferência a partir de regularidades dadas, seguida de explicação e previsão, os Gregos teriam alcançado o que poderíamos chamar de uma idéia de ciência, tanto empírica quanto formal, ou seja, dos procedimentos de (a) generalização de regras ou leis, e (b) de inferência ou explicação. Essa idéia equivalia a um novo tipo de explicação dos fatos, muito diferente daquela provida pelo antropomorfismo religioso. De fato, parece que foi a descoberta da possibilidade de substituir explicações religiosas por explicações por meio de regras, princípios ou leis, aplicáveis mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a fagulha que acendeu o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-socráticos. A idéia subjacente que veio à mente desses primeiros filósofos deve ter sido simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado, não por apelo à vontade dos deuses, mas a regularidades semelhantes àquelas descobertas pela ciência. Claro que a maior parte das questões não era passível de ser realmente abordada em termos científicos. Mas ainda assim poderiam ser abordadas especulativamente, conjecturalmente, respaldadas pela idéia de ciência e por resultados que, mesmo não sendo consensuais, permaneceriam intelectualmente estimulantes. A prática disso é o que veio a ser chamado de filosofia.
Devido a essa influência do modelo científico, seja ele empírico ou formal, no surgimento da filosofia grega, não é surpreendente que o primeiro filósofo da tradição ocidental – Tales de Mileto – fosse também um astrônomo e um competente matemático, que uma vez predisse um eclipse solar. Sua hipótese de que a água poderia ser o princípio (arché), ou seja, a causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de substituir a explicação pelo apelo a deuses por algo mais próximo da explicação não-antropomórfica provida pela ciência. Certamente, uma tal explicação não poderia ser adequadamente construída em termos científicos, pois não haveria como possibilitar a ela o tipo de acordo consensual que vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem os seus sucessores poderiam alcançar um entendimento científico de uma questão tão ampla como a dos constituintes últimos da natureza, posto que acordos consensuais acerca disso dependem da realização de sofisticadas observações científicas, o que somente hoje é possível. Contudo, os pensadores pré-socráticos eram pelo menos capazes de filosofar sobre um tal assunto, ou seja, eles já eram capazes de ter vislumbres conjecturais sobre a natureza das coisas. Ou seja: sugestões necessariamente vagas, incompletas, inevitavelmente falhas, mas mesmo assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar o nosso entendimento da realidade. O que filósofos como Tales e, com maior refinamento, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram idéias esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja, formas de teorias funcionando como realizações protocientíficas da imaginação especulativa. Entre os pré-socráticos as entidades-princípio tomaram muitas vezes a forma de causas eficientes e sustentadoras do mundo experienciado por nós, sendo inicialmente coisas sensíveis, como água e terra, mas rapidamente se tornando coisas mais evanescentes, como o ar invisível, sendo ao final mais consistentemente substituídas por entidades não-experienciáveis empiricamente, como o ilimitado de Anaximandro, o Ser de Parmênides e o número de Pitágoras, as quais foram substituidas inevitavelmente por muitas outras em toda a história da filosofia. Irei aprofundar a análise desses princípios, mas devo primeiro considerar algumas idéias de Auguste Comte, capazes de nos oferecerem uma orientação importante.
2. A LEI COMTIANA DOS TRÊS ESTÁGIOS
A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como um substituto para as explicações da mitologia e da religião traz à memória a assim chamada “lei dos três estágios”, desenvolvida por Comte como uma ordenação da longa jornada da mente, começando da superstição até chegar à ciência(48). Irei fazer algum uso dessa lei na seção 4. Mas agora, como creio que a lei de Comte é de grande importância e que ela tem sido mal-entendida e injustamente depreciada, irei reconstruí-la em alguns detalhes, respondendo na próxima seção às objeções mais influentes contra ela levantadas(49).
A lei dos três estágios pode ser entendida em três níveis: (a) no nível do desenvolvimento dos produtos da cultura humana em suas distintas ramificações; (b) no nível do desenvolvimento da mente individual; e (c) no nível do desenvolvimento da sociedade humana.
É no nível (a), como uma lei geral governando o desenvolvimento da cultura humana, que a lei dos três estágios é particularmente importante. Para Comte, associado à emergência de cada ciência fundamental (capítulo III, 4), há um processo evolucionário em que a cultura humana passa através de três estágios sucessivos: o religioso ou fictivo, o metafísico ou abstrato, e o científico ou positivo (ver esquema). Eis um esquema orientador:
A lei dos três estágios pode ser entendida em três níveis: (a) no nível do desenvolvimento dos produtos da cultura humana em suas distintas ramificações; (b) no nível do desenvolvimento da mente individual; e (c) no nível do desenvolvimento da sociedade humana.
É no nível (a), como uma lei geral governando o desenvolvimento da cultura humana, que a lei dos três estágios é particularmente importante. Para Comte, associado à emergência de cada ciência fundamental (capítulo III, 4), há um processo evolucionário em que a cultura humana passa através de três estágios sucessivos: o religioso ou fictivo, o metafísico ou abstrato, e o científico ou positivo (ver esquema). Eis um esquema orientador:
Subestágios:
Estágios: (i) animista
(1) religioso ou fictivo (ii) politeista
Níveis: (iii) monoteista
a) cultural (2) metafísico ou absoluto
(3) científico ou positivo
Lei dos
três < b) individual (1), (2) e (3)
estágios
c) social (1), (2) e (3)
(1) religioso ou fictivo (ii) politeista
Níveis: (iii) monoteista
a) cultural (2) metafísico ou absoluto
(3) científico ou positivo
Lei dos
três < b) individual (1), (2) e (3)
estágios
c) social (1), (2) e (3)
O estágio religioso ou fictivo é o necessário ponto de partida de nossa evolução cultural. Esse estágio é dominado pelo antropomorfismo: a mente humana tenta explicar as anomalias da natureza projetando as suas próprias características no mundo externo. Os fenômenos naturais, particularmente os desviantes, são explicados como causados pela vontade de seres humanos com poderes sobrenaturais: os deuses ou o Deus. O conhecimento acerca dessas entidades sobrenaturais, suposto como adquirido nesse estágio, é considerado absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente ilusório, sendo produto, não da razão, mas tão-somente da imaginação.
O estágio religioso assume subseqüentemente três formas, cada uma passando para um nível de abstração mais alto. Na primeira, o subestágio animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes são vagamente concebidos como possuindo vida, paixões e vontade. No segundo subestágio, chamado de politeísta, tais objetos são substituídos por deuses, seres vivos de natureza sobrenatural, normalmente invisíveis, intervindo arbitrariamente no curso da natureza. Finalmente no subestágio monoteísta, as divindades do politeísmo são condensadas de maneira a formar um único Omni-Deus, típico da religião judaico-cristã. Comte vê esse movimento como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos. Nele a mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão.
O segundo estágio, o estágio metafísico (filosófico), é para Comte apenas transicional. Ele representa um progresso notável, pois os princípios de explicação deixam de ser buscados em divindades sobrenaturais e passam a ser buscados na própria natureza. Mas embora esses princípios possam pertencer à natureza, eles estão lá de maneira oculta. Eles são chamados de “poderes naturais”, “propriedades essenciais”, ou “entidades abstratas”. Exemplos de tais princípios são para Comte o flogisto, antecedendo a química moderna e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais princípios, afirma ele, são fundamentalmente equívocos em seu caráter. Eles deveriam fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos, ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas eles falham em realizar essa função; por outro lado, eles não podem ser concebidos como agentes pessoais sem o regresso a um estágio teológico. Eles são o que Comte sugestivamente chamou de “abstrações personificadas”, apontando assim para a sua inconsistência interna. Mais tarde testaremos essa idéia, aplicando-as às entidades-princípios referidas pelos filósofos.
Comte tem uma concepção completamente negativa do valor intrínseco dos primeiros dois estágios. Para ele, eles são basicamente dependentes da imaginação, e nem as explicações nem as previsões feitas através das construções conceituais dela originadas são genuínas. A utilidade dessas explicações e previsões repousa basicamente em seus efeitos sociopsicológicos, como o de estruturação do poder ou a diminuição da ansiedade humana diante daquilo que está além do seu controle. Além disso, há uma conseqüência prática a longo prazo: somente por meio dessas construções conceituais ilusórias o caminho para o estágio científico é preparado. A mente humana, diz Comte, não pode investigar sem ser guiada por algum tipo de teoria. Os estágios metafísico e teológico produzem teorias com base nas quais a mente humana pode perseguir a investigação e, motivada por uma ilusão de conhecimento, perseverar na observação cumulativa dos fatos que ao final acaba por conduzir à ciência. Um bom exemplo desse processo é dado pela transição da astrologia à astronomia: a contínua observação de corpos celestes, objetivando predizer o destino humano, conduziu ao desenvolvimento de mensurações matemáticas, que criaram condições para a emergência da astronomia como ciência.
Para Comte o estágio metafísico é intermediário e provisório, não passando de uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo. Somente neste último a ciência se estabelece como a única forma adequada de investigação, sendo as velhas questões teológicas e metafísicas abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis. No estágio positivo ou científico o que é buscado deixa de ser um tipo de conhecimento absoluto para se tornar um tipo relativo, passando a ser tal devido à falseabilidade intrínseca a toda a investigação humana (com efeito, de que maneira poderíamos reconhecer o conhecimento absoluto, caso o encontrássemos?). A intenção de explicar o mundo como um todo é também reconhecida como uma ilusão: não podemos fazer mais do que explicar os seus constituintes, o que é realizado pelas ciências particulares (com efeito, como poderiam conceitos que objetivam classificar os constituintes do mundo serem aplicados ao mundo como um todo?). Mais além, nesse estágio os fenômenos cessam de ser explicados pela imaginação e vêm a ser explicados exclusivamente pela razão, a qual não busca mais as causas essenciais ocultas, mas apenas a descoberta de leis, ou seja, de regularidades verificáveis que os fenômenos mantêm entre si. O conhecimento dessas regularidades permite-nos explicar realisticamente as associações encontradas entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando dessa maneira a realização de predições. E esse poder de fazer predições conduz-nos a um domínio real – e não somente imaginário – sobre a natureza.
Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no desenvolvimento da mente individual, o que evidencia a sua raiz biológica. Como ele notou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em parte vivemos em um mundo imaginário de seres míticos como fadas e bruxas... Nós somos metafísicos na adolescência quando, ainda destituídos de conhecimento dos fatos, tornamo-nos capazes de aplicar a razão, construindo explicações infundadas. Por fim, quando nos tornamos adultos (na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos “físicos”, admitindo somente o conhecimento positivo, firmado e confirmado por meios científicos.
Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta a si mesma ao nível da organização social e de suas práticas. Mas essa manifestação é dependente da concretização efetiva dos estágios no domínio da cultura. Ora, considerando que as ciências fundamentais necessariamente foram formadas em tempos diferentes (posto que o desenvolvimento de uma ciência fundamental pressupõe o desenvolvimento de outra) e também que o desenvolvimento da técnica só se dá como resultado do desenvolvimento teórico da ciência, é de se esperar que o efeito social da formação das ciências fundamentais na “positivação” da organização econômica e social seja antes um fenômeno tardio. A sugestão de Comte é que no nível da organização social o estágio teológico durou até o fim da Idade Média, sendo essa organização sendo caracterizada por uma sociedade autoritária e militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma Protestante, as idéias metafísicas começaram a dirigir a sociedade, estabelecendo um império da lei e dos direitos abstratos. Somente após a Revolução Francesa e com a instauração da Revolução Industrial, em um período no qual todas as ciências fundamentais alcançaram a sua “positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social. Este último período é caracterizado pela emergência de uma sociedade pacífica, na qual a vida econômica dos homens torna-se o centro da atenção. Nessa sociedade a ciência é destinada a um papel determinador, o que deve conduzir a uma sociedade organizada e regulada por um grupo elitista de cientistas.
O estágio religioso assume subseqüentemente três formas, cada uma passando para um nível de abstração mais alto. Na primeira, o subestágio animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes são vagamente concebidos como possuindo vida, paixões e vontade. No segundo subestágio, chamado de politeísta, tais objetos são substituídos por deuses, seres vivos de natureza sobrenatural, normalmente invisíveis, intervindo arbitrariamente no curso da natureza. Finalmente no subestágio monoteísta, as divindades do politeísmo são condensadas de maneira a formar um único Omni-Deus, típico da religião judaico-cristã. Comte vê esse movimento como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos. Nele a mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão.
O segundo estágio, o estágio metafísico (filosófico), é para Comte apenas transicional. Ele representa um progresso notável, pois os princípios de explicação deixam de ser buscados em divindades sobrenaturais e passam a ser buscados na própria natureza. Mas embora esses princípios possam pertencer à natureza, eles estão lá de maneira oculta. Eles são chamados de “poderes naturais”, “propriedades essenciais”, ou “entidades abstratas”. Exemplos de tais princípios são para Comte o flogisto, antecedendo a química moderna e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais princípios, afirma ele, são fundamentalmente equívocos em seu caráter. Eles deveriam fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos, ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas eles falham em realizar essa função; por outro lado, eles não podem ser concebidos como agentes pessoais sem o regresso a um estágio teológico. Eles são o que Comte sugestivamente chamou de “abstrações personificadas”, apontando assim para a sua inconsistência interna. Mais tarde testaremos essa idéia, aplicando-as às entidades-princípios referidas pelos filósofos.
Comte tem uma concepção completamente negativa do valor intrínseco dos primeiros dois estágios. Para ele, eles são basicamente dependentes da imaginação, e nem as explicações nem as previsões feitas através das construções conceituais dela originadas são genuínas. A utilidade dessas explicações e previsões repousa basicamente em seus efeitos sociopsicológicos, como o de estruturação do poder ou a diminuição da ansiedade humana diante daquilo que está além do seu controle. Além disso, há uma conseqüência prática a longo prazo: somente por meio dessas construções conceituais ilusórias o caminho para o estágio científico é preparado. A mente humana, diz Comte, não pode investigar sem ser guiada por algum tipo de teoria. Os estágios metafísico e teológico produzem teorias com base nas quais a mente humana pode perseguir a investigação e, motivada por uma ilusão de conhecimento, perseverar na observação cumulativa dos fatos que ao final acaba por conduzir à ciência. Um bom exemplo desse processo é dado pela transição da astrologia à astronomia: a contínua observação de corpos celestes, objetivando predizer o destino humano, conduziu ao desenvolvimento de mensurações matemáticas, que criaram condições para a emergência da astronomia como ciência.
Para Comte o estágio metafísico é intermediário e provisório, não passando de uma longa e laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo. Somente neste último a ciência se estabelece como a única forma adequada de investigação, sendo as velhas questões teológicas e metafísicas abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis. No estágio positivo ou científico o que é buscado deixa de ser um tipo de conhecimento absoluto para se tornar um tipo relativo, passando a ser tal devido à falseabilidade intrínseca a toda a investigação humana (com efeito, de que maneira poderíamos reconhecer o conhecimento absoluto, caso o encontrássemos?). A intenção de explicar o mundo como um todo é também reconhecida como uma ilusão: não podemos fazer mais do que explicar os seus constituintes, o que é realizado pelas ciências particulares (com efeito, como poderiam conceitos que objetivam classificar os constituintes do mundo serem aplicados ao mundo como um todo?). Mais além, nesse estágio os fenômenos cessam de ser explicados pela imaginação e vêm a ser explicados exclusivamente pela razão, a qual não busca mais as causas essenciais ocultas, mas apenas a descoberta de leis, ou seja, de regularidades verificáveis que os fenômenos mantêm entre si. O conhecimento dessas regularidades permite-nos explicar realisticamente as associações encontradas entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando dessa maneira a realização de predições. E esse poder de fazer predições conduz-nos a um domínio real – e não somente imaginário – sobre a natureza.
Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no desenvolvimento da mente individual, o que evidencia a sua raiz biológica. Como ele notou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em parte vivemos em um mundo imaginário de seres míticos como fadas e bruxas... Nós somos metafísicos na adolescência quando, ainda destituídos de conhecimento dos fatos, tornamo-nos capazes de aplicar a razão, construindo explicações infundadas. Por fim, quando nos tornamos adultos (na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos “físicos”, admitindo somente o conhecimento positivo, firmado e confirmado por meios científicos.
Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta a si mesma ao nível da organização social e de suas práticas. Mas essa manifestação é dependente da concretização efetiva dos estágios no domínio da cultura. Ora, considerando que as ciências fundamentais necessariamente foram formadas em tempos diferentes (posto que o desenvolvimento de uma ciência fundamental pressupõe o desenvolvimento de outra) e também que o desenvolvimento da técnica só se dá como resultado do desenvolvimento teórico da ciência, é de se esperar que o efeito social da formação das ciências fundamentais na “positivação” da organização econômica e social seja antes um fenômeno tardio. A sugestão de Comte é que no nível da organização social o estágio teológico durou até o fim da Idade Média, sendo essa organização sendo caracterizada por uma sociedade autoritária e militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma Protestante, as idéias metafísicas começaram a dirigir a sociedade, estabelecendo um império da lei e dos direitos abstratos. Somente após a Revolução Francesa e com a instauração da Revolução Industrial, em um período no qual todas as ciências fundamentais alcançaram a sua “positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social. Este último período é caracterizado pela emergência de uma sociedade pacífica, na qual a vida econômica dos homens torna-se o centro da atenção. Nessa sociedade a ciência é destinada a um papel determinador, o que deve conduzir a uma sociedade organizada e regulada por um grupo elitista de cientistas.
3. UMA BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE
A lei de Comte sempre foi objeto de crítica. Algumas, como a acusação de rigidez e dogmatismo, além de um excessivo descrédito às formas não-positivas de pensamento, sem falar em distorções reducionistas e no excessivo otimismo positivista, são a meu ver plenamente justificadas. Mas as objeções centrais parecem-me injustas e pretendo respondê-las.
A primeira objeção, levantada por Habermas, é a de que a lei dos três estágios é ela mesma metafísica, posto que é alcançada a priori, sem recurso aos fatos observacionais(50). Isso é certamente falso. Comte diz explicitamente e mostra através de seus escritos que a sua lei é originada de um exame atento dos fatos concernentes à evolução de nossa cultura e à emergência das ciências fundamentais, junto a refletidas considerações acerca da natureza humana. Contra uma objeção subseqüente, de que a própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que há só uma única instância histórica, ela mesma inacabada, que é a da nossa civilização, é possível sugerir que a lei dos três estágios poderia ser melhor justificada como resultado de uma inferência pela melhor explicação, a única capaz de colocar sob um único chapéu uma míríade de fatos sócioculturais em sua progressão histórica. Com efeito, é porque a explicação provida por essa lei dá certa coerência à progressão histórica da cultura humana, e porque tal coerência é confirmada por nossa compreensão dessa cultura, que a lei tende a imprimir-se em nossas mentes como uma explicação razoável e natural. Além disso, porque a lei pode ser gradualmente confirmada ou refutada por uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais passados e também futuros, ela tende a se tornar no final não muito menos confirmável ou refutável do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.
A segunda objeção é a de que, quando aplicada à explicação dos três estágios em um nível social, a lei de Comte não pode dar conta da ordem de emergência das ciências: a matemática, por exemplo, já havia emergido entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham emergido quando a sociedade ainda estava em seu estágio metafísico. Como a primeira objeção, essa também foi explicitamente respondida por Comte. Para ele, cada ciência fundamental só pode nascer após os estágios metafísico e teológico terem ocorrido em seus próprios domínios; mas, dado que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem alcançar as suas positivações simultaneamente. Assim, ao nível da sociedade os estágios acabam sendo firmados por último, como efeito da soma das mudanças parciais nos vários domínios. De um modo similar, uma criança pode antecipar alguns traços da mente do adulto e o adulto também pode preservar alguns traços de adolescente e mesmo de criança, o que não nos faz confundi-los. (Certamente, Comte foi exageradamente otimista quanto ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e o estágio científico da sociedade encontra-se ainda hoje em processo de formação.)
Uma terceira e mais séria objeção é a de que o uso feito por Comte da palavra ‘lei’ é abusivo e enganoso: a unicidade dos eventos considerados, a vaguidade e incerteza do processo considerado, não nos dão nenhum direito de usar essa venerável palavra; como notou Karl Popper, o melhor que podemos fazer é talvez falar de uma tendência (trend) sócio-cultural(51).
Uma resposta a essa objeção consiste simplesmente em aceitá-la. Certamente, o que Comte descobriu foram somente tendências, válidas em termos vagos e probabilísticos; conseqüentemente, a sua descoberta não foi de uma lei no sentido em que estamos acostumados a usar a palavra.
