Draft do livro Como expressões referenciais referem?, prefácio e introdução. (Notas foram perdidas na postagem). O livro inteiro não passa de um work in progress cujos argumentos precisam ser expandidos e em boa parte reescritos. C.F. Costa
Draft 2014
COMO EXPRESSÕES
REFERENCIAIS REFEREM?
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=====
Tudo está bem como está.
Wittgenstein
PREFÁCIO
Meu primeiro encontro com as teorias
filosóficas dos nomes próprios aconteceu há cerca de trinta anos, quando me
encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre a concepção de significado na
filosofia do último Wittgenstein. Como era de se esperar, a melhor resposta parecia-me
ser a teoria do feixe de descrições, tal como fora exposta por ele mesmo na
seção 79 de suas Investigações
Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção
causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Kripke me deixaram
escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais externas soava-me como
uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade com a
teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma ordem ao
apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe e que isso só poderia
ser feito pelo recurso a alguma regra-descrição de ordem superior, capaz de estabelecer
o papel e a força das regras-descrições a ele pertencentes. Mas logo me esqueci
do assunto.
Só voltei
a me interessar pela questão dos nomes próprios em 2006, por razões acidentais.
Lembrei-me então de meu antigo projeto. Escrevi um breve esboço no qual
propunha a existência de uma regra cognitiva meta-descritiva para nomes próprios,
capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de descrição pertencentes aos
feixes de descrições a eles associados, uma regra que demandasse a satisfação
disjuntiva de regras descritivas localizadoras e caracteridoras. Apresentei esse
esboço em várias ocasiões, sempre surpreso com a forte reação de rejeição dos
ouvintes. Contudo, como ninguém me apontava um erro de princípio e como um
pouco de reflexão me mostrava que as objeções poderiam ser facilmente refutadas,
prossegui. A teoria metadescritivista daí resultante encontra-se exposta no
capítulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais
interessante aqui. Embora essa teoria incorpore intuições provenientes da
concepção causal-histórica, ela às condiciona a ideias de fundo claramente descritivistas,
o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar como uma
elaboração da velha teoria do feixe de descrições.
A
teoria metadescritivista dos nomes próprios compensa a sua maior complexidade
com um poder explicativo muito maior do que o das teorias anteriores, possuindo
uma variedade de bons atributos que a recomendam: ela é capaz de explicar mais
adequadamente como e porque o conteúdo cognitivo (sentido) do nome próprio
contribui para a identificação do seu portador (referência); ela é capaz de
gerar a idéia de que nomes próprios são designadores rígidos do próprio
interior do descritivismo; é capaz de explicar, sob uma perspectiva
descritivista, como e porque se dá o contraste entre a rigidez dos nomes
próprios e a flacidez das descrições definidas e, finalmente, é capaz de responder
de forma muito mais eficaz aos mais variados exemplos até hoje levantados
contra a teoria do feixe.
A
questão da natureza do nome próprio é uma pedra angular da filosofia da
linguagem. Se ela é alterada, tudo se altera. A teoria causal-histórica dos
nomes próprios, advogada principalmente por Kripke, produziu uma revolução na
maneira como entendemos outras expressões referenciais como descrições
definidas, indexicais, termos gerais e sentenças, inaugurando uma nova
ortodoxia causalista e externalista em filosofia da linguagem. Se propomos uma teoria
neodescritivista (metadescritivista) dos nomes próprios, o que estamos sugerindo
é no fundo uma nova contrarevolução descritivista-cognitivista, que responde
diversamente a tudo aquilo que a nova ortodoxia tem proposto desde o início da
década de 1970. Essa é, a meu ver, a explicação última da reação de rejeição
dos ouvintes diante da proposta de uma teoria neodescritivista dos nomes
próprios. Isso explica também as direções que minha pesquisa precisou tomar em
seguida.
Com
efeito, uma vez que me encontrava investigando a função dos nomes próprios, meu
interesse alargou-se para a história das teorias descritivistas e também para a
necessidade de alcançar um entendimento crítico da concepção causal-histórica
que fizesse justiça ao trabalho inegavelmente genial de Kripke. Disso
resultaram os capítulos 7 e 8 desse livro.
A investigação
do funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me levou a considerar
outras expressões referenciais, como descrições definidas, termos indexicais e mesmo
termos gerais, onde a mesma disputa entre o referencialismo externalista e o cognitivismo
internalista se repete. Minha pergunta foi irreprimível. Se havia obtido tão bons
resultados defendendo uma espécie de cognitivismo metadescritivista internalista
para o caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira de ver não seria
capaz de produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada a outras
expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição era boa, de
modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era duplo. De um
lado queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas-externalistas
aplicadas a outros termos referenciais; de outro, considerando as objeções, queria
desenvolver melhores explicações cognitivisto-internalistas (neodescritivistas
ou neo-fregeanas) para os modos como descrições definidas, indexicais e termos
gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos capítulos 5, 6, 10, 11 e 12
desse livro.
Alguns
resultados me parecem memoráveis. Entre eles está a compatibilização do
descritivismo de “Russell” com o de “Frege”, a defesa da irrelevância das incongruências
parciais no resgate descritivista do conteúdo semântico dos indexicais, a tese
da elasticidade do pensamento, a crítica ao externalismo semântico de Putnam e
a proposta de regras meta-descritivas parcialmente análogas às dos termos
singulares na constituição de regras de aplicação dos termos gerais. Muito do
que escrevi, porém, não passa de esboços rudimentares, que lanço na esperança
de que possam ser melhor desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado
que filosofia é work in progress por
definição.
Finalmente, senti
a necessidade de esclarecer valores intelectuais, ou seja, as assunções
filosóficas que me conduziram a abordar as expressões referenciais da maneira
como fiz. Meus heróis são aqui Frege e Wittgenstein. Não creio haver nada na
filosofia analítica comparável à obra desses dois filósofos. Ombreados por
Russell, eles foram até o osso das questões filosóficas no que concerne à
amplitude e profundidade de seus insights,
sem permanecer na exterioridade dos problemas, na mera discussão de hipóteses
sobre hipóteses, e sem o apelo a teorizações excessivamente artificiosas e implausíveis.
Escrevi os capítulos 1, 2, 3 e 4 desse livro com o objetivo de aclarar meus
pressupostos, que me foram geralmente motivados pelas concepções semânticas de
Frege e Wittgenstein. Como consequência, esses capítulos foram respectivamente
dedicados ao estudo das semânticas filosóficas de Wittgenstein, Frege e
Husserl. No capítulo 2 investiguei os sentidos ou significados em geral em
termos de uma ideia de inspiração wittgensteiniana: a ideia de que os
significados representacionais nada mais são do que regras e/ou combinações de
regras semântico-cognitivas, determinadoras dos usos referenciais das
expressões correspondentes. O mais relevante aqui é a tentativa de recuperar a
ideia wittgensteiniana de que o sentido da sentença afirmativa é o seu método
de verificação. O capítulo 3 é uma reconstrução da semântica fregeana com base
naquilo que aprendemos de Wittgenstein. Procurei definir meu objetivo como sendo
o de fazer uma defesa sustentada de uma concepção que é pelo menos tão antiga quanto
a doutrina estóica das lekta: o ponto
de vista de fregeano, segundo o qual uma expressão referencial só é capaz de
referir devido a um elo intermediário, que não pertence nem a ela mesma nem ao
que ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo
intermediário em termos de sentidos
(modos de apresentação) de conteúdos cognitivos ou informativos, que só diferem
dos sentidos fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas
instanciações cognitivas. Finalmente, no capítulo 4 procurei reconstruir certas
intuições semânticas de Edmund Husserl em termos de satisfação de combinações
de regras que se instanciam cognitivamente pela satisfação de condições de
preenchimento geralmente dadas na percepção.
