COGITO E LINGUAGEM PRIVADA(*)
Se nada existe além de mim, então eu sou nada.
L. Kolakowski
L. Kolakowski
O argumento de Wittgenstein contra a possibilidade de uma linguagem privada tem sido considerado como trazendo implícita uma crítica devastadora a concepções epistêmicas que tomaram como fundamento do conhecimento a experiência de conteúdos de consciência, ao invés da experiência de objetos externos, intersubjetivamente acessíveis e cuja identificação só é efetivamente corrigível pela intermediação de uma comunidade lingüística. Entre tais concepções, a que mais tem sido objeto de crítica é o fundacionalismo cartesiano, que toma como ponto de partida único para a fundamentação do conhecimento a experiência interna do próprio eu como res cogitans.(1)
A crítica feita com base no argumento de Wittgenstein pode ser assim resumida: no contexto do argumento cartesiano, o eu-pensante é conhecido com certeza, mesmo sob a suposição da inexistência do mundo externo, de outras pessoas, e, portanto, da própria comunidade lingüística; ora, como Wittgenstein parece ter provado que a mediação de uma comunidade lingüística, capaz de produzir e corrigir as regras constitutivas da linguagem, é algo imprescindível a essa última, segue-se daí que o sentido do "eu-pensante" pretendido por Descartes, devendo poder prescindir de tudo isso, não é passível de ser estabelecido, pois não poderia ser sequer articulado em uma linguagem significativa.
A crítica feita com base no argumento de Wittgenstein pode ser assim resumida: no contexto do argumento cartesiano, o eu-pensante é conhecido com certeza, mesmo sob a suposição da inexistência do mundo externo, de outras pessoas, e, portanto, da própria comunidade lingüística; ora, como Wittgenstein parece ter provado que a mediação de uma comunidade lingüística, capaz de produzir e corrigir as regras constitutivas da linguagem, é algo imprescindível a essa última, segue-se daí que o sentido do "eu-pensante" pretendido por Descartes, devendo poder prescindir de tudo isso, não é passível de ser estabelecido, pois não poderia ser sequer articulado em uma linguagem significativa.
Mesmo supondo que o argumento de Wittgenstein seja correto (pois há boas razões para se crer que não seja), penso, ao contrário, que ele não atinge o cerne do argumento de Descartes. No texto que se segue quero tornar essa idéia plausível, sugerindo uma estratégia bastante simples, com a qual o filósofo cartesiano pode anular a objeção. Antes de apresentá-la, porém, quero preparar o caminho, examinando os argumentos de maneira a mostrar com maior acuidade de que modo os resultados do argumento da linguagem privada podem ser criticamente aplicados ao cogito.
1. A SUPERAÇÃO DA DÚVIDA EM DESCARTES
Como é sabido, Descartes chega ao que ele pretende que seja a verdade absolutamente certa através de um método da dúvida radicalizada, o qual consiste em imaginar como sendo falso e inexistente tudo aquilo que pode ser posto em dúvida. Aplicando-o, Descartes "põe entre parênteses", primeiro a existência do mundo externo (que pode não passar de um sonho) e depois mesmo certas verdades da razão, como as verdades matemáticas (pois se por vezes me engano ao calcular, não é impossível que me engane sempre). Para tornar mais evidente a possibilidade do erro, Descartes imagina a existência de um gênio maligno, imensamente poderoso, que aplica toda a sua astúcia em enganá-lo. Se um tal ser existe, é possível que ele faça, por exemplo, com que os cálculos aritméticos produzidos por ele sejam sempre errôneos, e que a eles se siga uma ilusória impressão de que os resultados são corretos e das decorrências práticas disso; é possível também que ele lhe produza a impressão de que o mundo externo seja tal como a sua experiência mostra que ele é, quando na verdade se trata de alguma coisa completamente diversa.
Para tornar tais suposições mais eficazes, é interessante nos valermos de uma versão contemporânea da hipótese do gênio maligno, que é a do cérebro no recipiente. Trata-se da hipótese logicamente possível e que qualquer um de nós pode fazer com relação a si mesmo, de que o sujeito pensante não seja nada mais do que um cérebro, mantido vivo em um recipiente apropriado para tal, ou que nele "esteja". Se eu sou um tal sujeito, então o meu cérebro possui todas as suas conecções nervosas aferentes e eferentes ligadas a eletrodos de um supercomputador, o que produz em mim a ilusão de possuir um corpo que interage com todo um mundo circundante também ilusório, no qual outras pessoas aparentemente se comunicam comigo, tudo isso ligando-se coerentemente às recordações que guardo do passado, este não menos falso que o presente. Na verdade, nada daquilo que tenho até agora experienciado - nem as coisas nem as outras pessoas - existe ou algum dia existiu. O que existe é apenas o meu cérebro no recipiente, o supercomputador, que produz meu mundo ilusório e, suponhamos, os seres destituídos de compaixão que idealizaram tal experimento e que controlam o supercomputador. A hipótese é insólita, mas não é inconcebível, dando plausibilidade à idéia de que é impossível adquirirmos completa certeza de que o mundo externo seja um mundo real(2).
Após ter negado a existência de tudo o que há no mundo, Descartes ainda se pergunta se não resta algo capaz de resistir à mais completa dúvida. E a sua conhecida resposta é a de que há algo que resiste à dúvida, que é o próprio ato de duvidar, e que como o ato de duvidar é um ato de pensar, aquilo que resiste à dúvido é um ato de pensar. Não posso duvidar que penso, pois se duvido, penso. Finalmente, se penso, sei que sou eu que penso, sei que o meu ato de pensar é tido por mim. Em uma fórmula sumária: se duvido, penso, se penso, existo; por conseguinte, não posso duvidar de que eu existo como algo que pensa, ao menos enquanto estou pensando. Mesmo que um gênio maligno possa induzir em mim crenças errôneas, ele não pode através disso impedir-me de pensar. Mesmo que meu cérebro esteja em um recipiente, e que eu esteja sendo em tudo enganado através das simulações do supercomputador, mesmo assim é indubitável que sou eu que estou tendo essas sensações enganosas e esses pensamentos falsos. O cogito, que poderia ser expresso em uma sentença como "Estou pensando, logo eu existo", é a verdade absoluta, o princípio primeiro a partir do qual Descartes irá erigir todo o seu sistema. A certeza da própria existência é no cogito não só absoluta, mas ganha aparentemente a posteriori, com base na experiência do pensar, através de uma intuição cuja negação (digamos: "Estou pensando, mas não existo") realmente não faz sentido.(3).
Para tornar tais suposições mais eficazes, é interessante nos valermos de uma versão contemporânea da hipótese do gênio maligno, que é a do cérebro no recipiente. Trata-se da hipótese logicamente possível e que qualquer um de nós pode fazer com relação a si mesmo, de que o sujeito pensante não seja nada mais do que um cérebro, mantido vivo em um recipiente apropriado para tal, ou que nele "esteja". Se eu sou um tal sujeito, então o meu cérebro possui todas as suas conecções nervosas aferentes e eferentes ligadas a eletrodos de um supercomputador, o que produz em mim a ilusão de possuir um corpo que interage com todo um mundo circundante também ilusório, no qual outras pessoas aparentemente se comunicam comigo, tudo isso ligando-se coerentemente às recordações que guardo do passado, este não menos falso que o presente. Na verdade, nada daquilo que tenho até agora experienciado - nem as coisas nem as outras pessoas - existe ou algum dia existiu. O que existe é apenas o meu cérebro no recipiente, o supercomputador, que produz meu mundo ilusório e, suponhamos, os seres destituídos de compaixão que idealizaram tal experimento e que controlam o supercomputador. A hipótese é insólita, mas não é inconcebível, dando plausibilidade à idéia de que é impossível adquirirmos completa certeza de que o mundo externo seja um mundo real(2).
Após ter negado a existência de tudo o que há no mundo, Descartes ainda se pergunta se não resta algo capaz de resistir à mais completa dúvida. E a sua conhecida resposta é a de que há algo que resiste à dúvida, que é o próprio ato de duvidar, e que como o ato de duvidar é um ato de pensar, aquilo que resiste à dúvido é um ato de pensar. Não posso duvidar que penso, pois se duvido, penso. Finalmente, se penso, sei que sou eu que penso, sei que o meu ato de pensar é tido por mim. Em uma fórmula sumária: se duvido, penso, se penso, existo; por conseguinte, não posso duvidar de que eu existo como algo que pensa, ao menos enquanto estou pensando. Mesmo que um gênio maligno possa induzir em mim crenças errôneas, ele não pode através disso impedir-me de pensar. Mesmo que meu cérebro esteja em um recipiente, e que eu esteja sendo em tudo enganado através das simulações do supercomputador, mesmo assim é indubitável que sou eu que estou tendo essas sensações enganosas e esses pensamentos falsos. O cogito, que poderia ser expresso em uma sentença como "Estou pensando, logo eu existo", é a verdade absoluta, o princípio primeiro a partir do qual Descartes irá erigir todo o seu sistema. A certeza da própria existência é no cogito não só absoluta, mas ganha aparentemente a posteriori, com base na experiência do pensar, através de uma intuição cuja negação (digamos: "Estou pensando, mas não existo") realmente não faz sentido.(3).