Contudo, há uma outra resposta possível, que prefiro. Ela consiste simplesmente na admissão de que a forma própria de uma lei sócio-histórico-cultural seja a de uma tendência genérica. Nós não podemos esperar que uma lei dessa ordem mantenha a mesma precisão e falta de exceção de leis da física ou da química. Uma lei social funciona de modo semelhante a uma lei estatística. Por isso seria irrazoável esperar de seu enunciado mais do que uma probabilização de certos resultados, posto que a multiplicidade de variáveis que podem intervir no processo é praticamente ilimitada. Contudo, é falso pensar que a vaguidade e incerteza de uma lei comprometa o seu status, exceto quando confusamente assimilamos o conceito próprio de lei ao de leis físicas fundamentais, como filósofos das ciências naturais (entre eles Popper) nos convidam a fazer. O que mais distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e precisão (pois nesse caso nenhuma lei estatística satisfaria tal caracterização), mas nossa assunção de que a generalização feita em seu enunciado é de um tipo não-acidental. De fato, o suposto caráter não-acidental da regularidade asserida pela generalização pode ser admitido como a única característica que deve ser comum a todos os tipos de lei. O fato é que a ciência precisa de um termo para cobrir todos os tipos de generalização que supomos serem não-acidentais, e a palavra “lei” parece ser a mais adequada para realizar esse trabalho. Se esse ponto de vista for correto, então a lei dos três estágios pode preencher a condição de lei científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo possível, onde existisse uma sociedade constituída por seres humanos biologicamente idênticos a nós e sob circunstâncias similares, ela, no processo de se tornar uma sociedade científica, iria provavelmente seguir uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos de conhecimento ao invés de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio científico; por conseguinte, parece que devemos aceitar a idéia de que a seqüência de estágios é do tipo não-acidental, ou seja, de que se trata de uma lei no sentido liberal de uma tendência sócio-cultural necessária.
Concluímos que, sob uma interpretação suficientemente tolerante e flexível, a idéia de que o progresso da cultura humana tende a seguir os três estágios descritos é defensável. Nosso próximo passo será considerar a filosofia tradicional munidos das idéias recém adquiridas e ver o quão longe isso pode nos levar.
A primeira objeção, levantada por Habermas, é a de que a lei dos três estágios é ela mesma metafísica, posto que é alcançada a priori, sem recurso aos fatos observacionais(50). Isso é certamente falso. Comte diz explicitamente e mostra através de seus escritos que a sua lei é originada de um exame atento dos fatos concernentes à evolução de nossa cultura e à emergência das ciências fundamentais, junto a refletidas considerações acerca da natureza humana. Contra uma objeção subseqüente, de que a própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que há só uma única instância histórica, ela mesma inacabada, que é a da nossa civilização, é possível sugerir que a lei dos três estágios poderia ser melhor justificada como resultado de uma inferência pela melhor explicação, a única capaz de colocar sob um único chapéu uma míríade de fatos sócioculturais em sua progressão histórica. Com efeito, é porque a explicação provida por essa lei dá certa coerência à progressão histórica da cultura humana, e porque tal coerência é confirmada por nossa compreensão dessa cultura, que a lei tende a imprimir-se em nossas mentes como uma explicação razoável e natural. Além disso, porque a lei pode ser gradualmente confirmada ou refutada por uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais passados e também futuros, ela tende a se tornar no final não muito menos confirmável ou refutável do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.
A segunda objeção é a de que, quando aplicada à explicação dos três estágios em um nível social, a lei de Comte não pode dar conta da ordem de emergência das ciências: a matemática, por exemplo, já havia emergido entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham emergido quando a sociedade ainda estava em seu estágio metafísico. Como a primeira objeção, essa também foi explicitamente respondida por Comte. Para ele, cada ciência fundamental só pode nascer após os estágios metafísico e teológico terem ocorrido em seus próprios domínios; mas, dado que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem alcançar as suas positivações simultaneamente. Assim, ao nível da sociedade os estágios acabam sendo firmados por último, como efeito da soma das mudanças parciais nos vários domínios. De um modo similar, uma criança pode antecipar alguns traços da mente do adulto e o adulto também pode preservar alguns traços de adolescente e mesmo de criança, o que não nos faz confundi-los. (Certamente, Comte foi exageradamente otimista quanto ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e o estágio científico da sociedade encontra-se ainda hoje em processo de formação.)
Uma terceira e mais séria objeção é a de que o uso feito por Comte da palavra ‘lei’ é abusivo e enganoso: a unicidade dos eventos considerados, a vaguidade e incerteza do processo considerado, não nos dão nenhum direito de usar essa venerável palavra; como notou Karl Popper, o melhor que podemos fazer é talvez falar de uma tendência (trend) sócio-cultural(51).
Uma resposta a essa objeção consiste simplesmente em aceitá-la. Certamente, o que Comte descobriu foram somente tendências, válidas em termos vagos e probabilísticos; conseqüentemente, a sua descoberta não foi de uma lei no sentido em que estamos acostumados a usar a palavra.
Contudo, há uma outra resposta possível, que prefiro. Ela consiste simplesmente na admissão de que a forma própria de uma lei sócio-histórico-cultural seja a de uma tendência genérica. Nós não podemos esperar que uma lei dessa ordem mantenha a mesma precisão e falta de exceção de leis da física ou da química. Uma lei social funciona de modo semelhante a uma lei estatística. Por isso seria irrazoável esperar de seu enunciado mais do que uma probabilização de certos resultados, posto que a multiplicidade de variáveis que podem intervir no processo é praticamente ilimitada. Contudo, é falso pensar que a vaguidade e incerteza de uma lei comprometa o seu status, exceto quando confusamente assimilamos o conceito próprio de lei ao de leis físicas fundamentais, como filósofos das ciências naturais (entre eles Popper) nos convidam a fazer. O que mais distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e precisão (pois nesse caso nenhuma lei estatística satisfaria tal caracterização), mas nossa assunção de que a generalização feita em seu enunciado é de um tipo não-acidental. De fato, o suposto caráter não-acidental da regularidade asserida pela generalização pode ser admitido como a única característica que deve ser comum a todos os tipos de lei. O fato é que a ciência precisa de um termo para cobrir todos os tipos de generalização que supomos serem não-acidentais, e a palavra “lei” parece ser a mais adequada para realizar esse trabalho. Se esse ponto de vista for correto, então a lei dos três estágios pode preencher a condição de lei científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo possível, onde existisse uma sociedade constituída por seres humanos biologicamente idênticos a nós e sob circunstâncias similares, ela, no processo de se tornar uma sociedade científica, iria provavelmente seguir uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos de conhecimento ao invés de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio científico; por conseguinte, parece que devemos aceitar a idéia de que a seqüência de estágios é do tipo não-acidental, ou seja, de que se trata de uma lei no sentido liberal de uma tendência sócio-cultural necessária.
Concluímos que, sob uma interpretação suficientemente tolerante e flexível, a idéia de que o progresso da cultura humana tende a seguir os três estágios descritos é defensável. Nosso próximo passo será considerar a filosofia tradicional munidos das idéias recém adquiridas e ver o quão longe isso pode nos levar.
4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIA
ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA
Podemos sumarizar a visão comtiana do lugar da filosofia entre religião e ciência por meio do seguinte esquema:
RELIGIÃO > FILOSOFIA > CIÊNCIA
(explicação (explicação (explicação
por deuses) por princípios) por leis)
RELIGIÃO > FILOSOFIA > CIÊNCIA
(explicação (explicação (explicação
por deuses) por princípios) por leis)
A despeito do óbvio apelo metafilosófico dessa idéia, Comte não a aplicou suficientemente aos domínios centrais da filosofia, presumivelmente devido à mera ausência de uma maior familiaridade com a sua história; em geral os seus exemplos são de princípios metafísicos pertencentes à pré-história das ciências positivas, tais como o flogisto antes da química e o éter na infância da física.
Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, a primeira coisa a fazer é tornarmos explícitas as mais distintivas propriedades das entidades mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas propriedades, que chamo de teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:
Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, a primeira coisa a fazer é tornarmos explícitas as mais distintivas propriedades das entidades mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas propriedades, que chamo de teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:
(i) Transcendência física: Entidades mentais são feitas de um material essencialmente diverso daquele de que são feitos os corpos físicos, além de serem superiores (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma substância pensante infinita);
(ii) Hipermentalidade: Os poderes mentais das entidades mentais são alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes etc.);
(iii) Hiperfisicalidade: Os poderes físicos das entidades mentais encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer leis físicas etc.);
(iv) Idiossincrasia mental-corporal: As entidades mentais ou não se associam aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas a eles, não o são necessariamente, nem o são dos modos usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter nenhum corpo físico, podem habitar seres não-vivos, mudar livremente o corpo no qual escolhem habitar, habitar muitos deles simultaneamente etc.).
(ii) Hipermentalidade: Os poderes mentais das entidades mentais são alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes etc.);
(iii) Hiperfisicalidade: Os poderes físicos das entidades mentais encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer leis físicas etc.);
(iv) Idiossincrasia mental-corporal: As entidades mentais ou não se associam aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas a eles, não o são necessariamente, nem o são dos modos usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter nenhum corpo físico, podem habitar seres não-vivos, mudar livremente o corpo no qual escolhem habitar, habitar muitos deles simultaneamente etc.).
Essas propriedades podem ser vistas como supostos critérios de identificação, os quais nos possibilitariam descrever e eventualmente reconhecer o sobrenatural e o divino. Nem todas elas precisam estar presentes: no materialismo epicurista, por exemplo, os próprios deuses devem ser físicos, suas mentes sendo feitas de átomos materiais extraordinariamente sutis, falhando, pois, em satisfazer adequadamente o critério (i). Típico das propriedades teomórficas é que elas não são objetos de nossa experiência ordinária, seja ela do mental ou do físico; mesmo assim, parece que podemos concebê-las secundariamente, ao menos até certo ponto, por alteração e estensão do que já sabemos com base em nossa experiência ordinária.
Se, seguindo Comte, desejamos considerar as entidades-princípio metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a regularidade da lei científica, então, devemos entendê-las como consistindo de algo que se encontra entre
Se, seguindo Comte, desejamos considerar as entidades-princípio metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a regularidade da lei científica, então, devemos entendê-las como consistindo de algo que se encontra entre
A. o que é teomórfico, ou seja, o que possui uma ou mais proprieda-
des teomórficas recém designadas e
B. o que é natural, ou seja, o que possui somente as propriedades físi-
cas ou psicológicas, ou mesmo propriedades formais (como as dos
objetos matemáticos), ordinariamente reconhecidas pelo senso co-
mum e possivelmente também pela ciência, posto que a ciência
pode ser facilmente entendida como uma extensão crítica do senso
comum.
Feita essa admissão nós nos encontramos preparados para distinguir alguns tipos básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é
(a) +A+B: entidade-princípio metafísica híbrida (ou inflacionada). A constituição de um conceito metafísico que pretende designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente (mesmo que de maneira elusiva) de ambas as propriedades, teomórficas e naturais; por um lado, de propriedades teomórficas (que são constitutivas do sobrenatural) e, por outro, de propriedades normais, físicas, mentais ou formais, acessíveis à nossa experiência ordinária de senso comum e de ciência (a qual poderia dar-nos acesso a leis científicas).
O Deus sive Natura de Spinoza poderia servir como um exemplo de entidade-princípio metafísica híbrida. Para esse filósofo o que existe é Deus ou substância, que é também natureza. Como natureza ele é acessível a nós sob os seus atributos essenciais de extensão (ou experiência do físico) e pensamento (ou experiência do mental), possuindo como tal um status de entidade-princípio natural (+B). No entanto, esse modo de ver não chega a ser tão absolutamente natural e livre de antropomorfismo como parece: como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um correspondente modo mental, ele implica que todas as coisas físicas, como essa mesa e aquela cadeira, são também mentais, possuindo algum tipo de sensiência. Isso revela, porém, que a natureza spinoziana abriga uma idiossincrasia mente-corpo (+A). Mais além, a natureza como “Deus” é hipostasiada como possuindo a capacidade de amar-se a si mesma com amor infinito (Ética, livro V, prop. 35), o que significa que o Deus de Spinoza também possui algum tipo de propriedade teomórfica de hipermentalidade (+A).
Talvez o melhor exemplo de um primeiro princípio híbrido rico e multicor seja a natureza em John Scotus Eriúgena. Para esse filósofo a natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é criada. Ela é Deus, como o ser perfeitíssimo e incognoscível que tudo causa. A segunda é a natureza criada que cria, ou seja, os arquétipos (formas) da sabedoria divina, que são as causas eficientes de todas as coisas. A terceira é a natureza como o mundo que é criado e não cria, ou seja, tudo o que é gerado no espaço e tempo, que embora não crie é manifestação de Deus (theophania). Finalmente, há a natureza que não é criada e não cria, ou seja, Deus como o termo final da criação, quando a natureza será a ele novamente assimilada.
Considerando o conceito de natureza em Scotus, vemos que de um lado ela deve ser o Deus pessoal cristão (como natureza criadora e incriada e a natureza que não é criada e não cria), possuindo propriedades teomórficas como a consciência, a intencionalidade, a liberdade da vontade etc. (++A). Contudo, de outro lado a natureza é também aquela constitutiva do próprio mundo espaço-temporal que nos circunda (a natureza criada e não-criadora), envolvendo uma inevitabilidade nomológica que o impele inexoravelmente em direção ao seu destino último (++B). Se admitirmos uma unidade no conceito de natureza, o hibridismo rico de Scotus se torna tão flagrante que parece preso a uma inconsistência insuperável, que sempre impressionou os críticos.
Outra entidade-princípio mista, que de algum modo nos recorda a natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é hipermental (posto que é origem de toda a realidade) (+A), possuindo idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) (+A), mas que em contrapartida deve desdobrar-se a si mesmo em um processo que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais (+B).
Ainda um exemplo de entidades-princípio híbridas são as mônadas de Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é constituído de um número infinito de pontos mentais chamados mônadas. De um lado, uma mônada tem as suas próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras mônadas através de aparências de natureza espaciotemporal (+B). De outro lado, cada mônada é também uma força viva, possuindo algum grau de percepção e consciência, que se estende em maior ou menor medida a todo o universo das mônadas! Conseqüentemente, mônadas também têm características teomórficas, como idiossincrasia físico-mental (porque coisas materiais são aparências fenomenais de agregados de mônadas) e hipermentalidade (porque mônadas são sempre oniscientes, mesmo quando em um grau ínfimo) (+A).
Finalmente, é preciso notar que B não precisa pertencer ao mundo físico ou mental, podendo ser também de natureza formal (embora pessoalmente, como bom empirista, eu acredite que o elemento formal seja também em algum sentido redutível ao empírico). Esse é o caso do número como entidade-princípio inflacionada em Pitágoras. Para esse filósofo, como para nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são ordinariamente acessíveis (+B). Ao mesmo tempo, contudo, o número deve ser imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos, dele derivando o bem e o mal, o masculino e o feminino etc. (+A)
Certamente, a quantidade relativa de +A e +B pode variar: o Deus sive Natura spinoziano é quase naturalista (poderíamos designá-lo como +A++B), enquanto as mônadas distinguem-se através de suas propriedades teomórficas (poderíamos designá-las como ++A+B). A natureza enriquecida de Scotus é para ser situada aproximadamente no meio (++A++B). A maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa são de um tipo inflacionado, aludindo a ambos os tipos de propriedade, teomórficas e naturalistas, de maneira a se tornarem cognitivamente acessíveis.
O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma
(b) –A–B: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A constituição de um conceito metafísico objetivando designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como carente de qualquer dependência semântica de propriedades teomórficas ou das propriedades físicas ou mentais ou formais usuais, tal como elas são ordinariamente experienciadas e conhecidas pelo senso comum e pela ciência.
Talvez o melhor exemplo de um primeiro princípio híbrido rico e multicor seja a natureza em John Scotus Eriúgena. Para esse filósofo a natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é criada. Ela é Deus, como o ser perfeitíssimo e incognoscível que tudo causa. A segunda é a natureza criada que cria, ou seja, os arquétipos (formas) da sabedoria divina, que são as causas eficientes de todas as coisas. A terceira é a natureza como o mundo que é criado e não cria, ou seja, tudo o que é gerado no espaço e tempo, que embora não crie é manifestação de Deus (theophania). Finalmente, há a natureza que não é criada e não cria, ou seja, Deus como o termo final da criação, quando a natureza será a ele novamente assimilada.
Considerando o conceito de natureza em Scotus, vemos que de um lado ela deve ser o Deus pessoal cristão (como natureza criadora e incriada e a natureza que não é criada e não cria), possuindo propriedades teomórficas como a consciência, a intencionalidade, a liberdade da vontade etc. (++A). Contudo, de outro lado a natureza é também aquela constitutiva do próprio mundo espaço-temporal que nos circunda (a natureza criada e não-criadora), envolvendo uma inevitabilidade nomológica que o impele inexoravelmente em direção ao seu destino último (++B). Se admitirmos uma unidade no conceito de natureza, o hibridismo rico de Scotus se torna tão flagrante que parece preso a uma inconsistência insuperável, que sempre impressionou os críticos.
Outra entidade-princípio mista, que de algum modo nos recorda a natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é hipermental (posto que é origem de toda a realidade) (+A), possuindo idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) (+A), mas que em contrapartida deve desdobrar-se a si mesmo em um processo que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais (+B).
Ainda um exemplo de entidades-princípio híbridas são as mônadas de Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é constituído de um número infinito de pontos mentais chamados mônadas. De um lado, uma mônada tem as suas próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras mônadas através de aparências de natureza espaciotemporal (+B). De outro lado, cada mônada é também uma força viva, possuindo algum grau de percepção e consciência, que se estende em maior ou menor medida a todo o universo das mônadas! Conseqüentemente, mônadas também têm características teomórficas, como idiossincrasia físico-mental (porque coisas materiais são aparências fenomenais de agregados de mônadas) e hipermentalidade (porque mônadas são sempre oniscientes, mesmo quando em um grau ínfimo) (+A).
Finalmente, é preciso notar que B não precisa pertencer ao mundo físico ou mental, podendo ser também de natureza formal (embora pessoalmente, como bom empirista, eu acredite que o elemento formal seja também em algum sentido redutível ao empírico). Esse é o caso do número como entidade-princípio inflacionada em Pitágoras. Para esse filósofo, como para nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são ordinariamente acessíveis (+B). Ao mesmo tempo, contudo, o número deve ser imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos, dele derivando o bem e o mal, o masculino e o feminino etc. (+A)
Certamente, a quantidade relativa de +A e +B pode variar: o Deus sive Natura spinoziano é quase naturalista (poderíamos designá-lo como +A++B), enquanto as mônadas distinguem-se através de suas propriedades teomórficas (poderíamos designá-las como ++A+B). A natureza enriquecida de Scotus é para ser situada aproximadamente no meio (++A++B). A maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa são de um tipo inflacionado, aludindo a ambos os tipos de propriedade, teomórficas e naturalistas, de maneira a se tornarem cognitivamente acessíveis.
O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma
(b) –A–B: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A constituição de um conceito metafísico objetivando designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como carente de qualquer dependência semântica de propriedades teomórficas ou das propriedades físicas ou mentais ou formais usuais, tal como elas são ordinariamente experienciadas e conhecidas pelo senso comum e pela ciência.
A conseqüência dessa estratégia explicativa é que o princípio-entidade torna-se em si mesmo incognoscível. De fato, ou a palavra-conceito usada para designar tal princípio metafísico é completamente destituida de sentido, ou (como geralmente é o caso) algum sentido advém externamente do contexto ou equivocamente de uma eliminação inconsistente das referências originárias.
Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, que era concebido como totalmente inalcançável para os nossos poderes cognitivos (o Uno pode ser aproximado somente pelo que ele não é, posto que ele não é nada que possa ser conhecido). Todavia, o mais notório exemplo de entidade-princípio elusiva é o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências fenomenais e que inclui, entre os seus mais nobres habitantes, a coisa em si e o Eu transcendental. Contemporaneamente, exemplos de princípios elusivos são o conceito wittgensteiniano de indizível (Unausprechlich), apontando para o que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito heideggeriano de Ser, entendido como a seridade do ser, a qual poderia ser aproximada, ao menos, através dos meios metafóricos da linguagem literária. O tipo deflacionário de princípio metafísico tem a vantagem de não correr o risco de ser demonstrado internamente inconsistente; mas o preço dessa vantagem é o de simplesmente não ser um conceito. E essa vacuidade semântica é eventualmente capaz de contaminar o restante do discurso filosófico com vacuidade retórica, como o desenvolvimento da obra de Heidegger muito claramente demonstra.
Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos. Considere o caso do conceito de vontade em Schopenhauer. Em princípio ele é o mesmo que o da coisa em si, que Kant estabeleceu como sendo um x incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o suposto designatum de seu conceito só pode ter a forma –A–B. Mas só isso não satisfaria as intenções do filósofo. Segundo Schopenhauer, pela experiência do corpo notamos que por detrás das aparências sensíveis o que realmente existe é a vontade, a qual é uma pulsão cega que se manifesta a si mesma como força, sendo mais diretamente objetivada em nossa experiência interna da vontade de viver, por ele entendida como sendo capaz de mostrar a sua presença na totalidade do mundo, orgânico e inorgânico.
Essa estratégia torna possível que a inicialmente inofensiva coisa em si termine por se manifestar como uma perversa vontade cósmica, que pervade toda a natureza e que é a verdadeira fonte do interminável sofrimento da humanidade. Notamos, pois, que aquilo que a princípio era para ser concebido como da forma –A–B, recebe propriedades que o transformam em um princípio que tomado como uma força natural cega passa a possuir algo do caráter de uma lei natural universal (+B), embora simultaneamente envolvendo, em suas manifestações como uma vontade de viver universal, traços teomórficos, ou seja, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de hipermentalidade (+A). Isso é assim, mesmo que Schopenhauer aplique aqui o velho truque filosófico de negar o que fez depois de já tê-lo feito. Por isso, o seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma composição conceitual da forma +A(–A–B)+B (os parênteses servem aqui para cercar o que estava na origem do processo de constituição conceitual).