Ao escrever
essas coisas percebi, em retrospecto, que aquilo que estava tentando fazer
poderia ser entendido como a retomada de um programa especulativamente
desenvolvido por Ernst Tugendhat na década de 1970 no livro Vorlesungen zur sprachnalytischen
Philosophie, que acabou abandonado pela influência sempre crescente das
concepções externalistas da referência. Esse programa poderia a meu ver ser “fregeanamente”
concebido como sendo, para o caso fundamental da frase predicativa singular, o
de analisar o sentido representativo do termo singular como sendo a sua regra de identificação (Identifikationsregel), o sentido representativo
do termo geral como sendo a sua regra de
aplicação (Verwendungsregel) e sentido
representativo da frase predicativa completa como sendo a sua regra de verificação (Verifikationsregel). Essa última regra
seria a resultante da aplicação combinada das duas primeiras, o que foi concebido
por Tugendhat como uma forma analiticamente aprofundada de se falar da condição
de verdade identificada com o significado. Como consequência, meu objetivo no
presente texto deixa-se também explicar como sendo o de justificar e analisar
em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua natureza, subdivisões e
relações, além de tentar esclarecer atributos a elas relacionados, como os de
existência e verdade.
Reconheço que a minha tentativa de produzir
uma elaboração geral dessas assunções nos três primeiros capítulos permanece inevitavelmente
esquemática e em alguns momentos rudemente especulativa. Mas o próprio sucesso do
tratamento posterior das expressões referenciais – que depende apenas do que há
de mais plausível nessas assunções – em certa medida também as vindica.
Essas são as estações do presente texto, que
foi escrito na intenção de ser entendido por leitores que, apesar de versados
em filosofia, não precisem possuir conhecimento especializado de filosofia da
linguagem.
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de
pós-doutorado na Universidade de Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn,
onde permaneci no período de 2009/2 a 2011/1 e onde pude desenvolver uma primeira
versão completa do presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas,
mas em especial gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e
discutir comigo versões em inglês e em alemão de minhas idéias sobre nomes
próprios e termos gerais. Também gostaria de agradecer ao professor João
Branquinho pelas discussões sobre nomes próprios e verificacionismo em seus
colóquios na Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato são ao
professor Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar início a
essa pesquisa, assim como aos professores Guido de Almeida, Nelson Gomes, André
Leclerc e Daniel Durante, por objeções e estímulos. Devo também agradecimentos
ao professor John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley no ano de
1999. Em termos de metodologia e idéias foram Searle e Ernst Tugendhat os
filósofos atuais que mais me influenciaram ao escrever esse livro. Finalmente,
gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antônio de Almeida
por terem, há muitos anos, me tornado consciente, por meio do exemplo incomparável
dos grandes clássicos, da importância de uma aproximação sistemática das
questões filosóficas.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA
1.
INTRODUÇÃO
2.
SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA
3.
FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS
4.
HUSSERL: AÇÕES INTENCIONAIS
PARTE II: TERMOS SINGULARES
5.
CLASSIFICANDO OS TERMOS
SINGULARES
6.
TERMOS INDEXICAIS
7.
DESCRIÇÕES DEFINIDAS
8. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS
DESCRITIVISTAS
9.
NOMES PRÓPRIOS (II):
TEORIAS CAUSAIS-
HISTÓRICAS
10. NOMES PRÓPRIOS (III): META-DESCRITIVISMO
CAUSAL
PARTE III: TERMOS GERAIS
11.
INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO
12.
PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
13.
AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
PARTE
I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA
1. INTRODUÇÃO
Explicar os mecanismos pelos quais as
expressões referenciais referem tem sido o problema seminal de toda a filosofia
da linguagem iniciada com Frege. Mas o que são expressões referenciais? Ora,
elas são todas as expressões (palavras, combinações de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Enquanto
termos, tais expressões são chamadas de categoremáticas,
distinguindo-se das expressões sincategoremáticas,
de palavras como ‘e’, ‘não’, ‘se... então’, ‘alguns’, cuja função na linguagem
é meramente estrutural.
No
interior de frases há duas espécies mais gerais de expressão referencial: o termo singular e o termo geral. A forma mais distintiva de termo
singular é a do nome próprio, como Sócrates. O termo singular pode ser definido
como uma expressão cuja função é a de singularizar
um único objeto (um particular) ao indicar qual ele é dentre todos. Por
conseguinte, o termo singular não pode funcionar de maneira a se referir a mais
de um objeto. A forma mais distintiva de termo geral é a de propriedades, como
a de ser sábio. O termo geral pode ser definido como uma expressão que designa propriedades de objetos ou relações entre objetos. Embora um termo
geral possa designar uma propriedade que se instancia uma única vez em um único
objeto (ex: a propriedade de Cabral de ter descoberto o Brasil), ele geralmente
designa propriedades que se instanciam em uma variedade de objetos, como é o
caso da propriedade de Sócrates de ser sábio, que também se instancia em Platão,
ou da propriedade relacional de Sócrates de ser mais velho do que Platão, que
também se instancia na relação entre Platão e seu aluno Aristóteles. Nas frases
predicativas singulares, ou seja, frases da forma Fa (como “Sócrates é sábio”), os termos singulares comparecem como
sujeitos e os termos gerais como predicados. Tais frases são tipicamente
capazes de ser verdadeiras ou falsas.
O tema central desse livro será a investigação
dos mecanismos através dos quais as variadas formas de termos termos singulares
e gerais são capazes de se aplicar a suas referências.
As metafísicas da referência
Boa parte do conteúdo desse livro será,
todavia, crítico. Em meu juízo a filosofia da filosofia da linguagem
contemporânea se encontra assolada pelo que gostaria de chamar de metafísicas da referência. São idéias prima facie contraintuitivas que giram em torno do externalismo, do
causalismo e do anticognitivismo semântico. Um exemplo disso é a sugestão de
Saul Kripke, Keith Donnellan, Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a
cadeias causais externas ligando o objeto ao seu nome poderia bastar para
explicar a função referencial de nomes próprios e termos gerais, na
independência do que possamos ter em mente com eles. Outro exemplo de
metafísica da referência é a tese externalista de Hilary Putnam, Tyler Burge,
John McDowell e outros, segundo a qual os significados das palavras, os seus
entendimentos, os pensamentos, e mesmos as próprias mentes, possam existir no
mundo externo (físico ou social) “fora de nossas cabeças”. Ainda outro exemplo
é a posição de David Kaplan, John Perry, Nathan Salmon e outros, segundo a qual
muitas de nossas sentenças contém elementos do próprio mundo externo como constituintes
de seu conteúdo, daquilo que estão a dizer. Não obstante o fato de semelhantes
idéias ofenderem nossas intuições semânticas mais elementares, elas se
consolidaram como uma nova ortodoxia e são vistas hoje por especialistas como
resultados “sólidos” de uma reflexão filosófica que já há algum temmpo
cristalizou-se na forma de um escolasticismo formalista.
Quero nesse livro tornar patente o insucesso das doutrinas mais propriamente
metafísicas desses filósofos. Isso não é o mesmo, obviamente, que rejeitar a
importância filosófica de seus principais argumentos. Se eles não fossem
importantes não haveria porque perder tempo com a sua discussão. E a razão
dessa importância é que insights
filosóficos, mesmo quando equívocados, demandam uma resposta, e ao fazerem isso
revelam um potencial esclarecedor em uma matéria na qual o progresso costuma
ser dialético. Sem o criativo e ousado revisionismo desses filósofos, sem os
desafios e problemas por eles criados, idéias concorrentes dificilmente seriam
providas do combustível intelectual necessário para alçarem vôo.
O primado do saber comum
Para combater as metafísicas da referência são
necessárias algumas armas. A primeira delas é metodológica. Ela diz respeito à
decisão de levar a sério o um tanto esquecido princípio fundamental da
filosofia da linguagem ordinária admitido por filósofos como G.E. Moore e J.L.
Austin, segundo o qual ao menos o ponto de partida de nossas investigações deve
residir em nossas intuições pré-filosóficas de senso comum, refletidas nos usos
das expressões em nossa linguagem corrente.