2. LIMITAÇÕES DA DÚVIDA IMPOSTAS PELO CONCEITO DE REALIDADE
A discussão acerca do status ontológico-epistêmico do cogito é muito ampla, e não seria necessário nem apropriado introduzi-la aqui (ver nota 3). Quero, no entanto, fazer uma digressão acerca do conceito de realidade objetiva que corrige o nosso entendimento do papel do cogito e que será útil à compreensão do argumento principal.
Descartes parece ter acreditado que o cogito poderia ser pensado, mesmo que nada mais existisse, nem o mundo exterior, nem Deus, nem o gênio maligno; isso é sugerido pelo fato de que hipóteses como a do gênio maligno foram por ele apresentados apenas como um meio de enfatizar o argumento, devendo ser no fundo supérfluas. Quero mostrar, no entanto, que ao sugerir essa possibilidade ele foi longe demais. É razoável a idéia de que o mundo externo possa não ser tal como parece, pois pode ser que eu seja vítima de um gênio maligno ou que eu seja um cérebro no recipiente ou alguma outra coisa do gênero. Mas não posso conceber que não exista absolutamente nada além de mim e de meu pensamento. Pois nesse caso, na falta da suposição do efetivamente real, que possa ser em princípio contrastado com o aparente, como eu poderia dar força à suposição de que o mundo externo não é real?
Esse último ponto exige, para a sua clara compreensão, alguns esclarecimentos acerca dos critérios de aplicação do conceito de realidade. A idéia de uma realidade objetiva, ou seja, de um mundo real, constituído de entidades externas à mente e dotadas de uma realidade própria, depende de certos critérios de realidade, os quais, quando são dados, nos permitem afirmar a sua existência. Eis os que parecem mais importantes:
Descartes parece ter acreditado que o cogito poderia ser pensado, mesmo que nada mais existisse, nem o mundo exterior, nem Deus, nem o gênio maligno; isso é sugerido pelo fato de que hipóteses como a do gênio maligno foram por ele apresentados apenas como um meio de enfatizar o argumento, devendo ser no fundo supérfluas. Quero mostrar, no entanto, que ao sugerir essa possibilidade ele foi longe demais. É razoável a idéia de que o mundo externo possa não ser tal como parece, pois pode ser que eu seja vítima de um gênio maligno ou que eu seja um cérebro no recipiente ou alguma outra coisa do gênero. Mas não posso conceber que não exista absolutamente nada além de mim e de meu pensamento. Pois nesse caso, na falta da suposição do efetivamente real, que possa ser em princípio contrastado com o aparente, como eu poderia dar força à suposição de que o mundo externo não é real?
Esse último ponto exige, para a sua clara compreensão, alguns esclarecimentos acerca dos critérios de aplicação do conceito de realidade. A idéia de uma realidade objetiva, ou seja, de um mundo real, constituído de entidades externas à mente e dotadas de uma realidade própria, depende de certos critérios de realidade, os quais, quando são dados, nos permitem afirmar a sua existência. Eis os que parecem mais importantes:
(i) independência da vontade,
(ii) maior intensidade da experiência,
(iii) co-sensorialidade,
(iv) possibilidade de intersubjetividade,
(v) regularidade em conformidade com
as leis naturais,
(ii) maior intensidade da experiência,
(iii) co-sensorialidade,
(iv) possibilidade de intersubjetividade,
(v) regularidade em conformidade com
as leis naturais,
É fácil evidenciar o papel desses critérios. Sei, por exemplo, que trago no pulso um relógio, e que ele é um elemento constitutivo do mundo externo. Sei que ele é real porque: (i) Não depende de minha vontade fazer com que ele marque as horas ou deixe de fazê-lo, ou que desapareça ou volte a aparecer, como seria o caso se ele fosse um objeto imaginário. (ii) A experiência visual, táctil etc. é muito mais intensa do que seria se eu apenas imaginasse um relógio. (iii) Além disso, a experiência que tenho do relógio é co-sensorial: eu o vejo, toco, ouço..., enquanto uma ilusão restringe-se geralmente a um só sentido. (iv) Toda essa experienciação pode ser intersubjetivamente confirmada: outras pessoas podem ver, tocar e ouvir o mesmo relógio que eu, o que dificilmente ocorreria no caso de uma alucinação. (v) Ao contrário de um relógio imaginário, ele segue as leis e regularidades do mundo físico, o que permite que mova os ponteiros de maneira a marcar as horas etc.
Importante é notar que nenhum desses critérios, nem mesmo a conjunção de todos eles, é um indicador absolutamente seguro da realidade objetiva de algo. Pois é possível imaginar situações nas quais eles estejam presentes sem que a experiência possa ser contada como sendo de uma realidade externa ou objetiva. Afinal, os sonhos são independentes de nossa vontade e mesmo assim não são reais. A intensidade da experiência pode ser muito grande em certos estados patológicos, como o da alucinose alcoólica. A intersubjetividade também poderia ser alucinada, como demonstram certos relatos de uso coletivo de alucinógenos. E mesmo a regularidade segundo leis naturais é concebível, mostram alguns sonhos... A importância da hipótese do cérebro no recipiente está no fato de que ela evidencia a possibilidade de que todos os critérios falhem conjuntamente e por longo, talvez por todo tempo. Se sou um cérebro no recipiente, todos os critérios de realidade me estão sendo dados e apesar disso o mundo que me envolve não é real.
Contudo, e esse é o ponto que merece ser acentuado, sempre que constatamos que esses critérios falharam, nós o fazemos com base em alguma razão. Essa razão pode ser negativa: a ausência da satisfação de alguns critérios de existência, que nos ajuda a identificar casos de sonhos e de alucinações. Mas há sempre também razões positivas, ou seja, a presença de outros critérios - que chamarei de condições de invalidação - os quais tem a função de destruir, de anular a validade dos critérios de realidade normalmente aceitos. Tais condições de invalidação podem ser as mais variadas: pode ser que a pessoa tenha histórico de alcoolismo, e que isso ajude a explicar o caráter alucinatório das cobras e lagartos que ela afirma ter visto, invalidando o critério (ii); pode ser que a pessoa apresente um completo quadro esquizofrênico, o que contribui na anulação do critério (iv)...
Hipóteses como a do gênio maligno e a do cérebro no recipiente ocupam-se de casos nos quais a falência dos critérios de realidade, sendo completa, é diagnosticada exclusivamente com base no aparecimento de condições de invalidação, que precisam ser capazes de anular a totalidade dos critérios de realidade de um sujeito na totalidade das aplicações pregressas do conceito. Posso conceber que em certa manhã eu acorde em um “outro mundo”, no qual possuo um outro corpo, diferente daquele com o qual estou acostumado. Os seres desse outro mundo não se demoram a me explicar que eu havia sido durante todo o tempo por mim recordado tão-somente um cérebro no recipiente, tendo sido todas as minhas vivências pregressas meros resultados de simulações feitas com auxílio de um supercomputador... Ao final (supondo que eu tenha conseguido preservar a sanidade), acabarei por ser convencido de que a minha vida pregressa não havia sido real. Vê-se que o conjunto de todos esses novos fatos e informações constitui critério de invalidação de toda a minha pregressa experiência da realidade, assim como o histórico de alcoolismo era critério de invalidação da pretensão de alguém de ter visto certas cobras e lagartos. O fato de que tudo isso é concebível mostra que condições de invalidação tão poderosas são em princípio constituíveis.
O ponto que quero salientar é que nos casos de invalidação de tudo o que se toma por real, é que tal possibilidade de anulação da aplicação de nossos critérios de realidade só é concebível enquanto também for possível conceber a existência de uma outra realidade, a verdadeira, que nos apresentasse as condições de invalidação necessárias para anular a aplicação das regras criteriais do conceito de realidade até agora aplicadas. Ou seja: o mundo atual só pode ser demonstrado irreal no caso de haver um outro mundo, efetivamente real, que existindo nos ofereça as condições de invalidação capazes de suspender a aplicação que temos feito das regras criteriais para o conceito de realidade. E mesmo nos casos hipotéticos em que também essa nova realidade se demonstrasse ilusória (o cérebro no recipiente que alucina ter sido um cérebro no recipiente...) ou em que as condições de invalidação sejam elas próprias invalidadas (o delírio do homem que pensava ter sido um cérebro no recipiente...), o fato é que sempre é necessária a admissão da existência de um mundo real que sirva de modelo ao qual a aplicação efetiva das regras criteriais do conceito de realidade possa ser suposta.