Buscando alternativas entre +A+B e –A–B, entre os princípios híbridos e elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades básicas:
Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, que era concebido como totalmente inalcançável para os nossos poderes cognitivos (o Uno pode ser aproximado somente pelo que ele não é, posto que ele não é nada que possa ser conhecido). Todavia, o mais notório exemplo de entidade-princípio elusiva é o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências fenomenais e que inclui, entre os seus mais nobres habitantes, a coisa em si e o Eu transcendental. Contemporaneamente, exemplos de princípios elusivos são o conceito wittgensteiniano de indizível (Unausprechlich), apontando para o que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito heideggeriano de Ser, entendido como a seridade do ser, a qual poderia ser aproximada, ao menos, através dos meios metafóricos da linguagem literária. O tipo deflacionário de princípio metafísico tem a vantagem de não correr o risco de ser demonstrado internamente inconsistente; mas o preço dessa vantagem é o de simplesmente não ser um conceito. E essa vacuidade semântica é eventualmente capaz de contaminar o restante do discurso filosófico com vacuidade retórica, como o desenvolvimento da obra de Heidegger muito claramente demonstra.
Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos. Considere o caso do conceito de vontade em Schopenhauer. Em princípio ele é o mesmo que o da coisa em si, que Kant estabeleceu como sendo um x incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o suposto designatum de seu conceito só pode ter a forma –A–B. Mas só isso não satisfaria as intenções do filósofo. Segundo Schopenhauer, pela experiência do corpo notamos que por detrás das aparências sensíveis o que realmente existe é a vontade, a qual é uma pulsão cega que se manifesta a si mesma como força, sendo mais diretamente objetivada em nossa experiência interna da vontade de viver, por ele entendida como sendo capaz de mostrar a sua presença na totalidade do mundo, orgânico e inorgânico.
Essa estratégia torna possível que a inicialmente inofensiva coisa em si termine por se manifestar como uma perversa vontade cósmica, que pervade toda a natureza e que é a verdadeira fonte do interminável sofrimento da humanidade. Notamos, pois, que aquilo que a princípio era para ser concebido como da forma –A–B, recebe propriedades que o transformam em um princípio que tomado como uma força natural cega passa a possuir algo do caráter de uma lei natural universal (+B), embora simultaneamente envolvendo, em suas manifestações como uma vontade de viver universal, traços teomórficos, ou seja, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de hipermentalidade (+A). Isso é assim, mesmo que Schopenhauer aplique aqui o velho truque filosófico de negar o que fez depois de já tê-lo feito. Por isso, o seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma composição conceitual da forma +A(–A–B)+B (os parênteses servem aqui para cercar o que estava na origem do processo de constituição conceitual).
Buscando alternativas entre +A+B e –A–B, entre os princípios híbridos e elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades básicas:
(c) +A–B: entidade-princípio teológica. A constituição de um conceito objetivando designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente de propriedades teomórficas não acompanhadas de propriedades naturais.
Essa combinação é obviamente imprópria ao que chamamos de indagação filosófica, posto que ela nos traz de volta à religião: entidades que são fisicamente transcendentes e/ou hipermentais e/ou mente-corpo-idiossincráticas sem qualquer apelo a explicações naturalistas são precisamente entidades espirituais como deuses, totens etc. Mas há ainda uma última alternativa, que consiste simplesmente na recusa do elemento teomórfico:
(d) –A+B: entidade-princípio naturalista. A constituição de um conceito filosófico objetivando designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente de propriedades naturais admitidas pelo senso comum e eventualmente pela ciência, sejam elas físicas, mentais ou formais.
A diferença enunciada entre um princípio naturalista e uma lei científica repousa em seu caráter filosófico-especulativo. Ela repousa na ausência de um possível acordo consensual sobre os valores-de-verdade dos enunciados freqüentemente demasiado vagos e impalpáveis dos princípios filosóficos naturais.
A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese de Anaximandro de que a Terra é suspensa no vazio e de que os seres humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III (seção 4). Mas o exemplo padrão de princípio natural é talvez a teoria atomista de filósofos materialistas como Leucipo e Demócrito, afirmando que coisas concretas são constituidas de porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito, os átomos podem ter formas diferentes, responsáveis por diferentes propriedades da matéria; eles podem juntar-se uns aos outros de modo a formar pedaços de matéria etc. Embora os átomos possam ser “teoricamente” divisíveis, posto que eles têm formas e tamanhos e pesos, eles permanecem sendo fisicamente indivisíveis(52). Certamente, dado que a hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos teomórficos, o conceito filosófico de átomo, tal como o conceito científico, tem a forma –A+B.
Princípios naturalistas são aqueles que mais facilmente demonstram o seu caráter protocientífico porque eles ocorrem mais freqüentemente em antecipações mais antigas das bem desenvolvidas ciências naturais contemporâneas. Com relação ao atomismo, o modelo de seu desenvolvimento é o mesmo discutido nos exemplos no capítulo III: o atomista antigo não poderia identificar as propriedades de seus átomos, mensurá-las, ou observar os seus traços, obtendo consenso acerca dos resultados, como fazem os físicos de hoje com as partículas elementares; mas eles podiam especular sobre a sua existência, assumindo as suas teorias uma forma que é comum a todas as teorias atômicas, posto que a idéia de que a matéria não é divisível de modo contínuo, mas em componentes discretos, é comum tanto à teoria atômica dos antigos quanto às teorias contemporâneas. (Pode ser que quanto mais remotamente distante de sua realização científica está a idéia que o filósofo busca alcançar, mais teomórfica a explicação tende a ser, mas nesse caso os atomistas gregos demonstraram que há exceções.)
Outro exemplo de princípio naturalista é o Ser de Parmênides, posto que ele é destituido de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho da verdade” é daquilo que é. Substantivando aquilo que é como o Ser (to on), ele atribui ao Ser os predicados de unidade, unicidade, eternidade, imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade e limitação, tratando assim o Ser como se ele fosse uma coisa, embora algo somente alcançável pelo pensamento, não pelos sentidos. Mais além, como pensar o que não é é completamente impossível, o Ser é o único objeto do pensamento e “a mesma coisa é que é para ser pensada e para ser” (to gar auto noein estin te kai einai).
A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica não-determinadora (capítulo V, seção 1), que nos parece inevitável ao discurso filosófico: a vaguidade e incompletude do argumento, junto com a suspeitada inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao Ser, sugerem um indefinido número de chaves interpretativas, nenhuma delas inteiramente satisfatória. Meu próprio palpite é que o Ser parmenídico seria melhor entendido se fosse identificado ao que hoje poderíamos chamar de a totalidade dos conteúdos proposicionais concebíveis, verdadeiros e falsos. Essa interpretação, que logo explicarei, satisfaz um princípio de caridade, salvando a maioria das afirmações de Parmênides sobre o Ser. Considere, primeiro, a totalidade de proposições concebíveis (verdadeiras e falsas). Embora formais, elas pertencem a um mundo natural, no sentido de não serem teomórficas (+B) (suspeito que elas possam ser reduzidas a alguma coisa mental e em última análise física, como conjuntos de conteúdos proposicionais pensados e similares). Essa totalidade de proposições é, certamente, tudo o que pode ser pensado (i. é, “o que é para ser pensado”). Esse conjunto de proposições é também eterno (ou atemporal), imutável, imperceptível pelos sentidos e em sentido indivisível e homogêneo, em contraste com o mundo perceptível pelos sentidos. Mais além, a serem excluídas da totalidade das proposições concebíveis estão aquelas inconcebíveis (como “Sábado está na cama”), particularmente as contradições (como “Certos solteiros são casados”). Isso nos permite justificar o famoso dictum de Parmênides de que não se pode pensar o que não é. Finalmente, de acordo com essa interpretação, o “caminho da verdade” admite o pensamento de proposições falsas, o que faz com que o Ser parmenídico se torne imune à objeção platônica de que é impossível para Parmênides dizer o que é falso(53).
Se essa paráfrase é correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como uma antecipação do que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um mundo de idéias, os estóicos com a sua doutrina do lekton (como a matéria incorpórea do que é veiculado por signos lingüísticos), Peirce com a sua categoria de terceiridade, Frege com o seu reino de pensamentos atemporais e imutáveis (os sentidos das frases assertivas), Popper com o seu mundo 3 (das criações culturais resultantes da interação entre o mundo físico e o mental)... Se for assim, então temos um impressivo exemplo de antecipação especulativa de algo que filósofos posteriores lograram compreender de maneiras mais avançadas, embora sempre com uma margem de sucesso muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas difiram profundamente, não estamos autorizados a afastar a hipótese de que há algo relevante para ser encontrado no final da investigação, algo que em princípio poderia tornar-se questão de acordo científico-consensual.
Exemplos da forma –A+B são interessantes porque eles podem, em certos casos, ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência que não ocultam uma intenção antropomorfizadora deceptiva – eles são construídos somente para satisfazer nossa curiosidade especulativa sobre questões que se encontram além de nossas presentes possibilidades de avaliação consensual. Esses casos demonstram que a posição depreciativa de Comte, sustentando ser a indagação metafísica mero produto da imaginação sem a menor conseqüência, exceto a de preservar, através de esperança e ilusão, a disposição para a investigação, era demasiado pessimista.
Finalmente, é para ser notado que a estratégia naturalista também pode ser combinada com outras durante o processo argumentativo de estabelecimento do princípio filosófico e da sua correspondente constituição conceitual. Isso parece ser o caso do conceito platônico de idéia ou forma. Para fazer esse conceito concebível, Platão precisou apelar para analogias tomadas da experiência ordinária, começando com os significados psicológicos da palavra “idéia” e o significado especial da palavra “forma”, o que significa a adição de +B. Conjuntamente, a idéia para Platão deveria ser concebida como uma entidade não-teomórfica (–A) tendo, pois, a forma –A+B. Contudo, como Platão sustenta que as idéias pertencem a um mundo de coisas puramente inteligíveis, superior e mais real do que o mundo sensível, o conceito de idéia deveria também adquirir a forma –B. Como conseqüência, parece que a idéia platônica poderia ser referida como resultante de uma composição conceitual da forma “(–A+B)–B”.
A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese de Anaximandro de que a Terra é suspensa no vazio e de que os seres humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III (seção 4). Mas o exemplo padrão de princípio natural é talvez a teoria atomista de filósofos materialistas como Leucipo e Demócrito, afirmando que coisas concretas são constituidas de porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito, os átomos podem ter formas diferentes, responsáveis por diferentes propriedades da matéria; eles podem juntar-se uns aos outros de modo a formar pedaços de matéria etc. Embora os átomos possam ser “teoricamente” divisíveis, posto que eles têm formas e tamanhos e pesos, eles permanecem sendo fisicamente indivisíveis(52). Certamente, dado que a hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos teomórficos, o conceito filosófico de átomo, tal como o conceito científico, tem a forma –A+B.
Princípios naturalistas são aqueles que mais facilmente demonstram o seu caráter protocientífico porque eles ocorrem mais freqüentemente em antecipações mais antigas das bem desenvolvidas ciências naturais contemporâneas. Com relação ao atomismo, o modelo de seu desenvolvimento é o mesmo discutido nos exemplos no capítulo III: o atomista antigo não poderia identificar as propriedades de seus átomos, mensurá-las, ou observar os seus traços, obtendo consenso acerca dos resultados, como fazem os físicos de hoje com as partículas elementares; mas eles podiam especular sobre a sua existência, assumindo as suas teorias uma forma que é comum a todas as teorias atômicas, posto que a idéia de que a matéria não é divisível de modo contínuo, mas em componentes discretos, é comum tanto à teoria atômica dos antigos quanto às teorias contemporâneas. (Pode ser que quanto mais remotamente distante de sua realização científica está a idéia que o filósofo busca alcançar, mais teomórfica a explicação tende a ser, mas nesse caso os atomistas gregos demonstraram que há exceções.)
Outro exemplo de princípio naturalista é o Ser de Parmênides, posto que ele é destituido de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho da verdade” é daquilo que é. Substantivando aquilo que é como o Ser (to on), ele atribui ao Ser os predicados de unidade, unicidade, eternidade, imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade e limitação, tratando assim o Ser como se ele fosse uma coisa, embora algo somente alcançável pelo pensamento, não pelos sentidos. Mais além, como pensar o que não é é completamente impossível, o Ser é o único objeto do pensamento e “a mesma coisa é que é para ser pensada e para ser” (to gar auto noein estin te kai einai).
A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica não-determinadora (capítulo V, seção 1), que nos parece inevitável ao discurso filosófico: a vaguidade e incompletude do argumento, junto com a suspeitada inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao Ser, sugerem um indefinido número de chaves interpretativas, nenhuma delas inteiramente satisfatória. Meu próprio palpite é que o Ser parmenídico seria melhor entendido se fosse identificado ao que hoje poderíamos chamar de a totalidade dos conteúdos proposicionais concebíveis, verdadeiros e falsos. Essa interpretação, que logo explicarei, satisfaz um princípio de caridade, salvando a maioria das afirmações de Parmênides sobre o Ser. Considere, primeiro, a totalidade de proposições concebíveis (verdadeiras e falsas). Embora formais, elas pertencem a um mundo natural, no sentido de não serem teomórficas (+B) (suspeito que elas possam ser reduzidas a alguma coisa mental e em última análise física, como conjuntos de conteúdos proposicionais pensados e similares). Essa totalidade de proposições é, certamente, tudo o que pode ser pensado (i. é, “o que é para ser pensado”). Esse conjunto de proposições é também eterno (ou atemporal), imutável, imperceptível pelos sentidos e em sentido indivisível e homogêneo, em contraste com o mundo perceptível pelos sentidos. Mais além, a serem excluídas da totalidade das proposições concebíveis estão aquelas inconcebíveis (como “Sábado está na cama”), particularmente as contradições (como “Certos solteiros são casados”). Isso nos permite justificar o famoso dictum de Parmênides de que não se pode pensar o que não é. Finalmente, de acordo com essa interpretação, o “caminho da verdade” admite o pensamento de proposições falsas, o que faz com que o Ser parmenídico se torne imune à objeção platônica de que é impossível para Parmênides dizer o que é falso(53).
Se essa paráfrase é correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como uma antecipação do que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um mundo de idéias, os estóicos com a sua doutrina do lekton (como a matéria incorpórea do que é veiculado por signos lingüísticos), Peirce com a sua categoria de terceiridade, Frege com o seu reino de pensamentos atemporais e imutáveis (os sentidos das frases assertivas), Popper com o seu mundo 3 (das criações culturais resultantes da interação entre o mundo físico e o mental)... Se for assim, então temos um impressivo exemplo de antecipação especulativa de algo que filósofos posteriores lograram compreender de maneiras mais avançadas, embora sempre com uma margem de sucesso muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas difiram profundamente, não estamos autorizados a afastar a hipótese de que há algo relevante para ser encontrado no final da investigação, algo que em princípio poderia tornar-se questão de acordo científico-consensual.
Exemplos da forma –A+B são interessantes porque eles podem, em certos casos, ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência que não ocultam uma intenção antropomorfizadora deceptiva – eles são construídos somente para satisfazer nossa curiosidade especulativa sobre questões que se encontram além de nossas presentes possibilidades de avaliação consensual. Esses casos demonstram que a posição depreciativa de Comte, sustentando ser a indagação metafísica mero produto da imaginação sem a menor conseqüência, exceto a de preservar, através de esperança e ilusão, a disposição para a investigação, era demasiado pessimista.
Finalmente, é para ser notado que a estratégia naturalista também pode ser combinada com outras durante o processo argumentativo de estabelecimento do princípio filosófico e da sua correspondente constituição conceitual. Isso parece ser o caso do conceito platônico de idéia ou forma. Para fazer esse conceito concebível, Platão precisou apelar para analogias tomadas da experiência ordinária, começando com os significados psicológicos da palavra “idéia” e o significado especial da palavra “forma”, o que significa a adição de +B. Conjuntamente, a idéia para Platão deveria ser concebida como uma entidade não-teomórfica (–A) tendo, pois, a forma –A+B. Contudo, como Platão sustenta que as idéias pertencem a um mundo de coisas puramente inteligíveis, superior e mais real do que o mundo sensível, o conceito de idéia deveria também adquirir a forma –B. Como conseqüência, parece que a idéia platônica poderia ser referida como resultante de uma composição conceitual da forma “(–A+B)–B”.
5. CONCLUSÕES
A primeira conclusão de nossa análise dos princípios metafísicos sob a perspectiva sugerida pela lei dos três estágios é que ela mostra uma certa limitação na concepção comtiana. Ao menos quando consideramos os casos –A–B e –A+B, vemos que a sua tese de que os princípios metafísicos são abstrações personificadas inconsistentes é demasiado restrita. Mais além, o caso –A+B mostra que especulações filosóficas também são capazes de constituir um empreendimento puramente heurístico, motivado pela simples curiosidade especulativa, sem uma orientação para explicações teomórficas. Essas especulações não possuem a motivação prática de conhecimento e domínio efetivo da realidade que é própria da ciência. Tal motivação me parece derivada do mesmo domínio que em seu contexto próprio conduziu às explicações imaginárias da realidade que encontramos nas religiões. Não obstante isso, especulações do tipo –A+B aparecem como esboços explicativos conjecturais, constituindo, não um estágio provisório de idéias inerentemente equívocas, mas os inícios especulativos da ciência, os quais são eventualmente capazes, ao menos em seus contornos, de ser mais tarde admitidos como parte óbvia das conquistas da ciência.
O reconhecimento de tais possibilidades também mostra, particularmente no caso examinado do Ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade podem justificar-se em filosofia no caso demasiado freqüente em que um filósofo está tentando (como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel, Wittgenstein e muitos outros) dizer algo que se encontra além dos recursos conceituais a seu dispor. Como H. H. Price uma vez apontou, em uma passagem bastante sugestiva:
O reconhecimento de tais possibilidades também mostra, particularmente no caso examinado do Ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade podem justificar-se em filosofia no caso demasiado freqüente em que um filósofo está tentando (como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel, Wittgenstein e muitos outros) dizer algo que se encontra além dos recursos conceituais a seu dispor. Como H. H. Price uma vez apontou, em uma passagem bastante sugestiva:
podem muito bem existir algumas coisas que na terminologia avaliável em certo tempo só possam ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora ou (o que é ainda mais perturbador) em um oxímoro ou em um paradoxo, isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas existentes e que é em seu sentido literal absurda. O homem que as diz pode, é claro, estar confundido. Mas é possível que ele esteja dizendo alguma coisa importante. Nesse caso seus sucessores podem ser capazes de adivinhar o que ele está tentando sugerir. As regras terminológicas podem ao final mudar. E a metáfora selvagem ou o paradoxo ultrajante de hoje podem tornar-se a platitude de depois de amanhã.(54)
Embora eu não creia que filósofos possam pensar alguma coisa precisa ou adequada que eles não possam também dizer em uma linguagem suficientemente precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o bastante), parece claro para mim que filósofos freqüentemente têm intuições importantes, mas imprecisas e inadequadas, as quais eles só conseguem exprimir em termos que são correspondentemente falhos. A moral dessas considerações parece ser a de que, não importando o quão inerentemente contraditórias ou malconcebidas sejam as estratégias levadas a termo por intermédio de princípios-entidade inflacionários e deflacionários, elas podem estar sempre apontando para algo importante escondido por trás das cortinas.
Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos que a abrangência encontrada na filosofia é proveniente de um desejo aparentado ao desejo existente na religião de se encontrar uma explicação integrada de todo o mundo e do lugar e perspectivas que o homem nele pode encontrar. Contudo, isso não é necessariamente a herança infeliz de uma busca impossível. Quando consideramos que as questões centrais da filosofia contemporânea estão sempre em alguma medida relacionadas umas com as outras, parece que a abrangência, quando preservada dentro dos limites razoáveis, pode ser uma aspiração bem justificada da filosofia, mesmo enquanto esta última é considerada em termos de um esforço antecipador da ciência. Se isso é verdade, então mesmo a busca religiosa da abrangência, não era tão fora de propósito quanto se possa pensar.
Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos que a abrangência encontrada na filosofia é proveniente de um desejo aparentado ao desejo existente na religião de se encontrar uma explicação integrada de todo o mundo e do lugar e perspectivas que o homem nele pode encontrar. Contudo, isso não é necessariamente a herança infeliz de uma busca impossível. Quando consideramos que as questões centrais da filosofia contemporânea estão sempre em alguma medida relacionadas umas com as outras, parece que a abrangência, quando preservada dentro dos limites razoáveis, pode ser uma aspiração bem justificada da filosofia, mesmo enquanto esta última é considerada em termos de um esforço antecipador da ciência. Se isso é verdade, então mesmo a busca religiosa da abrangência, não era tão fora de propósito quanto se possa pensar.
V
A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA
E ARTE
E ARTE
Parece-me que a filosofia é um verdadeiro
canto que não é o da voz, e que ela tem o
mesmo sentido de movimento que a mú-
sica.
