A SÍNDROME DO DOUTOR SPOCK
(COMENTÁRIOS SOBRE A SÍNDROME DE ASPERGER)
Claudio Ferreira Costa - UFRN
Resumo:
Este artigo contém uma exposição dos aspectos principais da síndrome de Asperger, acompanhada de críticas e comentários do autor. A síndrome, tal como é aqui descrita, é uma forma de autismo constituída de duas classes mais relevantes de sintomas: a classe dos déficits de interação social e a classe dos interesses especiais, que se desenvolve como uma forma de compensação desses déficits na economia psíquica da pessoa com essa síndrome
Summary:
In this paper the main aspects of the Asperger syndrome are exposed together with the critical comentaries of the author. The syndrome, as exposed here, is a kind of autism constituted by two classes of symptoms: the deficits of social interaction and the class of special interests, which emerges as a form of compensation in the psychical economy of the person with this syndrome.
Todos conhecem o doutor Spock, personagem da série Jornada nas Estrelas. Ele é um ser meio alienígena e meio humano, com dificuldade para harmonizar o seu eu vulcaniano, lógico, com o seu eu emocional, humano. Algo não muito diverso ocorre com as pessoas portadoras de síndrome de Asperger, uma curiosa e complexa insuficiência neurológica identificada pela primeira vez pelo pediatra vienense Hans Asperger, em 1944(1). Ele descreveu casos do que chamou de “psicopatia autística”: crianças que não se relacionavam com as outras e que tinham poucos e obsessivos interesses, sendo capazes de dircursar exaustivamente sobre eles, freqüentemente sem domínio adequado, como se fossem “pequenos professores”.
Embora não haja acordo quanto às estimativas, a síndrome de Asperger ou SA é relativamente incomum. Segundo algumas estatísticas ela ocorre em cerca de 0,3% das pessoas, sendo quatro vezes mais freqüente no sexo masculino (o autismo comum ocorre em cerca de 0,7% das pessoas). Ela só se tornou conhecida fora dos países de língua alemã quando foi denominada “síndrome de Asperger” em 1981 por Lorna Wing, tendo sido oficializada com a publicação da CID-10 e do DSM-IV em 1994.
Hoje geralmente se admite que a SA seja uma interessante forma limítrofe de autismo, uma condição neurológica que parece indistinguível do que tem sido chamado de autismo de alta funcionalidade. Ela se diferencia do autismo típico, de baixa funcionalidade, porque no último o desenvolvimento da linguagem e da inteligência se encontram profundamente comprometidos. Já a linguagem da pessoa com SA permanece suficientemente preservada, sendo a inteligência normal ou acima do normal.
No que se segue serão descritos os sinais e sintomas usuais da SA, que eu sugiro que sejam agrupados em duas classes principais: a do déficit na interação social e a dos interesses obsessivos e restritos. A primeira diz respeito às relações da pessoa com AS com o mundo externo. A segunda diz respeito às relações da pessoa com AS consigo mesma, ou seja, à vida interior que ela cria como compensação para a falta de um contato efetivo com o mundo social.
I
Consideremos, primeiro, o déficit na interação social. Ele se constitui basicamente na falta de habilidades sociais, evidenciada no pouco contato ocular, na incapacidade de iniciar conversas, no discurso egocêntrico. Embora em geral a pessoa deseje estabelecer contatos e vínculos afetivos com os demais, ela não sabe como interagir socialmente. Faltam-lhe condições para “conectar-se” emocionalmente com os outros.
A limitação na socialização já existe no autismo de baixa funcionalidade, no qual o comprometimento da sociabilidade vem acompanhado de um comprometimento lingüístico e cognitivo severo, que torna o nosso mundo inacessível para ele. Por isso podemos dizer que o autista é uma pessoa que vive em seu próprio mundo, enquanto o portador de SA é uma pessoa que vive em nosso mundo, mas ao seu próprio modo.
Uma notável característica neurológica dos portadores de SA é que, enquanto em pessoas normais a observação de expressões fisionômicas e gestos de outras pessoas estimula certas áreas do córtex pré-motor, diversamente da observação de objetos, em pessoas com autismo ou SA isso não acontece. Ou seja: a reação cortical às pessoas é semelhante à reação que se tem à observação de objetos. A causa neurológica precisa ainda é desconhecida, mas se especula sobre uma falha no funcionamento dos “neurônios-espelho”, ou seja, de sistemas neurais inatamente preparados para descarregar diante de estímulos como o da presença de fisionomias humanas, expressões faciais, movimentos corporais. Neurônios-espelho seriam de grande importância para o nosso aprendizado imitativo.