A conclusão a que chegamos é que é absurdo supor que absolutamente nada existe fora do eu-pensante, uma vez que nesse caso não será possível entender como o mundo exterior e real pode deixar de ser admitido como tal. A hipótese de que o mundo exterior seja mera aparência só faz sentido quando sustentada pela hipótese da existência de algo além do sujeito consciente, de algo que possa fornecer critérios capazes de justificar que o mundo exterior é mera aparência. Mais ainda: esse algo exterior não pode ser completamente diverso do que atualmente experienciamos como sendo o mundo exterior, ao menos não a ponto de não ser mais capaz de nos oferecer as condições capazes de anular a aplicação de nossos usuais critérios de realidade. É necessário que possamos ao menos reconhecê-lo como sendo "um mundo".
Eis como podemos esquematizar esses resultados. Simbolizando com R a atribuição de realidade, com a o mundo atual e com c um mundo diverso do atual, que lhe sirva de contraste, podemos afirmar: "~Ra -> Rc". Ou seja: negar a realidade do mundo atual implica em afirmar a realidade de um mundo que lhe sirva de contraste. Por outro lado, afirmar que o mundo atual tem a possibilidade de não ser real implica admitir também a possibilidade da existência de um mundo que lhe possa servir de contraste. Simbolizando ‘É possível que...‘ por 'P', temos: “P~a -> PRc". Como conseqüência disso tornam-se impossíveis afirmações como "~Ra & ~Rc" e “P (~Ra & ~Rc)”, ambas aparentemente admitidas no argumento cartesiano.
Em resumo: argumentos como o do cogito não têm força para provar que é possível que absolutamente nada exista fora do eu pensante. Tudo o que eles são capazes de mostrar é que o mundo externo pode ser um outro, talvez profundamente diverso daquele que conhecemos, ainda que não demasiado diverso.
Importante é notar que nenhum desses critérios, nem mesmo a conjunção de todos eles, é um indicador absolutamente seguro da realidade objetiva de algo. Pois é possível imaginar situações nas quais eles estejam presentes sem que a experiência possa ser contada como sendo de uma realidade externa ou objetiva. Afinal, os sonhos são independentes de nossa vontade e mesmo assim não são reais. A intensidade da experiência pode ser muito grande em certos estados patológicos, como o da alucinose alcoólica. A intersubjetividade também poderia ser alucinada, como demonstram certos relatos de uso coletivo de alucinógenos. E mesmo a regularidade segundo leis naturais é concebível, mostram alguns sonhos... A importância da hipótese do cérebro no recipiente está no fato de que ela evidencia a possibilidade de que todos os critérios falhem conjuntamente e por longo, talvez por todo tempo. Se sou um cérebro no recipiente, todos os critérios de realidade me estão sendo dados e apesar disso o mundo que me envolve não é real.
Contudo, e esse é o ponto que merece ser acentuado, sempre que constatamos que esses critérios falharam, nós o fazemos com base em alguma razão. Essa razão pode ser negativa: a ausência da satisfação de alguns critérios de existência, que nos ajuda a identificar casos de sonhos e de alucinações. Mas há sempre também razões positivas, ou seja, a presença de outros critérios - que chamarei de condições de invalidação - os quais tem a função de destruir, de anular a validade dos critérios de realidade normalmente aceitos. Tais condições de invalidação podem ser as mais variadas: pode ser que a pessoa tenha histórico de alcoolismo, e que isso ajude a explicar o caráter alucinatório das cobras e lagartos que ela afirma ter visto, invalidando o critério (ii); pode ser que a pessoa apresente um completo quadro esquizofrênico, o que contribui na anulação do critério (iv)...
Hipóteses como a do gênio maligno e a do cérebro no recipiente ocupam-se de casos nos quais a falência dos critérios de realidade, sendo completa, é diagnosticada exclusivamente com base no aparecimento de condições de invalidação, que precisam ser capazes de anular a totalidade dos critérios de realidade de um sujeito na totalidade das aplicações pregressas do conceito. Posso conceber que em certa manhã eu acorde em um “outro mundo”, no qual possuo um outro corpo, diferente daquele com o qual estou acostumado. Os seres desse outro mundo não se demoram a me explicar que eu havia sido durante todo o tempo por mim recordado tão-somente um cérebro no recipiente, tendo sido todas as minhas vivências pregressas meros resultados de simulações feitas com auxílio de um supercomputador... Ao final (supondo que eu tenha conseguido preservar a sanidade), acabarei por ser convencido de que a minha vida pregressa não havia sido real. Vê-se que o conjunto de todos esses novos fatos e informações constitui critério de invalidação de toda a minha pregressa experiência da realidade, assim como o histórico de alcoolismo era critério de invalidação da pretensão de alguém de ter visto certas cobras e lagartos. O fato de que tudo isso é concebível mostra que condições de invalidação tão poderosas são em princípio constituíveis.
O ponto que quero salientar é que nos casos de invalidação de tudo o que se toma por real, é que tal possibilidade de anulação da aplicação de nossos critérios de realidade só é concebível enquanto também for possível conceber a existência de uma outra realidade, a verdadeira, que nos apresentasse as condições de invalidação necessárias para anular a aplicação das regras criteriais do conceito de realidade até agora aplicadas. Ou seja: o mundo atual só pode ser demonstrado irreal no caso de haver um outro mundo, efetivamente real, que existindo nos ofereça as condições de invalidação capazes de suspender a aplicação que temos feito das regras criteriais para o conceito de realidade. E mesmo nos casos hipotéticos em que também essa nova realidade se demonstrasse ilusória (o cérebro no recipiente que alucina ter sido um cérebro no recipiente...) ou em que as condições de invalidação sejam elas próprias invalidadas (o delírio do homem que pensava ter sido um cérebro no recipiente...), o fato é que sempre é necessária a admissão da existência de um mundo real que sirva de modelo ao qual a aplicação efetiva das regras criteriais do conceito de realidade possa ser suposta.
A conclusão a que chegamos é que é absurdo supor que absolutamente nada existe fora do eu-pensante, uma vez que nesse caso não será possível entender como o mundo exterior e real pode deixar de ser admitido como tal. A hipótese de que o mundo exterior seja mera aparência só faz sentido quando sustentada pela hipótese da existência de algo além do sujeito consciente, de algo que possa fornecer critérios capazes de justificar que o mundo exterior é mera aparência. Mais ainda: esse algo exterior não pode ser completamente diverso do que atualmente experienciamos como sendo o mundo exterior, ao menos não a ponto de não ser mais capaz de nos oferecer as condições capazes de anular a aplicação de nossos usuais critérios de realidade. É necessário que possamos ao menos reconhecê-lo como sendo "um mundo".
Eis como podemos esquematizar esses resultados. Simbolizando com R a atribuição de realidade, com a o mundo atual e com c um mundo diverso do atual, que lhe sirva de contraste, podemos afirmar: "~Ra -> Rc". Ou seja: negar a realidade do mundo atual implica em afirmar a realidade de um mundo que lhe sirva de contraste. Por outro lado, afirmar que o mundo atual tem a possibilidade de não ser real implica admitir também a possibilidade da existência de um mundo que lhe possa servir de contraste. Simbolizando ‘É possível que...‘ por 'P', temos: “P~a -> PRc". Como conseqüência disso tornam-se impossíveis afirmações como "~Ra & ~Rc" e “P (~Ra & ~Rc)”, ambas aparentemente admitidas no argumento cartesiano.
Em resumo: argumentos como o do cogito não têm força para provar que é possível que absolutamente nada exista fora do eu pensante. Tudo o que eles são capazes de mostrar é que o mundo externo pode ser um outro, talvez profundamente diverso daquele que conhecemos, ainda que não demasiado diverso.
3. O ARGUMENTO DA LINGUAGEM PRIVADA
Passemos agora ao argumento de Wittgenstein contra a linguagem privada. Esse argumento parte do pressuposto de que falar uma linguagem - ou pensar um pensamento - é uma atividade de seguir regras, pretendendo-se com ele ter demonstrado que uma linguagem que designa eventos exclusivamente mentais - uma linguagem privada - não pode ser realmente construída, posto que suas regras não podem ser corrigidas, e que não há sentido em se falar de regras que não podem ser corrigidas.
Antes de introduzir o argumento, é instrutivo nos perguntarmos como aprendemos as regras para o uso de palavras pertencentes à linguagem fisicalista, que nos permitem identificar objetos físicos. Em geral aprendemos tais regras de forma não-cognitiva na infância, em uma praxis lingüística intersubjetiva, na qual nos são apresentados objetos que devemos identificar. Se outras pessoas concordam com uma criança sempre que ela diz que algo é (ou não é) uma bola, então é porque ela aprendeu a regra de identificação dessa espécie de objeto, sabendo, pois, o que é uma bola. O critério de correção de uma regra que identifica um tipo de objeto através de uma palavra é, ao final, a concordância de outros participantes da comunidade lingüística quanto à sua aplicação. Isso não é problemático no que diz respeito a objetos físicos, intersubjetivamente acessíveis. Mas parece tornar-se problemático quando os objetos em questão são eventos ou estados mentais.