Gilles Deleuze
canto que não é o da voz, e que ela tem o
mesmo sentido de movimento que a mú-
sica.
Gilles Deleuze
Nós comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais fundamentais, a ciência e a religião, mostrando que a filosofia se situa de certo modo entre as duas. A filosofia não é somente um esforço antecipador da ciência, posto que ela retém alguns traços do pensamento religioso, não somente na amplitude especulativa de seus objetivos teóricos e práticos, mas também pelo seu freqüente apelo a princípios explicativos que, como o Deus ou os Deuses, permanecem de algum modo além de nossa compreensão. Agora é tempo de comparar a filosofia com uma terceira atividade cultural fundamental: a arte.
Baseados no fato de que há uma certa similaridade entre filosofia e arte, alguns filósofos perfilharam a tese de que a filosofia é essencialmente uma forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa idéia, a filosofia
Baseados no fato de que há uma certa similaridade entre filosofia e arte, alguns filósofos perfilharam a tese de que a filosofia é essencialmente uma forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa idéia, a filosofia
não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a realidade, nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e horizontes da existência humana até agora desconhecidos, mas como um prisma com o qual são criados fascinantes e provocativos modelos conceituais e esculturas de pensamento.(55)
No que se segue considerarei a interface entre filosofia e arte de maneira a mostar que os aspectos mais propriamente artísticos da filosofia, longe de constituírem uma condição suficiente para a sua existência, não chegam a serem sequer necessários. Não obstante, como quero sugerir no final, ainda assim a filosofia pode ser vista como uma atividade derivada da atividade artística, ou aparentada com esta, por fazer com um material cognitivo o mesmo que a arte faz com um material intuitivo-emocional. Para tornar a primeira tese plausível, precisamos começar distinguindo dois tipos de similaridade entre filosofia e arte: (a) similaridades externas, ou seja, aquelas que são devidas à utilização de recursos artísticos em filosofia, os quais não precisam estar sempre e necessariamente presentes, e (b) similaridades internas, ou seja, similaridades de natureza entre as duas práticas culturais, as quais estão sempre e necessariamente presentes. Começaremos com as primeiras.
1. O SABOR ESTÉTICO DE ALGUNS ESCRITOS
FILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS
Similaridades entre filosofia e arte são externas quando o filósofo se utiliza de meios literários. Há várias razões para uma abordagem literária das questões em filosofia. Uma delas é que um discurso com maior poder sugestivo permite comunicar idéias de uma maneira mais efetiva e impressiva. A mais séria razão, contudo, é que filósofos freqüentemente não encontram alternativa, precisando escolher entre seguir adiante de maneira linear, mas com argumentos falhos, ou se exprimir por caminhos mais alusivos, que se encontram abertos a interpretações diversas e que são menos incorretos, mas também menos informativos. É uma razão legítima produzir o que pode ser chamado de um discurso metafórico, ou, como prefiro chamar, um discurso semanticamente sugestivo em filosofia, no qual as palavras e suas combinações evocam coisas que não são as literalmente significadas por elas. Considere-se o recurso a símiles e a mitos em Platão, o recurso à poesia, à imaginação poética e à alegoria por Nietzsche, o recurso a aforismos por Wittgenstein, e perceberemos o quão importante e poderoso pode ser o uso da linguagem figurativa em filosofia.
Esses recursos estéticos múltiplos são arte: eles são arte na filosofia, que é seu veículo. Mas nem por isso eles precisam ser confundidos com a filosofia em si mesma. O uso de recursos literários na filosofia parece externo ao empreendimento filosófico em si mesmo. Para entendermos por que o uso de recursos artísticos externos não faz da filosofia uma forma de arte, precisamos apenas considerar, por comparação, o caso da religião. Essa última sempre fez uso externo de recursos artísticos de maneira a realizar as suas funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas histórias mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia ou os Upanishads, que são também obras literárias de maior ou menor qualidade. No entanto, ninguém concluiria disso que a Teogonia ou a Bíblia devem ser pensados como trabalhos de ficção, ou que a religião pode ser reduzida a uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode concebivelmente existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de ser diferente com a filosofia?
2. SIMILARIDADES INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE
Há também similaridades internas, isto é, similaridades de natureza entre filosofia e arte. Se a filosofia fosse para ser considerada uma forma de arte, isso seria devido a essas similaridades internas. No entanto, veremos que as propriedades que são similares, embora possam ser necessárias tanto à filosofia quanto à arte, não são suficientes para qualificar nenhuma das duas, o que nos leva a rejeitar uma identidade essencial entre ambas.
Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a primeira é uma atividade cultural sem finalidades ulteriores: como a arte, a filosofia é um fim em si mesmo. Em certa medida, ao menos, isso é verdade: a filosofia justifica-se como algo prazeroso em si mesmo, muito mais que por alguma vantagem externa que ela possa trazer. Contudo, a importância dessa similaridade não pode ser exagerada, pois no caso da filosofia podemos encontrar uma associação mais direta com finalidades externas: as concepções filosóficas que adotamos têm uma influência indireta nos modos como julgamos e agimos. Contudo, não podemos adotar as concepções expressas pelas obras de arte, posto que tais opiniões não existem (a arte pode assumir um papel pedagógico, mas ao fazê-lo deixa de ser arte). O melhor que se pode fazer é adotar algumas concepções alcançadas sob a influência de alguma experiência estética.
Um segundo elemento em comum diz respeito ao que podemos chamar de função integradora da arte. A arte visa a integração de nossa vida sensível e emocional, possibilitando-nos harmonizar os sentimentos, além de produzir um alargamento e enriquecimento de nossa experiência emocional. Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também possui uma função integradora, não tanto de nossa vida sensível e emocional, mas do que já foi chamado de vida do entendimento e da razão. Parece que a filosofia faz com o material abstrato dos conceitos o que a arte faz com o material sensível da intuição. Na produção e apreciação da arte, a imaginação sensível está em serviço, enquanto no caso da filosofia é a “imaginação intelectual” que trabalha. Desse modo a filosofia poderia ser chamada de uma “arte da razão’, em contraste com a costumeira “arte das emoções”. Contudo, que a palavra ‘arte’ é usada aqui em um sentido meramente analógico é revelado pelo fato de que algo similar pode ser dito acerca da religião. A religião também tem uma função integradora, relativa à nossa visão do mundo e ao nosso lugar nele. É a religião então algo como a “arte da espiritualidade”? E o que dizer da ciência? Acaso ela não possui também uma função integradora com respeito ao nosso conhecimento do mundo e mesmo de nós mesmos? Com base nisso deveríamos então concluir que a religião e a ciência também são formas de arte? A resposta negativa que damos a essa questão estende-se inevitavelmente à filosofia.
Outra similaridade entre filosofia e arte diz respeito à criação. Como a arte, a filosofia é em certa extensão um trabalho da imaginação. A criação em arte não é dirigida somente para a produção da costumeira beleza e harmonia, mas também de um inesperado contraste – o que Walter Benjamin chamava de schock – capaz de sugerir a cada um de nós uma reorganização dos valores emocionais que associamos às coisas. A criação filosófica, por sua parte, também produz tais contrastes com o material cognitivo de conceitos abstratos. Esse é um aspecto da filosofia que é notadamente similar ao de certas obras de arte, qual seja, a sua capacidade de produzir um inesperado contraste na forma de tauma, a palavra grega para surpresa, espanto, que os antigos também aplicavam à filosofia. Aqui mais uma vez vemos a filosofia funcionando como a “arte da razão”, esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de reorganização de nosso universo intelectual. Isso pode ser notado em sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teológica do mundo em Plotino e o idealismo subjetivo de Fichte. Tais sistemas não mostram como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção implícita desses filósofos), mas como o mundo poderia ser ou possivelmente (mas muito improvavelmente) é. Esse é um ponto interessante, mas outra vez não mostra que a filosofia é arte. Ele mostra que a filosofia é uma atividade criativa, mais que a ciência e menos que a arte.
A tese de que a filosofia é uma forma de arte é mais decisivamente desqualificada quando consideramos que há também diferenças essenciais entre as duas práticas. Diversamente da arte, a filosofia tem propósitos heurísticos imediatos: ela busca descobrir a verdade. Mesmo filósofos da variedade cética usualmente objetivam estabelecer a verdade de suas negativas. Embora não se possa negar que a boa arte também tenha a verdade como fim, ela a tem de modo indireto: ela nos torna mais abertos para entendermos a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. A filosofia, contudo, busca a verdade de modo mais direto: ela pretende, senão dizer o que é ou não é verdadeiro, ao menos indicá-lo. Embora essa busca da verdade não resulte em um efeito progressivo e acumulador de conhecimento no mesmo sentido da ciência, ela é, como já notamos (III, 8), acumuladora de conteúdo, preenchendo mais e mais um spectrum de possibilidades de verdade. Com efeito, como sugerimos, se a filosofia ocupa os lugares epistêmicos de domínios científicos desconhecidos, então podemos esperar que as ramificações das alternativas especulativas em um dado domínio da filosofia tenham um limite em número, enquanto isso pode não ser o caso com a arte.
Não obstante, a filosofia, como a religião, permanece mais próxima da arte do que da ciência. Como isso pode ser explicado? Penso que a teoria psicanalítica pode ser-nos de algum auxílio aqui. Segundo essa teoria, filosofia e arte têm em comum o fato de que ambas são em alguma medida um resultado do que Freud chamava de processo primário (primäre Vorgang) de pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio do prazer, mais que no princípio da realidade(56). Para Freud essa forma de pensamento ocorre nos sonhos, no trabalho da imaginação neurótica e psicótica, na criação e apreciação de obras de arte, e também no raciocínio religioso e filosófico. No processo primário, as emoções ou cargas (Besetzungen) não se encontram mais firmemente ligadas a suas correspondentes representações. Assim, as cargas das representações inconscientes e pré-conscientes se tornam capazes de ser cedidas a outras representações de um ou de outro modo associadas às originais, tornando-se as últimas conscientes, o que produz prazer pela diminuição dos níveis de tensão endopsíquica. É importante notar que os mecanismos pelos quais as cargas de representações não-conscientes são cedidas à representações capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento (Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação R é cedida a uma representação R1, a qual por força disso se torna consciente, e a condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que por isso se torna consciente. Uma conseqüência desse processo é que representações são combinadas na consciência de modos muito mais flexíveis do que os encontrados no processo secundário (sekundäre Vorgang), o qual é mais característico de nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio da realidade. O que chamei de sugestividade semântica é algo obviamente dependente do processo primário, posto que envolve condensação e/ou deslocamento.
Agora, o fato de que do ponto de vista psicanalítico o pensamento filosófico pode ser compreendido como sendo em certa medida um efeito do processo primário parece corroborar a idéia de que a filosofia não pode ser considerada uma forma de arte. Pois se o processo primário fosse suficiente para caracterizar a arte, então precisaríamos assimilar outros produtos dele à arte, como, por exemplo, os sonhos e os sintomas neuróticos. Sem comentar o caso dos sintomas neuróticos. É claro que não estamos dispostos a admitir que sonhos sejam manifestações artísticas apenas pelo fato de que os seus conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento e condensação. Tais considerações não provam, mas reforçam a nossa opinião de que nem as similaridades internas nem as externas são suficientes para caracterizar a filosofia como algo equivalente a uma forma de arte, mesmo que a filosofia, tal como a religião, possa ser grandemente enriquecida por meios estéticos.
Contudo, essa conclusão não invalida a segunda tese inicialmente considerada, segundo a qual a filosofia seria um produto aparentado à atividade cultural artística e a ela relacionado por derivações históricas. Pois a filosofia é tão pouco uma forma de arte como é uma forma de ciência ou de religião. Mas nós já vimos que existem fortes traços de parentesco entre a filosofia e a ciência ou a religião, sem que, obviamente, a filosofia seja ciência ou religião. Do mesmo modo, como em suas similaridades internas a filosofia possui necessariamente sugestividade semântica, função integradora etc., ela se constitui de uma atividade até certo ponto assemelhada à atividade artística, embora transladada para o nível do entendimento e da razão. As entidades-princípio, por exemplo, nos fazem considerar assim: elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando concebidas em termos naturais. Assim, como produto derivativo da atividade artística a filosofia pode continuar sendo considerada a “arte da razão”.
Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a primeira é uma atividade cultural sem finalidades ulteriores: como a arte, a filosofia é um fim em si mesmo. Em certa medida, ao menos, isso é verdade: a filosofia justifica-se como algo prazeroso em si mesmo, muito mais que por alguma vantagem externa que ela possa trazer. Contudo, a importância dessa similaridade não pode ser exagerada, pois no caso da filosofia podemos encontrar uma associação mais direta com finalidades externas: as concepções filosóficas que adotamos têm uma influência indireta nos modos como julgamos e agimos. Contudo, não podemos adotar as concepções expressas pelas obras de arte, posto que tais opiniões não existem (a arte pode assumir um papel pedagógico, mas ao fazê-lo deixa de ser arte). O melhor que se pode fazer é adotar algumas concepções alcançadas sob a influência de alguma experiência estética.
Um segundo elemento em comum diz respeito ao que podemos chamar de função integradora da arte. A arte visa a integração de nossa vida sensível e emocional, possibilitando-nos harmonizar os sentimentos, além de produzir um alargamento e enriquecimento de nossa experiência emocional. Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também possui uma função integradora, não tanto de nossa vida sensível e emocional, mas do que já foi chamado de vida do entendimento e da razão. Parece que a filosofia faz com o material abstrato dos conceitos o que a arte faz com o material sensível da intuição. Na produção e apreciação da arte, a imaginação sensível está em serviço, enquanto no caso da filosofia é a “imaginação intelectual” que trabalha. Desse modo a filosofia poderia ser chamada de uma “arte da razão’, em contraste com a costumeira “arte das emoções”. Contudo, que a palavra ‘arte’ é usada aqui em um sentido meramente analógico é revelado pelo fato de que algo similar pode ser dito acerca da religião. A religião também tem uma função integradora, relativa à nossa visão do mundo e ao nosso lugar nele. É a religião então algo como a “arte da espiritualidade”? E o que dizer da ciência? Acaso ela não possui também uma função integradora com respeito ao nosso conhecimento do mundo e mesmo de nós mesmos? Com base nisso deveríamos então concluir que a religião e a ciência também são formas de arte? A resposta negativa que damos a essa questão estende-se inevitavelmente à filosofia.
Outra similaridade entre filosofia e arte diz respeito à criação. Como a arte, a filosofia é em certa extensão um trabalho da imaginação. A criação em arte não é dirigida somente para a produção da costumeira beleza e harmonia, mas também de um inesperado contraste – o que Walter Benjamin chamava de schock – capaz de sugerir a cada um de nós uma reorganização dos valores emocionais que associamos às coisas. A criação filosófica, por sua parte, também produz tais contrastes com o material cognitivo de conceitos abstratos. Esse é um aspecto da filosofia que é notadamente similar ao de certas obras de arte, qual seja, a sua capacidade de produzir um inesperado contraste na forma de tauma, a palavra grega para surpresa, espanto, que os antigos também aplicavam à filosofia. Aqui mais uma vez vemos a filosofia funcionando como a “arte da razão”, esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de reorganização de nosso universo intelectual. Isso pode ser notado em sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teológica do mundo em Plotino e o idealismo subjetivo de Fichte. Tais sistemas não mostram como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção implícita desses filósofos), mas como o mundo poderia ser ou possivelmente (mas muito improvavelmente) é. Esse é um ponto interessante, mas outra vez não mostra que a filosofia é arte. Ele mostra que a filosofia é uma atividade criativa, mais que a ciência e menos que a arte.
A tese de que a filosofia é uma forma de arte é mais decisivamente desqualificada quando consideramos que há também diferenças essenciais entre as duas práticas. Diversamente da arte, a filosofia tem propósitos heurísticos imediatos: ela busca descobrir a verdade. Mesmo filósofos da variedade cética usualmente objetivam estabelecer a verdade de suas negativas. Embora não se possa negar que a boa arte também tenha a verdade como fim, ela a tem de modo indireto: ela nos torna mais abertos para entendermos a nós mesmos e ao mundo ao nosso redor. A filosofia, contudo, busca a verdade de modo mais direto: ela pretende, senão dizer o que é ou não é verdadeiro, ao menos indicá-lo. Embora essa busca da verdade não resulte em um efeito progressivo e acumulador de conhecimento no mesmo sentido da ciência, ela é, como já notamos (III, 8), acumuladora de conteúdo, preenchendo mais e mais um spectrum de possibilidades de verdade. Com efeito, como sugerimos, se a filosofia ocupa os lugares epistêmicos de domínios científicos desconhecidos, então podemos esperar que as ramificações das alternativas especulativas em um dado domínio da filosofia tenham um limite em número, enquanto isso pode não ser o caso com a arte.
Não obstante, a filosofia, como a religião, permanece mais próxima da arte do que da ciência. Como isso pode ser explicado? Penso que a teoria psicanalítica pode ser-nos de algum auxílio aqui. Segundo essa teoria, filosofia e arte têm em comum o fato de que ambas são em alguma medida um resultado do que Freud chamava de processo primário (primäre Vorgang) de pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio do prazer, mais que no princípio da realidade(56). Para Freud essa forma de pensamento ocorre nos sonhos, no trabalho da imaginação neurótica e psicótica, na criação e apreciação de obras de arte, e também no raciocínio religioso e filosófico. No processo primário, as emoções ou cargas (Besetzungen) não se encontram mais firmemente ligadas a suas correspondentes representações. Assim, as cargas das representações inconscientes e pré-conscientes se tornam capazes de ser cedidas a outras representações de um ou de outro modo associadas às originais, tornando-se as últimas conscientes, o que produz prazer pela diminuição dos níveis de tensão endopsíquica. É importante notar que os mecanismos pelos quais as cargas de representações não-conscientes são cedidas à representações capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento (Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação R é cedida a uma representação R1, a qual por força disso se torna consciente, e a condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que por isso se torna consciente. Uma conseqüência desse processo é que representações são combinadas na consciência de modos muito mais flexíveis do que os encontrados no processo secundário (sekundäre Vorgang), o qual é mais característico de nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio da realidade. O que chamei de sugestividade semântica é algo obviamente dependente do processo primário, posto que envolve condensação e/ou deslocamento.
Agora, o fato de que do ponto de vista psicanalítico o pensamento filosófico pode ser compreendido como sendo em certa medida um efeito do processo primário parece corroborar a idéia de que a filosofia não pode ser considerada uma forma de arte. Pois se o processo primário fosse suficiente para caracterizar a arte, então precisaríamos assimilar outros produtos dele à arte, como, por exemplo, os sonhos e os sintomas neuróticos. Sem comentar o caso dos sintomas neuróticos. É claro que não estamos dispostos a admitir que sonhos sejam manifestações artísticas apenas pelo fato de que os seus conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento e condensação. Tais considerações não provam, mas reforçam a nossa opinião de que nem as similaridades internas nem as externas são suficientes para caracterizar a filosofia como algo equivalente a uma forma de arte, mesmo que a filosofia, tal como a religião, possa ser grandemente enriquecida por meios estéticos.
Contudo, essa conclusão não invalida a segunda tese inicialmente considerada, segundo a qual a filosofia seria um produto aparentado à atividade cultural artística e a ela relacionado por derivações históricas. Pois a filosofia é tão pouco uma forma de arte como é uma forma de ciência ou de religião. Mas nós já vimos que existem fortes traços de parentesco entre a filosofia e a ciência ou a religião, sem que, obviamente, a filosofia seja ciência ou religião. Do mesmo modo, como em suas similaridades internas a filosofia possui necessariamente sugestividade semântica, função integradora etc., ela se constitui de uma atividade até certo ponto assemelhada à atividade artística, embora transladada para o nível do entendimento e da razão. As entidades-princípio, por exemplo, nos fazem considerar assim: elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando concebidas em termos naturais. Assim, como produto derivativo da atividade artística a filosofia pode continuar sendo considerada a “arte da razão”.
VI
PARA UMA TEORIA GLOBAL: BUSCANDO INTEGRAR
AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS
AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS
Neste capítulo reuniremos os resultados alcançados em uma tentativa de encontrar uma explicação descritivista integrada da natureza da filosofia. Essa explicação conduz a uma exposição mais perspícua das principais configurações criteriais esperadas na identificação do discurso e do pensamento filosóficos.
1. FILOSOFIA COMO UMA ATIVIDADE
CULTURAL DERIVADA
Entendo por prática cultural um conjunto recorrente de atividades sociais em níveis predominantemente efetivo-cognitivos, as quais não são imediatamente relacionadas à satisfação das necessidades práticas da vida, sendo sustentadas diante de um pano de fundo de interesses humanos coletivos. Podemos ver que a filosofia é capaz de partilhar similaridades com as três práticas culturais fundamentais. Elas são:
a) CIÊNCIA,
b) RELIGIÃO,
c) ARTE.
b) RELIGIÃO,
c) ARTE.
Chamo essas três práticas culturais de “fundamentais” por causa de sua importância e originariedade relativamente à vida humana em sociedade. Se há outras práticas culturais (atividades comunitárias, jogos sociais etc.), elas são geralmente derivadas daquelas, combinando-as umas com as outras ou com atividades que não são propriamente culturais, como o trabalho e o entretenimento.