Importante é notar que esses dados neurológicos fornecem um indício explicativo da razão da pobreza de contato do portador de SA. Eles sugerem que o portador dessa síndrome não possui um adequado “mapa” das mentes neurotípicas, que a cegueira emocional e falta de empatia se deve a ausência de uma “teoria da mente”. Mais particularmente, ele não possui a capacidade de natural e inata de compreender sinais comportamentais como o olhar, a expressão fisionômica, os gestos, a fala, no contexto da interação social. Por isso ele faz pouco contato ocular com o interlocutor. Pode lhe faltar, por exemplo, a disposição natural para distinguir reativamente a expressão fisionômica da raiva da expressão fisionômica do medo. Uma característica complementar associada à dificuldade de entender os sentimentos alheios é a dificuldade que o portador de SA tem de fazer uma adequada identificação dos seus próprios sentimentos.
Uma das conseqüências dessas deficiências é que o portador de SA não sabe ao certo como reagir em situações sociais. Ele não consegue se “sintonizar” com os demais. Não tem entendimento das “distâncias sociais”. Tende a um comportamento socialmente estranho e freqüentemente inoportuno. Falta a ele a espécie de reciprocidade afetiva e comportamental necessária ao jogo de dar e receber que alimenta os vínculos emocionais da maioria das pessoas. Tudo isso causa no portador de SA ansiedade e insegurança frente a qualquer contato social. O fado interior do portador de Asperger foi bem resumido em uma poesia de Edgar Alan Poe intitulada Alone:
From childhood’s hour I have not been
As others were – I have not seen
As others saw – I could not bring
My passions from a common spring –
From the same source I have not taken
My sorrow – I could not awaken
My hearth to joy at the same tone –
And all I lov’d – I lov’d alone.
O dia-a-dia de um portador de SA já foi descrito como sendo o de alguém vivendo em um país estranho, cuja língua e convenções sociais ele desconhece. E o efeito tardio do desamparo infantil na personalidade já foi comparado com o efeito provocado pela experiência de pessoas que viveram em um campo de concentração. Com efeito, o repetido fracasso em lidar com situações que requerem habilidades sociais tende a produzir um comportamento de evitação dessas situações, capaz de se transformar em fobia social que termine em depressão crônica.
Do que foi exposto não se deve concluir que o portador de SA não seja capaz de saber o que os outros sentem ou pensam. A diferença é que, diversamente das pessoas neurotípicas, ele não chega a isso através de uma reação empática espontânea, natural, imediata. Ele chega às conclusões sobre o que se passa nas mentes dos outros com base em experiências passadas e no raciocínio, inferindo que as pessoas devem sentir tais e tais emoções em tais e tais situações. É por precisar se valer da experiência e da razão para inferir ou adivinhar indutivamente o que se passa nas mentes das outras pessoas que o portador de SA tende a se apresentar como emocionalmente inadequado, errando freqüentemente em suas avaliações e tomando consciência do erro tarde demais. Ele perde o ritmo das conversações e as suas respostas imediatas são quase inevitavelmente em alguma medida inadequadas, sendo freqüentemente vistas como estranhas, bizarras, inapropriadas ou rudes, sem que ele tenha tido a intenção de sê-lo, o que é percebido por ele sempre tarde demais, pela reação inesperada dos demais ou pelo raciocínio (é, pois, diferente do caso da pessoa que erra “normalmente”, por culpa de suas próprias limitações cognitivas). Quando isso acontece o portador de SA fica embaraçado, embora possa não sentir culpa. Tais comportamentos podem facilmente levar as outras pessoas a pensarem que o portador de SA é uma pessoa insensível e grosseira.