O argumento central de Wittgenstein contra a linguagem privada consiste na seguinte experiência em pensamento(4). Suponhamos que uma pessoa decida criar uma linguagem referente a estados mentais em completa independência da nossa linguagem pública. Para tal, ela precisa estabelecer privadamente as regras para a identificação de seus estados mentais. Como ela o faria? Ora, ela poderia começar associando um signo, digamos D, com um certo evento mental seu (o que poderia ser uma dor), o qual chamaremos de x. Com isso a pessoa concentra a sua atenção para fixar a regra de identificação, ou seja, uma certa associação entre um estado mental x a um signo, digamos, D. Digamos que x ocorra uma segunda vez: nesse caso, já tendo fixado a regra, a pessoa poderá identificar x outra vez como sendo do tipo D, e assim por diante. A pergunta que Wittgenstein faz então é crucial para a compreensão do argumento. Como é possível que a pessoa saiba que a palavra D está sendo usada da mesma maneira? Como a pessoa pode saber que não está apenas tendo a impressão de que em outras aplicações privadas de D ela reconheceu o mesmo x que havia identificado da primeira vez? O que garante que a pessoa não possa estar tendo a impressão de que o estado mental seja o mesmo, quando na verdade é algo completamente diferente ou talvez mesmo coisa alguma? Se se tratasse de uma linguagem sobre objetos físicos, isso não seria problemático: se a pessoa viesse a identificar de maneira incorreta, outros poderiam corrigi-la. Mas isso é aqui impossível. A conclusão é a de que em uma linguagem privada não há critério de correção. Qualquer coisa que nos pareça exemplificar D, será um D. Nessa linguagem não podemos distinguir regras de impressões de regras, o que para Wittgenstein equivale a dizer que não podemos construir uma tal linguagem: uma linguagem acerca de nossos estados mentais realmente privados e independente de uma linguagem pública é impossível.
Esse resultado não fica limitado ao significado das palavras; ele deve ser também estendido aos juízos e pensamentos acerca dos estados mentais, pois também aqui poderia ocorrer a questão de sua corrigibilidade. Tais atos atos de consciência só são corrigíveis em sua pretensão de verdade enquanto articuláveis em uma linguagem pública, e se em princípio isso não puder ser feito, então eles também não serão possíveis.
Mas então, como é possível a existência, em nossa linguagem natural, geralmente fisicalista, de uma sublinguagem fenomenalista ou mentalista, com a qual parecemos falar de estados mentais privados, como sensações, emoções, sentimentos, imagens mentais e atos de pensamento? Frente a essa questão, o proponente do argumento da linguagem privada passa para a defensiva.
Antes de introduzir o argumento, é instrutivo nos perguntarmos como aprendemos as regras para o uso de palavras pertencentes à linguagem fisicalista, que nos permitem identificar objetos físicos. Em geral aprendemos tais regras de forma não-cognitiva na infância, em uma praxis lingüística intersubjetiva, na qual nos são apresentados objetos que devemos identificar. Se outras pessoas concordam com uma criança sempre que ela diz que algo é (ou não é) uma bola, então é porque ela aprendeu a regra de identificação dessa espécie de objeto, sabendo, pois, o que é uma bola. O critério de correção de uma regra que identifica um tipo de objeto através de uma palavra é, ao final, a concordância de outros participantes da comunidade lingüística quanto à sua aplicação. Isso não é problemático no que diz respeito a objetos físicos, intersubjetivamente acessíveis. Mas parece tornar-se problemático quando os objetos em questão são eventos ou estados mentais.
O argumento central de Wittgenstein contra a linguagem privada consiste na seguinte experiência em pensamento(4). Suponhamos que uma pessoa decida criar uma linguagem referente a estados mentais em completa independência da nossa linguagem pública. Para tal, ela precisa estabelecer privadamente as regras para a identificação de seus estados mentais. Como ela o faria? Ora, ela poderia começar associando um signo, digamos D, com um certo evento mental seu (o que poderia ser uma dor), o qual chamaremos de x. Com isso a pessoa concentra a sua atenção para fixar a regra de identificação, ou seja, uma certa associação entre um estado mental x a um signo, digamos, D. Digamos que x ocorra uma segunda vez: nesse caso, já tendo fixado a regra, a pessoa poderá identificar x outra vez como sendo do tipo D, e assim por diante. A pergunta que Wittgenstein faz então é crucial para a compreensão do argumento. Como é possível que a pessoa saiba que a palavra D está sendo usada da mesma maneira? Como a pessoa pode saber que não está apenas tendo a impressão de que em outras aplicações privadas de D ela reconheceu o mesmo x que havia identificado da primeira vez? O que garante que a pessoa não possa estar tendo a impressão de que o estado mental seja o mesmo, quando na verdade é algo completamente diferente ou talvez mesmo coisa alguma? Se se tratasse de uma linguagem sobre objetos físicos, isso não seria problemático: se a pessoa viesse a identificar de maneira incorreta, outros poderiam corrigi-la. Mas isso é aqui impossível. A conclusão é a de que em uma linguagem privada não há critério de correção. Qualquer coisa que nos pareça exemplificar D, será um D. Nessa linguagem não podemos distinguir regras de impressões de regras, o que para Wittgenstein equivale a dizer que não podemos construir uma tal linguagem: uma linguagem acerca de nossos estados mentais realmente privados e independente de uma linguagem pública é impossível.
Esse resultado não fica limitado ao significado das palavras; ele deve ser também estendido aos juízos e pensamentos acerca dos estados mentais, pois também aqui poderia ocorrer a questão de sua corrigibilidade. Tais atos atos de consciência só são corrigíveis em sua pretensão de verdade enquanto articuláveis em uma linguagem pública, e se em princípio isso não puder ser feito, então eles também não serão possíveis.
Mas então, como é possível a existência, em nossa linguagem natural, geralmente fisicalista, de uma sublinguagem fenomenalista ou mentalista, com a qual parecemos falar de estados mentais privados, como sensações, emoções, sentimentos, imagens mentais e atos de pensamento? Frente a essa questão, o proponente do argumento da linguagem privada passa para a defensiva.
4. EXPLICAÇÕES INTERSUBJETIVISTAS DA
LINGUAGEM MENTALISTA
Para explicar o fato da existência de uma linguagem mentalista, uma posição paradigmática foi a do behaviorismo analítico ou lógico (uma posição em maior ou menor medida representada por G. Ryle, C. G. Hempel e R. Carnap). O behaviorista analítico nega que sejamos realmente capazes de falar e fazer referência a estados mentais. Para ele, os termos mentalistas apenas aparentam referir-se a algo subjetivo, quando na verdade se referem somente a comportamentos ou disposições comportamentais. A palavra 'dor', por exemplo, deveria referir-se a certos tipos de comportamento, como o de gemer de dor, o contorcer-se etc.; ou então ela se refere à disposição de, em certas circunstâncias definidas, demonstrar tais comportamentos. O mesmo se aplica a termos menos comodamente relacionáveis ao comportamento, como 'pensamento' e 'eu'. Dizemos que uma pessoa pensa, quando ela realiza certas ações ditas racionais, ou quando temos razões para crer que pode realizá-las; e isso deve ser o próprio pensamento. A palavra 'eu', por sua vez, poderia referir-se a coisas como um corpo humano com certas características observáveis, a comportamentos desse corpo, a disposições comportamentais próprias desse corpo, as quais em circunstâncias adequadas se fariam observáveis, e nada mais. Pretender que palavras como 'eu' e 'pensamento' se refiram a mais do que isso seria, para o behaviorista analítico, sinal de um preconceito subjetivista.
Wittgenstein na verdade se recusa a acompanhar o behaviorista. Para ele existem dores, pensamentos e sujeitos que não podem ser confundidos com as suas manifestações comportamentais. Mas se ele resiste ao behaviorismo, o que faz diante do problema? A sua tentativa de solucioná-lo é um quasi-behaviorismo, obscuro e programático. Para ele estados mentais existem, mas são logicamente inseparáveis dos critérios de identificação externos. Ele acredita que a nossa sublinguagem mentalista apenas parece referir-se a eventos mentais privados, não contendo realmente regras capazes de identificá-los. Ele sugere que certos termos mentalistas tenham uma função expressiva: uma palavra como 'dor' expressa a dor, escreve Wittgenstein, substituindo o grito de dor(5). E ele também observa que "'Processos internos' exigem critérios externos"(6), enfatizando corretamente a necessidade da intermediação de critérios comportamentais intersubjetivos para a aquisição e domínio de nossa linguagem mentalista. (Com efeito, é um fato empírico inquestionável que nós aprendemos o uso de termos mentalistas recorrendo à mediação das outras pessoas, que relacionam os comportamentos ao uso correto das palavras. Ainda assim, é muito difícil resistir a nossa tendência natural de considerar o recurso a critérios externos como um mero momento preparatório - empiricamente necessário para nós, humanos - para a constituição de regras que facultam a suposta identificação introspectiva da dor, dos atos de pensamento, ou de nós mesmos como o teatro no qual esses fenômenos ocorrem.)