Admitindo o caráter fundamental dessas três práticas culturais, a seguinte questão emerge: é a filosofia uma quarta atividade cultural fundamental, no mesmo nível da ciência, da religião e da arte, apenas diferente delas? Filósofos do passado tentaram conferir à filosofia um status próprio, independente dessas atividades, talvez superior ao delas, embora essas tentativas nunca chegassem a ser convincentes. Nossos comentários prévios sobre o caráter protocientífico da filosofia, sobre a herança religiosa de seus interesses e sobre os aspectos artísticos de seu discurso, conduziram-nos à conclusão de que deveríamos ser mais modestos. Deveríamos reconhecer a existência de apenas três espécies mais fundamentais de atividade cultural, sendo a filosofia em última análise uma espécie derivada, tanto em suas motivações como no material por ela usado e em seus procedimentos metodológicos. O lugar da filosofia com relação às práticas culturais mais fundamentais pode ser grosseiramente comparado ao da ópera entre as formas mais fundamentais de arte. A ópera é uma combinação de música, drama e poesia. Similarmente, a filosofia pode ser vista como um composto resultante da combinação de elementos que querem ser aproximados da ciência, da religião e da arte. E do mesmo modo que a poesia não é um elemento estritamente necessário à ópera (diversamente da música e da ação dramática), o elemento artístico externo parece não ser estritamente indispensável à filosofia.
A analogia com a ópera, como qualquer outra, tem seus limites. Embora combinadas de maneira a produzirem juntas um resultado mais impressivo, música, enredo e poesia podem ser facilmente separadas no caso da ópera: podemos ouvir a melodia isoladamente, quando uma ária é parafraseada ao piano, nós podemos ler as suas estrofes poéticas sem pensar na música, ou ler o resumo do enredo. O mesmo não pode ser dito tão facilmente da filosofia. Pois a última não é apenas uma colagem de elementos originados da ciência, senso comum, conhecimento e religião, talvez harmonizados com auxílio de meios estéticos. E ela também não é uma combinação perfeita desses elementos na constituição de um produto completamente original, como um novo composto químico, que é formado a partir de outros. A metáfora de uma amálgama parece aproximar-nos melhor do caso em questão. Em uma amálgama, diferentes elementos químicos não são apenas misturados ao acaso, nem combinados para formar um composto químico completamente novo, mas adicionados uns aos outros de um modo tal que as propriedades macrofísicas do todo são alteradas. Algo similar pode ser sugerido com respeito às indagações filosóficas: elas costumam juntar elementos diversos de maneira a prover-nos de algo que é em seu todo aparente algo novo, mas que ainda assim permanece uma prática cultural derivada, posto que de tal unificação de elementos não se deriva algo intrinsecamente original.
Admitindo o caráter fundamental dessas três práticas culturais, a seguinte questão emerge: é a filosofia uma quarta atividade cultural fundamental, no mesmo nível da ciência, da religião e da arte, apenas diferente delas? Filósofos do passado tentaram conferir à filosofia um status próprio, independente dessas atividades, talvez superior ao delas, embora essas tentativas nunca chegassem a ser convincentes. Nossos comentários prévios sobre o caráter protocientífico da filosofia, sobre a herança religiosa de seus interesses e sobre os aspectos artísticos de seu discurso, conduziram-nos à conclusão de que deveríamos ser mais modestos. Deveríamos reconhecer a existência de apenas três espécies mais fundamentais de atividade cultural, sendo a filosofia em última análise uma espécie derivada, tanto em suas motivações como no material por ela usado e em seus procedimentos metodológicos. O lugar da filosofia com relação às práticas culturais mais fundamentais pode ser grosseiramente comparado ao da ópera entre as formas mais fundamentais de arte. A ópera é uma combinação de música, drama e poesia. Similarmente, a filosofia pode ser vista como um composto resultante da combinação de elementos que querem ser aproximados da ciência, da religião e da arte. E do mesmo modo que a poesia não é um elemento estritamente necessário à ópera (diversamente da música e da ação dramática), o elemento artístico externo parece não ser estritamente indispensável à filosofia.
A analogia com a ópera, como qualquer outra, tem seus limites. Embora combinadas de maneira a produzirem juntas um resultado mais impressivo, música, enredo e poesia podem ser facilmente separadas no caso da ópera: podemos ouvir a melodia isoladamente, quando uma ária é parafraseada ao piano, nós podemos ler as suas estrofes poéticas sem pensar na música, ou ler o resumo do enredo. O mesmo não pode ser dito tão facilmente da filosofia. Pois a última não é apenas uma colagem de elementos originados da ciência, senso comum, conhecimento e religião, talvez harmonizados com auxílio de meios estéticos. E ela também não é uma combinação perfeita desses elementos na constituição de um produto completamente original, como um novo composto químico, que é formado a partir de outros. A metáfora de uma amálgama parece aproximar-nos melhor do caso em questão. Em uma amálgama, diferentes elementos químicos não são apenas misturados ao acaso, nem combinados para formar um composto químico completamente novo, mas adicionados uns aos outros de um modo tal que as propriedades macrofísicas do todo são alteradas. Algo similar pode ser sugerido com respeito às indagações filosóficas: elas costumam juntar elementos diversos de maneira a prover-nos de algo que é em seu todo aparente algo novo, mas que ainda assim permanece uma prática cultural derivada, posto que de tal unificação de elementos não se deriva algo intrinsecamente original.
2. UMA EXPLICAÇÃO INTEGRADA DA ATIVIDADE FILOSÓFICA
Tentando substituir as analogias antecedentes por algo mais literal, sugiro que a filosofia seja uma espécie derivada de atividade cultural em suas motivações, material semântico e procedimentos.
No que concerne às motivações, parece que a filosofia faz com que elas derivem: (a) da curiosidade inquisitiva associada às formas científicas de investigação, ou seja, associada ao desejo de adquirir um conhecimento consensual que seja confirmado por seu efetivo poder de explicação, previsão e manipulação da realidade; (b) de motivações originalmente religiosas, as quais incluem o impulso que objetiva integrar nossas experiências e prover uma visão imaginativa abrangente do mundo e da condição humana, freqüentemente através do apelo a uma realidade transcendente, que se encontra além daquilo que a experiência ordinária pode nos oferecer, de modo a ser capaz de organizar e guiar nosso acesso ao mundo; e (c) da arte, em sua busca de “efeitos catárticos”.
Com respeito ao material semântico ou conceitual – os data primários a serem considerados – também ele não pertence propriamente à filosofia, pois: (a) Parte desse material é o mesmo que os data de nosso mundo natural, físico, mental ou formal, acessível em nossa experiência ordinária ou inerentes à informação científica. Como vimos no capítulo IV, no caso dos conceitos naturalistas de entidades-princípio (–A+B), esses podem ser simplesmente todos os data a serem considerados. (b) Também vimos que no caso de conceitos metafísicos híbridos (+A+B), a filosofia pode recorrer a propriedades teomórficas (de transcendência, hipermentalidade etc.), as quais estavam originariamente presentes na constituição dos seres espirituais que são objeto da veneração religiosa, tratando essas propriedades como se fossem data elementares ou indicativos deles. O material semântico teomórfico nada mais é, sob o nosso ponto de vista, do que uma modificação do material tomado de nossa experiência ordinária de senso comum ou até mesmo científica, do físico, mental e formal, que entra na constituição semântica de conceitos metafísicos híbridos, ainda que esse movimento costume ser negado. (c) O material semântico carregado de sugestividade emocional, que usualmente toma parte na invenção estética.
Os procedimentos heurísticos também não são originariamente filosóficos, pois... (a) procedimentos metodológicos da filosofia não são essencialmente diferentes dos procedimentos ordinários irrefletidos, ou dos procedimentos das ciências formais ou empíricas. O método geométrico dos filósofos racionalistas (tais como Descartes e Spinoza) refletiu o modo apriorista como eles fundamentavam os seus argumentos, em uma mímica dos procedimentos axiomáticos das matemáticas; o método histórico dos filósofos empiristas (tais como Locke e Hume), baseado na introspecção e informação empírica sobre o mundo e o comportamento humano, tem as mesmas origens que os procedimentos de observação próprios das ciências naturais e humanas, embora os últimos sejam mais acurados e melhor controlados (sequer os instrumentos analíticos contemporâneos são propriedade exclusiva da filosofia). (b) Como vimos (capítulo IV, seção 4), o raciocínio filosófico comumente repousa na assunção de princípios metafísicos, os quais podem ser representados pelo conceito metafísico incoerente (ou seja, “+A+B”), carente de sentido (ou seja, “–A–B”), ou meramente vago (ou seja, “–A+B”) (os primeiros dois tipos, ao menos, retendo algo, mesmo que por negação, dos freqüentemente incoerentes e incognoscíveis seres sobrenaturais da religião). Enquanto conceitos da forma “+A+B” e “–A–B” ocorrem no mais das vezes em metafísica transcendente e racionalismo, conceitos da forma “–A+B” são mais apropriados ao naturalismo e ao empirismo. (c) Os trabalhos da imaginação no uso de instrumentos retóricos, a construção de símiles etc., são todos recursos sugestivos capazes de produzir efeitos estéticos.
As colunas do seguinte diagrama sumarizam as principais propriedades que podem pertencer ao discurso e pensamento filosóficos:
No que concerne às motivações, parece que a filosofia faz com que elas derivem: (a) da curiosidade inquisitiva associada às formas científicas de investigação, ou seja, associada ao desejo de adquirir um conhecimento consensual que seja confirmado por seu efetivo poder de explicação, previsão e manipulação da realidade; (b) de motivações originalmente religiosas, as quais incluem o impulso que objetiva integrar nossas experiências e prover uma visão imaginativa abrangente do mundo e da condição humana, freqüentemente através do apelo a uma realidade transcendente, que se encontra além daquilo que a experiência ordinária pode nos oferecer, de modo a ser capaz de organizar e guiar nosso acesso ao mundo; e (c) da arte, em sua busca de “efeitos catárticos”.
Com respeito ao material semântico ou conceitual – os data primários a serem considerados – também ele não pertence propriamente à filosofia, pois: (a) Parte desse material é o mesmo que os data de nosso mundo natural, físico, mental ou formal, acessível em nossa experiência ordinária ou inerentes à informação científica. Como vimos no capítulo IV, no caso dos conceitos naturalistas de entidades-princípio (–A+B), esses podem ser simplesmente todos os data a serem considerados. (b) Também vimos que no caso de conceitos metafísicos híbridos (+A+B), a filosofia pode recorrer a propriedades teomórficas (de transcendência, hipermentalidade etc.), as quais estavam originariamente presentes na constituição dos seres espirituais que são objeto da veneração religiosa, tratando essas propriedades como se fossem data elementares ou indicativos deles. O material semântico teomórfico nada mais é, sob o nosso ponto de vista, do que uma modificação do material tomado de nossa experiência ordinária de senso comum ou até mesmo científica, do físico, mental e formal, que entra na constituição semântica de conceitos metafísicos híbridos, ainda que esse movimento costume ser negado. (c) O material semântico carregado de sugestividade emocional, que usualmente toma parte na invenção estética.
Os procedimentos heurísticos também não são originariamente filosóficos, pois... (a) procedimentos metodológicos da filosofia não são essencialmente diferentes dos procedimentos ordinários irrefletidos, ou dos procedimentos das ciências formais ou empíricas. O método geométrico dos filósofos racionalistas (tais como Descartes e Spinoza) refletiu o modo apriorista como eles fundamentavam os seus argumentos, em uma mímica dos procedimentos axiomáticos das matemáticas; o método histórico dos filósofos empiristas (tais como Locke e Hume), baseado na introspecção e informação empírica sobre o mundo e o comportamento humano, tem as mesmas origens que os procedimentos de observação próprios das ciências naturais e humanas, embora os últimos sejam mais acurados e melhor controlados (sequer os instrumentos analíticos contemporâneos são propriedade exclusiva da filosofia). (b) Como vimos (capítulo IV, seção 4), o raciocínio filosófico comumente repousa na assunção de princípios metafísicos, os quais podem ser representados pelo conceito metafísico incoerente (ou seja, “+A+B”), carente de sentido (ou seja, “–A–B”), ou meramente vago (ou seja, “–A+B”) (os primeiros dois tipos, ao menos, retendo algo, mesmo que por negação, dos freqüentemente incoerentes e incognoscíveis seres sobrenaturais da religião). Enquanto conceitos da forma “+A+B” e “–A–B” ocorrem no mais das vezes em metafísica transcendente e racionalismo, conceitos da forma “–A+B” são mais apropriados ao naturalismo e ao empirismo. (c) Os trabalhos da imaginação no uso de instrumentos retóricos, a construção de símiles etc., são todos recursos sugestivos capazes de produzir efeitos estéticos.
As colunas do seguinte diagrama sumarizam as principais propriedades que podem pertencer ao discurso e pensamento filosóficos:
FILO- MOTIVAÇÃO MATERIAL SEMÂNTICO PROCEDIMENTOS
SOFIA (DATA)
SOFIA (DATA)
(A) da Curiosidade cien- Obtido dos data da ex- Uso de hipóteses
CIÊN- tífica visando um periência comum ou e do raciocínio
CIA conhecimento científica, formal ou argumentativo
real do mundo empírica
(B) da Desejo de uma Traços teomórficos, Recurso a intui-
RELI- concepção trans- hipermentalidade, ções de princí-
GIÃO cendente ordena- hiperfisicalidade e pios transcen-
dora do mundo idiossincrasia mente- dentes, à expe-
e da vida corpo, admitidos co- riência mística,
mo data à exortação
RELI- concepção trans- hipermentalidade, ções de princí-
GIÃO cendente ordena- hiperfisicalidade e pios transcen-
dora do mundo idiossincrasia mente- dentes, à expe-
e da vida corpo, admitidos co- riência mística,
mo data à exortação
(C) Da Desejo de expe- data simbólico-senso- Aplicação de re-
ARTE riência catártica riais, carregados de cursos literários
harmonizadora sugestividade semân- para a produção
do mundo sensó- tica de sugestividade
rio-emocional semântica
ARTE riência catártica riais, carregados de cursos literários
harmonizadora sugestividade semân- para a produção
do mundo sensó- tica de sugestividade
rio-emocional semântica
O diagrama sugere fortemente que, longe de ser uma atividade cultural autocontida, a filosofia apenas combina o que apropria de outros domínios da cultura humana. Interpretamos os três níveis horizontais do diagrama como representando as três possíveis dimensões da indagação filosófica: (A) Uma dimensão heuristicamente orientada, constituida de conjecturas antecipadoras da ciência; (B) Uma dimensão misticamente orientada, contendo especulações e princípios metafísicos não-fundados, cognitivamente problemáticos e geralmente admitidos como matéria de crença; (C) Uma dimensão esteticamente orientada, manipulando o medium do discurso filosófico de maneira a sugerir possibilidades e multiplicar a sua eficácia.(57). A consideração dessas dimensões torna explícitos os novelos conceituais envolvidos na identificação do discurso e pensamento filosófico a partir de nossa perspectiva metafilosófica descritivista. Revendo os três níveis uma última vez, em maiores detalhes:
A) A dimensão heuristicamente orientada. Essa primeira dimensão é motivada pela curiosidade científica, que é racional e realista, potencialmente operativa, apta a ambicionar resultados efetivos. Ela é constitutivamente direcionada à ciência, posto que essencialmente cognitiva e heurística. Essa dimensão é baseada principalmente em generalizações hipotéticas(58), seguidas de argumentos objetivando mostrar o que pode delas resultar, e tentando reforçar a sua plausibilidade pela sua consistência com os resultados obtidos – uma tarefa sempre realizada sob o pressuposto (real ou imaginário) de uma comunidade crítica de idéias com função mediadora. É como efeito das deficiências inerentes à dimensão heuristicamente orientada que a filosofia se distingue da ciência negativamente, por não satisfazer as condições de compartilhamento de assunções básicas, do acordo consensual na avaliação da verdade, e do progresso como uma acumulação de crenças admitidas como verdadeiras pela comunidade crítica de idéias (capítulo III, seção 8).
Essa primeira dimensão é caracteristicamente argumentativa e buscadora da verdade, repousando em enunciados constatativos. Mas as duas dimensões seguintes não são mais essencialmente cognitivas, dependendo mais de proferimentos performativos: B é uma dimensão primariamente exortativa, repousando mais na ênfase normativa do que na verossimilitude, enquanto C é primariamente expressiva.
Essa primeira dimensão é caracteristicamente argumentativa e buscadora da verdade, repousando em enunciados constatativos. Mas as duas dimensões seguintes não são mais essencialmente cognitivas, dependendo mais de proferimentos performativos: B é uma dimensão primariamente exortativa, repousando mais na ênfase normativa do que na verossimilitude, enquanto C é primariamente expressiva.
B) A dimensão misticamente orientada. A curiosidade especulativa e o impulso em direção a maior abrangência (o que Wittgenstein chamou de “craving for generality”), geralmente unidos a um desejo de transcendência, constituem o elemento motivacional dessa dimensão da indagação filosófica. Essa dimensão contém essencialmente elementos que são em última análise não-racionais e não-cognitivos, os quais em geral afetam a especulação filosófica, particularmente aquela que apela a entidades-princípio metafísicas do tipo híbrido ou elusivo, mas em menor grau também as investigações naturalistas. (Usando a metáfora wittgensteiniana, a dimensão mística não é do que pode ser dito, mas do que pode ser apenas mostrado; sendo cognitivamente elusivos, os princípios metafísicos acabam podendo ser apenas mostrados, embora com auxílio do que pode ser dito.)
C) A dimensão esteticamente orientada. Essa dimensão contém os elementos artísticos próprios, atuando expressivamente e sugerindo possibilidades cognitivas.
Meu argumento a favor de uma configuração criterial constituindo a dimensão heuristicamente orientada foi apresentado no capítulo III, e os argumentos a favor de configurações criteriais constituindo as duas outras dimensões foram apresentados nos capítulos IV e V. A questão agora é: como podemos organizar essas configurações criteriais de um modo que nos ajude a identificar o que conta como filosofia no sentido acadêmico ou técnico da palavra?
Não estou nem um pouco seguro quanto a resposta. Mas como acho que ela deve ser tentada, hei-la:
A presença de configurações criteriais constituindo a dimensão heuristicamente orientada pode ser considerada o critério primário, qual seja, uma condição necessária para que algo possa ser chamado de ‘filosofia’ no sentido acadêmico ou técnico mais amplo da palavra.
Mas é a presença dessa configuração criterial em si mesma suficiente? Em um sentido estrito, ao menos, me parece que não. Eis a razão: a curiosidade científica não parece ser a mesma que a curiosidade especulativa, ainda que possa não haver um limite distinto entre as duas; assim, parece que somente a primeira não conduziria ao tipo de empreendimento conjectural geralmente abrangente e despreocupado de resultados consensuais que usualmente esperamos da filosofia. Se isso é correto, então parece que é parte do mesmo impulso que em tempos ancestrais conduziu à formação de explicações religiosas e míticas, aquele que ainda agora nos conduz à especulação filosófica! Mas se isso é verdadeiro, então os elementos criteriais constitutivos da dimensão misticamente orientada são também necessários a uma forma apropriada de indagação filosófica, e mesmo uma filosofia naturalista (do tipo –A+B) é tributária de impulsos especulativos pertinentes ao âmbito místico-religioso ou dele derivados.
Sobre a dimensão esteticamente orientada, nossas considerações sobre o papel da arte em filosofia conduzem-nos à sugestão de que o elemento artístico constitutivo do que chamei de similaridades internas, devidamente deslocado para o domínio da razão e do entendimento, também constitui um elemento ultimadamente imprescindível. As idéias filosóficas, as entidades-princípios, só podem ser formas de teorias e nos dizer alguma coisa se possuirem sugestividade semântica, se forem polissêmicas, se forem susceptíveis de uma variedade indeterminada de interpretações. Sem dúvida, mesmo filósofos cujo texto pouco ou nada tem de artístico e que são voltados para a ciência, possuem conceitos-chave dotados de sugestividade semântica. Tome como exemplo a noção de Deus em Aristóteles, a de substância em Locke, a de sentido em Frege... Admitir isso, contudo, não nos impede de considerar que a ênfase excessiva no elemento artístico-retórico, acompanhada de uma mímica descompromissada das outras dimensões, tenha em alguns casos sido capaz de produzir filosofia como uma espécie de patologia cultural.
As variações na importância de cada dimensão podem ser ilustradas se desenharmos um triângulo com as atividades culturais fundamentais situadas para além de cada vértice e a filosofia no seu interior:
Não estou nem um pouco seguro quanto a resposta. Mas como acho que ela deve ser tentada, hei-la:
A presença de configurações criteriais constituindo a dimensão heuristicamente orientada pode ser considerada o critério primário, qual seja, uma condição necessária para que algo possa ser chamado de ‘filosofia’ no sentido acadêmico ou técnico mais amplo da palavra.