A idéia subjacente à abordagem dos filósofos
da linguagem ordinária é conhecida: os usos correntes das palavras sedimentam a
experiência milenar das comunidades humanas, e uma atenção escrupulosa a esses
usos pode ser capaz de revelar distinções categoriais importantes e prevenir
confusões e equívocos. Exemplos de princípios do senso comum são “Sabemos com
certeza que existe um mundo externo”, “Sabemos que o passado existiu”, “Sabemos
que existem outras pessoas”, “Sabemos que o preto não é branco” e ainda
“Sabemos que uma coisa é ela mesma”.[1]
Uma objeção conhecida é a de que os princípios
do senso comum não são tão certos assim, pois parece claro que ao menos alguns
deles foram falseados, quer pela ciência, quer por alterações em nossa própria concepção
de mundo (Weltanschauungen). Para
exemplificarmos o primeiro caso, basta nos lembrarmos que crenças de senso
comum como a de que o sol gira em torno da Terra e de que os corpos mais leves
caem mais lentamente foram decisivamente refutadas por Galileu. Contudo, houve
um tempo em que essas crenças poderiam ser consideradas verdades de “senso
comum”.
Uma
resposta a essa objeção consiste na alternativa seguida por alguns dos
filósofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoção do assim
chamado sensismo comum crítico (critical commonsensism)[2].
Segundo essa alternativa os princípios de senso comum são altamente confiáveis,
mas não são indubitáveis. Embora haja o que se dizer a favor desse alternativa,
é também verdade que ela enfraquece a própria posição de quem defende o senso
comum como ponto de partida, pois se os princípios do senso comum podem ser
falsos, então parece que precisamos de um critério para distinguir os
princípios de senso comum verdadeiros dos falsos. Esse critério, porém, não
pode se basear no senso comum, sob a pena de circularidade.
Não
pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princípios do senso comum
contra toda e qualquer objeção. Mas quero demonstrar que a objeção principal
contra o senso comum, segundo a qual muitos deles não resistem ao progresso da
ciência e das mudanças em nossa concepção do mundo, é meramente aparente. Ela deriva
de uma confusão entre formas de “senso comum” inautênticas com a forma
autêntica, que gostaria de chamar de forma
modesta ou ingênua.
Quero
começar considerando as objeções vindas da ciência. Tendo em consideração a
ciência empírica, considere os seguintes enunciados:
(a)
O sol circunda a Terra diariamente.
(b)
Os corpos mais pesados caem mais
rapidamente, mesmo descontando a resistência do ar.
(c)
O tempo flui igualmente, mesmo
quando um corpo se desloca a velocidades próximas às da luz.
Esses
pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela ciência.
Galileu demonstrou que (a) e (b) são enunciados falsos, o primeiro porque é a Terra
que circunda o sol e o segundo porque no vácuo todos os corpos caem com a mesma
aceleração. E Einstein demonstrou que (c) é falso, pois a passagem do tempo
torna-se exponencialmente mais lenta quanto mais um corpo se aproxima da
velocidade da luz. O filósofo Bertrand Russell, por exemplo, enfatizou o fato
de que a teoria da relatividade veio a demonstrar que essa e ainda outras
crenças de senso comum não resistem a uma consideração mais acurada.[3]
Meu
ponto, porém, é que nenhum dos enunciados acima é legitimamente pertencente ao
senso comum no sentido próprio da expressão, que chamei de modesto ou ingênuo.
Esses enunciados são na verdade extrapolações radicadas nos enunciados do senso
comum modesto, extrapolações de interesse especulativo que foram feitas no
interesse da ciência por cientistas e mesmo por alguns filósofos. Os
verdadeiros enunciados do senso comum, dos quais (a), (b) e (c) são
extrapolações, podem ser versados respectivamente como se segue:
(a’) O sol cruza os céus diariamente.
(b’) Corpos pesados ao redor de nós costumam
cair mais rápido do que
corpos mais leves.
(d’) O tempo flui igualmente para todos
nós, estejamos ou não em
movimento.
Ora, esses enunciados nunca deixaram de ser
verdadeiros. Afinal, é óbvio que (a’) é um enunciado verdadeiro, pois ele é
anterior à distinção entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele
afirma é que a cada dia o disco luminoso que chamamos de sol é algo que vemos
nascer no leste, que cruza o céu e se põe no oeste, o que ninguém haverá de
discutir.[4] Mesmo
tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no vácuo (b’)
também é um enunciado verdadeiro, pois tudo o que ele diz é que corpos leves
como a pluma caem mais lentamente do que, por exemplo, pedras, em circunstâncis
normais. Finalmente, o enunciado (c’) continua verdadeiro, pois ele diz
respeito aos movimentos das coisas ao nosso redor, abstraindo de medidas
impossivelmente acuradas da passagem do tempo. Mas então qual é a diferença
entre os enunciados (a)-(b)-(c) e (a’)-(b’)-(c’), que faz com que os primeiros
tenham sido refutados pela ciência enquanto os segundos continuem verdadeiros?
A resposta é que o senso comum, cientificamente ou especulativamente motivado,
historicamente interpretou os enunciados do senso comum (a)-(b)-(c) como se
eles respectivamente implicassem (a’)-(b’)-(c’). Não obstante, os enunciados
que foram efetivamente originados de nossas práticas lingüísticas ordinárias (nossos
jogos de linguagem, se quiserem) são como (a’) (b’) e (c’), continuando
perfeitamente confiáveis, mesmo após Galileu e Einstein. O que o contraste
entre os exemplos (a)-(b)-(c) e (a’)-(b’)-(c’) demonstram é que não foram as
verdades do senso comum modesto, radicadas em nossas práticas linguísticas e
formas de vida cotidiana, que foram refutadas pela ciência. O que a ciência
refutou foram extrapolações do senso comum fora de seu contexto originário,
produzidas por cientistas e filósofos. Se levarmos em conta essa distinção
vemos que não há conflito algum entre as descobertas da ciência e as afirmações
do homem comum relativas ao senso comum modesto. Contudo, com essas constatações
não podemos pretender demonstrar que as verdades do senso comum modesto são
irrefutáveis em princípio, pois nada nos garante que a qualquer momento o mundo
passe a andar as avessas. Tudo o que essas constatações podem demonstrar é que
a ciência realmente nunca as refutou e que ela nunca se opôs ao senso comum
modesto.
Esse mesmo raciocínio se aplica ao conhecimento a priori pertencente ao
senso comum, como o de que um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao
mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, de que o branco não é preto ou de que não
existem frases sem verbos. Considere agora o caso de enunciados como (d) “O bem
é admirável”, que é gramaticalmente idêntico a enunciados como (h) “Sócrates é
sábio”. Ambos têm a mesma forma gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro
caso o sujeito não designa nenhum objeto visível, Platão teria concluído que esse
sujeito precisa designar “O Bem-em-si-mesmo”, a idéia do bem, existente apenas
no reino inteligível das idéias eternas e imutáveis.
Para chegar a sua conclusão, Platão se baseou
em intuições da linguagem ordinária concernentes à distinção gramatical entre
sujeito e predicado. Todavia, a introdução da lógica quantificacional por Frege
no final do século XIX demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como
dizendo que tudo o que é bom é admirável ou “Para todo x, se x é bom, então x é admirável”, onde a palavra ‘bem’
passa à função do predicado ‘bom’, deixando de se referir a um objeto, o que
diminui a pressão para a aceitação da idéia platônica do bem. Contudo, a
sugestão de que o sujeito ‘O Bem’ se refere a um objeto abstrato, a idéia, não
pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem ordinária. Embora
ela seja uma extrapolação especulativa feita por um filósofo por apelo
implícito à gramática da linguagem natural, seria injusto responsabilizar esta
última por isso. Afinal, o advento da lógica quantificacional não refutou a
gramática da linguagem natural, mas selecionou alguns de seus traços mais
fundamentais, acrescentando-lhe, ao fazer isso, uma nova e filosoficamente
importante dimensão de análise.
Esse
último exemplo reforça a conclusão de que é falsa a freqüente afirmação de que
o desenvolvimento da ciência veio a contradizer o senso comum. O que o
desenvolvimento da ciência veio a contradizer foram extrapolações especulativas
que cientistas e filósofos fizeram com base no senso comum e na linguagem
ordinária, como a sugestão de que o sol gira em torno da terra e a de que
existe outro mundo formado por objetos abstratos. Mas nada disso tem a ver com
a aplicação do senso comum modesto e da linguagem ordinária no contexto em que
essas intuições emergiram.