Ambas as alternativas descritas acima são problemáticas. O behaviorismo analítico é profundamente anti-intuitivo: parece claro que quando alguém fala de sua dor, fala da dor que deveras sente e não de seus gemidos ou do fato de que em certas circunstâncias por-se-ia a gritar; e quando dizemos que alguém está pensando, não parece que nos referimos ao fato da pessoa franzir as sobrancelhas ou a suas possíveis ações futuras. A solução programática de Wittgenstein continua ainda hoje questionável, mesmo após outros filósofos terem se esforçado por desenvolvê-la(7). Há muito mais a ser considerado sobre essas questões, mas discuti-lo levar-nos-ia demasiado longe do que queremos investigar. Quis apenas mostrar que há conseqüências problemáticas que se seguem do argumento de Wittgenstein, e que elas não nos encorajam a confiarmos nele(8).
Wittgenstein na verdade se recusa a acompanhar o behaviorista. Para ele existem dores, pensamentos e sujeitos que não podem ser confundidos com as suas manifestações comportamentais. Mas se ele resiste ao behaviorismo, o que faz diante do problema? A sua tentativa de solucioná-lo é um quasi-behaviorismo, obscuro e programático. Para ele estados mentais existem, mas são logicamente inseparáveis dos critérios de identificação externos. Ele acredita que a nossa sublinguagem mentalista apenas parece referir-se a eventos mentais privados, não contendo realmente regras capazes de identificá-los. Ele sugere que certos termos mentalistas tenham uma função expressiva: uma palavra como 'dor' expressa a dor, escreve Wittgenstein, substituindo o grito de dor(5). E ele também observa que "'Processos internos' exigem critérios externos"(6), enfatizando corretamente a necessidade da intermediação de critérios comportamentais intersubjetivos para a aquisição e domínio de nossa linguagem mentalista. (Com efeito, é um fato empírico inquestionável que nós aprendemos o uso de termos mentalistas recorrendo à mediação das outras pessoas, que relacionam os comportamentos ao uso correto das palavras. Ainda assim, é muito difícil resistir a nossa tendência natural de considerar o recurso a critérios externos como um mero momento preparatório - empiricamente necessário para nós, humanos - para a constituição de regras que facultam a suposta identificação introspectiva da dor, dos atos de pensamento, ou de nós mesmos como o teatro no qual esses fenômenos ocorrem.)
Ambas as alternativas descritas acima são problemáticas. O behaviorismo analítico é profundamente anti-intuitivo: parece claro que quando alguém fala de sua dor, fala da dor que deveras sente e não de seus gemidos ou do fato de que em certas circunstâncias por-se-ia a gritar; e quando dizemos que alguém está pensando, não parece que nos referimos ao fato da pessoa franzir as sobrancelhas ou a suas possíveis ações futuras. A solução programática de Wittgenstein continua ainda hoje questionável, mesmo após outros filósofos terem se esforçado por desenvolvê-la(7). Há muito mais a ser considerado sobre essas questões, mas discuti-lo levar-nos-ia demasiado longe do que queremos investigar. Quis apenas mostrar que há conseqüências problemáticas que se seguem do argumento de Wittgenstein, e que elas não nos encorajam a confiarmos nele(8).
5. RAZÕES PELAS QUAIS SE PENSA QUE O ARGUMENTO
DE WITTGENSTEIN REFUTA O COGITO
Tendo em mente as considerações feitas até aqui, podemos agora comparar as conclusões de Descartes com as de Wittgenstein de modo mais perspícuo. Elas têm sido consideradas incompatíveis entre si, penso que por duas razões, as quais não costumam ser suficientemente explicitadas.
(a) A primeira razão é bastante óbvia e concerne à auto-interpretação de Descartes. Ele certamente concebeu o cogito como sendo um processo interno e privado: ele não conhecia e com certeza não aceitaria (ao meu ver com razão) o quasi-behaviorismo lingüístico de Wittgenstein, que sugere ser a linguagem mentalista uma espécie de “decalque” feito sobre a linguagem fisicalista. Essa é, porém, uma objeção trivial e externa. Ela não se aplica mais a Descartes do que a Locke, Kant, Husserl ou a qualquer filósofo que admita uma linguagem mentalista relativa a estados mentais introspectivamente acessíveis, ou seja, a quase todos eles. Ela não se dirige à lógica interna do argumento cartesiano, sendo por isso em si mesmo insuficiente para justificar a escolha específica do cogito.
(b) A segunda razão é a que importa; ela é a razão profunda e insuficientemente tematizada, que realmente justifica a associação entre os argumentos de Wittgenstein e Descartes. Com efeito, ela parece atingir em cheio o próprio argumento de Descartes, tornando-o um caso especial. Eis como podemos formulá-la: o cogito só é uma verdade acima de todas as possibilidades de engano se ele puder ser verdadeiro, mesmo no caso em que o mundo externo não exista da maneira como o conhecemos, não existindo os nossos corpos, nem outras pessoas que falam uma linguagem, nem uma comunidade lingüística. Mas nesse caso eu não posso ter critérios externos para os meus "processos internos". Nesse caso a afirmação cartesiana de que eu sou um ser pensante precisa poder ser formulada em uma linguagem privadamente construída; palavras como 'pensar', 'duvidar', 'eu', 'existir', que ocorrem na formulação do cogito, precisam ser capazes de fazer sentido mesmo em uma linguagem privada, cujas regras de identificação não são corrigíveis através de critérios comportamentais intersubjetivamente acessíveis. E ainda que o cogito pudesse ser pensado sem recurso à linguagem pública, ele precisaria ao menos poder ser colocado nas palavras de uma linguagem privada. Ora, o argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada teria demonstrado é que nada disso é possível. Logo, se ele for correto, então o cogito é logicamente indizível e, por conseqüência, também impensável.
Essas são, pois, as duas razões pelas quais geralmente se crê que, no caso de Wittgenstein estar certo, o cogito cartesiano é um absurdo subjetivista. A primeira razão é efetiva, caso o argumento de Wittgenstein for correto; mas ela não possui qualquer interesse intrínseco, na medida em que toma como referência a mera opinião de Descartes, podendo ser aplicada com a mesma força a qualquer outra filosofia da consciência. É a segunda razão que faz do cogito um caso especial, ao apontar para uma impossibilidade intrínseca ao argumento. Penso, contudo, que ela pode ser neutralizada se conseguirmos demonstrar que é possível aprendermos a nossa linguagem mentalista intersubjetivamente, mesmo no caso dessa intersubjetividade não ser real! Isso pode parecer paradoxal, mas é tornado plausível pelo argumento desenvolvido a seguir.
(a) A primeira razão é bastante óbvia e concerne à auto-interpretação de Descartes. Ele certamente concebeu o cogito como sendo um processo interno e privado: ele não conhecia e com certeza não aceitaria (ao meu ver com razão) o quasi-behaviorismo lingüístico de Wittgenstein, que sugere ser a linguagem mentalista uma espécie de “decalque” feito sobre a linguagem fisicalista. Essa é, porém, uma objeção trivial e externa. Ela não se aplica mais a Descartes do que a Locke, Kant, Husserl ou a qualquer filósofo que admita uma linguagem mentalista relativa a estados mentais introspectivamente acessíveis, ou seja, a quase todos eles. Ela não se dirige à lógica interna do argumento cartesiano, sendo por isso em si mesmo insuficiente para justificar a escolha específica do cogito.
(b) A segunda razão é a que importa; ela é a razão profunda e insuficientemente tematizada, que realmente justifica a associação entre os argumentos de Wittgenstein e Descartes. Com efeito, ela parece atingir em cheio o próprio argumento de Descartes, tornando-o um caso especial. Eis como podemos formulá-la: o cogito só é uma verdade acima de todas as possibilidades de engano se ele puder ser verdadeiro, mesmo no caso em que o mundo externo não exista da maneira como o conhecemos, não existindo os nossos corpos, nem outras pessoas que falam uma linguagem, nem uma comunidade lingüística. Mas nesse caso eu não posso ter critérios externos para os meus "processos internos". Nesse caso a afirmação cartesiana de que eu sou um ser pensante precisa poder ser formulada em uma linguagem privadamente construída; palavras como 'pensar', 'duvidar', 'eu', 'existir', que ocorrem na formulação do cogito, precisam ser capazes de fazer sentido mesmo em uma linguagem privada, cujas regras de identificação não são corrigíveis através de critérios comportamentais intersubjetivamente acessíveis. E ainda que o cogito pudesse ser pensado sem recurso à linguagem pública, ele precisaria ao menos poder ser colocado nas palavras de uma linguagem privada. Ora, o argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada teria demonstrado é que nada disso é possível. Logo, se ele for correto, então o cogito é logicamente indizível e, por conseqüência, também impensável.