Mas é a presença dessa configuração criterial em si mesma suficiente? Em um sentido estrito, ao menos, me parece que não. Eis a razão: a curiosidade científica não parece ser a mesma que a curiosidade especulativa, ainda que possa não haver um limite distinto entre as duas; assim, parece que somente a primeira não conduziria ao tipo de empreendimento conjectural geralmente abrangente e despreocupado de resultados consensuais que usualmente esperamos da filosofia. Se isso é correto, então parece que é parte do mesmo impulso que em tempos ancestrais conduziu à formação de explicações religiosas e míticas, aquele que ainda agora nos conduz à especulação filosófica! Mas se isso é verdadeiro, então os elementos criteriais constitutivos da dimensão misticamente orientada são também necessários a uma forma apropriada de indagação filosófica, e mesmo uma filosofia naturalista (do tipo –A+B) é tributária de impulsos especulativos pertinentes ao âmbito místico-religioso ou dele derivados.
Sobre a dimensão esteticamente orientada, nossas considerações sobre o papel da arte em filosofia conduzem-nos à sugestão de que o elemento artístico constitutivo do que chamei de similaridades internas, devidamente deslocado para o domínio da razão e do entendimento, também constitui um elemento ultimadamente imprescindível. As idéias filosóficas, as entidades-princípios, só podem ser formas de teorias e nos dizer alguma coisa se possuirem sugestividade semântica, se forem polissêmicas, se forem susceptíveis de uma variedade indeterminada de interpretações. Sem dúvida, mesmo filósofos cujo texto pouco ou nada tem de artístico e que são voltados para a ciência, possuem conceitos-chave dotados de sugestividade semântica. Tome como exemplo a noção de Deus em Aristóteles, a de substância em Locke, a de sentido em Frege... Admitir isso, contudo, não nos impede de considerar que a ênfase excessiva no elemento artístico-retórico, acompanhada de uma mímica descompromissada das outras dimensões, tenha em alguns casos sido capaz de produzir filosofia como uma espécie de patologia cultural.
As variações na importância de cada dimensão podem ser ilustradas se desenharmos um triângulo com as atividades culturais fundamentais situadas para além de cada vértice e a filosofia no seu interior:
RELIGIÃO CIÊNCIA
FILOSOFIA
ARTE
À filosofia pertence tudo que está dentro do triângulo. As setas mostram que as relações entre as dimensões são historicamente dinâmicas. Através do tempo as explicações religiosas gradualmente deram lugar a explicações filosóficas. E os remanescentes religiosos da filosofia foram sendo gradualmente substituídos por formas de indagação cada vez mais próximas do modelo da ciência. Como mostra a figura, a atividade e o discurso filosófico estão muitas vezes profundamente associados à expressão estética, o que explica por que a filosofia, particularmente em suas origens, permanece freqüentemente ligada à arte. Contudo, quando a indagação filosófica aproxima-se do discurso consensual da ciência, a expressão artística tende a desvanescer-se, sendo substituída por formas mais diretas e precisas de apresentação. Essas são tendências muito genéricas e inevitáveis, ainda que retrocessos parciais possam ser sempre notados. (Será a filosofia completamente substituída pela ciência? A resposta a isso depende da resposta a outras questões, como a da finitude do conhecimento possível.)
VII
COROLÁRIOS E PERSPECTIVAS
O futuro elude a imaginação.
D. M. Jesseph
O futuro elude a imaginação.
D. M. Jesseph
Neste capítulo sugerimos algumas aplicações da explicação proposta para a natureza da filosofia. Elas consistem em uma diferenciação mais inteligível entre diferentes formas de filosofia e em uma nova explicação da sucessão dos diversos modos de se fazer filosofia, incluindo o modo lingüístico-analítico.
1. FORMAS DE FILOSOFIA
Movidos somente por uma intenção cartográfica prática, podemos classificar filosofias de acordo com o lugar ocupado por elas no interior do triângulo apresentado no final do último capítulo. De fato, investigações filosóficas podem ser comparativamente situadas naquele espaço, em concordância com o peso relativo de suas dimensões de orientação científica, mística e estética. Considere o caso do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein: por sua tentativa (protocientífica) de construir uma teoria pictorial da representação, por sua doutrina mística do indizível e por seus recursos estéticos, tanto estruturais quanto retóricos, essa obra pode ser situada próxima ao centro do triângulo. Contudo, o exemplo mais impressivo de uma obra filosófica situada no centro do triângulo seriam os diálogos platônicos. A filosofia de Platão possui uma dimensão protocientífica, cognitiva ou teórica própria, a ser encontrada na natureza essencialmente argumentativa de seus escritos, em cujo centro – a doutrina das idéias –, verdades ontológicas são buscadas e justificads em conexão com uma teoria sobre nossas capacidades cognitivas e com preocupações morais e sociais. Mas a filosofia de Platão também possui uma dimensão mística, reconhecível em sua tentativa de criar uma visão especulativa do mundo e, mais especificamente, em seu apelo aos mitos órficos, em sua doutrina da alma do mundo e em sua quase religiosa veneração à forma do bem. Por fim há o elemento estético, que transforma os seus diálogos em trabalhos literários de grande beleza e permanente apelo. Com efeito, alcançando um balanço ideal entre as três dimensões consideradas, a obra platônica permanece o exemplo paradigmático de um esforço filosófico clássico à beira da perfeição (Platão é o Mozart da ópera filosófica). Outras filosofias clássicas, como a de Descartes, Kant e Hegel, também se aproximam, umas mais, outras menos, desse ideal de integração de influências.
Contudo, o papel dessas diferentes dimensões raramente é distribuído de forma tão equitativa. Há filosofias limítrofes, a serem situadas próximas a borda ou a algum vértice do triângulo. Assim a filosofia de Aristóteles, por suas motivações e realizações, está mais próxima do vértice científico do triângulo do que a de Platão, e muitos influentes filósofos especializados de nosso tempo – penso em Frege, Carnap e Quine, para não mencionar Russell e a tradição empirista – fazem uma espécie de trabalho que poderia ser situado mais próximo do vértice científico do triângulo (o que já vimos ser esperado, posto que a filosofia parece aproximar-se gradualmente da ciência). Por outro lado, filosofias como a de Plotino e John Scotus, principalmente por suas motivações, devem ser localizadas no vértice místico/religioso do triângulo. Um filósofo pré-socrático como Heráclito, ou grandes escritores como Marco Aurélio, Sêneca, Montaigne e Nietzsche podem ser classificados como “artistas filósofos”, cuja obra poderia ser localizada mais ou menos próxima do vértice artístico do triângulo. E as filosofias de Kierkegaard, Agostinho e mesmo Hegel, poderiam ser consideradas mais próximas do lado estético/místico do triângulo. Há também casos que são realmente limítrofes: Novalis e Cioran foram tanto artistas quanto filósofos. E a obra de Jacques Derrida parece-me melhor avaliada se admitida como pertencendo ao domínio da arte. Esses casos limítrofes devem ser distinguidos daqueles casos de artistas trabalhando já fora das fronteiras filosóficas, embora em suas proximidades, como Hölderlin e Goethe. Casos limítrofes, situados no vértice do triângulo onde começa o pensamento religioso são, por exemplo, as doutrinas místicas de Jakob Böhme ou de Meister Eckhart (os sermões religiosos de Eckhart estão embebidos de profundos insights antropológicos). E há, por certo, casos limítrofes situados entre filosofia e ciência. Considere, por exemplo, a psicanálise: apesar de ainda dependente de interpretações subjetivas não-consensuais, deve ser reconhecido que as técnicas psicanalíticas possibilitam insights novos e inalcançáveis pela psicologia introspeccionista que a antecedeu. Um outro exemplo de trabalho nesse domínio limítrofe seria dado pelos imaginativos escritos antropológicos de Claude Lévi-Strauss: eles satisfazem uma ambição filosófica, estética e ainda (modestamente) científica.
Pode-se classificar a totalidade dos movimentos filosóficos e mesmo tradições de acordo com os seus lugares relativos no triângulo. A filosofia norte-americana contemporânea (de Peirce a Quine) é tipicamente influenciada pela ciência; ela é freqüentemente um empreendimento naturalista, buscando esforçadamente, mesmo que deceptivamente, reproduzir os standards de claridade, rigor e objetividade exibidos pela ciência. Essa é a razão de seu sucesso em um mundo cada vez mais dominado pela ciência, mas também de suas limitações: o cientismo, a fixação em standards científicos como padrões de valoração, conduz à fragmentação positivista do pensamento, à perda da visão sinóptica, ou seja, à perda da visão do todo característica da grande filosofia.
A filosofia alemã (de Eckhart a Hegel) encontra-se, em seu modo de operação, inclinada em direção ao vértice místico-religioso do triângulo. Historicamente ela possui um pesado acento místico subjacente ao seu discurso elusivo e à suposta profundidade de suas obscuridades metafísicas. Por isso ela ainda retém uma abrangência sistematizadora, por exemplo, em Jürgen Habermas.
Já a filosofia francesa (de Sartre a Deleuze) tem sido mais e mais influenciada por um ideal de expressão artística, sendo centrada na dimensão estética e naquilo que chamei de similaridades externas entre filosofia e arte. Mas não se trata de um puro centramento na dimensão estética, como acontece, por exemplo, em Cioran, mas de um centramento na dimensão estética aliado a uma imitação insincera e meramente retórica das outras dimensões, daí resultando um jogo retórico-literário sem compromisso heurístico, no qual argumentos são no melhor dos casos vagamente sugeridos. Da insistência nesse modo de proceder resulta uma persiflagem literária do trabalho real da filosofia. Como uma criança divertindo-se com um brinquedo como se fosse a coisa real, os filósofos franceses fazem de conta que estão fazendo filosofia. Por isso se faria mais justiça a alguns de seus textos (penso em Jacques Derrida) se eles fossem avaliados como obras de arte que se utilizam de um material filosófico. Mas então seriam más obras de arte, posto que estão a serviço da corrupção da consciência mais do que de sua regeneração.
Tão teoreticamente trivial como o presente exercício cartográfico possa parecer, ele parece impor alguma ordem ao entulho das formas filosóficas. Além do mais, torna mais clara a aplicabilidade universal da explicação integrada por nós proposta, mesmo que esta última esteja à espera de um mais detalhado desenvolvimento.
Contudo, o papel dessas diferentes dimensões raramente é distribuído de forma tão equitativa. Há filosofias limítrofes, a serem situadas próximas a borda ou a algum vértice do triângulo. Assim a filosofia de Aristóteles, por suas motivações e realizações, está mais próxima do vértice científico do triângulo do que a de Platão, e muitos influentes filósofos especializados de nosso tempo – penso em Frege, Carnap e Quine, para não mencionar Russell e a tradição empirista – fazem uma espécie de trabalho que poderia ser situado mais próximo do vértice científico do triângulo (o que já vimos ser esperado, posto que a filosofia parece aproximar-se gradualmente da ciência). Por outro lado, filosofias como a de Plotino e John Scotus, principalmente por suas motivações, devem ser localizadas no vértice místico/religioso do triângulo. Um filósofo pré-socrático como Heráclito, ou grandes escritores como Marco Aurélio, Sêneca, Montaigne e Nietzsche podem ser classificados como “artistas filósofos”, cuja obra poderia ser localizada mais ou menos próxima do vértice artístico do triângulo. E as filosofias de Kierkegaard, Agostinho e mesmo Hegel, poderiam ser consideradas mais próximas do lado estético/místico do triângulo. Há também casos que são realmente limítrofes: Novalis e Cioran foram tanto artistas quanto filósofos. E a obra de Jacques Derrida parece-me melhor avaliada se admitida como pertencendo ao domínio da arte. Esses casos limítrofes devem ser distinguidos daqueles casos de artistas trabalhando já fora das fronteiras filosóficas, embora em suas proximidades, como Hölderlin e Goethe. Casos limítrofes, situados no vértice do triângulo onde começa o pensamento religioso são, por exemplo, as doutrinas místicas de Jakob Böhme ou de Meister Eckhart (os sermões religiosos de Eckhart estão embebidos de profundos insights antropológicos). E há, por certo, casos limítrofes situados entre filosofia e ciência. Considere, por exemplo, a psicanálise: apesar de ainda dependente de interpretações subjetivas não-consensuais, deve ser reconhecido que as técnicas psicanalíticas possibilitam insights novos e inalcançáveis pela psicologia introspeccionista que a antecedeu. Um outro exemplo de trabalho nesse domínio limítrofe seria dado pelos imaginativos escritos antropológicos de Claude Lévi-Strauss: eles satisfazem uma ambição filosófica, estética e ainda (modestamente) científica.
Pode-se classificar a totalidade dos movimentos filosóficos e mesmo tradições de acordo com os seus lugares relativos no triângulo. A filosofia norte-americana contemporânea (de Peirce a Quine) é tipicamente influenciada pela ciência; ela é freqüentemente um empreendimento naturalista, buscando esforçadamente, mesmo que deceptivamente, reproduzir os standards de claridade, rigor e objetividade exibidos pela ciência. Essa é a razão de seu sucesso em um mundo cada vez mais dominado pela ciência, mas também de suas limitações: o cientismo, a fixação em standards científicos como padrões de valoração, conduz à fragmentação positivista do pensamento, à perda da visão sinóptica, ou seja, à perda da visão do todo característica da grande filosofia.
A filosofia alemã (de Eckhart a Hegel) encontra-se, em seu modo de operação, inclinada em direção ao vértice místico-religioso do triângulo. Historicamente ela possui um pesado acento místico subjacente ao seu discurso elusivo e à suposta profundidade de suas obscuridades metafísicas. Por isso ela ainda retém uma abrangência sistematizadora, por exemplo, em Jürgen Habermas.
Já a filosofia francesa (de Sartre a Deleuze) tem sido mais e mais influenciada por um ideal de expressão artística, sendo centrada na dimensão estética e naquilo que chamei de similaridades externas entre filosofia e arte. Mas não se trata de um puro centramento na dimensão estética, como acontece, por exemplo, em Cioran, mas de um centramento na dimensão estética aliado a uma imitação insincera e meramente retórica das outras dimensões, daí resultando um jogo retórico-literário sem compromisso heurístico, no qual argumentos são no melhor dos casos vagamente sugeridos. Da insistência nesse modo de proceder resulta uma persiflagem literária do trabalho real da filosofia. Como uma criança divertindo-se com um brinquedo como se fosse a coisa real, os filósofos franceses fazem de conta que estão fazendo filosofia. Por isso se faria mais justiça a alguns de seus textos (penso em Jacques Derrida) se eles fossem avaliados como obras de arte que se utilizam de um material filosófico. Mas então seriam más obras de arte, posto que estão a serviço da corrupção da consciência mais do que de sua regeneração.
Tão teoreticamente trivial como o presente exercício cartográfico possa parecer, ele parece impor alguma ordem ao entulho das formas filosóficas. Além do mais, torna mais clara a aplicabilidade universal da explicação integrada por nós proposta, mesmo que esta última esteja à espera de um mais detalhado desenvolvimento.
2. TRÊS FASES HISTÓRICAS NA EVOLUÇÃO DA FILOSOFIA
Como seria de se esperar, as relações entre os elementos pós-religiosos e protocientíficos mudam com a emergência das ciências. A conseqüência disso é que todo o desenvolvimento histórico da filosofia pode ser concebido sob a perspectiva das mudanças no relacionamento dinâmico entre filosofia e ciência. Essa constatação nos convida a dividir a história da filosofia em três maiores períodos, de acordo com a relação entre filosofia e ciência.
No começo havia somente a religião, a arte, nenhuma idéia da ciência e, conseqüentemente, pouco ou nenhum espaço para a filosofia. O primeiro período do desenvolvimento da filosofia ocidental começou com os filósofos gregos. Podemos chamá-lo de pré-formacional, posto que precede à formação das ciências fundamentais como corpos sistemáticos de conhecimento. Como já notamos (capítulo IV, seção 1), a emergência da filosofia grega tornou-se possível, não tanto por causa da percepção do caráter insatisfatório das explicações mitológicas, mas essencialmente como uma conseqüência da emergência de uma idéia de ciência.(59) O nascimento fragmentário das primeiras teorizações científicas (em aritmética, geometria, física, astronomia) estava fundamentado em uma idéia da ciência (formal e empírica), segundo a qual, com base em certos dados, seria possível obter generalizações (teoremas, leis) feitas sob a abstração de suas aplicações práticas e capazes de predizer e explicar outros dados, trazendo à superfície o que a natureza ocultara. Parece ter sido esse novo modelo de pensamento fornecido pela ciência a fagulha que acendeu a chama da especulação filosófica na Grécia antiga, pois ela deve ter sugerido à mente humana a explêndida idéia de que possivelmente o mundo inteiro, cuja natureza oculta era previamente explicada pela religião, poderia ser explicado através de generalizações abstratas. Embora esse empreendimento fosse completamente impossível como matéria de fato, ele sempre foi possível como matéria de conjectura ou especulação, sendo isso precisamente o que os primeiros filósofos, que eram também cientistas, ou ao menos pessoas cientificamente informadas, tentaram fazer. Ao fazerem isso, eles costumavam, em maior ou menor medida, misturar as suas especulações com as velhas explicações antropomórficas. Contudo, vimos que mesmo isso não precisava ser nem foi realmente um elemento indispensável ao empreendimento filosófico.
Esse primeiro período de indagação filosófica durou até o renascimento. Durante toda a Idade Média, embora desenvolvendo novos procedimentos dialéticos e sendo sempre guiada pela idéia, originalmente sugerida pela ciência, de explicar a natureza oculta das coisas por meio de generalizações conceituais, a filosofia não necessitava afirmar-se em um diálogo com a ciência, posto que a última ainda permanecia demasiado rudimentar e fragmentária para ser capaz de desafiar as concepções ordinárias do mundo, que forneciam o material para as primeiras reflexões filosóficas.
A segunda fase da filosofia, que denominamos paraformacional, foi marcada pela emergência de ciências empíricas fundamentais – a física, seguida da química, da biologia, da psicologia e da ciência social – na forma de corpos sistemáticos de conhecimento, conjuntamente com desenvolvimentos paralelos nas ciências formais (ver capítulo III, seção 3). Essa fase iniciou-se com Descartes e floresceu ao menos até Hegel. Com Descartes e após ele a filosofia teórica desenvolveu-se em considerável medida como uma reação ao crescimento da ciência. Por exemplo: o representacionalismo cartesiano e lockeano, bem como o idealismo transcendental de Kant, foram, em parte, acomodações conjecturais de nossa visão filosófica do mundo à força da forma científica do argumento da ilusão, segundo o qual a mente não pode ter experiência direta do mundo externo, mas apenas de seus efeitos físico-químicos.
Assim, a tarefa da filosofia moderna não foi tanto a de preparar o aparecimento de novos campos científicos, mas principalmente a de produzir uma reformulação e relocação do material de idéias pertencente aos campos remanescentes da filosofia em conformidade com novas idéias científicas, tanto formais quanto empíricas. Tomando a metafísica de Descartes como exemplo, é difícil ver como ele poderia acreditar no caráter frutífero do método geométrico em filosofia sem que tivesse sido testemunha de seu poder heurístico na ciência, e é difícil ver como ele poderia sentir a necessidade de responder ao cético se ele não estivesse ciente, por exemplo, do argumento da ilusão em sua forma científica, ou de que o coração não é a sede da alma.
Finalmente chegamos ao que pode ser chamado de fase pós-formacional do desenvolvimento da filosofia, que surge após a emergência das ciências fundamentais. Como vimos, essas ciências requerem certa ordem de desenvolvimento, que vai da física à ciência social, posto que é difícil imaginar uma ciência fundamental mais complexa e particular desenvolvendo-se antes de uma mais simples e mais geral. Nos dias de hoje muitos desenvolvimentos científicos localizados estão a emergir, o que requer a existência prévia das ciências fundamentais, já que eles as aplicam. A filosofia contemporânea é, mais do que nunca, de um lado a participação na emergência desses desenvolvimentos e de outro uma resposta a eles, nascida da necessidade de ajustamos nossas concepções filosóficas remanescentes de maneira a se tornarem mais coerentes com as perspectivas por eles criadas.
3. A FILOSOFIA LINGÜÍSTICO-ANALÍTICA NAS RODAS DA HISTÓRIA
A consideração da última fase do desenvolvimento da filosofia sob a perspectiva aqui proposta ajuda a entender por que no século XX ela foi enganosamente considerada como essencialmente definível em termos de uma atividade de análise conceitual. Uma razão para isso parece ser que, tendo as ciências empíricas fundamentais tomado o lugar uma vez ocupado pela filosofia como uma especulação empírica antecipadora da ciência, esta última foi em grande parte reduzida a uma indagação de segunda ordem, mais reflexiva e distanciada das preocupações empíricas. Contudo, a razão central para a consolidação da filosofia dita lingüístico-analítica foi ainda o desenvolvimento de novos mecanismos de controle de procedimentos argumentativos, requerendo uma organização mais explícita dos componentes lógico-conceituais do discurso, o que costuma demandar acento semântico, ou seja, um tratamento metalingüístico dos elementos lingüístico-conceituais. Sob tais circunstâncias, tornou-se fácil confundir a filosofia, em sua natureza própria, com um simples esforço de esclarecimento lingüístico-conceitual. No entanto, o distanciamento da especulação filosófica de preocupações com questões de ordem propriamente empírica, assim como a ênfase lingüístico-conceitual, são apenas momentos de uma evolução histórica, sendo como tal contingentes. Dizer que a filosofia do século XX foi em boa parte uma indagação lingüístico-conceitual é apenas descrever a forma que a filosofia tomou em um certo período histórico e não diagnosticar a sua natureza própria.