Há outros traços menores que têm sido relatados e de alguma forma se relacionam às deficiências recém-relatadas. A fala do SA tende a ser monótona e o seu tom de voz é freqüentemente mais alto ou mais baixo do que as circunstâncias exigem. O portador de SA também costuma ter dificuldades de concentração e hipersensibilidade auditiva e tátil. Ele pode ter dificuldades no entendimento da linguagem figurativa, insistência em dizer a verdade, mesmo quando isso é inapropriado, falta de autocensura, desdém por fofocas e conversa fiada, cuja razão de ser ele não compreende, ingenuidade social. Ele pode ter dificuldade para o pensamento abstrato, falta de imaginação, tendência à racionalização de sentimentos e preferência pelas roupas confortáveis às que melhoram a aparência. Pode haver também déficits psicomotores, como o da motricidade fina.
II
O segundo traço mais característico dos portadores de SA constitui-se a meu ver nos interesses obsessivos e restritos. Enquanto pessoas neurotípicas focam as suas mentes em muitas coisas diversas e em conjunto, pessoas com SA (como os autistas em geral) tendem a focar as suas mentes intensamente e repetitivamente em uma coisa só, que tem características objetuais ao invés de pessoais. Eles se deixam, por exemplo, facilmente mesmerizar por algo (digamos, um quadro), não sendo capazes de parar de ter sua experiência. O mais característico é que o portador de SA tende a desenvolver interesses obsessivos por coisas como coleções de objetos geológicos, de insetos, de filmes, ou por temas científicos particulares, rejeitando outros interesses, embora possivelmente substituindo-os por outro, quando esgotados.
A explicação que sugiro para os interesses obsessivos é a de que eles serviriam como um substituto “interno” pela falta de um adequado relacionamento com o mundo social, “externo”: a pessoa passa a viver em um mundo de interesses específicos, geralmente objetuais e independentes do apelo social que eles possam ter como forma de preencher o vazio ocasionado pela “dislexia social” característica da AS. Como exemplo podemos considerar o caso do Gilles Trehin, o jovem portador de AS que passou vinte anos de sua vida trabalhando muitas horas por dia nos desenhos extremamente detalhados de uma cidade imaginária com dois milhões de habitantes, que ele situou no sul da França.
Essas fixações cognitivas costumam servir apenas para aprofundar a inadequação social da pessoa com SA, aumentando a falta de interesses comuns. Devido aos interesses obsessivos, a conversação do portador de SA tende a ser egocêntrica, centrada em suas fixações e sem atenção suficiente para os interesses que as demais pessoas normalmente compartilham entre si. Além do mais, a pessoa com SA precisa fazer raciocínios complexos para chegar a conclusões que para outros são intuitivas. É freqüente que o portador de SA tenha dificuldade em se aperceber do aborrecimento que causa aos outros com seus monólogos. Por sua vez, ele se sente aborrecido pelos múltiplos e variados interesses das pessoas neurotípicas, os quais para ele se afiguram desinteressantes ou irrelevantes.
Sem auxílio adequado, a tendência de prognóstico de pessoas com SA não costuma ser positiva, sendo alto o índice de casos que terminam em distúrbios neuróticos como o de depressão severa. Estima-se que apenas 10% dos SA se tornem capazes de se auto-sustentar. A pessoa erra constantemente em suas escolhas profissionais, sociais e afetivas, não sendo capaz de distinguir amigos de inimigos, caindo facilmente nas mãos de manipuladores no relacionamento afetivo, nos poucos casos em que essa espécie de relacionamento acontece.
Em alguns poucos casos, porém, a pessoa com SA consegue colocar os seus interesses obsessivos a serviço da sociedade, tornando a sua inserção social bem sucedida. Esse é o caso de Vernon Smith, prêmio Nobel de economia, diagnosticado como portador de SA. Ele conta em entrevista que uma razão pela qual chegou a desenvolver uma teoria econômica inovadora é que não sentia a pressão de fazer o que os outros faziam, por indiferença ao feedback motivacional proporcionado pela sociedade científica. Isso lhe permitiu trabalhar por anos em um campo desconhecido, movido apenas por sua curiosidade e por um interesse continuado.
Especula-se também se a SA não seria capaz de fornecer uma pista para o que se convencionou chamar de gênio. Afinal, pessoas com interesses obsessivos fazendo coisas na independência do que a sociedade delas espera podem bem ser uma fonte do inesperado, e entre as coisas inesperadas podem por vezes acontecer que algumas sejam originais e relevantes. Com base nessa idéia se sugeriu que figuras exponenciais e excêntricas em ciência e em arte, como Isaac Newton e Glenn Gould, pudessem ser classificadas como pertencentes ao spectrum autista. A idéia faz sentido. Newton foi um recluso que trabalhou muitos anos em Cambridge, e que ao mudar-se para Londres não deixou para trás nenhum amigo. Aos trinta e dois anos o pianista Glenn Gould, cuja carreira foi espetacular, abandonou a sala de concertos, passando a viver uma vida noturna em seu apartamento em Toronto; no final de sua curta vida ele sofria de obsessões, depressão e hipertensão, só se comunicando com as pessoas por telefone e por cartas. Se essa lista for correta, então não será difícil estendê-la, incluindo nela figuras como as de Spinoza, Frege e Kurt Gödel e mesmo um compositor como Mozart. Poderíamos incluir romancistas nessa lista? Ora, considere o caso de Emily Brönte - em nível o único escritor inglês comparável a Shakespeare - a qual (segundo consta) preferia o contato com os animais ao contato com outros seres humanos. A imaginação social necessária ao relacionamento social pode ser adequada à produção de folhetins. A falta dessa imaginação social na pessoa com SA poderia ser compensada, contudo, pela presença da paranóia social autoconsciente, responsável pelas fantasias presentes na criação verdadeiramente artística, fantasias que, sendo inteligentes e acompanhadas do necessário distanciamento, da falta de preconceitos emocionais que levem ao envolvimento a favor de distorções resultantes do wishful thinking convencional, pode ser fonte de insight sobre aquilo que uma sociedade não ousa enxergar em si mesma.
Essas considerações são especulativas e há uma tendência ao exagero, ao hiper-diagnóstico. A razão parece-me clara: há uma gradação contínua, que vai desde o padrão neurotípico até o autismo severo, passando pela síndrome de Asperger. Mas entre o padrão neurotípico e a sídrome de Asperger, com todo o seu complexo de sintomas, há inúmeros casos intermediários. Em mulheres, por exemplo, os sintomas da síndrome aparecem de forma mais amena. O absolutamente neurotípico pode ter também as suas limitações, como o absolutamente mediano. Afinal, como notou Hans Asperger, uma gota de autismo é necessária a qualquer trabalho criativo em arte e em ciência.
Não há cura para a SA, mas a consciência da condição é importante, tanto para o seu portador quanto para as pessoas que o circundam, pois permite um entendimento mais adequado do que acontece e o recurso a estratégias de tratamento eficazes. A síndrome é facilmente diagnosticável em crianças, mas torna-se difícil de ser diagnosticada no adulto, que aprende a mascarar os sintomas. O adulto pode inclusive aprender a mimetizar o comportamento social da mesma forma que um artista representando em um teatro. Mas com a diferença que isso lhe causa um grande esforço e não lhe traz como retorno o prazer afetivo das trocas sociais naturais.
Como foi enfatizado é possível que portadores de SA se tornem pessoas úteis para a sociedade. Biólogos notaram que se as combinações de genes que produzem a SA e que podem produzir graus mais profundos de autismo trouxessem apenas resultados ruins, a seleção natural teria feito com que tais combinações fossem bloqueadas e desaparecessem. Elas só são possíveis porque se demonstraram evolucionariamente úteis à sobrevivência da espécie, posto que uma sociedade precisa de neurodiversidade para que cada indivíduo possa combinar as suas habilidades próprias com as dos demais, de modo produzir resultados melhores para todos. Por isso, antes de rotular a SA como uma anormalidade, podemos nos perguntar se não seria melhor considerá-la uma das muitas formas da natureza humana.
(1) Uma síndrome é um conjunto mais ou menos definido de sinais e sintomas; um caso típico é a insuficiência cardíaca. É importante notar que os sinais e sintomas costumam vir causalmente ligados uns aos outros, o que explica porque eles costumam aparecer em conjunto.
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA:
Asperger, H.: “Die autistischen Psychopaten”, Kindesalten Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten, 1944, 117, 76-136.
Atwood, T.: Asperger’s Syndrome: A Guide for Parents and Professionals (London: Jessica Kingsley Publisher 1998).
Baron-Cohen, S.: Mind Blindness: An Essay on Autism and Theory of Mind (Massachussets: MIT Press 1995).
Gillberg, C.: A Guide to Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University Press 2002).
Wing, L.: “Asperger Syndrome: A Clinical Account”, Psychological Medicine 11, 1981, 115-130.
Nenhum comentário:
Postar um comentário