Essas são, pois, as duas razões pelas quais geralmente se crê que, no caso de Wittgenstein estar certo, o cogito cartesiano é um absurdo subjetivista. A primeira razão é efetiva, caso o argumento de Wittgenstein for correto; mas ela não possui qualquer interesse intrínseco, na medida em que toma como referência a mera opinião de Descartes, podendo ser aplicada com a mesma força a qualquer outra filosofia da consciência. É a segunda razão que faz do cogito um caso especial, ao apontar para uma impossibilidade intrínseca ao argumento. Penso, contudo, que ela pode ser neutralizada se conseguirmos demonstrar que é possível aprendermos a nossa linguagem mentalista intersubjetivamente, mesmo no caso dessa intersubjetividade não ser real! Isso pode parecer paradoxal, mas é tornado plausível pelo argumento desenvolvido a seguir.
6. POR QUE O ARGUMENTO DE WITTGENSTEIN NÃO
REFUTA A LÓGICA INTERNA DO COGITO
Quero agora esboçar uma objeção que, se for correta, mostra que a crítica feita ao cogito com base no argumento de Wittgenstein não é incontornável.
Suponhamos que Wittgenstein esteja certo, que a linguagem, mesmo a linguagem mentalista, seja explicável de um modo quasi-behaviorista, dependendo sempre, ao final, de critérios externos, intersubjetivos. Ora, mesmo com esse pressuposto, não parece impossível se chegar a uma conclusão que equivale perfeitamente à do cogito cartesiano. É perfeitamente concebível que eu seja, digamos, um cérebro em um recipiente, e que todo o mundo externo me esteja sendo simulado pelo supercomputador. Mas então o supercomputador simula também outras pessoas que não são reais e que falam uma linguagem que só existe em minha própria mente. Ora, com isso se constitui também uma comunidade lingüística, pouco importando que esta seja mero produto de uma simulação; uma comunidade lingüística virtual, através da qual aprendo e corrijo as regras da minha linguagem, aplicando-as a um suposto mundo externo, também ele virtual. Ainda que se trate de uma comunidade lingüística simulada, pode ser argumentado que, havendo possibilidade de correção intersubjetiva e independente de minha vontade, as condições para que eu possua uma linguagem constituída de regras, compreendidas como sistematicamente capazes de correção, não deixam de ser satisfeitas! Não importa sequer se, fora do jogo de aparências que me é simulado, essas regras são concebidas (digamos, por uma conclusão intersubjetivamente alcançada entre os cientistas que controlam o computador) como não tendo sido realmente aplicadas: o critério de correção, que é a concordância intersubjetiva (virtual), está sendo coerente e sistematicamente satisfeito, e é isso o que faz dele um critério de correção. Posso, pois, aprender regras para o uso de palavras como 'pensamento', 'existência', 'eu', com base em critérios externos, comportamentais, fornecidos e intersubjetivamente corrigidos pelos membros de uma comunidade lingüística, mesmo que nada disso seja real. E isso basta para, apoiando-me em critérios que concebo como sendo externos, concluir que eu penso, que eu existo, ou seja, que eu sou um ser pensante, o que será verdadeiro e fará sentido, mesmo que toda a suposta realidade externa seja virtual.
É verdade que esse cogito precisa ser aqui interpretado em termos quasi-behavioristas, baseado como é em comportamentos, ainda que completamente virtuais (a linguagem que o exprime seria fundada na intersubjetividade comportamental, como ordenam os princípios behavioristas, com a adição do detalhe de que tal intersubjetividade é aqui completamente imaginária). Mas como essa compreensão do cogito preserva as suas virtudes sistemáticas ao mostrar que é capaz de provar tudo o que o cogito cartesiano precisava essencialmente provar, essa é uma admissão sem maiores conseqüências. Finalmente, esse raciocínio mostra que nossa admissão de senso comum, de que uma exigência empírica para o aprendizado de nossa linguagem mentalista é o recurso provisório a critérios comportamentais externos, pode ser preservada sem que as conseqüências do argumento do cogito deixem de ser essencialmente corretas.
O recurso a instâncias de correção aparentes soa anti-wittgensteiniano. Por isso, insistindo na tese de que o argumento de Wittgenstein destrói a coerência do cogito, alguém poderia levantar a seguinte objeção: pelo próprio argumento da linguagem privada, as regras da linguagem do cérebro no recipiente devem ser meras impressões de regra, pois o caso é análogo ao de uma pessoa que aprende a sua linguagem através de um sonho no qual imagina outras pessoas corrigindo as suas aplicações das regras, sem saber que está imaginando. Instâncias de correção virtuais de nada servem, pois nada corrigem. O cérebro no recipiente não poderá, pois, adquirir uma linguagem, e assim também o eu cartesiano, no caso de o mundo onde o eu pensante se encontra não ser real.
Contudo, é fácil mostrar que esse argumento é de um tipo autodestrutivo. Para tal, suponhamos que ele seja correto. Como é sempre possível que eu seja um cérebro no recipiente, então também é sempre possível que eu não tenha uma linguagem intersubjetiva, na qual articulo os meus pensamentos. Mas isso é absurdo: não posso conceber que eu possa não estar pensando, falando comigo mesmo, em uma linguagem. Assim, se rejeitamos a possibilidade do aprendizado de uma linguagem através de aplicações virtuais de regras, devemos então admitir uma intolerável extensão do argumento da linguagem privada à linguagem fisicalista básica, que resulta na negação da própria certeza de que estejamos pensando através de uma linguagem!
O mesmo ponto pode ser também aproximado pela consideração do fato de que posso perfeitamente imaginar que eu tenha sido em toda a minha vida um cérebro no recipiente, e que um dia tenha a oportunidade de descobrir que isso é verdade, digamos, após ter sido implantado na calota craniana de um monstrengo interplanetário. Contudo, nada indica que isso me impedirá de continuar admitindo que a linguagem que eu pensava falar em minha existência pregressa era uma linguagem determinada por regras e perfeitamente coerente enquanto tal. A linguagem que aprendi, mesmo que com base em critérios aparentes, será considerada sempre uma linguagem, ainda que eu venha a reconhecer que ela tem sido aplicada a situações fictícias. E tanto eu quanto os seres que controlam o supercomputador teremos de admitir que, mesmo enquanto eu era um cérebro no recipiente, enganado por tudo e por todos, é verdade que eu era eu e que eu pensava; e que eu pensava em uma linguagem, seguindo as suas regras, mesmo quando todas as minhas outras crenças eram falsas.
A situação que acabo de apresentar pode ser tornada mais convincente se a compararmos com outra, mais trivial, mas em certa medida análoga. Suponhamos que alguém aprende a pilotar um avião em uma cabine de simulação de vôo, sendo o seu aprendizado controlado e corrigido "intersubjetivamente" por meio dos computadores e gravações do simulador, que lhe avisam quando ele comete erros. Sendo a simulação praticamente perfeita, esse treinamento permite que mais tarde, em uma situação real, a pessoa seja capaz de aplicar o que aprendeu de imediato, sem dificuldades. No entanto, é claro que as regras aplicadas, que, tanto nas situações reais quanto nas situações simuladas podem ser consideradas as mesmas, não deixavam de ser regras quando eram aplicadas em situações de realidade simulada. O fato delas poderem ser aplicadas e reaplicadas coerentemente, o fato de serem "intersubjetivamente" corrigíveis, através de instâncias independentes, é o que em ambos os casos lhes assegura o caráter de regras. Apenas em um ponto esse experimento, como o anterior, nos conduz de volta a Wittgenstein: só podemos falar de uma intersubjetividade virtual coerente na medida que for possível corrigir as suas regras por meio de uma intersubjetividade real que a inclui e independe dela; no caso do cérebro no recipiente, trata-se da intersubjetividade dos seres que controlam o computador; no caso da simulação de vôo, trata-se da intersubjetividade em um contexto de pessoas e fatos reais. Também por isso não faz sentido conceber um "Eu-pensante" inteiramente solipsista sem supor a existência de algo além dele, responsável por uma intersubjetividade possível, quer seja resultante de um gênio maligno, dos cientistas que controlam o supercomputador, ou seja lá do que for.
Essas experiências hipotéticas sugerem o seguinte: mesmo que aceitemos o argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada, há um meio de salvar o cogito de uma aplicação destrutiva do argumento. Para tal, basta reinterpretá-lo no interior de uma explicação quasi-behaviorista do funcionamento de nossa linguagem mentalista, mostrando então que uma situação como aquela na qual o cogito é afirmado é concebível, mesmo sob a suposição de que o mundo externo e a comunidade lingüística nos estejam sendo simuladas e que tenham uma existência meramente ficcional. Uma linguagem dependente da intersubjetividade comportamental é compatível, se não com a completa inexistência do mundo externo, ao menos com a inexistência do mundo externo, tal como acreditamos conhecê-lo. Se é assim, então o argumento de Wittgenstein não atinge essencialmente a espécie de certeza expressa pelo cogito, e a impressão de que não deva ser assim é um equívoco resultante de uma consideração superficial da questão.
Não estou certo de que o meu argumento tenha sido suficientemente claro ou convincente. A razão, para mim, é simples. É que é difícil obter clareza e conclusividade quando se raciocina com base em um número considerável de pressupostos vagos e incertos. E a tese de Wittgenstein, com as suas incômodas conseqüências contra-intuitivas, encontra-se entre eles.
Suponhamos que Wittgenstein esteja certo, que a linguagem, mesmo a linguagem mentalista, seja explicável de um modo quasi-behaviorista, dependendo sempre, ao final, de critérios externos, intersubjetivos. Ora, mesmo com esse pressuposto, não parece impossível se chegar a uma conclusão que equivale perfeitamente à do cogito cartesiano. É perfeitamente concebível que eu seja, digamos, um cérebro em um recipiente, e que todo o mundo externo me esteja sendo simulado pelo supercomputador. Mas então o supercomputador simula também outras pessoas que não são reais e que falam uma linguagem que só existe em minha própria mente. Ora, com isso se constitui também uma comunidade lingüística, pouco importando que esta seja mero produto de uma simulação; uma comunidade lingüística virtual, através da qual aprendo e corrijo as regras da minha linguagem, aplicando-as a um suposto mundo externo, também ele virtual. Ainda que se trate de uma comunidade lingüística simulada, pode ser argumentado que, havendo possibilidade de correção intersubjetiva e independente de minha vontade, as condições para que eu possua uma linguagem constituída de regras, compreendidas como sistematicamente capazes de correção, não deixam de ser satisfeitas! Não importa sequer se, fora do jogo de aparências que me é simulado, essas regras são concebidas (digamos, por uma conclusão intersubjetivamente alcançada entre os cientistas que controlam o computador) como não tendo sido realmente aplicadas: o critério de correção, que é a concordância intersubjetiva (virtual), está sendo coerente e sistematicamente satisfeito, e é isso o que faz dele um critério de correção. Posso, pois, aprender regras para o uso de palavras como 'pensamento', 'existência', 'eu', com base em critérios externos, comportamentais, fornecidos e intersubjetivamente corrigidos pelos membros de uma comunidade lingüística, mesmo que nada disso seja real. E isso basta para, apoiando-me em critérios que concebo como sendo externos, concluir que eu penso, que eu existo, ou seja, que eu sou um ser pensante, o que será verdadeiro e fará sentido, mesmo que toda a suposta realidade externa seja virtual.
É verdade que esse cogito precisa ser aqui interpretado em termos quasi-behavioristas, baseado como é em comportamentos, ainda que completamente virtuais (a linguagem que o exprime seria fundada na intersubjetividade comportamental, como ordenam os princípios behavioristas, com a adição do detalhe de que tal intersubjetividade é aqui completamente imaginária). Mas como essa compreensão do cogito preserva as suas virtudes sistemáticas ao mostrar que é capaz de provar tudo o que o cogito cartesiano precisava essencialmente provar, essa é uma admissão sem maiores conseqüências. Finalmente, esse raciocínio mostra que nossa admissão de senso comum, de que uma exigência empírica para o aprendizado de nossa linguagem mentalista é o recurso provisório a critérios comportamentais externos, pode ser preservada sem que as conseqüências do argumento do cogito deixem de ser essencialmente corretas.
O recurso a instâncias de correção aparentes soa anti-wittgensteiniano. Por isso, insistindo na tese de que o argumento de Wittgenstein destrói a coerência do cogito, alguém poderia levantar a seguinte objeção: pelo próprio argumento da linguagem privada, as regras da linguagem do cérebro no recipiente devem ser meras impressões de regra, pois o caso é análogo ao de uma pessoa que aprende a sua linguagem através de um sonho no qual imagina outras pessoas corrigindo as suas aplicações das regras, sem saber que está imaginando. Instâncias de correção virtuais de nada servem, pois nada corrigem. O cérebro no recipiente não poderá, pois, adquirir uma linguagem, e assim também o eu cartesiano, no caso de o mundo onde o eu pensante se encontra não ser real.
Contudo, é fácil mostrar que esse argumento é de um tipo autodestrutivo. Para tal, suponhamos que ele seja correto. Como é sempre possível que eu seja um cérebro no recipiente, então também é sempre possível que eu não tenha uma linguagem intersubjetiva, na qual articulo os meus pensamentos. Mas isso é absurdo: não posso conceber que eu possa não estar pensando, falando comigo mesmo, em uma linguagem. Assim, se rejeitamos a possibilidade do aprendizado de uma linguagem através de aplicações virtuais de regras, devemos então admitir uma intolerável extensão do argumento da linguagem privada à linguagem fisicalista básica, que resulta na negação da própria certeza de que estejamos pensando através de uma linguagem!
O mesmo ponto pode ser também aproximado pela consideração do fato de que posso perfeitamente imaginar que eu tenha sido em toda a minha vida um cérebro no recipiente, e que um dia tenha a oportunidade de descobrir que isso é verdade, digamos, após ter sido implantado na calota craniana de um monstrengo interplanetário. Contudo, nada indica que isso me impedirá de continuar admitindo que a linguagem que eu pensava falar em minha existência pregressa era uma linguagem determinada por regras e perfeitamente coerente enquanto tal. A linguagem que aprendi, mesmo que com base em critérios aparentes, será considerada sempre uma linguagem, ainda que eu venha a reconhecer que ela tem sido aplicada a situações fictícias. E tanto eu quanto os seres que controlam o supercomputador teremos de admitir que, mesmo enquanto eu era um cérebro no recipiente, enganado por tudo e por todos, é verdade que eu era eu e que eu pensava; e que eu pensava em uma linguagem, seguindo as suas regras, mesmo quando todas as minhas outras crenças eram falsas.
A situação que acabo de apresentar pode ser tornada mais convincente se a compararmos com outra, mais trivial, mas em certa medida análoga. Suponhamos que alguém aprende a pilotar um avião em uma cabine de simulação de vôo, sendo o seu aprendizado controlado e corrigido "intersubjetivamente" por meio dos computadores e gravações do simulador, que lhe avisam quando ele comete erros. Sendo a simulação praticamente perfeita, esse treinamento permite que mais tarde, em uma situação real, a pessoa seja capaz de aplicar o que aprendeu de imediato, sem dificuldades. No entanto, é claro que as regras aplicadas, que, tanto nas situações reais quanto nas situações simuladas podem ser consideradas as mesmas, não deixavam de ser regras quando eram aplicadas em situações de realidade simulada. O fato delas poderem ser aplicadas e reaplicadas coerentemente, o fato de serem "intersubjetivamente" corrigíveis, através de instâncias independentes, é o que em ambos os casos lhes assegura o caráter de regras. Apenas em um ponto esse experimento, como o anterior, nos conduz de volta a Wittgenstein: só podemos falar de uma intersubjetividade virtual coerente na medida que for possível corrigir as suas regras por meio de uma intersubjetividade real que a inclui e independe dela; no caso do cérebro no recipiente, trata-se da intersubjetividade dos seres que controlam o computador; no caso da simulação de vôo, trata-se da intersubjetividade em um contexto de pessoas e fatos reais. Também por isso não faz sentido conceber um "Eu-pensante" inteiramente solipsista sem supor a existência de algo além dele, responsável por uma intersubjetividade possível, quer seja resultante de um gênio maligno, dos cientistas que controlam o supercomputador, ou seja lá do que for.
Essas experiências hipotéticas sugerem o seguinte: mesmo que aceitemos o argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada, há um meio de salvar o cogito de uma aplicação destrutiva do argumento. Para tal, basta reinterpretá-lo no interior de uma explicação quasi-behaviorista do funcionamento de nossa linguagem mentalista, mostrando então que uma situação como aquela na qual o cogito é afirmado é concebível, mesmo sob a suposição de que o mundo externo e a comunidade lingüística nos estejam sendo simuladas e que tenham uma existência meramente ficcional. Uma linguagem dependente da intersubjetividade comportamental é compatível, se não com a completa inexistência do mundo externo, ao menos com a inexistência do mundo externo, tal como acreditamos conhecê-lo. Se é assim, então o argumento de Wittgenstein não atinge essencialmente a espécie de certeza expressa pelo cogito, e a impressão de que não deva ser assim é um equívoco resultante de uma consideração superficial da questão.