Adotando essa perspectiva encontramo-nos melhor situados para chegar a um entendimento dos desenvolvimentos internos da filosofia lingüístico-analítica no século XX. Minha sugestão é que podemos entender as principais conquistas da filosofia lingüístico-analítica como intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento de uma constelação de teorias científicas que pertencem ao âmbito do que pode ser chamado – no sentido mais amplo possível – de semiótica. A filosofia lingüístico-analítica é ligada à semiótica, de um lado pelo modo conjectural próprio pelo qual esse campo de estudos tem sido gradualmente explorado, de outro pela definitiva necessidade de relocação e reformulação acomodativa de nossas idéias de problemas filosóficos tradicionais, resultante dos desenvolvimentos nos domínios da semiótica.
Para poder argumentar a favor dessa sugestão preciso primeiro explicar brevemente o que quero dizer com a palavra “semiótica”. Chamando de “signos” a todas as coisas que são usadas para representar outras, semiótica é o nome que podemos dar para a idéia vaga e extraordinariamente abrangente de uma ciência geral dos signos. O projetado campo científico da semiótica é usualmente dividido em três grandes domínios(60): sintática, semântica e pragmática. O primeiro, a sintática, consiste na investigação das regras combinando signos com signos, o que pode ser entendido de modo a incluir a sintaxe lógica. O segundo domínio da semiótica é o da semântica, entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas combinações) com os seus designata. O terceiro domínio é o da pragmática, entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas combinações, junto com as relações que eles têm com os seus designata) aos falantes e às circunstâncias de seu uso concreto na linguagem. É fácil ver que há uma certa ordem de pressuposições entre os domínios: de um modo geral, a semântica pressupõe a sintática, e a pragmática pressupõe ambas, a sintática e a semântica. Isso se torna claro quando consideramos que se pode aprender a sintaxe de uma linguagem não interpretada, ou seja, em abstração do que os signos significam, de sua semântica e de sua pragmática. Contudo, dificilmente se pode aprender as relações referenciais de uma linguagem, seja das combinações de signos, seja dos próprios signos isolados, quando eles são polissêmicos, sem se ser capaz de identificar as suas unidades sintaticamente estruturadas. Também podemos avançar muito no aprendizado da sintaxe e da semântica em abstração do contexto, ou seja, sem considerar o uso da linguagem nas circunstâncias concretas da comunicação humana, ou seja, a pragmática. Todavia, não podemos aprender a aplicar as regras pragmáticas, ou seja, avançar no aprendizado do uso dos signos em proferimentos concretos, quando não sabemos identificar as suas possíveis articulações sintáticas e as suas referências (capítulo II, seção 2). A conseqüência disso é que é natural esperar que o desenvolvimento histórico do conhecimento semiótico siga a mesma ordem dessas pressuposições, começando com a sintática, prosseguindo com a semântica e terminando com a pragmática.
Essas considerações ajudam-nos a entender os desenvolvimentos históricos da filosofia analítica no século XX. Com efeito, a filosofia analítica apareceu em três ondas sucessivas de investigação. No final do século XIX, Gottlob Frege desenvolveu pela primeira vez uma completa formulação simbólica do cálculo dos predicados. Isso foi uma contribuição essencialmente sintática (embora também contendo uma forma esquematizada de semântica) de importância sem precedentes para o desenvolvimento da lógica, tanto que não seria grande exagero dizer que a lógica como ciência realmente começou com Frege. Podemos considerar o atomismo lógico de Bertrand Russell e do primeiro Wittgenstein no Tractatus como as mais importantes respostas filosóficas tentando acomodar nossas concepções filosóficas remanescentes em filosofia do conteúdo e teoria do conhecimento a esse desenvolvimento sem precedentes da ciência lógica. Embora já existissem desenvolvimentos semânticos – como a distinção fregeana entre sentido e referência, a elusiva teoria do significado do Tractatus, e as especulações de Russell sobre os designata dos nomes logicamente próprios em sua teoria das descrições – eles desempenhavam um papel complementar e em sua maioria ainda esquemático.
A segunda onda foi principalmente semântica: Wittgenstein, na fase intermediária de seu desenvolvimento filosófico, seguido por positivistas lógicos como Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sugeriu uma semântica full-blooded, principalmente na forma do princípio da verificabilidade, segundo o qual o sentido da proposição é o modo de sua verificação, sendo geralmente dado a cada enunciado um feixe de modos de verificação. As conseqüências desse princípio em uma tentativa de reformulação de nossa visão filosófica remanescente de mundo foram paradigmaticamente desenvolvidas no livro de A. J. Ayer, intitulado Linguagem, Verdade e Lógica, que hoje ainda reverberam na obra de filósofos como Kai Nielsen Michael Martin.
A terceira onda trouxe em sua crista os esforços dirigidos à criação de uma ciência da pragmática e à acomodação de problemas filosóficos a ela relacionados e aos seus resultados. Ela começou com as reflexões dispersas do último Wittgenstein sobre as múltiplas funções da linguagem e sua identificação do significado das expressões com o seu uso no contexto de jogos de linguagem. Mas a emergência da pragmática como uma reflexão sistemática sobre as ações comunicativas deveu-se principalmente aos esforços de J. L. Austin, que mais tarde foram levados adiante por J. R. Searle em sua teoria dos atos de fala, além de contribuições independentes, como a teoria das implicaturas conversacionais de Paul Grice. Investigações da pragmática também conduziram a tentativas de acomodar velhos problemas filosóficos aos novos resultados. Um exemplo inicial disso foi a reestruturação e relocação do problema mente-corpo – mesmo que em uma forma ultimadamente desencaminhada – como um resultado de reflexões pragmáticas sobre um necessário momento interpessoal no aprendizado da linguagem. Parte dessa tentativa pode ser observada na análise de conceitos mentais feita por (proto)behavioristas como Gilbert Ryle em O Conceito de Mente e também no trabalho do (também protobehaviorista) último Wittgenstein, por exemplo, em seu argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada e em sua tentativa de escapar de sua conseqüência paradoxal – a rejeição de nossa linguagem mentalista – através de uma equívoca doutrina da expressão criterial. Outro esforço reformulador de problemas filosóficos emergindo como uma aplicação de desenvolvimentos pragmáticos (especialmente, embora não inteiramente, da teoria dos atos de fala) é encontrado na tentativa de Jürgen Habermas, em sua pragmática universal, de ler estruturas sociais e suas possíveis distorções nos modos de funcionamento de nossas ações comunicativas. Uma vez mais vemos o papel da ênfase lingüístico-conceitual como uma característica relevante, que não obstante é historicamente contingente e não-essencial à filosofia enquanto tal.
Adotando essa perspectiva encontramo-nos melhor situados para chegar a um entendimento dos desenvolvimentos internos da filosofia lingüístico-analítica no século XX. Minha sugestão é que podemos entender as principais conquistas da filosofia lingüístico-analítica como intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento de uma constelação de teorias científicas que pertencem ao âmbito do que pode ser chamado – no sentido mais amplo possível – de semiótica. A filosofia lingüístico-analítica é ligada à semiótica, de um lado pelo modo conjectural próprio pelo qual esse campo de estudos tem sido gradualmente explorado, de outro pela definitiva necessidade de relocação e reformulação acomodativa de nossas idéias de problemas filosóficos tradicionais, resultante dos desenvolvimentos nos domínios da semiótica.
Para poder argumentar a favor dessa sugestão preciso primeiro explicar brevemente o que quero dizer com a palavra “semiótica”. Chamando de “signos” a todas as coisas que são usadas para representar outras, semiótica é o nome que podemos dar para a idéia vaga e extraordinariamente abrangente de uma ciência geral dos signos. O projetado campo científico da semiótica é usualmente dividido em três grandes domínios(60): sintática, semântica e pragmática. O primeiro, a sintática, consiste na investigação das regras combinando signos com signos, o que pode ser entendido de modo a incluir a sintaxe lógica. O segundo domínio da semiótica é o da semântica, entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas combinações) com os seus designata. O terceiro domínio é o da pragmática, entendido como a investigação das regras relacionando os signos (e suas combinações, junto com as relações que eles têm com os seus designata) aos falantes e às circunstâncias de seu uso concreto na linguagem. É fácil ver que há uma certa ordem de pressuposições entre os domínios: de um modo geral, a semântica pressupõe a sintática, e a pragmática pressupõe ambas, a sintática e a semântica. Isso se torna claro quando consideramos que se pode aprender a sintaxe de uma linguagem não interpretada, ou seja, em abstração do que os signos significam, de sua semântica e de sua pragmática. Contudo, dificilmente se pode aprender as relações referenciais de uma linguagem, seja das combinações de signos, seja dos próprios signos isolados, quando eles são polissêmicos, sem se ser capaz de identificar as suas unidades sintaticamente estruturadas. Também podemos avançar muito no aprendizado da sintaxe e da semântica em abstração do contexto, ou seja, sem considerar o uso da linguagem nas circunstâncias concretas da comunicação humana, ou seja, a pragmática. Todavia, não podemos aprender a aplicar as regras pragmáticas, ou seja, avançar no aprendizado do uso dos signos em proferimentos concretos, quando não sabemos identificar as suas possíveis articulações sintáticas e as suas referências (capítulo II, seção 2). A conseqüência disso é que é natural esperar que o desenvolvimento histórico do conhecimento semiótico siga a mesma ordem dessas pressuposições, começando com a sintática, prosseguindo com a semântica e terminando com a pragmática.
Essas considerações ajudam-nos a entender os desenvolvimentos históricos da filosofia analítica no século XX. Com efeito, a filosofia analítica apareceu em três ondas sucessivas de investigação. No final do século XIX, Gottlob Frege desenvolveu pela primeira vez uma completa formulação simbólica do cálculo dos predicados. Isso foi uma contribuição essencialmente sintática (embora também contendo uma forma esquematizada de semântica) de importância sem precedentes para o desenvolvimento da lógica, tanto que não seria grande exagero dizer que a lógica como ciência realmente começou com Frege. Podemos considerar o atomismo lógico de Bertrand Russell e do primeiro Wittgenstein no Tractatus como as mais importantes respostas filosóficas tentando acomodar nossas concepções filosóficas remanescentes em filosofia do conteúdo e teoria do conhecimento a esse desenvolvimento sem precedentes da ciência lógica. Embora já existissem desenvolvimentos semânticos – como a distinção fregeana entre sentido e referência, a elusiva teoria do significado do Tractatus, e as especulações de Russell sobre os designata dos nomes logicamente próprios em sua teoria das descrições – eles desempenhavam um papel complementar e em sua maioria ainda esquemático.
A segunda onda foi principalmente semântica: Wittgenstein, na fase intermediária de seu desenvolvimento filosófico, seguido por positivistas lógicos como Moritz Schlick e Rudolf Carnap, sugeriu uma semântica full-blooded, principalmente na forma do princípio da verificabilidade, segundo o qual o sentido da proposição é o modo de sua verificação, sendo geralmente dado a cada enunciado um feixe de modos de verificação. As conseqüências desse princípio em uma tentativa de reformulação de nossa visão filosófica remanescente de mundo foram paradigmaticamente desenvolvidas no livro de A. J. Ayer, intitulado Linguagem, Verdade e Lógica, que hoje ainda reverberam na obra de filósofos como Kai Nielsen Michael Martin.
A terceira onda trouxe em sua crista os esforços dirigidos à criação de uma ciência da pragmática e à acomodação de problemas filosóficos a ela relacionados e aos seus resultados. Ela começou com as reflexões dispersas do último Wittgenstein sobre as múltiplas funções da linguagem e sua identificação do significado das expressões com o seu uso no contexto de jogos de linguagem. Mas a emergência da pragmática como uma reflexão sistemática sobre as ações comunicativas deveu-se principalmente aos esforços de J. L. Austin, que mais tarde foram levados adiante por J. R. Searle em sua teoria dos atos de fala, além de contribuições independentes, como a teoria das implicaturas conversacionais de Paul Grice. Investigações da pragmática também conduziram a tentativas de acomodar velhos problemas filosóficos aos novos resultados. Um exemplo inicial disso foi a reestruturação e relocação do problema mente-corpo – mesmo que em uma forma ultimadamente desencaminhada – como um resultado de reflexões pragmáticas sobre um necessário momento interpessoal no aprendizado da linguagem. Parte dessa tentativa pode ser observada na análise de conceitos mentais feita por (proto)behavioristas como Gilbert Ryle em O Conceito de Mente e também no trabalho do (também protobehaviorista) último Wittgenstein, por exemplo, em seu argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada e em sua tentativa de escapar de sua conseqüência paradoxal – a rejeição de nossa linguagem mentalista – através de uma equívoca doutrina da expressão criterial. Outro esforço reformulador de problemas filosóficos emergindo como uma aplicação de desenvolvimentos pragmáticos (especialmente, embora não inteiramente, da teoria dos atos de fala) é encontrado na tentativa de Jürgen Habermas, em sua pragmática universal, de ler estruturas sociais e suas possíveis distorções nos modos de funcionamento de nossas ações comunicativas. Uma vez mais vemos o papel da ênfase lingüístico-conceitual como uma característica relevante, que não obstante é historicamente contingente e não-essencial à filosofia enquanto tal.
4. O FUTURO DA FILOSOFIA
O que pode ser esperado para o futuro? Certamente, nós podemos esperar que algum dia as atuais filosofias da ciência venham a se transformar em metaciências na medida em que alcançam um consenso adequado sobre a verdade de suas explicações da natureza dos componentes científicos mais básicos. Mas nossas maiores expectativas são dirigidas ao núcleo central de problemas filosóficos, os quais parecem permanecer tão distantes quanto sempre de um acordo científico. Os domínios de especulação mais difíceis e complexos da metafísica e da epistemologia são multiabrangentes: a epistemologia, por aplicar-se a todos os atos cognitivos e ao nosso acesso à realidade; a metafísica porque ela precisa explicar, independentemente das ciências que a pressupõem, as categorias últimas da realidade (como propriedade, substância, espaço, tempo, causalidade, identidade...), as quais são constitutivas dos mais variados objetos do conhecimento, atravessando não só as muitas formas de conhecimento científico como também todo o saber comum. Embora não tão abrangente, a ética parece encontrar-se integrada de forma complexa no centro da atividade social humana, conseqüentemente também requerendo o mesmo tipo de abordagem argumentativo-conjectural.
A explicação global da natureza da filosofia esboçada nesse livro oferece-nos alguns indícios para pensar – muito cautelosamente – o futuro da filosofia. Se a filosofia é uma atividade cultural intermediária ou derivada, a estabilidade não pode ser esperada. Isso se deixa sugerir quando consideramos novamente a analogia com a ópera. Essa última cresceu paralelamente ao desenvolvimento da música polifônica após o Renascimento, chegando ao ápice de seu desenvolvimento nos séculos XVIII e XIX, somente para perder quase completamente a sua importância no século XX, mesmo que ainda tenha sobrevivido em formas menores, como as da opereta e do musical. Provavelmente algo similar pode ser dito da filosofia, ao menos no sentido clássico e predominante da palavra: os melhores tempos já se foram. Eles pertenceram originalmente aos grandes sistemas de Platão e Aristóteles, e, na modernidade, ao período de configuração das ciências fundamentais, quando a filosofia, em um desenvolvimento que começou com Descartes e culminou com a obra de Kant, era em grande medida uma acomodação das concepções filosóficas remanescentes às transformações geradas pela emergência dessas ciências. Hoje a indagação filosófica, em sua maioria restrita a inúmeras subquestões que emergem nos núcleos de questionamento remanescentes, as quais por suas naturezas permanecem altamente dependentes de argumento, parece progredir em suas formas menores. Contudo, é bom recordar que esse diagnóstico não é necessariamente um julgamento de valor, pois a filosofia contemporânea pode ser importante e por vezes fascinante (a Ópera dos Três Vinténs é, como ópera, uma forma menor, mas não menos importante do que O Crepúsculo dos Deuses, ao menos para aqueles que se recusam a se deixar impressionar pelo pathos wagneriano).
De fato, em nossos tempos, a ciência tem crescido tanto que tem tomado o lugar de muito do que antes era filosofia, embora, vale lembrar, muito pouco de seus domínios mais importantes. Contudo, se adotarmos a concepção tolerante da ciência como conhecimento público consensualizável, parece não haver razões para negar que em princípio, em algum tempo no futuro, a ciência possa absorver todo o campo da filosofia. Isso não ocorrerá se não houver limite para a criação de novas questões filosóficas, se o objeto do conhecimento for ilimitado, se os problemas filosóficos forem automultiplicativos, se houver limites intransponíveis para a possibilidade de consenso... Se for assim, então a especulação filosófica será sempre possível e sempre poderá existir. Contudo, como o que experienciamos até agora tem sido apenas uma seqüência de subdivisões e combinações aplicadas das ciências fundamentais, há razões para esperar que haja um limite para a aquisição de novo conhecimento científico essencial. Nesse caso pode ser que um dia os filósofos e até mesmo os cientistas venham a encontrar-se desempregados, sentando-se lado a lado em um mundo intelectualmente saciado, onde todas as coisas que vale a pena conhecer já terão sido investigadas e que nenhuma descoberta importante reste a ser feita. Nesse tempo não haverá mais lugar para a acomodação do restante de nossa visão filosófica à ciência, posto que não haverá mais nenhum “resto” filosófico de nossa visão do mundo: a soma do nosso conhecimento científico será a nossa visão do mundo, nada mais sendo admitido, posto que a busca pela totalidade para além desse conhecimento passará a ser reconhecida como um empreendimento conceitualmente desnecessário e sem sentido.
De fato, se as avaliações feitas neste livro forem corretas e se a emergência de novos campos científicos não for uma possibilidade indefinidamente auto-multiplicativa, não é difícil prever que, quando a poeira de confusão conceitual que tem sido levantada e que continua a ser levantada pela formação de todas as novas ramificações da ciência baixar, virá o dia em que a filosofia, mesmo em suas formas menores, chegará a um fim. Contudo, como também vimos, isso não precisa significar que as conjecturas centrais da filosofia virão a ser substituídas por uma multiplicidade de teorias científicas estreitamente focalizadas, não inter-relacionadas, pouco excitantes – como a fragmentação positivista-cientificista do campo da experiência sugere –, uma vez que a liberalidade de nosso conceito de ciência e a inter-relação entre as questões filosóficas centrais sugerem que realizações científicas abrangentes tomem o lugar das últimas, preservando dessa maneira o suspeitado valor das questões que as geraram.
A explicação global da natureza da filosofia esboçada nesse livro oferece-nos alguns indícios para pensar – muito cautelosamente – o futuro da filosofia. Se a filosofia é uma atividade cultural intermediária ou derivada, a estabilidade não pode ser esperada. Isso se deixa sugerir quando consideramos novamente a analogia com a ópera. Essa última cresceu paralelamente ao desenvolvimento da música polifônica após o Renascimento, chegando ao ápice de seu desenvolvimento nos séculos XVIII e XIX, somente para perder quase completamente a sua importância no século XX, mesmo que ainda tenha sobrevivido em formas menores, como as da opereta e do musical. Provavelmente algo similar pode ser dito da filosofia, ao menos no sentido clássico e predominante da palavra: os melhores tempos já se foram. Eles pertenceram originalmente aos grandes sistemas de Platão e Aristóteles, e, na modernidade, ao período de configuração das ciências fundamentais, quando a filosofia, em um desenvolvimento que começou com Descartes e culminou com a obra de Kant, era em grande medida uma acomodação das concepções filosóficas remanescentes às transformações geradas pela emergência dessas ciências. Hoje a indagação filosófica, em sua maioria restrita a inúmeras subquestões que emergem nos núcleos de questionamento remanescentes, as quais por suas naturezas permanecem altamente dependentes de argumento, parece progredir em suas formas menores. Contudo, é bom recordar que esse diagnóstico não é necessariamente um julgamento de valor, pois a filosofia contemporânea pode ser importante e por vezes fascinante (a Ópera dos Três Vinténs é, como ópera, uma forma menor, mas não menos importante do que O Crepúsculo dos Deuses, ao menos para aqueles que se recusam a se deixar impressionar pelo pathos wagneriano).
De fato, em nossos tempos, a ciência tem crescido tanto que tem tomado o lugar de muito do que antes era filosofia, embora, vale lembrar, muito pouco de seus domínios mais importantes. Contudo, se adotarmos a concepção tolerante da ciência como conhecimento público consensualizável, parece não haver razões para negar que em princípio, em algum tempo no futuro, a ciência possa absorver todo o campo da filosofia. Isso não ocorrerá se não houver limite para a criação de novas questões filosóficas, se o objeto do conhecimento for ilimitado, se os problemas filosóficos forem automultiplicativos, se houver limites intransponíveis para a possibilidade de consenso... Se for assim, então a especulação filosófica será sempre possível e sempre poderá existir. Contudo, como o que experienciamos até agora tem sido apenas uma seqüência de subdivisões e combinações aplicadas das ciências fundamentais, há razões para esperar que haja um limite para a aquisição de novo conhecimento científico essencial. Nesse caso pode ser que um dia os filósofos e até mesmo os cientistas venham a encontrar-se desempregados, sentando-se lado a lado em um mundo intelectualmente saciado, onde todas as coisas que vale a pena conhecer já terão sido investigadas e que nenhuma descoberta importante reste a ser feita. Nesse tempo não haverá mais lugar para a acomodação do restante de nossa visão filosófica à ciência, posto que não haverá mais nenhum “resto” filosófico de nossa visão do mundo: a soma do nosso conhecimento científico será a nossa visão do mundo, nada mais sendo admitido, posto que a busca pela totalidade para além desse conhecimento passará a ser reconhecida como um empreendimento conceitualmente desnecessário e sem sentido.