Consideremos agora mudanças do senso comum que foram colocadas em
questão por alterações em nossa concepção do mundo (Weltanschauung), como a crença de que Deus existe ou de que temos
mentes independentes de nossos corpos. Na grande maioria das culturas humanas a
crença em Deus (ou nos deuses) e na alma foi admitida como inquestionável, especialmente
na cultura européia nos últimos dois mil anos, quando a rejeição pública dessas
crenças era capaz de merecer pena capital. Mas hoje não se pode dizer que essas
crenças sejam mais universalmente aceitas, muito pelo contrário. Assim, parece
que o senso comum é capaz de se alterar com a alteração de nossa concepção do
mundo.
Minha reação a essa objeção não difere muito da que tenho para a objeção
proveniente do progresso da ciência. Essas crenças não pertenceram propriamente
ao cerne que chamo de senso comum modesto. Há civilizações inteiras, sobretudo
na Ásia, em que está ausente a ideia de Deus enquanto pessoa e que, embora
possuam religiosidade, não a fundamentam na crença em Deus.[5] Consequentemente,
a crença em Deus e na alma não possui a universalidade que se espera das crenças
do senso comum modesto ou ingênuo. Na verdade essas crenças resultaram do senso
comum modesto adicionado ao wishful thinking, uma reação particularmente
pronunciada em nossa civilização cristâ. Não obstante, era certamente muito
mais fácil acreditar na existência de um Deus pessoal ou de uma alma
independente do corpo há centenas de séculos atrás, em épocas anteriores ao
acúmulo de informações divergentes produzidas pelo progresso científico. Contudo,
mesmo assim sempre foi nesses casos adicionado um elemento de fé, de crença para além dos fatos, ao
que foram aduzidas razões. Isso também se demonstra linguisticamente: uma
pessoa com crença religiosa geralmente não diz “Eu sei que possuo uma alma independente do corpo” ou “Eu sei que Deus existe”: ela prefere dizer
que “Eu acredito...”, onde a crença
em questão tem a natureza da fé. Por outro lado, a mesma pessoa em momento
algum recusa a admitir que não só acredita, mas que sabe que existe um mundo externo, que sabe que esse mundo existia mesmo
antes de ela ter nascido etc.
Espero
ter nesse ponto tornado plausível a idéia de que o mais alto tribunal da razão pertença
ao senso comum modestamente compreendido. Afinal, como a própria ciência só
pode ser construída sob a assunção de conhecimentos de senso comum modesto, não
parece ser sequer em princípio possível destruir por completo o senso comum modesto
sem que com isso se destrua os próprios fundamentos da racionalidade. Ademais,
se nem a ciência nem as alterações em nossa concepção de mundo por ela influenciadas
são suficientes para desfazer a força do senso comum em sua forma modesta,
então parece que mesmo hipóteses céticas radicais, como a de que o mundo é um
sonho, podem ser conformadas com o senso comum modesto. Considere, por exemplo,
a possibilidade de que o mundo externo não seja real. Mesmo que ela se demonstre
verdadeira, ainda assim deve ser sustentado que esse mundo continua possuindo
realidade, ao menos no sentido usual de aplicação da realidade, que é a coisas
que são percebidas com máxima intensidade, que são co-sensorialmente e intersubjetivamente
experienciáveis, que seguem as leis naturais e que não dependem de nossa
vontade.
Uma conclusão resultante da comparação entre
senso comum e ciência é que quando consideramos a razão natural dentro de seus despretenciosos
limites próprios, a ciência não se revela como oposição, mas como extensão do senso comum. Essa conclusão
reforça nossa confiança em que no começo de tudo se encontram verdades do senso
comum adequadamente interpretadas. (Com isso não estou defendendo que essas
verdades se sustentam indiferentemente dos argumentos filosóficos que as
contestam, como pretendeu um filósofo como Thomas Reid. O que quero dizer é que
elas servem como os pontos de apoio confiáveis. Assim, embora seja possível
responder ao paradoxo de Zeno dizendo que é uma verdade de senso comum que
Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um pé depois do outro, isso não nos
satisfaz, pois isso não põe à descoberto a fonte de confusão.[6] Também
um princípio de senso comum modesto, como o de que o mundo externo existe pode,
eu creio, ser justificado contra argumentos filosóficos. Contudo, mesmo isso só pode ser feito com base
em outros princípios de senso comum.)
Não
estou querendo sugerir que devamos praticar uma filosofia do senso comum
restrita à exposição contrastiva das verdades do senso comum modesto juntamente
com a sua expressão nas intuições da linguagem ordinária. Minha intenção é
apenas a de estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes
diante das idéias filosóficas ao senso comum informado pela ciência – o que
gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a ciência
formal (lógica, matemática) quanto a ciência empírica (a física, a biologia, a neurociência,
a psicologia, a lingüística, a sociologia...) são capazes de adicionar ao
conhecimento de senso comum modesto novas verdades. Assim, quanto a uma ciência
formal como a lógica, sabemos que o sujeito ‘o bem’ na frase “O bem é
admirável” não deve ser interpretado como um sujeito lógico. E quanto a uma
ciência empírica como a astronomia, sabemos que pela distinção entre movimento
aparente e real a frase “O sol atravessa o céu diariamente” pode ser verdadeira
sem implicar que ele circunda a Terra. O que chamo de saber comum é, pois, o todo que inclui o senso comum modesto e o
conhecimento científico que lhe foi adicionado. Esse saber comum não
precisa, certamente, ser compartilhado entre todos os membros da comunidade
linguistica. Mas ele é comum no sentido de que é em princípio passível desse
compartilhamento: ele é aquele conhecimento com o qual pessoas razoáveis irão
por-se de acordo, caso se tornem habilitadas a compreendê-lo e avaliá-lo. É
nesse sentido que interpreto a afirmação heracliteana de que devemos nos cercar
do saber comum como a cidade que se cerca de suas muralhas. E minha proposta
final é a de que o tribunal último capaz de possibilitar um melhor juízo sobre
a razoabilidade de nossas teses
filosóficas é esse saber comum que representa nosso senso comum cientificamente
informado. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:
Teoria filosófica
Princípios do senso Conhecimento
científico
comum modesto
SABER COMUM
As setas sugerem o que chamo de primado do saber comum, a prioridade do
senso comum modesto e da ciência sobre a filosofia. E o ponto a ser acentuado é
o da necessidade de coerência das teses filosóficas com o saber comum. Idealmente,
a teoretização filosófica deve buscar o equilíbrio reflexivo, que se dá pela
sua harmonização com a mais ampla possível base de saber comum. Com efeito, as
nossas teorias filosóficas tornam-se mais razoáveis na medida em que alcançam
essa espécie de coerência. Quanto às formas redutivas de teorização que não alcançam
essa coerência – como é o caso das metafísicas da referência – elas podem ser admitidas
como propostas por vezes interessantes e instigantes do ponto de vista
especulativo, mas que nem por isso devem ser seriamente consideradas em sua
face de valor. Esse me parece ser o caso de muito daquilo que as metafísicas da
referência propõem.
Essas considerações também oferecem uma resposta para o problema que
surge quando a razão filosófica e o senso comum se contradizem. Minha suspeita
é que razão (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e senso
comum (em seu lugar próprio, ou seja, como senso comum modesto reconciliável
com o conhecimento científico) de fato nunca entram em contradição, a não ser em
aparência, uma vez que a própria racionalidade da teoria filosófica decorre de
seu equilíbrio reflexivo com o saber comum. Assim, quando uma pretensa
contradição entre a reflexão filosófica e o saber comum emerge, cabe ao
filósofo tratá-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que
conciliem a teorização filosófica com o senso comum modesto e com a informação
científica disponível.
O filosofar por exemplos
Quero complementar o princípio metodológico do
primado do saber comum com aquilo que Avrum Stroll chamou de método de filosofar por exemplos.[7] Esse
método se inspira nos procedimentos e ideias da filosofia terapêutica de
Wittgenstein, que demandava um exame minucioso e comparativo de uma variedade
de exemplos de usos de uma expressão lingüística, naturais ou inventados, na
intenção de assim melhor elucidar os seus significados e de prevenir-nos de
suas falsas interpretações.
A ideia
de uma filosofia terapêutica ou crítica da linguagem teve proeminência na filosofia
do último Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer a
linguagem de suas férias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso deveria
ser feito pela exemplificação modos como realmente usamos as expressões, disso
resultando que os absurdos encobertos da metafísica acabariam por se apresentar
a si mesmos na forma de absurdos evidentes.[8] Embora
deva haver um resíduo de verdade restante, pretendo demonstrar nesse livro que uma
crítica da linguagem é um instrumento útil na crítica às atuais metafísicas da
referência.[9]
Essa
tarefa é especialmente importante na filosofia atual, em que o veio crítico da
filosofia do senso comum e da linguagem ordinária, que vem de Thomas Reid a G. E.
Moore e do último Wittgenstein a J. L. Austin, mas que tem suas raízes em
filósofos como Aristóteles e Locke, se encontra praticamente extinto. Parece,
contudo, que é pela negligência da consideração da prática linguística como um
todo que assistimos hoje, na filosofia da linguagem, a um entulhamento com
efeitos potencialmente obscurantistas daquilo que Wittgenstein chamou de “castelos
de areia conceituais” resultantes de “nós do pensamento”; ou seja: bem urgidos
equívocos semânticos resultantes do desejo de inovação acompanhado de uma falta
de atenção para com as sutis diferenças de significação ganhas pelas expressões
em seus diversos contextos de uso.
Contra
a filosofia terapêutica de Wittgenstein objetou-se que não é plausível a idéia
de que a filosofia não possa nem deva ser também teorética e sistemática, no
sentido de conter generalizações abrangentes e substantivas. Contudo, essa não
é a interpretação mais caritativa da metafilosofia wittgensteininana, uma vez
que não é aquela que salva o maior número de verdades.[10] Pois por
trás das confusões conceituais, como explicação do próprio caráter de
profundidade dessas confusões, há sempre algum insight teorético legítimo para cuja expressão pode faltar
desenvolvimento e conceitologia adequados. Com efeito, qualquer que seja a
crítica da linguagem que venhamos a fazer, a sua eficácia terapêntica repousa
sobre o fato de ela se encontrar inevitavelmente impregnada de pressupostos
teóricos que podem ser ou não ser explicitamente trabalhados. Como o próprio
Wittgenstein percebeu, a formação de apresentações
panorâmicas (übersichtliche
Darstellungen) da estrutura lógico-gramatical dos conceitos constitutivos
dos núcleos mais centrais de nosso entendimento é possível e mesmo necessária. Como
ele escreveu em uma famosa passagem:
Uma
fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão panorâmica dos
usos de nossas palavras – falta caráter panorâmico à nossa gramática. A
representação panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver
as conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias.[11]
É interessante notar que a articulação
intermediária não precisa ser encontrada já pronta, capaz de ser exposta por
meio de frases auto-evidente. Ela pode ser simplesmente uma regra geral, um elo
comum relacionando uma variedade de expressões linguísticas, não se deixando
apresentar através de frases auto-evidentes. Esse elo comum é mais propriamente
chamado de descritivo se ele já se encontrar manifesto na linguagem; mas ele
será melhor chamado de teorético se precisar ser descoberto como uma maneira de
dar conta da unidade na diversidade que a linguagem realiza. É verdade que ao
propor semelhantes idéias Wittgenstein também afirmava que a filosofia deveria
ser descritiva e não-teorética. Mas como notaram G. P. Baker e P. M. S. Hacker,
o que ele pretendia através disso era acima de tudo rejeitar o cientismo, entendido como a assimilação
do trabalho filosófico ao modelo de teoria da ciência particular e à
teoretização metafísica mimetizadora da investigação científica[12] – o
cientismo – que se torna redutivo de possíveis intuições filosóficas ao romper
com a mediação do senso comum. Contra isso, o que desejamos é encontrar e expor
as regras que governam a aplicação de nossos termos semanticamente relevantes,
sem para tal comprometer o equilíbrio reflexivo com nosso saber comum. Seria
através desse equilíbrio, da coerência com o todo daí resultante, que o saber
filosófico mais facilmente se aproxima da verdade.
Conhecimento tácito do significado: a
explicação tradicional
Também admitimos a ideia geralmente tida como óbvia
de que uma linguagem é um sistema de signos governados por regras e que essas regras
são convencionais. Convenções linguísticas são regras que os participantes da comunidade
linguística geralmente seguem e esperam que os outros participantes também
sigam, mesmo que lhes falte consciência dessas regras.[13] É esse
caráter compartilhado das convenções que governam a linguagem que nos
possibilita usá-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Nesse
contexto, uma das assunções mais fundamentais da filosofia da linguagem mais tradicional
é a de que não temos consciência das regras semânticas que governam os usos que
fazemos das expressões mais centrais de nossa linguagem. Essas regras
encontram-se geralmente automatizadas em nós, de modo que ao usarmos uma
expressão não precisamos tomar consciência do complexo entrelaçado de acordos
tácitos envolvidos. Uma razão disso encontra-se no próprio modo como as expressões
geralmente são aprendidas. Filósofos analíticos como Wittgenstein, Gilbert
Ryle, P.F. Strawson, Michael Dummett e Ernst Tugendhat sempre enfatizaram o
fato de que nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras
convencionais que determinam os seus usos, não costuma ser feito por meio de
definições verbais, mas de modo não-reflexivo, através de exemplificações
positivas e negativas realizadas em contextos interpessoais nos quais esses
usos costumam ser confirmados ou desconfirmados por outros falantes.
Se
considerarmos que esse aprendizado não-reflexivo inclui termos filosóficos
centrais como ‘conhecimento’, ‘consciência’, ‘causalidade’, ‘bem’, e mesmo
termos da filosofia da linguagem como ‘significado’, ‘referência’ e ‘verdade’, que
por sua estrutura conceitual supostamente mais complexa são particularmente
elusivos, torna-se claro que a inconsciência semântica pode se tornar uma
grande fonte de confusões quando o filósofo procura esclarecer o que esses
termos querem dizer, especialmente se ele estiver sob a pressão de alguma
finalidade generalizadora extrínseca ao que a natureza do objeto de sua
investigação requer. Esse ponto de vista foi defendido por Wittgenstein em toda
a sua trajetória filosófica, como demonstram os seguintes excertos:
A
linguagem ordinária é parte do organismo humano e não menos complicada do que
este. (...) As convenções implícitas para o entendimento da linguagem ordinária
são enormemente complicadas.[14]
Nosso
esforço pela generalidade tem outra origem maior. Filósofos têm os métodos da
ciência natural em vista e são inevitavelmente tentados a perguntar e responder
questões ao modo da ciência. Essa tendência é a própria fonte da metafísica e
deixa o filósofo em completa escuridão.[15]
Os
homens não se dão conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas. A menos
que uma vez tenham se dado conta disto. – E isso significa: não nos damos conta
daquilo que, uma vez visto, é o mais marcante e o mais forte.[16]
A
filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de
nossa linguagem.[17]
Muitos
pensaram no procedimento de explicitação das convenções implícitas da linguagem
natural como se isso fosse a descoberta de um procedimento revolucionário
indentificador da filosofia como pura análise conceptual. Contudo, à parte artifícios
como aquilo que Quine chamou de ascensão
semântica (semantic ascent), que é pouco
mais do que o uso de uma metalinguagem semântica na descrição mais clara e
distinta da estrutura conceitual sob análise[18], ou a
cuidadosa consideração dos variados usos linguísticos ordinários, de modo a nos
tornar conscientes das sutis diferenciações semânticas entre as palavras, não
há nada de verdadeiramente novo nas características gerais do procedimento em
questão. Pois a análise do significado de termos filosoficamente relevantes na
tentativa de descrever a verdadeira estrutura de nosso pensamento sobre o mundo
não é mais do que uma retomada (com a adição de novos métodos de análise e de
uma mais rigorosa atenção às sutilezas da linguagem) de um projeto que perpassou
toda a história da filosofia ocidental e que já havia tomado a forma de análise
conceitual nos diálogos de Platão. Afinal, nesses diálogos Sócrates geralmente aparecia
com questões do tipo “O que é X?”, onde X estava no lugar de termos como ‘conhecimento’,
‘justiça’, ‘beleza’... seguindo-se daí as tentativas geralmente aporéticas de
se encontrar uma definição capaz de resistir a objeções e contra-exemplos.
Duas objeções à explicação tradicional
A idéia de que possuimos conhecimento
implícito das convenções que determinam os significados de nossas expressões
lingüísticas foi desafiada por defensores do externalismo semântico. Segundo o
externalismo, os significados das expressões podem residir fora do domínio do
psicológico, no mundo físico e social, dependendo assim apenas de seus objetos
de referência, assim como, eventualmente, de processos neurobiológicos
envolvendo mecanismos causais autônomos. Em apoio a essa idéia pode ser aduzido
o próprio caráter não-reflexivo das regras semânticas que determinam nossos
usos lingüísticos. Se nos falta consciência do significado, então por que ele
não pode ser simplesmente não-psicológico, dependo tão somente de uma maquinaria
neuronal impossível de ser tornada consciente? Nesse caso não seria em
princípio sequer necessário o envolvimento de elementos mentais na apreensão e
manipulação do significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais
autônomos, irresgatáveis para a consciência. John McDowell ilustra essa posição
ao observar contra Michael Dummett que
Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto é o portador de
um nome familiar sem ter a menor idéia de como
o reconhecemos. O presumível mecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria
neural [e não psicológica] – suas operações sendo totalmente desconhecidas de
quem as possui .[19]
Para McDowell a função referencial dos nomes próprios não é para ser
explicada com base em regras cognitivas implícitas de identificação do objeto,
a serem descritivamente resgatadas, pois:
As
opiniões dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciais divergentes
com respeito a nomes são produtos de auto-observação, tanto quanto isso é acessível,
de um ponto de vista externo. Elas
não são intimações vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamente
conhecida, uma receita para o discurso correto que guia o comportamento do
lingüista competente. [grifo nosso][20]
Essas conclusões encontram-se em franca oposição ao que pretendo
defender nesse livro. Pretendo demonstrar que alguma instanciação de regra
semântico-cognitiva interna, mesmo que implícita, acaba sendo indispensável à função
referencial, se esta for entendida em seu sentido próprio. Veremos que para
haver referência é necessario que algum elemento cognitivo, mesmo que
irreflexivo, seja instanciado em alguma medida, em algum momento, em algum de
seus usuários, ainda que isso não costume ser necessário em toda medida, a todo
momento e para qualquer usuário.
Eis como podemos contra-argumentar. Uma
diferença entre a opinião dos falantes resultante da auto-observação do ponto de
vista externo sugerida por McDowell e a opinião resultante da auto-observação
do ponto de vista interno pretendida por Dummett deveria ser a seguinte: o
resultado da opinião consequente à auto-observação do ponto de vista externo deveria
ser gradualmente reforçado pela consideração de uma multiplicidade de exemplos,
diversamente do resultado da opinião consequente à auto-observação do ponto de
vista interno, que resulta da tomada de consciência da base convencional. Mas
não parece ser isso o que realmente acontece. Para evidenciar esse ponto quero
considerar o significado da palavra ‘cadeira’, que quero tomar como modelo
devido a sua comparativa simplicidade. O que é uma cadeira? Todos nós sabemos o
significado dessa palavra, mas normalmente não nos damos conta de como seria a
sua explicitação analítica através de uma definição. Assim, seguindo o moto
wittgensteiniano de que o significado é aquilo que a explicação do significado
explica eis uma definição que me parece perfeitamente razoável e que explica o
significado da palavra ‘cadeira’:
(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto feito
para ser usado por uma só pessoa.
Não é difícil mostrar que essa definição realmente explicita o que
queremos dizer ao usar a palavra ‘cadeira’. Podemos sempre imaginar casos
limítrofes, como o banco para uma pessoa cujo encosto tem apenas dez
centímetros de altura (é banco ou cadeira?), ou a cadeira cujo encosto foi
retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou
provisoriamente virou um banco?), ou um tronco de árvore que passou a ser usado
como cadeira, mas que para tal sofreu algum entalhe nas mãos de um marceneiro (ainda
é um tronco de árvore usado como cadeira ou já é uma cadeira?). Casos
limítrofes são inevitáveis, posto que nossos conceitos são inerentemente vagos
e que essa vagueza se origina da propriedade metafísica de indeterminação inerente
à própria realidade que pretendemos apreender. Há também casos que apenas
parecem ser limítrofes, mas acabam por se revelar decidíveis. Eis dois exemplos
que retiro de um texto de Paul Elbourne.[21] O primeiro é o de uma
sociedade de pessoas extremamente obesas e preguiçosas, para as quais são
fabricados bancos especiais nos quais duas ou três pessoas normais poderiam se
sentar. Uma diferença entre banco de jardim e cadeira é que nos bancos de
jardim mais de uma pessoa pode se sentar. Nesse caso, parece que a distinção
entre cadeira e banco desapareceu. Contudo, um exame mais acurado da definição
mostra que o que caracteriza uma cadeira não é que ela não possa ser usada por
mais de uma pessoa, mas que ela é um artefato feito para ser usado por apenas
uma pessoa de cada vez. Por conseguinte, os supostos bancos de jardim dessa
sociedade são na verdade cadeiras, uma vez que foram já fabricados para serem
usados como cadeiras, ou seja, para uma só pessoa. O segundo caso é o do jardim
de um clube que tem por regra que cada banco só pode ser ocupado por uma única
pessoa de cada vez. Nesse caso eu diria que os bancos continuam a ser bancos,
pois foram feitos para serem usados
por mais de uma pessoa, embora estejam sendo usados como se fossem cadeiras. Além
do mais, o que justifica uma regra conceitual é a sua utilidade nas inúmeras
vezes nas quais ela pode ser aplicada sem dificuldades e não os poucos casos
nos quais ela deixa de ser útil.
Quando
ouvimos a definição de cadeira pela primeira vez ela nos atinge como algo que
parece correto. Depois que a ouvimos, podemos tentar imaginar uma cadeira sem
encosto e percebemos que não conseguimos. Podemos contrastar um banco de
jardim, que possui encosto, mas que é feito para mais de uma pessoa sentar, com
uma cadeira. Parece que como confirmação isso já nos basta. Mas não precisamos
ir além, imaginando toda sorte de cadeiras (cadeiras de balanço, cadeiras de
lona, cadeiras de rodas, poltronas...) de modo a irmos reforçando indutivamente
nossa crença na definição. Contudo, se McDowell estivesse certo e nosso
conhecimento do significado de um nome comum como ‘cadeira’ fosse resultado da
auto-observação de um ponto de vista externo, então parece que ganharíamos uma
convicção crescente de que cadeiras são bancos com encosto na medida em que
isso fosse indutivamente confirmado pela consideração de um número cada vez
maior de exemplos. Mas não é isso o que acontece e a explicação óbvia é que a
definição apenas recupera a convenção semântica resultante do acordo tácito
entre os falantes a governar o uso
da palavra ‘cadeira’ nas identificações de cadeiras. Mas se o que temos é uma
convenção, então um elemento psicológico precisa estar envolvido, mesmo que de
modo tácito, não-consciente, mesmo que constituído apenas do que na próxima seção
iremos chamar de uma cognição não-reflexiva. A definição (c) torna explícita
uma convenção que se instancia em cognições implícitas, não-reflexivas,
não-conscientes, confirmando assim a explicação tradicional.
Um
outro argumento que vai contra a idéia de que temos acesso cognitivo implícito
às convenções semânticas que governam nossas expressões foi desenvolvido por
Gareth Evans, o filósofo que mais diretamente influenciou McDowell. Evans convida-nos
a contrastar a crença que um ser humano tem de que certa substância é venenosa
com a disposição de um rato de evitá-la. No caso do ser humano trata-se de uma
cognição no sentido de uma crença genuína envolvendo conhecimento
proposicional; já no caso do rato trata-se de uma simples disposição para
reagir a certo odor e não propriamente de uma crença. A diferença se mede no
fato de que
É
da essência de um estado de crença que ele esteja a serviço de muitos distintos
projetos e que sua influência sobre qualquer projeto seja mediada por outras
crenças.[22]
Assim, se uma pessoa tem a crença de que certa substância é venenosa,
ela pode com base nessa crença tanto tentar matar um rato na expectativa de que
ele venha a ingerir o veneno quanto, digamos, ingerir o veneno na intenção de se
suicidar. Nós relacionamos inferencialmente o conteúdo cognitivo da crença de
que uma substância seja venenosa a uma diversidade de outras crenças, por
exemplo, o caso de alguém que acredita que se tornará imune a um veneno ao
digerir diariamente uma pequena quantidade dele e ir aumentando gradativamente
a dose. Como nosso conhecimento das regras semânticas não é susceptível de tais
inferências, raciocina Evans, ele não é
constituído de estados de crença reais, mas de estados insulares, semelhantes à
disposição do rato. Eles não são, pois, estados psicológicos propriamente cognitivos.[23]
A
caracterização da crença proposta por Evans é interessante e correta. Mas a
conclusão é dubitável. Certamente, nossa crença de que certa substância é
venenosa é consciente porque não é insular e vice-versa. Mas o ponto crucial é
que o argumento de Evans nos fecha os olhos para a imensa distância que existe entre
nosso domínio das regras semânticas e a mera regularidade disposicional que
leva o rato a evitar o veneno. Considere, como analogia, o caso de nosso
conhecimento das regras da gramática portuguesa, como no exemplo simples das
regras gramaticais de concordância verbal. Uma criança pode ser capaz de aplicá-las
corretamente sem ser capaz de explicitá-las verbalmente e conscientemente. Mas
tais regras já lhe permitem realizar uma diversidade de aplicações a verbos que
são diferentes em diferentes contextos. Mesmo não sendo consciente, o
conhecimento da gramática parece aqui envolver conhecimento proposicional e
crença, sendo o conhecimento tácito que o falante tem da gramática inferencialmente
avaliável na interação com os seus outros sistemas de conhecimento e crença,
sendo ele também sempre capaz, sob circunstâncias apropriadas, de ser trazido à
consciência.[24]
A
conclusão a que chegamos é que há uma gradação entre estados mentais inconscientes
mais primitivos e outros mais sofisticados, que incluem crenças e pensamentos. Se
admitimos que regras semânticas são aquelas que têm como exemplo mais simples o
caso da regra semântico-criterial para identificar cadeiras como bancos com
encosto feitos para serem usados por uma só pessoa, então devemos rejeitar conclusões
como as de Evans e McDowell. Afinal, essa regra já nos permite fazer
inferências simples, como a de que uma cadeira não é um banco, ou de que cinco
pessoas dificilmente poderão se sentar em uma cadeira, tendo muito maior
proximidade com as regras da gramática portuguesa do que com a regularidade
disposicional demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece
que em tais casos, diversamente do caso da disposição do rato, inferências
implícitas para outras cognições encontram-se disponíveis, ainda que elas sejam
limitadas e que não se possua uma disponibilidade tão ampla quanto o estado de
crença mais complexo discutido por Evans.[25] A raiz
dessas confusões se encontra a meu ver no fato de que as regras semânticas em
questão não têm sido nem seriamente nem suficientemente investigadas em
exemplos concretos, diversamente do que espero fazer no curso da presente
investigação.
Cognições semânticas não-reflexivas
Em apoio ao modo de ver tradicional, quero
ainda apelar para as teorias da reflexivas da consciência. Mas o que são as
teorias reflexivas da cosnciência?
Na
filosofia tradicional a ideia já foi sugerida por John Locke, com a sua teoria
do sentido interno.[26] Mas
ela foi introduzida na discussão contemporânea por D. M. Armstrong.[27] Podemos
resumi-la dizendo que existem basicamente dois sentidos para a palavra
‘consciência’. O primeiro é o do que ele chama de consciência perceptual, que consiste no fato do organismo estar
acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao seu redor e a si mesmo. Esse
nível de consciência é compartilhado com espécies inferiores: dizemos que um
hamster sedado com éter perdeu a consciência porque ele deixou de perceber o
mundo. É plausível admitir que nesse nível já existe alguma forma de
mentalidade e cognição. Mas ao perceber o mundo o hamster não percebe que
percebe. O rato percebe o gato, mas é improvável que ele seja capaz de tomar
consciência disso no sentido mais próprio da expressão. Igualmente, quando
ameaçada, uma serpente deve sentir raiva (possivelmente o único sentimento de
que seu mesocortex é capaz), mas ela não tem consciência da raiva que tem, pois
ela certamente não possui qualquer consciência reflexiva... Quando então ganhamos
a consciência de que nós mesmos percebemos, sentimos, pensamos? A resposta é dada
pela introdução de um segundo sentido da palavra ‘consciência’, este sim para
Armstrong verdadeiramente importante. Trata-se daquilo que ele chamou de consciência introspectiva e que nós preferimos
chamar aqui de consciência reflexiva
(responsável pela consciência dos próprios estados mentais). Segundo Armstrong,
a consciência reflexiva emerge evolucionariamente da necessidade de sistemas
mais complexos controlarem seus próprios processos: ela tem uma função monitoradora. Para tal os estados
mentais de primeira ordem, incluindo os da própria consciência perceptual, se
tornam objetos de cognições de ordem superior, a saber, de metacognições simultâneas, as quais são reflexivas do que se
processa no primeiro nível (o que D.M. Rosenthal chamou de higher-order thoughts[28]). Só
quando temos a consciência reflexiva de um estado perceptual é que podemos
dizer que ele “se tornou consciente” (por isso, quando dizemos que uma sensação
ou sentimento ou pensamento “é consciente” estamos querendo dizer que ele se
tornou objeto de metacognições). Isso demonstra que a consciência dita
perceptual é na verdade uma espécie de “consciência inconsciente”, posto que sendo
não-reflexiva nada sabe de si mesma. Provavelmente só os seres humanos e alguns
mamíferos superiores são capazes de consciência reflexiva.
Admitindo
essas distinções podemos prosseguir distinguindo entre duas formas de cognição:
(i) Cognição não-reflexiva:
essa é a cognição própria da consciência perceptual; ela é uma cognição que
enquanto tal é inconsciente, nada sabendo de si mesma.
(ii)
Cognição reflexiva: trata-se da cognição que é objeto de uma metacognição de si mesma.
Outros estados mentais como sensações, emoções e percepções, também podem ser
chamados de reflexivos se vierem acompanhados de metacognições de si mesmos.
Uma
vez de posse dessa distinção nós podemos aplicá-la ao entendimento do status dos significados ou conteúdos
cognitivos refletidos nos modos de uso de nossas expressões. Quando dizemos que
as regras determinantes dos modos de uso referenciais de nossas expressões não
são em geral conscientes, não estamos querendo dizer que suas instanciações são
realmente não-cognitivas, que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que
elas se encontram verdadeiramente insuladas ou excluídas. O que queremos dizer
é apenas que as cognições que instanciam psicologicamente essas regras são de
um tipo pré-reflexivo (ou seja, elas não aparecem na forma de cognições
reflexivas, faltando-lhes consciência no sentido que Armstrong considerava importante
da palavra).[29]
Mais ainda: parece ser sempre em princípio possível que essas cognições não-reflexivas
envolvidas em nossos usos significativos das palavras sejam explicitadas de
maneira a se instanciarem na forma de cognições reflexivas, conscientes, na
medida em que as tornamos objetos de excrutínio metacognitivo, e que isso nos
sirva de base para a o acesso consciente de sua subsequente decomposição
analítica. Pode ser que seja por um caminho semelhante que nos tornamos
conscientes das regras semânticas envolvidas nos usos das expressões
lingüísticas.
Uma
objeção ao que acabamos de fazer consiste em notar que as teorias reflexivas da
consciência não são as únicas. Há um bom número de outras teorias concorrentes.
Por consequência, a distinção só vale se as teorias reflexivas forem
verdadeiras.
A
resposta parece estar na admissão de que quase todas as outras teorias da
consciência de algum modo incluem a teoria reflexiva naquilo que propõem. Essas
outras são o que poderíamos chamar de teorias integracionistas da consciência. Elas podem ser assim chamadas
porque tem em comum a ideia de que a
consciência de um estado mental depende da integração desse estado mental com
os outros estados mentais constitutivos do sistema. Esse é certamente o
caso de teorias integracionistas a de Daniel Dennett (consciência como celebridade
cerebral), de Ned Block (consciência como a disponibilidade do estado mental
para uso no raciocínio e direcionamento da ação), de Bernard Baars (transmissão
do conteúdo sob o foco da atenção para o espaço de trabalho global da mente) e
de Giulio Tononi (consciência como a abilidade do cérebro de integrar
informação), para citar as mais recentes, embora a ideia já tenha sido admitida
pelo menos desde Kant, passando por Sigmund Freud.[30] Sob a
perspectiva dessas teorias, uma cognição inconsciente seria aquela que
permanecesse em maior ou menor medida dissociada
de outros estados mentais (embora não insulada, não excluída). Isso me parece correto.
Contudo, por que pensar que essa maneira de ver é incompatível com a de uma
teoria reflexiva da consciência? Afinal, parece razoável pensar que a
propriedade de um estado mental de ser objeto de reflexão metacognitiva seja também
uma condição talvez mesmo necessária para que esse estado mental possa ser mais
extensamente, claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos
do sistema. Aplicando uma metáfora conhecida: se o estado mental consciente for
como um ator que se torna visível para todo o sistema pelo fato de ser
iluminado pelo holofote da atenção, isso pode acontecer simplesmente pelo fato
de que a luz do holofote é a sua própria metacognição. É ela que torna o estado
mental acessível ao resto do sistema e daí consciente. Se isso for admitido
torna-se fácil generalizar a distinção entre cognições não-reflexivas –
próprias de nosso conhecimento e aplicação tácita das regras semânticas – de cognições
reflexivas, próprias de nosso conhecimento consciente, refletido, de como essas
regras são constituidas, de sua expressão linguística, tornando-nos aptos a
analisá-las em seus componentes.
Conclusão
Esse capítulo introdutório foi pensado como
fornecendo um arcabouço geral capaz de servir de apoio à tese geral desse livro
de que as teorias causais externalistas e não-cognitivistas da referência devem
ser substituidas por formas mais sofisticadas de teorias não-causais,
internalistas e cognitivistas da referência. Para isso procurei primeiro
resgatar a credibilidade do senso comum e da linguagem ordinária ao propor o primado
do conhecimento comum como princípio do bom filosofar. Depois adicionei a ele o
método do filosofar por exemplos derivado das reflexões de Wittgenstein sobre a
natureza da filosofia, especialmente de sua ideia de que a filosofia demanda
representação sinóptica. Finalmente procurei demonstrar a verosimilhança da
ideia de que as regras semânticas que governam os usos refereniais de nossas
palavras são capazes de s instanciar de modo cognitivo ou psicológico, mesmo quando
nos falta a consciência das convenções semânticas que estamos seguindo. As
regras semântico-criteriais envolvidas no uso referencial das expressões não precisam
ser aplicadas de forma verdadeiramente não-cognitiva, no sentido de serem
mecanismos causais externos, irresgatáveis para a consciência reflexiva, como
pretenderam alguns. Isso nos permite considerar essas regras como sendo sempre,
de um ou de outro modo, cognitivamente aplicadas. Só que essas cognições, mesmo
sendo eventos psicológicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognições
capazes de tê-las como objetos de reflexão, não se fazem conscientes, por isso
mesmo não se tornando tão facilmente integráveis a outros estados mentais
constitutivos do sistema. Por tal razão, a falta de consciência das regras
semânticas envolvidas no uso significativo das expressões não basta para
fazer-nos rejeitar a eventual indispensabilidade do elemento psicológico-cognitivo.
[1]
G.E. Moore: “A Defense of Common Sense”.
[2] C.S. Peirce:
“Critical-Commonsensism”; ver também Roderick Chisholm: Theory of Knowledge, p. 64.
[3] Ver Bertrand Russell: ABC of Relativity, cap. 1
[4] Esse é
um enunciado como o de Heráclito, que notou que o sol tem o tamanho de um pé
humano. Como observou um intérprete, basta que nos deitemos no chão e
levantemos o pé contra o sol para nos certificamos de sua verdade.
[5] Frédéric Lenoir: Deus: sua história na epopéia humana, p.
148.
[6] Este exemplo é usado para ilustrar a posição
de Wittgenstein por G.H. Baker e P.M.S. Hacker em Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.
[7] Este é o método preconizado por Avrum Stroll
em seu livro Sketches of Landscapes:
Philosophy by Examples, pp. x-xi.
[8] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 109,
111, 122, 125, 129.
[9] Não há mais hoje quem concorde com a tese implicitamente
sugerida por certas passagens dos textos de Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões
lingüísticas. Apesar disso, é um fato que a prática filosófica é quase
inevitavelmente produtora de confusões lingüísticas, mesmo que contenha algum insight substancial por trás do que
pretende sugerir. Daí que uma atenção crítica prévia aos sentidos ordinários
dos conceitos usados é propedeuticamente desejável e será aqui
metodologicamente empregada.
[10] Anthony Kenny sugeriu que Wittgenstein
mantinha de modo inconsistente duas concepções sobre a filosofia, uma
estritamente terapêutica e outra teorética, no sentido de buscar apresentações
panorâmicas da gramática conceitual. Contudo, outros intérpretes, como Gordon Baker
e P. M. S. Hacker, consideram as duas concepções compatíveis. Ver A. Kenny, “Two Views on the
Nature of Philosophy”. Ver também C. F. Costa, Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphlosophischen Semantik, Einfuhrung.
[11] L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec.
122. Como
notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Wittgenstein não rejeita o engajamento em teorizações filosóficas
quando elas se fazem necessárias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, cap. XI. Além
disso, Wittgenstein também usa a palavra ‘teoria’ para qualificar o seu próprio
procedimento teórico, no sentido de um sistema “orgânico” ao invés de
“arquitetônico”. Ver Wittgenstein: Wittgenstein’s
Lectures, Cambridge – 1932-35, p. 43.
[12] G. P. Baker & P. M. Hacker: Wittgenstein:
Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.
[13] Ver David Lewis: Conventions, cap. 1.
[14] Ludwig Wittgenstein: Tractatus
Logico-Philosophicus, 4.002.
[15] Wittgenstein: The Blue and Braun
Books, p. 18
[16] Wittgenstein: Philosophische
Untersuchungen, seção 129.
[17] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen,
seção 109.
[18] W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seção 56.
[19] John McDowell: “On
the Sense and Reference of a Proper Name”, p. 178. O conteúdo entre colchetes repete as palavras do autor
em sua nota de rodapé sobre essa passagem. McDowell vê na posição de Dummett
uma recaída no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.
[20] John McDowell: “On
the Sense and Reference of Proper Names”, p. 190.
[21] Paul Elbourne,
Meaning, a Slim Guide to Semantics,
cap. 1.
[22] Gareth Evans: “Semantic Theory
and Tacit Knowledge”, p. 337.
[23] Evans: ibid. p. 339.
[24] Ver Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93;
ver também seu livro Knowledge and
Language, pp. 261-265.
[25] Freud distinguia a representação
inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processos de pensamento
inconscientes, da representação inconsciente verdadeiramente insulada, não
associável a outras, que para ele emergia em estados psicóticos e cujo mecanismo
de repressão ele chamou de exclusão (Verwerfung). Evans trata o estado mental
de domínio da regra semântica no melhor dos casos como se fosse um conteúdo
“excluído” no sentido freudiano.
[27] Ver o artigo
clássico de D.M. Armstrong: “What is Consciousness?”, pp. 55-67. Ver também seu livro Mind and
Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.
[29] Desconsidero aqui a idéia tradicional de
que os estados mentais de primeira ordem geram automaticamente metacognições, o
que tornaria impossível haver consciência perceptual sem que essa seja também
uma consciência introspectiva. Não só essa idéia retira muitas vantagens
explicativas das teorias reflexivas da consciência, tornando a existência de
pensamentos inconscientes incompreensível, mas parece faltar a ela uma base
intuitiva convincente.
[30] Para um resumo das
atuais teorias da consciência, ver M. Velmans and S. Schneider (eds.): The Blackwell Companion of Consciousness,
part III.
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