Não estou certo de que o meu argumento tenha sido suficientemente claro ou convincente. A razão, para mim, é simples. É que é difícil obter clareza e conclusividade quando se raciocina com base em um número considerável de pressupostos vagos e incertos. E a tese de Wittgenstein, com as suas incômodas conseqüências contra-intuitivas, encontra-se entre eles.
Notas:
(*) Artigo originalmente publicado na revista Kriterion, n 98, vol. 39, 1998, pp. 22-36. Republicado aqui com permissão do editor.
1 Ver especialmente A. Kenny: "Cartesian privacity", in: Wittgenstein: The Philosophical Investigations (ed. G. Pitcher), New York 1966, pp. 352-370. Ver também W. Stegmüller: Hauptströmungen der Gegenwärtigen Philosophie (vol. I, Stuttgart 1975), cap. 9 (trad. port. Epu-Edusp sob o título A Filosofia Contemporânea, São Paulo 1976).
2 Contra a opinião aceita, H. Putnam pretendeu mostrar que podemos saber que não somos cérebros no recipiente (ver H. Putnam: Reason, Truth and History, Cambridge 1981, cap. 1). Seu argumento tem a forma de uma redução ao absurdo. Suponhamos, considera ele, que fossemos cérebros no recipiente. Nesse caso, as palavras pensadas por nós não se refeririam a objetos reais, mas a modelos de estimulação elétrica, produzidos pelo supercomputador e capazes de produzir as ilusões correspondentes. Também as palavras 'cérebro' e 'recipiente' se referem, obviamente, a estimulações elétricas. Assim, se somos cérebros no recipiente, as palavras 'cérebro no recipiente' não se referem a cérebros físicos em recipientes físicos, mas a um modelo de estimulação elétrica em outro modelo de estimulação elétrica. Dizer: "Eu sou um cérebro no recipiente" é então errado, posto que não somos impulsos elétricos, mas cérebros reais em recipientes reais! Ora, como isso é absurdo, Putnam conclui que o enunciado "Eu sou um cérebro no recipiente" precisa ser falso.
Embora engenhoso, o argumento é claramente falacioso, por ignorar a flexibilidade da linguagem. Podemos dizer que o enunciado "Eu sou um cérebro no recipiente" pode ser entendido em duas práticas lingüísticas ou modos de aplicação da linguagem que são: (a) a "linguagem do recipiente", na qual significa um modelo de estimulação elétrica; (b) a "linguagem do laboratório", na qual se fala de cérebros e recipientes reais. Assim, pode ser que eu seja um cérebro no recipiente, me concebendo como tal por referência a modelos de estimulação elétrica, e que mais tarde, tendo sido o meu cérebro implantado em um corpo real, eu venha a me referir com as mesmas palavras ao cérebro e ao recipiente reais, anteriormente habitados por mim.
3 A versão mais textual e comum do cogito aqui exposta não parece torná-lo tão imune à dúvida quanto pretendeu Descartes. Seria assim se de fato, como ele supõe, o "Estou pensando, logo eu existo" realmente fosse imediatamente apreendido em um único ato mental. Tenho um argumento para mostrar que isso não pode ocorrer. Ele segue dois passos:
(i) Quando refletimos em que sentido podemos dizer (para outros ou para nós mesmos) que estamos pensando, vemos que a constatação "Eu penso" não se auto-contém: ela é vazia se não se referir a conteúdos de pensamento particulares, caso no qual ela se reduz a uma mera articulação mental das palavras sem pensamento. “Eu penso” é nesse aspecto semelhante a "Eu prometo", que é um proferimento vazio no caso de não se referir a nenhum conteúdo particular, a nenhuma promessa específica. Isso se evidencia quando consideramos as circunstâncias concretas em que alguém pode dizer (ou pensar) que está pensando. Suponhamos que, em circunstâncias concretas, alguém nos diga: "Estou pensando". Teremos então o direito de lhe perguntar: “Em que você está pensando?” E a resposta virá normalmente sob a forma de uma referência a pensamentos que a pessoa estava entretendo nos momentos anteriores ao dessa constatação, ou talvez, ainda, de pensamentos que espera que lhe ocorrerão depois, na sequência do raciocínio. Isso mostra que "Estou pensando" explicita-se normalmente como "Estou pensando que acabo de pensar os pensamentos p, q, r etc.” “Estou pensando” refere-se, pois, a outros conteúdos de pensamento, só podendo ser verdadeiro em função disso. Agora imagine que a pessoa ao invés responda: “Estou pensando simplesmente, sem que me ocorra pensamento algum”. Nesse caso não admitiremos ser verdade que a pessoa está pensando! Esse proferimento será visto por nós como incoerente, tanto quanto “Eu prometo simplesmente, embora não haja nada que esteja prometendo”. Assim sendo, se quisermos dar ao “Eu penso” no cogito um sentido, devemos parafraseá-lo sob a forma “Estou pensando p, logo existo”, onde p está no lugar de ao menos um particular conteúdo de pensamento pensado pelo sujeito. (Sem dúvida, eu também posso pensar que pensei que pensei p, referindo-me ao próprio ato de pensar que pensei p; mas isso retém a dificuldade exposta a seguir.)
(ii) Essa conclusão, contudo, traz consigo uma dificuldade para a tese da indubitabilidade do cogito. Ei-la. O ato pelo qual alguém constata que está pensando não pode ser simultâneo ao ato de pensar p, q, r etc., pois a consciência não é capaz de entreter dois atos de pensamento ao mesmo tempo. Esses pensamentos p, q, r... assim referidos não estão, pois, sendo focalizados pela consciência no momento em que o sujeito pensa ou diz "Estou pensando", mas realmente um pouco antes. Assim, nossa paráfrase do cogito como “Estou pensando p, logo existo”, deve ser ela própria corrigida como: “Eu acabei de pensar p, logo existo”. Com “Eu acabei de pensar”, o sujeito se reporta, com base em sua memória imediata, ao pensamento p, que acabou de passar por sua consciência. Assim, “Eu estou pensando” só pode realmente querer dizer “Eu estive (no instante anterior) pensando...” A dificuldade torna-se agora óbvia. Havendo um intervalo temporal entre a referência consciente a um pensamento particular e ele próprio, por menor que seja esse intervalo, é pelo recurso à memória imediata que ele é coberto. Ora, se o gênio maligno é capaz de confundir o sujeito em um procedimento tão simples como o processo de somar 2 + 2 para obter 4, por que não pode ele de fazer com que o sujeito se enganasse, pensando ter tido pensamentos que na verdade não lhe ocorreram, de sorte que o "Estou pensando (i.e “acabo de pensar p...") se torne falso?
Algo semelhante também poderia ser objetado com relação à passagem do pensar para o ser no cogito: à passagem do "Eu penso" para o "Eu sou". Ainda que o fato de eu pensar p... viesse a implicar imediatamente a minha existência, é necessário um novo ato mental para a conclusão de que eu tenho existido, e nessa curta passagem de tempo o gênio maligno também poderia atuar.
Devido a dificuldades como as recém mencionadas, considero a versão mais textual do cogito inconvincente, diversamente da versão performativa de J. Hintikka e de outras similares, como a de A. J. Ayer e a de H. G. Frankfurt, que atentam simplesmente para o fato de que o pensamento “Eu existo” é autoverificador: ele não pode ser negado sem inconsistência sendo - para H. G. Frankfurt, ao menos - um raro exemplo de verdade necessária (pois não pode ser falso) e a posteriori (pois depende da experiência) (Cf. Demons, Dreamers and Madmen, N. York 1970, p. 108). Tais versões do cogito resistem melhor à objeção de mediaticidade, pois nelas a certeza do fato de que eu existo está inevitavelmente inclusa em meu próprio pensamento de que eu existo. Como os argumentos que exporei aqui se sustentam mesmo no caso de entendermos o cogito como uma simples auto-atribuição de existência, a discussão acerca da maneira mais adequada de se resgatar a intuição cartesiana não precisa ser presentemente tematizada.
4 L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, Frankfurt 1978, vol. 1, sec. 258 (trad. port. Investigações Filosóficas, ed. Abril, S. Paulo 1975).
5 L. Wittgenstein: ibid., sec. 244.
6 L. Wittgenstein, ibid., sec. 580.
7 Cf. S. Shoemaker: Self-Knowledge and Self-Identity, N.York 1963, e E. Tugendhat: Selbstbewusstsein und Selbstbestimmung, Frankfurt 1979. O caráter inconclusivo dessas tentativas é mostrado por Guido A. de Almeida em "'Consciência' e 'consciência de si' (uma exposição crítica da teoria de E. Tugendhat)", in: Síntese Nova Fase, Belo Horizonte v. 21, n.65, 1994.
8 Para uma crítica interna ao argumento da linguagem privada, ver meu artigo: "Das Paradox der privaten Erfahrung", in: Prima Philosophia, vol. 10, 1997.
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