De fato, se as avaliações feitas neste livro forem corretas e se a emergência de novos campos científicos não for uma possibilidade indefinidamente auto-multiplicativa, não é difícil prever que, quando a poeira de confusão conceitual que tem sido levantada e que continua a ser levantada pela formação de todas as novas ramificações da ciência baixar, virá o dia em que a filosofia, mesmo em suas formas menores, chegará a um fim. Contudo, como também vimos, isso não precisa significar que as conjecturas centrais da filosofia virão a ser substituídas por uma multiplicidade de teorias científicas estreitamente focalizadas, não inter-relacionadas, pouco excitantes – como a fragmentação positivista-cientificista do campo da experiência sugere –, uma vez que a liberalidade de nosso conceito de ciência e a inter-relação entre as questões filosóficas centrais sugerem que realizações científicas abrangentes tomem o lugar das últimas, preservando dessa maneira o suspeitado valor das questões que as geraram.
NOTAS:
1 R. Carnap, “On the Character of Philosophical Problems” in, R. Rorty (ed.) The Linguistic Turn, p. 54.
2 Cf. M. Inwood, A Heidegger Dictionary, p. 164.
3 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109.
4 C. D. Broad, Scientific Thought, p. 20; ver também B. Blanchard, On Philosophical Style, p. 6.
5 G. E. Moore, “What is Philosophy?”, p. 23.
6 E. Tugendhat, “Die Philosophie unter sprachanalytischen Sicht”, em Philosophische Aufsätze.
7 W. V. O. Quine, Word and Object, p. 270 ss.
8 W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann”.
9 Ver, por exemplo, G. Ryle, “Systematic Misleading Expressions”.
10 A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento da ilusão é encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma crítica muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser encontrada no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society: Philosophy in the Real World, cap. I, p. 28 ss.
11 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, sec. 109, 118, 119... Ver também A. Kenny (ed.), The Wittgenstein Reader, pp. 263-285.
12 Prefiro pensar que Wittgenstein estava falando de seu modo pessoal e minimalista de fazer filosofia, mais do que propondo o método próprio de filosofar. Que ele também manteve idéias diferentes e talvez incompatíveis foi apontado por seus melhores intérpretes (ver A. Kenny, “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”; ver também meu livro A Linguagem Factual, cap. II).
13 L. Wittgenstein, The Blue Book, pp. 17-18.
14 Assim escreve A. J. Ayer sobre o método terapêutico de Wittgenstein, “Sua repetida preferência por descrição no lugar da explicação e a abstenção de teoria que ele afirmava praticar e se regozijava diante dos seus leitores não são características de seu procedimento real em nenhum estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das Investigações Filosóficas. Que suas explicações são rúnicas não as reduz a descrições: suas teorias não cessam de ser tais ao serem encobertamente assentadas.” (A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p. 137.)
15 L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, sec. 79.
16 J. R. Searle, “Proper Names”. Resultados similares aos que encontramos tão claramente expostos no artigo de Searle podem ser também inferidos de uma cuidadosa leitura do texto de Wittgenstein.
17 R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.
18 J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, p. 138.
19 Assim escreveu Ludwig Wittgenstein: “uma fonte principal de nosso fracasso em entender é que nós não dominamos uma clara concepção do uso de nossas palavras. – Nossa gramática é carente dessa espécie de sinopticidade. Uma representação sinóptica produz precisamente aquele entendimento que consiste em ‘ver conexões’. Daí a importância de descobrir e inventar casos intermediários” (Investigações Filosóficas, sec. 122). Sobre o conceito de representação sinóptica (übersichtliche Darstellung), ver os interessantes comentários de G. P. Baker & P. M. S. Haker, em Wittgenstein: Understanding and Meaning, p. 489.
20 Ver E. Tugendhat, “Die Philosophie unter den Sprachanalytischen Sicht“, em seu Philosophische Aufsätze.
21 W. V. O. Quine: World and Object, p. 270 f.
22 W. V. O. Quine, Word and Object, pp. 271-272. Quine viu corretamente que o modo formal de falar não pode ser usado para identificar a filosofia, posto que ele pode ser universalmente aplicado. Por essa razão, ele rejeitou a tese de Carnap de que a possibilidade de tradução em um modo formal de falar pode ser usada como modo de distinguir as questões pertencentes à filosofia, escolhendo a expressão “acento semântico” para marcar a sua própria perspectiva naturalista.
23 Kai Nielsen sublinha o fato óbvio mas notável que quando filósofos descrevem os usos de nossas expressões “eles estão fazendo observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” (“What is Philosophy?”, em History of Philosophy Quarterly, 10, 1993, pp. 389-390).
24 Ver, por exemplo, D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, cap. 10
25 A. J. Ayer, em entrevista com B. Magee (B. Magee, Men of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e a observações similares feitas na entrevista com J. R. Searle – uma objeção a qual respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalingüística, inevitavelmente deixa o mundo real de fora (Ver B. Magee in Confessions of a Philosopher, pp. 74-76).
26 Um espécime disso é o livro de B. Latour & S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts.
27 A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p. 4.
28 J. L. Austin, Philosophical Papers, p. 232.
29 Ver A. Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vol. I. Não sigo a sua classificação em detalhe, posto que ele comete ao menos dois erros óbvios: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada) entre as ciências fundamentais e a exclusão da psicologia, que ainda era inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de classificação, porém, permanecem válidos.
30 Alguém poderia objetar que a idéia de uma ruptura epistemológica distinguindo ciência de pré-ciência é enganosa, posto que os critérios usuais de cientificidade realmente não nos permitem identificar tais rupturas. Eu concordo com isso. Mas eu também defendo que não encontramos qualquer dificuldade em identificar essas ruptures intuitivamente e que o critério de cientificidade sugerido na seção 8 do presente capítulo é capaz de resgatar essa intuição, possibilitando uma mais clara identificação das rupturas epistemológicas. De fato, a ruptura epistemologica ocorre quando a verdade em todo um domínio da investigação se torna consensualmente alcançável.
31 Como J. R. Searle notou, é um erro acreditar que porque objetos da experiência interna têm um modo de existência ontologicamente subjetivo, eles também devem ser epistemologicamente subjetivos, impossibilitando o seu acesso pela ciência (ver seu Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, pp. 43-45).
32 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield (eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 133-134.
33 K. Popper, “Back to the Pre-Socratics” em suas Conjectures and Refutations, p. 138.
34 G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield (eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 140-142.
35 Ver discussão em W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 103.
36 S. Freud, The Ego and the Id.
37 Aquinas on Mind, pp. 4-5.
38 K. Lehrer, Theory of Knowledge, p. 7. Ver também W. James, Some Problems of Philosophy, p. 23.
39 Aquinas on Mind, p. 5.
40 Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de Kenny, mas não com a sua conclusão. Meu objetivo é mostrar que acreditar que a tese progressista põe em perigo a abrangência da filosofia é confundir a natureza das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente alcançáveis) eventualmente destinadas a substituir os problemas centrais da filosofia, que são questões cuja natureza desconhecemos, com os empreendimentos das ciências particulares existentes, cuja natureza já conhecemos.
41 See J. Passmore, “Philosophy”, in P. Edwards, The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.
42 See K. R. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 339-340. O exemplo standard de falsificação decisiva usado por Popper é a deflexão da luz das estrelas observada no eclipse de 1919. Ironicamente, precisamente esse tipo de teste seria mais tarde considerado demasiado inconfiável para ser significativo quando tomado em isolamento (Cf. Martin Gardner: Relativity Simply Explained, New York 1962, pp. 96-7)
43 See K. R. Popper, The Logic of Scientific Inquiry, cap. II
44 “What is Science?”, p. 42. A ciência, como um corpus de conhecimento, como o que os cientistas fazem e como uma instituição, escreve J. Ziman, “não pode ser tratada separadamente, mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre diferentes planos cartesianos” (ibid. p. 42). Ver também o novo livro de Ziman, Real Science.
45 Ver J. Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa idéia e por chamar minha caracterização da ciência de “consensualista”, eu não estou de modo algum sugerindo que a ciência seja matéria de alguma espécie de decisão consensual arbitrária. Nossa experiência coletiva tem mostrado que é somente porque fatos que concebemos como independentes de nós mesmos podem ser correspondidos por nossas proposições, que somos capazes de alcançar acordo interpessoal sobre o valor-de-verdade dessas proposições no interior de uma comunidade crítica de idéias.
46 Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy, vol. I, p. 14.
47 Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 f.
48 A lei foi primeiramente sugerida por A. Turgot em suas Réflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses (1750), tendo sido também sugerida por outros. Mas mas somente Comte a desenvolveu em todas as suas implicações. De Auguste Comte, ver Cours de Philosophie Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), vol. I; ver também, Discours sur L’esprit Positif, Oevres, Paris 1968 (1844), vol. XI, p. 2 f.
49 O desenvolvimento da assim chamada lei dos três estágios por Comte tem sido freqüentemente mal-entendido, penso que sob influência de preconceito. A sua plausibilidade é defendida por W. Schmaus em, “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law”. Ver também C. F. Costa, “Filosofia, Ciência e História”.
50 J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.
51 See K. R. Popper, The Poverty of Historicism, cap. IV.
52 Embora Demócrito nunca tenha dito isso, a conclusão é difícil de ser evitada, dadas as propriedades especiais internas que ele atribui aos átomos (para uma discussão, ver W. K. C. Gutthrie, A History of Greek Philosophy, vol. II, p. 396).
53 Uma objeção cabível seria a de que conteúdos proposicionais não seriam naturais, pois não são nem físicos nem psicológicos. Essa objeção seria justificada em uma interpretação realista da natureza desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma interpretação nominalista. Se o conteúdo proposicional for analisado, digamos, como o conjunto de representações mentais, atuais ou possíveis, de estados de coisas, então ele pode ser entendido em termos naturalistas como uma entidade psicológica e em última análise física.
54 “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough, p. 40.
55 “Philosophy as Art”, Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também J. Deleuze e F. Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J. H. Gill tenta confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos, mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta (ver J. H. Gill, Metaphilosophy, cap. 6).
56 Ver S. Freud, Traumdeutung, chap. VII.
57 C. F. Costa, “A Conjectura Filosófica”, p. 29 ss.
58 Pode-se perguntar aqui como seria o caso das filosofias orientais. Tal caso mereceria um estudo à parte. Certamente, esses povos estavam inicialmente menos próximos de uma idéia da ciência do que os gregos. Mas é sintomático o fato da filosofia indiana nunca ter se distinguido suficientemente da religião. Ou o fato da filosofia chinesa ser centrada em questões humanas, como a da política. Ou ainda o fato de Hegel ter pensado que elas não seriam propriamente filosofias, mas sabedorias, posto que insuficientemente argumentativas.
59 Quando digo “generalização hipotética”, não estou negando que o filósofo usualmente chegue a tal generalização a posteriori, apoiando-se em argumentos e exemplos prévios. Meu ponto é o de que há sempre um “salto” para a generalização, o qual demanda confirmação ou desconfirmação ulterior de um modo essencialmente análogo ao procedimento hipotético-dedutivo nas ciências empíricas.
60 Ver (por exemplo) C. W. Morris, Foundations of a Theory of Signs.
BIBLIOGRAFIA
Armstrong, D. M.: The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, Boulder, 1999.
Austin, J. L., Philosophical Papers, Oxford 1961.
- Sense and Sensibilia, reconstruido de notas manuscritas de aulas por G. J. Warnock, Oxford 1962.
Ayer, J. L., Language, Truth and Logic, London 1936.
- “Metaphysics and Common Sense”, em Metaphysics and Common Sense, London 1969.
- Ludwig Wittgenstein, New York 1985.
Baker, G. P. & Haker, P. M. S., Wittgenstein: Understanding and Meaning, Oxford 1980.
Berlin, I., “The Purpose of Philosophy”, em Concepts and Categories: Philosophical Essays, (ed.) H. Hardy, Princeton 1998.
Blanchard, B., On Philosophical Style, New York 1969.
- “The Philosophic Enterprise”, em C. J. Bontempo and S. J. Odell (eds.), The Owl of Minerva, New York 1975.
Bobik, J. (ed.), The Nature of Philosophical Inquiry, Notre Dame 1969.
Bontempo, C. J. & S. J. Odell (eds.), The Owl of Minerva, New York 1975.
Broad, C. D., “Critical and Speculative Philosophy” in, J. H. Muirhead (ed.), Contemporary British Philosophy, First Series, London 1924.
- “Two Lectures on the Nature of Philosophy”, em Inquiry 1, n. 2, 1958.
- Scientific Thought, Peterson 1959.
Carnap, R., “On the Character of Philosophical Problems” in, R. Rorty (ed.), The Linguistic Turn: Recent Essays in Philosophical Method, Chicago 1967.
- “Überwindung der Metaphysik durch die logische Analyse der Sprache“, em Erkenntnis 2, 1931-32 (traduzido por A. Pap como “The Elimination of Metaphysics Through Logical Analysis of Language”, em A. J. Ayer (ed.), Logical Positivism , Illinois 1959).
- Logische Syntax der Sprache, Vienna 1934.
Chappell, V. C. (ed.), Ordinary Language: Essays in Philosophical Method, E. Cliffs, 1964.
Comte, A., Cours de Philosophie Positive, em Oevres, Paris 1968 (1830-1842), vol. I.
- Discours sur L’esprit Positif in, Oevres, Paris 1968 (1844), vol. XI.
Copleston, F. C., Religion and Philosophy, Dublin 1974.
Costa, C. F
- “Filosofia, Ciência e História” in, C. F. Costa, Estudos Filosóficos, Rio de Janeiro 1999.
- “Wittgenstein: a Gramática do Conceito de Significado” in, C. F. Costa, A Linguagem Factual, Rio de Janeiro 1996.
- “A Conjectura Filosófica”, em C. F. Costa, A Linguagem Factual, Rio de Janeiro 1996.
- Uma Introdução Contemporânea à Filosofia, São Paulo 2002, cap. 1.
Deleuze, J. & F. Guattari, Qu’est-ce que la Philosophie?, Paris 1991.
Diels, H. & W. Kranz (eds.), Fragmente der Vorsokratiker, Berlin 1961.
Dummett, M., Frege: Philosophy of Language, London 1981 (2nd ed.).
- “Can Analytic Philosophy be Systematic and Ought it to Be?”, em M. Dummett, Truth and Other Enigmas, London 1978.
- The Origins of Analytic Philosophy, London 1993.
Edwards, P., “Heidegger’s Quest for Being”, em Philosophy 64, 1989.
Erickson, G. W., Negative Dialectics and the End of Philosophy, Wolfeboro 1990.
Freud, S., Die Traumdeutung, Frankfurt 1987 (1900).
- The Ego and the Id, (Das Ich und das Es), (ed.) J. Strachey, 1960.
Gill, J. H., “Philosophy as Art” in, Metaphilosophy 14, n. 2, April 1983.
Metaphilosophy, Washington 1982.
Glock, H-J. (ed.), The Rise of Analytical Philosophy, Oxford 1997.
Goodman, N., The Languages of Arts, Indianapolis 1968.
Grice, P.: “Postwar Oxford Philosophy”, em seus Studies in the Way of Words, Harvard 1982.
Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, Cambridge 1962 (4 vols.).
Habermas, J., Erkenntnis und Interesse, Frankfurt 1973.
- “Wahrheitstheorien”, em H. Fahrenbach (ed.), Wirklichkeit und Reflexion, Frankfurt 1973.
Harré, R.: One Thousand Years of Philosophy, Oxford 2000.
Haak, S.: Manifesto of a Passionate Moderate: Unfashionable Essais, Chicago, 1998.
Hescher, N.: Philosophical Reasoning: A Study in the Methodology of Philosophizing, Oxford 2001.
Hook, S., “Scientific Knowledge and Philosophical ‘Knowledge’”, em The Quest for Being, New York 1991.
Husserl, E., “Philosophy as Rigorous Science”, em Q. Lauer (ed.), Phenomenology and the Crisis of Philosophy, N. York 1965.
Hussey, E., The Presocratics, London 1972.
Inwood, M., A Heidegger Dictionary, Oxford 1999.
James, W., Some Problems in Philosophy, Lincoln 1996 (1911).
Kant, E., Kritik des Urteils, Frankfurt 1976.
Kenny, A., Aquinas on Mind, London 1993.
- The Wittgenstein Reader, Oxford 1994.
- “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”, em A. Kenny, The Legacy of Wittgenstein, Oxford 1984.
Latour, B. & S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts, Princeton 1986.
Lehrer, K., Theory of Knowledge, San Francisco 1990.
Longino, H. E.: The Fate of Knowledge, Princeton 2002.
Magee, B., Men of Ideas, New York 1978.
- Confessions of a Philosopher, New York 1999.
Moore, G. E., “What is Philosophy?”, em Some Main Problems of Philosophy, London 1953.
Morris, C., Foundations of the Theory of Signs, Chicago 1970 (1938).
Nielsen, K., “What is Philosophy?”, em History of Philosophy Quarterly 10, n. 4, 1993.
Passmore, J., “Philosophy” in, Paul Edwards (ed.), The Encyclopedia of Philosophy, New York 1967, vol. 6.
Plato, Collected Dialogues, ed. by E. Hamilton e H. Cairns, Princeton 1963.
Popper, K. R., The Logic of Scientific Discovery, London 1959.
- Conjectures and Refutations, N. York 1962.
- The Poverty of Historicism, N. York 1997 (1957).
Price, H. H., ‘Clarity is not Enough’, em H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough: Essays in Criticism of Linguistic Philosophy, London 1963.
Quine, W. V. O., Word and Object, Cambridge 1960.
- “A Letter to Mr. Ostermann” in, C. J. Bontempo & S. J. Odell (eds.), The Owl of Minerva, New York 1975.
- “Epistemology Naturalized”, em H. Kornblith (ed.), Naturalizing Epistemology, Cambridge (MIT) 1994.
Quinton, A., “Philosophy” in, T. Honderich, The Oxford Companion to Philosophy, Oxford 1995.
Reichembach, H., The Rise of Scientific Philosophy, Berkeley 1968.
Reale, G., A History of Ancient Philosophy (translated by J. R. Catan), New York 1987 (4 vols).
Rorty, R. (ed.), The Linguistic Turn: Recent Essays in Philosophical Method, Chicago 1967.
- Philosophy and the Mirror of Nature, London 1979.
Russell, B., Our Knowledge of the External World, New York 1929 (1914).
Ryle, G., “Systematic Misleading Expressions”, em Proceedings of the Aristotelian Society, 32, 1931-2.
Searle, J., “Proper Names”, em Mind 67, 1958.
- Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, New York 1998.
Scharf, R. S., Comte After Positivism, Cambridge 1995.
Schiller, F. C. S., “Must Philosophers Disagree?”, em seu Must Philosophers Disagree? And other Essays in Popular Philosophy, London 1934.
Schlick, M., “The Future of Philosophy”, em R. Rorthy (ed.), The Linguistic Turn: Recent Essays in Philosophical Method, Chicago 1967.
Schmaus, W., “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law”, em History and Theory 21 (2), 1982.
Smart, J. J. C., “The Province of Philosophy” em seu Philosophy and Scientific Realism, London 1963.
- “My Semantic Ascents and Descents”, em C. J. Bontempo & S. J. Odell (eds.), The Owl of Minerva, New York 1975.
Strawson, P. F., “Metaphysics”, em D. F. Pears (ed.), The Nature of Metaphysics, London 1957.
- Individuals, London 1959.
- “Analysis, Science and Metaphysics”, em R. Rorthy (ed.), The Linguistic Turn:Recent Essays in Philosophical Method, Chicago 1967.
- Analysis and Metaphysics: an Introduction to Philosophy, Oxford 1992.
Tugendhat, E., Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophy, Frankfurt 1976.
- “Überlegungen zur Methode der Philosophie aus Analytischer Sicht“, em Philosophische Aufsätze, Frankfurt 1992.
Turgot, A-R-J., Réflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses, Heidelberg 1913 (1750).
Waismann, F., How I See Philosophy? New York 1968.
Wittgenstein, L., Tractatus Logico-Philosophicus, editado e traduzido para o inglês por D. F. Pears and B. F. McGuinness, London 1961.
- The Blue and Brown Books: Preliminary Studies for the Philosophical Investigations, Oxford 1958.
- Philosophische Untersuchungen, Frankfurt 1976. Trad. port.: Investigações Filosóficas, São Paulo 1975.
Wright, G. H. v., “Analytic Philosophy: A Historic-Critical Survey” em seu, The Tree of Knowledge and Other Essays, Leiden 1993.
Ziman, J. M., Public Knowledge: An Essay concerning the social Dimension of Science, London 1968.
- “What is Science?”, em E. D. Klemke, Robert Hollinger & A. D. Kline, Introductory Readings in the Philosophy of Science, New York 1980.
- Real Science, Cambridge 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário