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quinta-feira, 10 de maio de 2012

CERR (1) - TEORIAS DA REFERÊNCIA: INTRODUÇÃO (OBJETIVO E ASSUNÇÕES)


Draft do livro Como expressões referenciais referem?, prefácio e introdução. (Notas foram perdidas na postagem). O livro inteiro não passa de um work in progress cujos argumentos precisam ser expandidos e em boa parte reescritos. C.F. Costa

Draft 2014


COMO EXPRESSÕES REFERENCIAIS REFEREM?





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Tudo está bem como está.
Wittgenstein







PREFÁCIO


Meu primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu há cerca de trinta anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre a concepção de significado na filosofia do último Wittgenstein. Como era de se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descrições, tal como fora exposta por ele mesmo na seção 79 de suas Investigações Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Kripke me deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais externas soava-me como uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade com a teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma ordem ao apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe e que isso só poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrição de ordem superior, capaz de estabelecer o papel e a força das regras-descrições a ele pertencentes. Mas logo me esqueci do assunto.
     Só voltei a me interessar pela questão dos nomes próprios em 2006, por razões acidentais. Lembrei-me então de meu antigo projeto. Escrevi um breve esboço no qual propunha a existência de uma regra cognitiva meta-descritiva para nomes próprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de descrição pertencentes aos feixes de descrições a eles associados, uma regra que demandasse a satisfação disjuntiva de regras descritivas localizadoras e caracteridoras. Apresentei esse esboço em várias ocasiões, sempre surpreso com a forte reação de rejeição dos ouvintes. Contudo, como ninguém me apontava um erro de princípio e como um pouco de reflexão me mostrava que as objeções poderiam ser facilmente refutadas, prossegui. A teoria metadescritivista daí resultante encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais interessante aqui. Embora essa teoria incorpore intuições provenientes da concepção causal-histórica, ela às condiciona a ideias de fundo claramente descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar como uma elaboração da velha teoria do feixe de descrições.
   A teoria metadescritivista dos nomes próprios compensa a sua maior complexidade com um poder explicativo muito maior do que o das teorias anteriores, possuindo uma variedade de bons atributos que a recomendam: ela é capaz de explicar mais adequadamente como e porque o conteúdo cognitivo (sentido) do nome próprio contribui para a identificação do seu portador (referência); ela é capaz de gerar a idéia de que nomes próprios são designadores rígidos do próprio interior do descritivismo; é capaz de explicar, sob uma perspectiva descritivista, como e porque se dá o contraste entre a rigidez dos nomes próprios e a flacidez das descrições definidas e, finalmente, é capaz de responder de forma muito mais eficaz aos mais variados exemplos até hoje levantados contra a teoria do feixe.
     A questão da natureza do nome próprio é uma pedra angular da filosofia da linguagem. Se ela é alterada, tudo se altera. A teoria causal-histórica dos nomes próprios, advogada principalmente por Kripke, produziu uma revolução na maneira como entendemos outras expressões referenciais como descrições definidas, indexicais, termos gerais e sentenças, inaugurando uma nova ortodoxia causalista e externalista em filosofia da linguagem. Se propomos uma teoria neodescritivista (metadescritivista) dos nomes próprios, o que estamos sugerindo é no fundo uma nova contrarevolução descritivista-cognitivista, que responde diversamente a tudo aquilo que a nova ortodoxia tem proposto desde o início da década de 1970. Essa é, a meu ver, a explicação última da reação de rejeição dos ouvintes diante da proposta de uma teoria neodescritivista dos nomes próprios. Isso explica também as direções que minha pesquisa precisou tomar em seguida.
    Com efeito, uma vez que me encontrava investigando a função dos nomes próprios, meu interesse alargou-se para a história das teorias descritivistas e também para a necessidade de alcançar um entendimento crítico da concepção causal-histórica que fizesse justiça ao trabalho inegavelmente genial de Kripke. Disso resultaram os capítulos 7 e 8 desse livro.
     A investigação do funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me levou a considerar outras expressões referenciais, como descrições definidas, termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre o referencialismo externalista e o cognitivismo internalista se repete. Minha pergunta foi irreprimível. Se havia obtido tão bons resultados defendendo uma espécie de cognitivismo metadescritivista internalista para o caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira de ver não seria capaz de produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada a outras expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição era boa, de modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era duplo. De um lado queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas-externalistas aplicadas a outros termos referenciais; de outro, considerando as objeções, queria desenvolver melhores explicações cognitivisto-internalistas (neodescritivistas ou neo-fregeanas) para os modos como descrições definidas, indexicais e termos gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos capítulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse livro.
     Alguns resultados me parecem memoráveis. Entre eles está a compatibilização do descritivismo de “Russell” com o de “Frege”, a defesa da irrelevância das incongruências parciais no resgate descritivista do conteúdo semântico dos indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crítica ao externalismo semântico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente análogas às dos termos singulares na constituição de regras de aplicação dos termos gerais. Muito do que escrevi, porém, não passa de esboços rudimentares, que lanço na esperança de que possam ser melhor desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que filosofia é work in progress por definição.

     Finalmente, senti a necessidade de esclarecer valores intelectuais, ou seja, as assunções filosóficas que me conduziram a abordar as expressões referenciais da maneira como fiz. Meus heróis são aqui Frege e Wittgenstein. Não creio haver nada na filosofia analítica comparável à obra desses dois filósofos. Ombreados por Russell, eles foram até o osso das questões filosóficas no que concerne à amplitude e profundidade de seus insights, sem permanecer na exterioridade dos problemas, na mera discussão de hipóteses sobre hipóteses, e sem o apelo a teorizações excessivamente artificiosas e implausíveis.

     Escrevi os capítulos 1, 2, 3 e 4 desse livro com o objetivo de aclarar meus pressupostos, que me foram geralmente motivados pelas concepções semânticas de Frege e Wittgenstein. Como consequência, esses capítulos foram respectivamente dedicados ao estudo das semânticas filosóficas de Wittgenstein, Frege e Husserl. No capítulo 2 investiguei os sentidos ou significados em geral em termos de uma ideia de inspiração wittgensteiniana: a ideia de que os significados representacionais nada mais são do que regras e/ou combinações de regras semântico-cognitivas, determinadoras dos usos referenciais das expressões correspondentes. O mais relevante aqui é a tentativa de recuperar a ideia wittgensteiniana de que o sentido da sentença afirmativa é o seu método de verificação. O capítulo 3 é uma reconstrução da semântica fregeana com base naquilo que aprendemos de Wittgenstein. Procurei definir meu objetivo como sendo o de fazer uma defesa sustentada de uma concepção que é pelo menos tão antiga quanto a doutrina estóica das lekta: o ponto de vista de fregeano, segundo o qual uma expressão referencial só é capaz de referir devido a um elo intermediário, que não pertence nem a ela mesma nem ao que ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermediário em termos de sentidos (modos de apresentação) de conteúdos cognitivos ou informativos, que só diferem dos sentidos fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciações cognitivas. Finalmente, no capítulo 4 procurei reconstruir certas intuições semânticas de Edmund Husserl em termos de satisfação de combinações de regras que se instanciam cognitivamente pela satisfação de condições de preenchimento geralmente dadas na percepção.
     Ao escrever essas coisas percebi, em retrospecto, que aquilo que estava tentando fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa especulativamente desenvolvido por Ernst Tugendhat na década de 1970 no livro Vorlesungen zur sprachnalytischen Philosophie, que acabou abandonado pela influência sempre crescente das concepções externalistas da referência. Esse programa poderia a meu ver ser “fregeanamente” concebido como sendo, para o caso fundamental da frase predicativa singular, o de analisar o sentido representativo do termo singular como sendo a sua regra de identificação (Identifikationsregel), o sentido representativo do termo geral como sendo a sua regra de aplicação (Verwendungsregel) e sentido representativo da frase predicativa completa como sendo a sua regra de verificação (Verifikationsregel). Essa última regra seria a resultante da aplicação combinada das duas primeiras, o que foi concebido por Tugendhat como uma forma analiticamente aprofundada de se falar da condição de verdade identificada com o significado. Como consequência, meu objetivo no presente texto deixa-se também explicar como sendo o de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua natureza, subdivisões e relações, além de tentar esclarecer atributos a elas relacionados, como os de existência e verdade.
     Reconheço que a minha tentativa de produzir uma elaboração geral dessas assunções nos três primeiros capítulos permanece inevitavelmente esquemática e em alguns momentos rudemente especulativa. Mas o próprio sucesso do tratamento posterior das expressões referenciais – que depende apenas do que há de mais plausível nessas assunções – em certa medida também as vindica.
     Essas são as estações do presente texto, que foi escrito na intenção de ser entendido por leitores que, apesar de versados em filosofia, não precisem possuir conhecimento especializado de filosofia da linguagem.






















AGRADECIMENTOS


Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no período de 2009/2 a 2011/1 e onde pude desenvolver uma primeira versão completa do presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo versões em inglês e em alemão de minhas idéias sobre nomes próprios e termos gerais. Também gostaria de agradecer ao professor João Branquinho pelas discussões sobre nomes próprios e verificacionismo em seus colóquios na Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato são ao professor Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar início a essa pesquisa, assim como aos professores Guido de Almeida, Nelson Gomes, André Leclerc e Daniel Durante, por objeções e estímulos. Devo também agradecimentos ao professor John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley no ano de 1999. Em termos de metodologia e idéias foram Searle e Ernst Tugendhat os filósofos atuais que mais me influenciaram ao escrever esse livro. Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antônio de Almeida por terem, há muitos anos, me tornado consciente, por meio do exemplo incomparável dos grandes clássicos, da importância de uma aproximação sistemática das questões filosóficas.







SUMÁRIO

                   PREFÁCIO

PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA

1.     INTRODUÇÃO
2.     SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA
3.     FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS
4.     HUSSERL: AÇÕES INTENCIONAIS

   PARTE II: TERMOS SINGULARES

5.     CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
6.     TERMOS INDEXICAIS
7.     DESCRIÇÕES DEFINIDAS
8. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS
9.     NOMES PRÓPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-
      HISTÓRICAS
10. NOMES PRÓPRIOS (III): META-DESCRITIVISMO
     CAUSAL

PARTE III: TERMOS GERAIS

11.                         INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
12.                         PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
      EXTERNALISTA
13.                         AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL












             PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA




















1. INTRODUÇÃO


Explicar os mecanismos pelos quais as expressões referenciais referem tem sido o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o que são expressões referenciais? Ora, elas são todas as expressões (palavras, combinações de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Enquanto termos, tais expressões são chamadas de categoremáticas, distinguindo-se das expressões sincategoremáticas, de palavras como ‘e’, ‘não’, ‘se... então’, ‘alguns’, cuja função na linguagem é meramente estrutural.
     No interior de frases há duas espécies mais gerais de expressão referencial: o termo singular e o termo geral. A forma mais distintiva de termo singular é a do nome próprio, como Sócrates. O termo singular pode ser definido como uma expressão cuja função é a de singularizar um único objeto (um particular) ao indicar qual ele é dentre todos. Por conseguinte, o termo singular não pode funcionar de maneira a se referir a mais de um objeto. A forma mais distintiva de termo geral é a de propriedades, como a de ser sábio. O termo geral pode ser definido como uma expressão que designa propriedades de objetos ou relações entre objetos. Embora um termo geral possa designar uma propriedade que se instancia uma única vez em um único objeto (ex: a propriedade de Cabral de ter descoberto o Brasil), ele geralmente designa propriedades que se instanciam em uma variedade de objetos, como é o caso da propriedade de Sócrates de ser sábio, que também se instancia em Platão, ou da propriedade relacional de Sócrates de ser mais velho do que Platão, que também se instancia na relação entre Platão e seu aluno Aristóteles. Nas frases predicativas singulares, ou seja, frases da forma Fa (como “Sócrates é sábio”), os termos singulares comparecem como sujeitos e os termos gerais como predicados. Tais frases são tipicamente capazes de ser verdadeiras ou falsas.
   O tema central desse livro será a investigação dos mecanismos através dos quais as variadas formas de termos termos singulares e gerais são capazes de se aplicar a suas referências.

As metafísicas da referência
Boa parte do conteúdo desse livro será, todavia, crítico. Em meu juízo a filosofia da filosofia da linguagem contemporânea se encontra assolada pelo que gostaria de chamar de metafísicas da referência. São idéias prima facie contraintuitivas que giram em torno do externalismo, do causalismo e do anticognitivismo semântico. Um exemplo disso é a sugestão de Saul Kripke, Keith Donnellan, Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas ligando o objeto ao seu nome poderia bastar para explicar a função referencial de nomes próprios e termos gerais, na independência do que possamos ter em mente com eles. Outro exemplo de metafísica da referência é a tese externalista de Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as próprias mentes, possam existir no mundo externo (físico ou social) “fora de nossas cabeças”. Ainda outro exemplo é a posição de David Kaplan, John Perry, Nathan Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenças contém elementos do próprio mundo externo como constituintes de seu conteúdo, daquilo que estão a dizer. Não obstante o fato de semelhantes idéias ofenderem nossas intuições semânticas mais elementares, elas se consolidaram como uma nova ortodoxia e são vistas hoje por especialistas como resultados “sólidos” de uma reflexão filosófica que já há algum temmpo cristalizou-se na forma de um escolasticismo formalista.
     Quero nesse livro tornar patente o insucesso das doutrinas mais propriamente metafísicas desses filósofos. Isso não é o mesmo, obviamente, que rejeitar a importância filosófica de seus principais argumentos. Se eles não fossem importantes não haveria porque perder tempo com a sua discussão. E a razão dessa importância é que insights filosóficos, mesmo quando equívocados, demandam uma resposta, e ao fazerem isso revelam um potencial esclarecedor em uma matéria na qual o progresso costuma ser dialético. Sem o criativo e ousado revisionismo desses filósofos, sem os desafios e problemas por eles criados, idéias concorrentes dificilmente seriam providas do combustível intelectual necessário para alçarem vôo.

O primado do saber comum
Para combater as metafísicas da referência são necessárias algumas armas. A primeira delas é metodológica. Ela diz respeito à decisão de levar a sério o um tanto esquecido princípio fundamental da filosofia da linguagem ordinária admitido por filósofos como G.E. Moore e J.L. Austin, segundo o qual ao menos o ponto de partida de nossas investigações deve residir em nossas intuições pré-filosóficas de senso comum, refletidas nos usos das expressões em nossa linguagem corrente.
     A idéia subjacente à abordagem dos filósofos da linguagem ordinária é conhecida: os usos correntes das palavras sedimentam a experiência milenar das comunidades humanas, e uma atenção escrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distinções categoriais importantes e prevenir confusões e equívocos. Exemplos de princípios do senso comum são “Sabemos com certeza que existe um mundo externo”, “Sabemos que o passado existiu”, “Sabemos que existem outras pessoas”, “Sabemos que o preto não é branco” e ainda “Sabemos que uma coisa é ela mesma”.[1]
     Uma objeção conhecida é a de que os princípios do senso comum não são tão certos assim, pois parece claro que ao menos alguns deles foram falseados, quer pela ciência, quer por alterações em nossa própria concepção de mundo (Weltanschauungen). Para exemplificarmos o primeiro caso, basta nos lembrarmos que crenças de senso comum como a de que o sol gira em torno da Terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram decisivamente refutadas por Galileu. Contudo, houve um tempo em que essas crenças poderiam ser consideradas verdades de “senso comum”.
     Uma resposta a essa objeção consiste na alternativa seguida por alguns dos filósofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoção do assim chamado sensismo comum crítico (critical commonsensism)[2]. Segundo essa alternativa os princípios de senso comum são altamente confiáveis, mas não são indubitáveis. Embora haja o que se dizer a favor desse alternativa, é também verdade que ela enfraquece a própria posição de quem defende o senso comum como ponto de partida, pois se os princípios do senso comum podem ser falsos, então parece que precisamos de um critério para distinguir os princípios de senso comum verdadeiros dos falsos. Esse critério, porém, não pode se basear no senso comum, sob a pena de circularidade.
     Não pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princípios do senso comum contra toda e qualquer objeção. Mas quero demonstrar que a objeção principal contra o senso comum, segundo a qual muitos deles não resistem ao progresso da ciência e das mudanças em nossa concepção do mundo, é meramente aparente. Ela deriva de uma confusão entre formas de “senso comum” inautênticas com a forma autêntica, que gostaria de chamar de forma modesta ou ingênua.
     Quero começar considerando as objeções vindas da ciência. Tendo em consideração a ciência empírica, considere os seguintes enunciados:

(a)   O sol circunda a Terra diariamente.
(b)  Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a resistência do ar.
(c)   O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a velocidades próximas às da luz.

     Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela ciência. Galileu demonstrou que (a) e (b) são enunciados falsos, o primeiro porque é a Terra que circunda o sol e o segundo porque no vácuo todos os corpos caem com a mesma aceleração. E Einstein demonstrou que (c) é falso, pois a passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta quanto mais um corpo se aproxima da velocidade da luz. O filósofo Bertrand Russell, por exemplo, enfatizou o fato de que a teoria da relatividade veio a demonstrar que essa e ainda outras crenças de senso comum não resistem a uma consideração mais acurada.[3]
     Meu ponto, porém, é que nenhum dos enunciados acima é legitimamente pertencente ao senso comum no sentido próprio da expressão, que chamei de modesto ou ingênuo. Esses enunciados são na verdade extrapolações radicadas nos enunciados do senso comum modesto, extrapolações de interesse especulativo que foram feitas no interesse da ciência por cientistas e mesmo por alguns filósofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum, dos quais (a), (b) e (c) são extrapolações, podem ser versados respectivamente como se segue:

     (a’) O sol cruza os céus diariamente.
     (b’) Corpos pesados ao redor de nós costumam cair mais rápido do que
            corpos mais leves.
     (d’) O tempo flui igualmente para todos nós, estejamos ou não em
            movimento.

Ora, esses enunciados nunca deixaram de ser verdadeiros. Afinal, é óbvio que (a’) é um enunciado verdadeiro, pois ele é anterior à distinção entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma é que a cada dia o disco luminoso que chamamos de sol é algo que vemos nascer no leste, que cruza o céu e se põe no oeste, o que ninguém haverá de discutir.[4] Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no vácuo (b’) também é um enunciado verdadeiro, pois tudo o que ele diz é que corpos leves como a pluma caem mais lentamente do que, por exemplo, pedras, em circunstâncis normais. Finalmente, o enunciado (c’) continua verdadeiro, pois ele diz respeito aos movimentos das coisas ao nosso redor, abstraindo de medidas impossivelmente acuradas da passagem do tempo. Mas então qual é a diferença entre os enunciados (a)-(b)-(c) e (a’)-(b’)-(c’), que faz com que os primeiros tenham sido refutados pela ciência enquanto os segundos continuem verdadeiros? A resposta é que o senso comum, cientificamente ou especulativamente motivado, historicamente interpretou os enunciados do senso comum (a)-(b)-(c) como se eles respectivamente implicassem (a’)-(b’)-(c’). Não obstante, os enunciados que foram efetivamente originados de nossas práticas lingüísticas ordinárias (nossos jogos de linguagem, se quiserem) são como (a’) (b’) e (c’), continuando perfeitamente confiáveis, mesmo após Galileu e Einstein. O que o contraste entre os exemplos (a)-(b)-(c) e (a’)-(b’)-(c’) demonstram é que não foram as verdades do senso comum modesto, radicadas em nossas práticas linguísticas e formas de vida cotidiana, que foram refutadas pela ciência. O que a ciência refutou foram extrapolações do senso comum fora de seu contexto originário, produzidas por cientistas e filósofos. Se levarmos em conta essa distinção vemos que não há conflito algum entre as descobertas da ciência e as afirmações do homem comum relativas ao senso comum modesto. Contudo, com essas constatações não podemos pretender demonstrar que as verdades do senso comum modesto são irrefutáveis em princípio, pois nada nos garante que a qualquer momento o mundo passe a andar as avessas. Tudo o que essas constatações podem demonstrar é que a ciência realmente nunca as refutou e que ela nunca se opôs ao senso comum modesto.
     Esse mesmo raciocínio se aplica ao conhecimento a priori pertencente ao senso comum, como o de que um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, de que o branco não é preto ou de que não existem frases sem verbos. Considere agora o caso de enunciados como (d) “O bem é admirável”, que é gramaticalmente idêntico a enunciados como (h) “Sócrates é sábio”. Ambos têm a mesma forma gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito não designa nenhum objeto visível, Platão teria concluído que esse sujeito precisa designar “O Bem-em-si-mesmo”, a idéia do bem, existente apenas no reino inteligível das idéias eternas e imutáveis.
     Para chegar a sua conclusão, Platão se baseou em intuições da linguagem ordinária concernentes à distinção gramatical entre sujeito e predicado. Todavia, a introdução da lógica quantificacional por Frege no final do século XIX demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o que é bom é admirável ou “Para todo x, se x é bom, então x é admirável”, onde a palavra ‘bem’ passa à função do predicado ‘bom’, deixando de se referir a um objeto, o que diminui a pressão para a aceitação da idéia platônica do bem. Contudo, a sugestão de que o sujeito ‘O Bem’ se refere a um objeto abstrato, a idéia, não pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem ordinária. Embora ela seja uma extrapolação especulativa feita por um filósofo por apelo implícito à gramática da linguagem natural, seria injusto responsabilizar esta última por isso. Afinal, o advento da lógica quantificacional não refutou a gramática da linguagem natural, mas selecionou alguns de seus traços mais fundamentais, acrescentando-lhe, ao fazer isso, uma nova e filosoficamente importante dimensão de análise.
     Esse último exemplo reforça a conclusão de que é falsa a freqüente afirmação de que o desenvolvimento da ciência veio a contradizer o senso comum. O que o desenvolvimento da ciência veio a contradizer foram extrapolações especulativas que cientistas e filósofos fizeram com base no senso comum e na linguagem ordinária, como a sugestão de que o sol gira em torno da terra e a de que existe outro mundo formado por objetos abstratos. Mas nada disso tem a ver com a aplicação do senso comum modesto e da linguagem ordinária no contexto em que essas intuições emergiram.

     Consideremos agora mudanças do senso comum que foram colocadas em questão por alterações em nossa concepção do mundo (Weltanschauung), como a crença de que Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos. Na grande maioria das culturas humanas a crença em Deus (ou nos deuses) e na alma foi admitida como inquestionável, especialmente na cultura européia nos últimos dois mil anos, quando a rejeição pública dessas crenças era capaz de merecer pena capital. Mas hoje não se pode dizer que essas crenças sejam mais universalmente aceitas, muito pelo contrário. Assim, parece que o senso comum é capaz de se alterar com a alteração de nossa concepção do mundo.
     Minha reação a essa objeção não difere muito da que tenho para a objeção proveniente do progresso da ciência. Essas crenças não pertenceram propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Há civilizações inteiras, sobretudo na Ásia, em que está ausente a ideia de Deus enquanto pessoa e que, embora possuam religiosidade, não a fundamentam na crença em Deus.[5] Consequentemente, a crença em Deus e na alma não possui a universalidade que se espera das crenças do senso comum modesto ou ingênuo. Na verdade essas crenças resultaram do senso comum modesto adicionado ao wishful thinking, uma reação particularmente pronunciada em nossa civilização cristâ. Não obstante, era certamente muito mais fácil acreditar na existência de um Deus pessoal ou de uma alma independente do corpo há centenas de séculos atrás, em épocas anteriores ao acúmulo de informações divergentes produzidas pelo progresso científico. Contudo, mesmo assim sempre foi nesses casos adicionado um elemento de , de crença para além dos fatos, ao que foram aduzidas razões. Isso também se demonstra linguisticamente: uma pessoa com crença religiosa geralmente não diz “Eu sei que possuo uma alma independente do corpo” ou “Eu sei que Deus existe”: ela prefere dizer que “Eu acredito...”, onde a crença em questão tem a natureza da fé. Por outro lado, a mesma pessoa em momento algum recusa a admitir que não só acredita, mas que sabe que existe um mundo externo, que sabe que esse mundo existia mesmo antes de ela ter nascido etc.
     Espero ter nesse ponto tornado plausível a idéia de que o mais alto tribunal da razão pertença ao senso comum modestamente compreendido. Afinal, como a própria ciência só pode ser construída sob a assunção de conhecimentos de senso comum modesto, não parece ser sequer em princípio possível destruir por completo o senso comum modesto sem que com isso se destrua os próprios fundamentos da racionalidade. Ademais, se nem a ciência nem as alterações em nossa concepção de mundo por ela influenciadas são suficientes para desfazer a força do senso comum em sua forma modesta, então parece que mesmo hipóteses céticas radicais, como a de que o mundo é um sonho, podem ser conformadas com o senso comum modesto. Considere, por exemplo, a possibilidade de que o mundo externo não seja real. Mesmo que ela se demonstre verdadeira, ainda assim deve ser sustentado que esse mundo continua possuindo realidade, ao menos no sentido usual de aplicação da realidade, que é a coisas que são percebidas com máxima intensidade, que são co-sensorialmente e intersubjetivamente experienciáveis, que seguem as leis naturais e que não dependem de nossa vontade.
   Uma conclusão resultante da comparação entre senso comum e ciência é que quando consideramos a razão natural dentro de seus despretenciosos limites próprios, a ciência não se revela como oposição, mas como extensão do senso comum. Essa conclusão reforça nossa confiança em que no começo de tudo se encontram verdades do senso comum adequadamente interpretadas. (Com isso não estou defendendo que essas verdades se sustentam indiferentemente dos argumentos filosóficos que as contestam, como pretendeu um filósofo como Thomas Reid. O que quero dizer é que elas servem como os pontos de apoio confiáveis. Assim, embora seja possível responder ao paradoxo de Zeno dizendo que é uma verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um pé depois do outro, isso não nos satisfaz, pois isso não põe à descoberto a fonte de confusão.[6] Também um princípio de senso comum modesto, como o de que o mundo externo existe pode, eu creio, ser justificado contra argumentos filosóficos.  Contudo, mesmo isso só pode ser feito com base em outros princípios de senso comum.)
     Não estou querendo sugerir que devamos praticar uma filosofia do senso comum restrita à exposição contrastiva das verdades do senso comum modesto juntamente com a sua expressão nas intuições da linguagem ordinária. Minha intenção é apenas a de estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes diante das idéias filosóficas ao senso comum informado pela ciência – o que gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a ciência formal (lógica, matemática) quanto a ciência empírica (a física, a biologia, a neurociência, a psicologia, a lingüística, a sociologia...) são capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas verdades. Assim, quanto a uma ciência formal como a lógica, sabemos que o sujeito ‘o bem’ na frase “O bem é admirável” não deve ser interpretado como um sujeito lógico. E quanto a uma ciência empírica como a astronomia, sabemos que pela distinção entre movimento aparente e real a frase “O sol atravessa o céu diariamente” pode ser verdadeira sem implicar que ele circunda a Terra. O que chamo de saber comum é, pois, o todo que inclui o senso comum modesto e o conhecimento científico que lhe foi adicionado. Esse saber comum não precisa, certamente, ser compartilhado entre todos os membros da comunidade linguistica. Mas ele é comum no sentido de que é em princípio passível desse compartilhamento: ele é aquele conhecimento com o qual pessoas razoáveis irão por-se de acordo, caso se tornem habilitadas a compreendê-lo e avaliá-lo. É nesse sentido que interpreto a afirmação heracliteana de que devemos nos cercar do saber comum como a cidade que se cerca de suas muralhas. E minha proposta final é a de que o tribunal último capaz de possibilitar um melhor juízo sobre a razoabilidade de nossas teses filosóficas é esse saber comum que representa nosso senso comum cientificamente informado. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:

                                          Teoria filosófica
 




   Princípios do senso                                          Conhecimento científico
   comum modesto
                                          SABER COMUM

As setas sugerem o que chamo de primado do saber comum, a prioridade do senso comum modesto e da ciência sobre a filosofia. E o ponto a ser acentuado é o da necessidade de coerência das teses filosóficas com o saber comum. Idealmente, a teoretização filosófica deve buscar o equilíbrio reflexivo, que se dá pela sua harmonização com a mais ampla possível base de saber comum. Com efeito, as nossas teorias filosóficas tornam-se mais razoáveis na medida em que alcançam essa espécie de coerência. Quanto às formas redutivas de teorização que não alcançam essa coerência – como é o caso das metafísicas da referência – elas podem ser admitidas como propostas por vezes interessantes e instigantes do ponto de vista especulativo, mas que nem por isso devem ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse me parece ser o caso de muito daquilo que as metafísicas da referência propõem.
     Essas considerações também oferecem uma resposta para o problema que surge quando a razão filosófica e o senso comum se contradizem. Minha suspeita é que razão (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e senso comum (em seu lugar próprio, ou seja, como senso comum modesto reconciliável com o conhecimento científico) de fato nunca entram em contradição, a não ser em aparência, uma vez que a própria racionalidade da teoria filosófica decorre de seu equilíbrio reflexivo com o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradição entre a reflexão filosófica e o saber comum emerge, cabe ao filósofo tratá-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que conciliem a teorização filosófica com o senso comum modesto e com a informação científica disponível.

O filosofar por exemplos
Quero complementar o princípio metodológico do primado do saber comum com aquilo que Avrum Stroll chamou de método de filosofar por exemplos.[7] Esse método se inspira nos procedimentos e ideias da filosofia terapêutica de Wittgenstein, que demandava um exame minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma expressão lingüística, naturais ou inventados, na intenção de assim melhor elucidar os seus significados e de prevenir-nos de suas falsas interpretações.
     A ideia de uma filosofia terapêutica ou crítica da linguagem teve proeminência na filosofia do último Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer a linguagem de suas férias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso deveria ser feito pela exemplificação modos como realmente usamos as expressões, disso resultando que os absurdos encobertos da metafísica acabariam por se apresentar a si mesmos na forma de absurdos evidentes.[8] Embora deva haver um resíduo de verdade restante, pretendo demonstrar nesse livro que uma crítica da linguagem é um instrumento útil na crítica às atuais metafísicas da referência.[9]
     Essa tarefa é especialmente importante na filosofia atual, em que o veio crítico da filosofia do senso comum e da linguagem ordinária, que vem de Thomas Reid a G. E. Moore e do último Wittgenstein a J. L. Austin, mas que tem suas raízes em filósofos como Aristóteles e Locke, se encontra praticamente extinto. Parece, contudo, que é pela negligência da consideração da prática linguística como um todo que assistimos hoje, na filosofia da linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas daquilo que Wittgenstein chamou de “castelos de areia conceituais” resultantes de “nós do pensamento”; ou seja: bem urgidos equívocos semânticos resultantes do desejo de inovação acompanhado de uma falta de atenção para com as sutis diferenças de significação ganhas pelas expressões em seus diversos contextos de uso.
     Contra a filosofia terapêutica de Wittgenstein objetou-se que não é plausível a idéia de que a filosofia não possa nem deva ser também teorética e sistemática, no sentido de conter generalizações abrangentes e substantivas. Contudo, essa não é a interpretação mais caritativa da metafilosofia wittgensteininana, uma vez que não é aquela que salva o maior número de verdades.[10] Pois por trás das confusões conceituais, como explicação do próprio caráter de profundidade dessas confusões, há sempre algum insight teorético legítimo para cuja expressão pode faltar desenvolvimento e conceitologia adequados. Com efeito, qualquer que seja a crítica da linguagem que venhamos a fazer, a sua eficácia terapêntica repousa sobre o fato de ela se encontrar inevitavelmente impregnada de pressupostos teóricos que podem ser ou não ser explicitamente trabalhados. Como o próprio Wittgenstein percebeu, a formação de apresentações panorâmicas (übersichtliche Darstellungen) da estrutura lógico-gramatical dos conceitos constitutivos dos núcleos mais centrais de nosso entendimento é possível e mesmo necessária. Como ele escreveu em uma famosa passagem:

Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão panorâmica dos usos de nossas palavras – falta caráter panorâmico à nossa gramática. A representação panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias.[11]

É interessante notar que a articulação intermediária não precisa ser encontrada já pronta, capaz de ser exposta por meio de frases auto-evidente. Ela pode ser simplesmente uma regra geral, um elo comum relacionando uma variedade de expressões linguísticas, não se deixando apresentar através de frases auto-evidentes. Esse elo comum é mais propriamente chamado de descritivo se ele já se encontrar manifesto na linguagem; mas ele será melhor chamado de teorético se precisar ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na diversidade que a linguagem realiza. É verdade que ao propor semelhantes idéias Wittgenstein também afirmava que a filosofia deveria ser descritiva e não-teorética. Mas como notaram G. P. Baker e P. M. S. Hacker, o que ele pretendia através disso era acima de tudo rejeitar o cientismo, entendido como a assimilação do trabalho filosófico ao modelo de teoria da ciência particular e à teoretização metafísica mimetizadora da investigação científica[12] – o cientismo – que se torna redutivo de possíveis intuições filosóficas ao romper com a mediação do senso comum. Contra isso, o que desejamos é encontrar e expor as regras que governam a aplicação de nossos termos semanticamente relevantes, sem para tal comprometer o equilíbrio reflexivo com nosso saber comum. Seria através desse equilíbrio, da coerência com o todo daí resultante, que o saber filosófico mais facilmente se aproxima da verdade.

Conhecimento tácito do significado: a explicação tradicional
Também admitimos a ideia geralmente tida como óbvia de que uma linguagem é um sistema de signos governados por regras e que essas regras são convencionais. Convenções linguísticas são regras que os participantes da comunidade linguística geralmente seguem e esperam que os outros participantes também sigam, mesmo que lhes falte consciência dessas regras.[13] É esse caráter compartilhado das convenções que governam a linguagem que nos possibilita usá-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Nesse contexto, uma das assunções mais fundamentais da filosofia da linguagem mais tradicional é a de que não temos consciência das regras semânticas que governam os usos que fazemos das expressões mais centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente automatizadas em nós, de modo que ao usarmos uma expressão não precisamos tomar consciência do complexo entrelaçado de acordos tácitos envolvidos. Uma razão disso encontra-se no próprio modo como as expressões geralmente são aprendidas. Filósofos analíticos como Wittgenstein, Gilbert Ryle, P.F. Strawson, Michael Dummett e Ernst Tugendhat sempre enfatizaram o fato de que nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionais que determinam os seus usos, não costuma ser feito por meio de definições verbais, mas de modo não-reflexivo, através de exemplificações positivas e negativas realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser confirmados ou desconfirmados por outros falantes.
     Se considerarmos que esse aprendizado não-reflexivo inclui termos filosóficos centrais como ‘conhecimento’, ‘consciência’, ‘causalidade’, ‘bem’, e mesmo termos da filosofia da linguagem como ‘significado’, ‘referência’ e ‘verdade’, que por sua estrutura conceitual supostamente mais complexa são particularmente elusivos, torna-se claro que a inconsciência semântica pode se tornar uma grande fonte de confusões quando o filósofo procura esclarecer o que esses termos querem dizer, especialmente se ele estiver sob a pressão de alguma finalidade generalizadora extrínseca ao que a natureza do objeto de sua investigação requer. Esse ponto de vista foi defendido por Wittgenstein em toda a sua trajetória filosófica, como demonstram os seguintes excertos:

A linguagem ordinária é parte do organismo humano e não menos complicada do que este. (...) As convenções implícitas para o entendimento da linguagem ordinária são enormemente complicadas.[14]
Nosso esforço pela generalidade tem outra origem maior. Filósofos têm os métodos da ciência natural em vista e são inevitavelmente tentados a perguntar e responder questões ao modo da ciência. Essa tendência é a própria fonte da metafísica e deixa o filósofo em completa escuridão.[15]
Os homens não se dão conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas. A menos que uma vez tenham se dado conta disto. – E isso significa: não nos damos conta daquilo que, uma vez visto, é o mais marcante e o mais forte.[16]
A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem.[17]

     Muitos pensaram no procedimento de explicitação das convenções implícitas da linguagem natural como se isso fosse a descoberta de um procedimento revolucionário indentificador da filosofia como pura análise conceptual. Contudo, à parte artifícios como aquilo que Quine chamou de ascensão semântica (semantic ascent), que é pouco mais do que o uso de uma metalinguagem semântica na descrição mais clara e distinta da estrutura conceitual sob análise[18], ou a cuidadosa consideração dos variados usos linguísticos ordinários, de modo a nos tornar conscientes das sutis diferenciações semânticas entre as palavras, não há nada de verdadeiramente novo nas características gerais do procedimento em questão. Pois a análise do significado de termos filosoficamente relevantes na tentativa de descrever a verdadeira estrutura de nosso pensamento sobre o mundo não é mais do que uma retomada (com a adição de novos métodos de análise e de uma mais rigorosa atenção às sutilezas da linguagem) de um projeto que perpassou toda a história da filosofia ocidental e que já havia tomado a forma de análise conceitual nos diálogos de Platão. Afinal, nesses diálogos Sócrates geralmente aparecia com questões do tipo “O que é X?”, onde X estava no lugar de termos como ‘conhecimento’, ‘justiça’, ‘beleza’... seguindo-se daí as tentativas geralmente aporéticas de se encontrar uma definição capaz de resistir a objeções e contra-exemplos.

Duas objeções à explicação tradicional
A idéia de que possuimos conhecimento implícito das convenções que determinam os significados de nossas expressões lingüísticas foi desafiada por defensores do externalismo semântico. Segundo o externalismo, os significados das expressões podem residir fora do domínio do psicológico, no mundo físico e social, dependendo assim apenas de seus objetos de referência, assim como, eventualmente, de processos neurobiológicos envolvendo mecanismos causais autônomos. Em apoio a essa idéia pode ser aduzido o próprio caráter não-reflexivo das regras semânticas que determinam nossos usos lingüísticos. Se nos falta consciência do significado, então por que ele não pode ser simplesmente não-psicológico, dependo tão somente de uma maquinaria neuronal impossível de ser tornada consciente? Nesse caso não seria em princípio sequer necessário o envolvimento de elementos mentais na apreensão e manipulação do significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais autônomos, irresgatáveis para a consciência. John McDowell ilustra essa posição ao observar contra Michael Dummett que

Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto é o portador de um nome familiar sem ter a menor idéia de como o reconhecemos. O presumível mecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e não psicológica] – suas operações sendo totalmente desconhecidas de quem as possui .[19]

     Para McDowell a função referencial dos nomes próprios não é para ser explicada com base em regras cognitivas implícitas de identificação do objeto, a serem descritivamente resgatadas, pois:

As opiniões dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciais divergentes com respeito a nomes são produtos de auto-observação, tanto quanto isso é acessível, de um ponto de vista externo. Elas não são intimações vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamente conhecida, uma receita para o discurso correto que guia o comportamento do lingüista competente. [grifo nosso][20]

     Essas conclusões encontram-se em franca oposição ao que pretendo defender nesse livro. Pretendo demonstrar que alguma instanciação de regra semântico-cognitiva interna, mesmo que implícita, acaba sendo indispensável à função referencial, se esta for entendida em seu sentido próprio. Veremos que para haver referência é necessario que algum elemento cognitivo, mesmo que irreflexivo, seja instanciado em alguma medida, em algum momento, em algum de seus usuários, ainda que isso não costume ser necessário em toda medida, a todo momento e para qualquer usuário.
     Eis como podemos contra-argumentar. Uma diferença entre a opinião dos falantes resultante da auto-observação do ponto de vista externo sugerida por McDowell e a opinião resultante da auto-observação do ponto de vista interno pretendida por Dummett deveria ser a seguinte: o resultado da opinião consequente à auto-observação do ponto de vista externo deveria ser gradualmente reforçado pela consideração de uma multiplicidade de exemplos, diversamente do resultado da opinião consequente à auto-observação do ponto de vista interno, que resulta da tomada de consciência da base convencional. Mas não parece ser isso o que realmente acontece. Para evidenciar esse ponto quero considerar o significado da palavra ‘cadeira’, que quero tomar como modelo devido a sua comparativa simplicidade. O que é uma cadeira? Todos nós sabemos o significado dessa palavra, mas normalmente não nos damos conta de como seria a sua explicitação analítica através de uma definição. Assim, seguindo o moto wittgensteiniano de que o significado é aquilo que a explicação do significado explica eis uma definição que me parece perfeitamente razoável e que explica o significado da palavra ‘cadeira’:

(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto feito para ser usado por uma só pessoa.

Não é difícil mostrar que essa definição realmente explicita o que queremos dizer ao usar a palavra ‘cadeira’. Podemos sempre imaginar casos limítrofes, como o banco para uma pessoa cujo encosto tem apenas dez centímetros de altura (é banco ou cadeira?), ou a cadeira cujo encosto foi retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou provisoriamente virou um banco?), ou um tronco de árvore que passou a ser usado como cadeira, mas que para tal sofreu algum entalhe nas mãos de um marceneiro (ainda é um tronco de árvore usado como cadeira ou já é uma cadeira?). Casos limítrofes são inevitáveis, posto que nossos conceitos são inerentemente vagos e que essa vagueza se origina da propriedade metafísica de indeterminação inerente à própria realidade que pretendemos apreender. Há também casos que apenas parecem ser limítrofes, mas acabam por se revelar decidíveis. Eis dois exemplos que retiro de um texto de Paul Elbourne.[21] O primeiro é o de uma sociedade de pessoas extremamente obesas e preguiçosas, para as quais são fabricados bancos especiais nos quais duas ou três pessoas normais poderiam se sentar. Uma diferença entre banco de jardim e cadeira é que nos bancos de jardim mais de uma pessoa pode se sentar. Nesse caso, parece que a distinção entre cadeira e banco desapareceu. Contudo, um exame mais acurado da definição mostra que o que caracteriza uma cadeira não é que ela não possa ser usada por mais de uma pessoa, mas que ela é um artefato feito para ser usado por apenas uma pessoa de cada vez. Por conseguinte, os supostos bancos de jardim dessa sociedade são na verdade cadeiras, uma vez que foram já fabricados para serem usados como cadeiras, ou seja, para uma só pessoa. O segundo caso é o do jardim de um clube que tem por regra que cada banco só pode ser ocupado por uma única pessoa de cada vez. Nesse caso eu diria que os bancos continuam a ser bancos, pois foram feitos para serem usados por mais de uma pessoa, embora estejam sendo usados como se fossem cadeiras. Além do mais, o que justifica uma regra conceitual é a sua utilidade nas inúmeras vezes nas quais ela pode ser aplicada sem dificuldades e não os poucos casos nos quais ela deixa de ser útil.

 Quando ouvimos a definição de cadeira pela primeira vez ela nos atinge como algo que parece correto. Depois que a ouvimos, podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto e percebemos que não conseguimos. Podemos contrastar um banco de jardim, que possui encosto, mas que é feito para mais de uma pessoa sentar, com uma cadeira. Parece que como confirmação isso já nos basta. Mas não precisamos ir além, imaginando toda sorte de cadeiras (cadeiras de balanço, cadeiras de lona, cadeiras de rodas, poltronas...) de modo a irmos reforçando indutivamente nossa crença na definição. Contudo, se McDowell estivesse certo e nosso conhecimento do significado de um nome comum como ‘cadeira’ fosse resultado da auto-observação de um ponto de vista externo, então parece que ganharíamos uma convicção crescente de que cadeiras são bancos com encosto na medida em que isso fosse indutivamente confirmado pela consideração de um número cada vez maior de exemplos. Mas não é isso o que acontece e a explicação óbvia é que a definição apenas recupera a convenção semântica resultante do acordo tácito entre os falantes        a governar o uso da palavra ‘cadeira’ nas identificações de cadeiras. Mas se o que temos é uma convenção, então um elemento psicológico precisa estar envolvido, mesmo que de modo tácito, não-consciente, mesmo que constituído apenas do que na próxima seção iremos chamar de uma cognição não-reflexiva. A definição (c) torna explícita uma convenção que se instancia em cognições implícitas, não-reflexivas, não-conscientes, confirmando assim a explicação tradicional.
     Um outro argumento que vai contra a idéia de que temos acesso cognitivo implícito às convenções semânticas que governam nossas expressões foi desenvolvido por Gareth Evans, o filósofo que mais diretamente influenciou McDowell. Evans convida-nos a contrastar a crença que um ser humano tem de que certa substância é venenosa com a disposição de um rato de evitá-la. No caso do ser humano trata-se de uma cognição no sentido de uma crença genuína envolvendo conhecimento proposicional; já no caso do rato trata-se de uma simples disposição para reagir a certo odor e não propriamente de uma crença. A diferença se mede no fato de que

É da essência de um estado de crença que ele esteja a serviço de muitos distintos projetos e que sua influência sobre qualquer projeto seja mediada por outras crenças.[22]

     Assim, se uma pessoa tem a crença de que certa substância é venenosa, ela pode com base nessa crença tanto tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o veneno quanto, digamos, ingerir o veneno na intenção de se suicidar. Nós relacionamos inferencialmente o conteúdo cognitivo da crença de que uma substância seja venenosa a uma diversidade de outras crenças, por exemplo, o caso de alguém que acredita que se tornará imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso conhecimento das regras semânticas não é susceptível de tais inferências, raciocina Evans, ele não é constituído de estados de crença reais, mas de estados insulares, semelhantes à disposição do rato. Eles não são, pois, estados psicológicos propriamente cognitivos.[23]
     A caracterização da crença proposta por Evans é interessante e correta. Mas a conclusão é dubitável. Certamente, nossa crença de que certa substância é venenosa é consciente porque não é insular e vice-versa. Mas o ponto crucial é que o argumento de Evans nos fecha os olhos para a imensa distância que existe entre nosso domínio das regras semânticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno. Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras da gramática portuguesa, como no exemplo simples das regras gramaticais de concordância verbal. Uma criança pode ser capaz de aplicá-las corretamente sem ser capaz de explicitá-las verbalmente e conscientemente. Mas tais regras já lhe permitem realizar uma diversidade de aplicações a verbos que são diferentes em diferentes contextos. Mesmo não sendo consciente, o conhecimento da gramática parece aqui envolver conhecimento proposicional e crença, sendo o conhecimento tácito que o falante tem da gramática inferencialmente avaliável na interação com os seus outros sistemas de conhecimento e crença, sendo ele também sempre capaz, sob circunstâncias apropriadas, de ser trazido à consciência.[24]
   A conclusão a que chegamos é que há uma gradação entre estados mentais inconscientes mais primitivos e outros mais sofisticados, que incluem crenças e pensamentos. Se admitimos que regras semânticas são aquelas que têm como exemplo mais simples o caso da regra semântico-criterial para identificar cadeiras como bancos com encosto feitos para serem usados por uma só pessoa, então devemos rejeitar conclusões como as de Evans e McDowell. Afinal, essa regra já nos permite fazer inferências simples, como a de que uma cadeira não é um banco, ou de que cinco pessoas dificilmente poderão se sentar em uma cadeira, tendo muito maior proximidade com as regras da gramática portuguesa do que com a regularidade disposicional demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em tais casos, diversamente do caso da disposição do rato, inferências implícitas para outras cognições encontram-se disponíveis, ainda que elas sejam limitadas e que não se possua uma disponibilidade tão ampla quanto o estado de crença mais complexo discutido por Evans.[25] A raiz dessas confusões se encontra a meu ver no fato de que as regras semânticas em questão não têm sido nem seriamente nem suficientemente investigadas em exemplos concretos, diversamente do que espero fazer no curso da presente investigação.

Cognições semânticas não-reflexivas
Em apoio ao modo de ver tradicional, quero ainda apelar para as teorias da reflexivas da consciência. Mas o que são as teorias reflexivas da cosnciência?
     Na filosofia tradicional a ideia já foi sugerida por John Locke, com a sua teoria do sentido interno.[26] Mas ela foi introduzida na discussão contemporânea por D. M. Armstrong.[27] Podemos resumi-la dizendo que existem basicamente dois sentidos para a palavra ‘consciência’. O primeiro é o do que ele chama de consciência perceptual, que consiste no fato do organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao seu redor e a si mesmo. Esse nível de consciência é compartilhado com espécies inferiores: dizemos que um hamster sedado com éter perdeu a consciência porque ele deixou de perceber o mundo. É plausível admitir que nesse nível já existe alguma forma de mentalidade e cognição. Mas ao perceber o mundo o hamster não percebe que percebe. O rato percebe o gato, mas é improvável que ele seja capaz de tomar consciência disso no sentido mais próprio da expressão. Igualmente, quando ameaçada, uma serpente deve sentir raiva (possivelmente o único sentimento de que seu mesocortex é capaz), mas ela não tem consciência da raiva que tem, pois ela certamente não possui qualquer consciência reflexiva... Quando então ganhamos a consciência de que nós mesmos percebemos, sentimos, pensamos? A resposta é dada pela introdução de um segundo sentido da palavra ‘consciência’, este sim para Armstrong verdadeiramente importante. Trata-se daquilo que ele chamou de consciência introspectiva e que nós preferimos chamar aqui de consciência reflexiva (responsável pela consciência dos próprios estados mentais). Segundo Armstrong, a consciência reflexiva emerge evolucionariamente da necessidade de sistemas mais complexos controlarem seus próprios processos: ela tem uma função monitoradora. Para tal os estados mentais de primeira ordem, incluindo os da própria consciência perceptual, se tornam objetos de cognições de ordem superior, a saber, de metacognições simultâneas, as quais são reflexivas do que se processa no primeiro nível (o que D.M. Rosenthal chamou de higher-order thoughts[28]). Só quando temos a consciência reflexiva de um estado perceptual é que podemos dizer que ele “se tornou consciente” (por isso, quando dizemos que uma sensação ou sentimento ou pensamento “é consciente” estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognições). Isso demonstra que a consciência dita perceptual é na verdade uma espécie de “consciência inconsciente”, posto que sendo não-reflexiva nada sabe de si mesma. Provavelmente só os seres humanos e alguns mamíferos superiores são capazes de consciência reflexiva.
      Admitindo essas distinções podemos prosseguir distinguindo entre duas formas de cognição:

(i)   Cognição não-reflexiva: essa é a cognição própria da consciência perceptual; ela é uma cognição que enquanto tal é inconsciente, nada sabendo de si mesma.
(ii)                        Cognição reflexiva: trata-se da cognição que é objeto de uma metacognição de si mesma. Outros estados mentais como sensações, emoções e percepções, também podem ser chamados de reflexivos se vierem acompanhados de metacognições de si mesmos.

   Uma vez de posse dessa distinção nós podemos aplicá-la ao entendimento do status dos significados ou conteúdos cognitivos refletidos nos modos de uso de nossas expressões. Quando dizemos que as regras determinantes dos modos de uso referenciais de nossas expressões não são em geral conscientes, não estamos querendo dizer que suas instanciações são realmente não-cognitivas, que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram verdadeiramente insuladas ou excluídas. O que queremos dizer é apenas que as cognições que instanciam psicologicamente essas regras são de um tipo pré-reflexivo (ou seja, elas não aparecem na forma de cognições reflexivas, faltando-lhes consciência no sentido que Armstrong considerava importante da palavra).[29] Mais ainda: parece ser sempre em princípio possível que essas cognições não-reflexivas envolvidas em nossos usos significativos das palavras sejam explicitadas de maneira a se instanciarem na forma de cognições reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de excrutínio metacognitivo, e que isso nos sirva de base para a o acesso consciente de sua subsequente decomposição analítica. Pode ser que seja por um caminho semelhante que nos tornamos conscientes das regras semânticas envolvidas nos usos das expressões lingüísticas.
    Uma objeção ao que acabamos de fazer consiste em notar que as teorias reflexivas da consciência não são as únicas. Há um bom número de outras teorias concorrentes. Por consequência, a distinção só vale se as teorias reflexivas forem verdadeiras.
   A resposta parece estar na admissão de que quase todas as outras teorias da consciência de algum modo incluem a teoria reflexiva naquilo que propõem. Essas outras são o que poderíamos chamar de teorias integracionistas da consciência. Elas podem ser assim chamadas porque tem em comum a ideia de que a consciência de um estado mental depende da integração desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do sistema. Esse é certamente o caso de teorias integracionistas a de Daniel Dennett (consciência como celebridade cerebral), de Ned Block (consciência como a disponibilidade do estado mental para uso no raciocínio e direcionamento da ação), de Bernard Baars (transmissão do conteúdo sob o foco da atenção para o espaço de trabalho global da mente) e de Giulio Tononi (consciência como a abilidade do cérebro de integrar informação), para citar as mais recentes, embora a ideia já tenha sido admitida pelo menos desde Kant, passando por Sigmund Freud.[30] Sob a perspectiva dessas teorias, uma cognição inconsciente seria aquela que permanecesse em maior ou menor medida dissociada de outros estados mentais (embora não insulada, não excluída). Isso me parece correto. Contudo, por que pensar que essa maneira de ver é incompatível com a de uma teoria reflexiva da consciência? Afinal, parece razoável pensar que a propriedade de um estado mental de ser objeto de reflexão metacognitiva seja também uma condição talvez mesmo necessária para que esse estado mental possa ser mais extensamente, claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos do sistema. Aplicando uma metáfora conhecida: se o estado mental consciente for como um ator que se torna visível para todo o sistema pelo fato de ser iluminado pelo holofote da atenção, isso pode acontecer simplesmente pelo fato de que a luz do holofote é a sua própria metacognição. É ela que torna o estado mental acessível ao resto do sistema e daí consciente. Se isso for admitido torna-se fácil generalizar a distinção entre cognições não-reflexivas – próprias de nosso conhecimento e aplicação tácita das regras semânticas – de cognições reflexivas, próprias de nosso conhecimento consciente, refletido, de como essas regras são constituidas, de sua expressão linguística, tornando-nos aptos a analisá-las em seus componentes.

Conclusão
Esse capítulo introdutório foi pensado como fornecendo um arcabouço geral capaz de servir de apoio à tese geral desse livro de que as teorias causais externalistas e não-cognitivistas da referência devem ser substituidas por formas mais sofisticadas de teorias não-causais, internalistas e cognitivistas da referência. Para isso procurei primeiro resgatar a credibilidade do senso comum e da linguagem ordinária ao propor o primado do conhecimento comum como princípio do bom filosofar. Depois adicionei a ele o método do filosofar por exemplos derivado das reflexões de Wittgenstein sobre a natureza da filosofia, especialmente de sua ideia de que a filosofia demanda representação sinóptica. Finalmente procurei demonstrar a verosimilhança da ideia de que as regras semânticas que governam os usos refereniais de nossas palavras são capazes de s instanciar de modo cognitivo ou psicológico, mesmo quando nos falta a consciência das convenções semânticas que estamos seguindo. As regras semântico-criteriais envolvidas no uso referencial das expressões não precisam ser aplicadas de forma verdadeiramente não-cognitiva, no sentido de serem mecanismos causais externos, irresgatáveis para a consciência reflexiva, como pretenderam alguns. Isso nos permite considerar essas regras como sendo sempre, de um ou de outro modo, cognitivamente aplicadas. Só que essas cognições, mesmo sendo eventos psicológicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognições capazes de tê-las como objetos de reflexão, não se fazem conscientes, por isso mesmo não se tornando tão facilmente integráveis a outros estados mentais constitutivos do sistema. Por tal razão, a falta de consciência das regras semânticas envolvidas no uso significativo das expressões não basta para fazer-nos rejeitar a eventual indispensabilidade do elemento psicológico-cognitivo.





























[1] G.E. Moore: “A Defense of Common Sense”.
[2] C.S. Peirce: “Critical-Commonsensism”; ver também Roderick Chisholm: Theory of Knowledge, p. 64.
[3]  Ver Bertrand Russell: ABC of Relativity, cap. 1
[4]  Esse é um enunciado como o de Heráclito, que notou que o sol tem o tamanho de um pé humano. Como observou um intérprete, basta que nos deitemos no chão e levantemos o pé contra o sol para nos certificamos de sua verdade.
[5] Frédéric Lenoir: Deus: sua história na epopéia humana, p. 148.
[6] Este exemplo é usado para ilustrar a posição de Wittgenstein por G.H. Baker e P.M.S. Hacker em Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.
[7] Este é o método preconizado por Avrum Stroll em seu livro Sketches of Landscapes: Philosophy by Examples, pp. x-xi.
[8] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 109, 111, 122, 125, 129.
[9] Não há mais hoje quem concorde com a tese implicitamente sugerida por certas passagens dos textos de Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões lingüísticas. Apesar disso, é um fato que a prática filosófica é quase inevitavelmente produtora de confusões lingüísticas, mesmo que contenha algum insight substancial por trás do que pretende sugerir. Daí que uma atenção crítica prévia aos sentidos ordinários dos conceitos usados é propedeuticamente desejável e será aqui metodologicamente empregada.
[10] Anthony Kenny sugeriu que Wittgenstein mantinha de modo inconsistente duas concepções sobre a filosofia, uma estritamente terapêutica e outra teorética, no sentido de buscar apresentações panorâmicas da gramática conceitual. Contudo, outros intérpretes, como Gordon Baker e P. M. S. Hacker, consideram as duas concepções compatíveis. Ver A. Kenny, “Two Views on the Nature of Philosophy”. Ver também C. F. Costa, Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphlosophischen Semantik, Einfuhrung.
[11] L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec. 122. Como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Wittgenstein não rejeita o engajamento em teorizações filosóficas quando elas se fazem necessárias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, cap. XI. Além disso, Wittgenstein também usa a palavra ‘teoria’ para qualificar o seu próprio procedimento teórico, no sentido de um sistema “orgânico” ao invés de “arquitetônico”. Ver Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge – 1932-35, p. 43.
[12] G. P. Baker & P. M. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.
[13] Ver David Lewis: Conventions, cap. 1.
[14] Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 4.002.
[15] Wittgenstein: The Blue and Braun Books, p. 18
[16] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 129.
[17] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 109.
[18]  W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seção 56.
[19] John McDowell: “On the Sense and Reference of a Proper Name”, p. 178. O conteúdo entre colchetes repete as palavras do autor em sua nota de rodapé sobre essa passagem. McDowell vê na posição de Dummett uma recaída no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.
[20] John McDowell: “On the Sense and Reference of Proper Names”, p. 190.
[21] Paul Elbourne, Meaning, a Slim Guide to Semantics, cap. 1.
[22] Gareth Evans: “Semantic Theory and Tacit Knowledge”, p. 337.
[23] Evans: ibid. p. 339.
[24] Ver Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93; ver também seu livro Knowledge and Language, pp. 261-265.
[25] Freud distinguia a representação inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processos de pensamento inconscientes, da representação inconsciente verdadeiramente insulada, não associável a outras, que para ele emergia em estados psicóticos e cujo mecanismo de repressão ele chamou de exclusão (Verwerfung). Evans trata o estado mental de domínio da regra semântica no melhor dos casos como se fosse um conteúdo “excluído” no sentido freudiano.
[26] John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro II, cap. 1, § 19.
[27] Ver o artigo clássico de D.M. Armstrong: “What is Consciousness?”, pp. 55-67. Ver também seu livro Mind and Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.
[28] Prefiro ignorar a discussão sobre teorias de percepção de ordem superior (Armstrong, Lycan) e teorias de pensamento de ordem superior (Rosenthal). Para mim Rosenthal está certo em notar que o modelo perceptual nos sugere o tratamento de cognições de ordem superior como se elas contivessem qualia e que essa ideia é implausível, enquanto Armstrong está certo em atribuir às cognições de ordem superior um papel monitorador. Afora isso, embora Armstrong não use a palavra ‘pensamento’, ele certamente concordaria que há um elemento (meta)cognitivo na introspecção de estados mentais de primeira ordem e é esse elemento que nos interessa considerar aqui.
[29] Desconsidero aqui a idéia tradicional de que os estados mentais de primeira ordem geram automaticamente metacognições, o que tornaria impossível haver consciência perceptual sem que essa seja também uma consciência introspectiva. Não só essa idéia retira muitas vantagens explicativas das teorias reflexivas da consciência, tornando a existência de pensamentos inconscientes incompreensível, mas parece faltar a ela uma base intuitiva convincente.
[30] Para um resumo das atuais teorias da consciência, ver M. Velmans and S. Schneider (eds.): The Blackwell Companion of Consciousness, part III.



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