OS FUNERAIS
DE
APOLO
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OIDUALC ATSOC
Agora o pranto
molha o rosto e o pranto não tem consolo.
Periquitos
depenados são cozinhados em frigideiras de aço,
Uma multidão de
corvos alça vôo e obscuresce o sol
E os girassóis
sofrem de torcicolo – de tanto procurar.
Do mágico
encantador de serpentes resta apenas a ventríloqua sombra,
E olhos
violentadores rasgam o ventre pálido das mentes.
Agora silêncio
culpado borra a noite em perpétua núvem.
Os sapos mijam
na madrugada cinzenta.
Pobres
escrementos esquecidos
No amor do pudor
do sapo.
Duvidosamente
violáceos!
Bem como
arborescentes e descrentes.
É assim que o
jardim acorda de seus sonhos,
Isto é:
Pelo mijo dos
sapos na madrugada cinzenta.
A revolução não
precisa de cientistas, nem a alcova de Mozarts.
Dai aos gatos o que
é dos ratos e ao gato o que é dos gatos.
Se
você se vê como um penetra no banquete da vida, achando literatura um pé-no-saco
e sentindo náuseas ao entrar em livrarias... pode ser que esse livro lhe seja
indicado.
Oidualc Atsoc é o alter-ego literário de
Claudio Costa, mais conhecido pela produção da inusitada filosofia clássica pós-analítica
e anti-contemporânea.
Os Funerais de Apolo é um trabalho
experimental, escrito na juventude e só agora relutantemente dado a público.
Trata-se de uma literatura futurista no sentido de que só chegará a ser
inteiramente compreendida quanto a humanidade atingir o nível ômega.
CONTEÚDO
PRÓLOGO
LÍRICA
Paráfrase
Uma
flor
Narciso
Nômades
Devoradora
A
sereiazinha do mar de azul profundo
Não
quero mais aqui
A
voz pela qual fala o poeta
À
noite
Metagnoseôntica
hipernaturalista
SATÍRICA
Vou
Estase
e êxtase
A
canção das bestas
Trova
de amor
O
velho e a cítara
Não
era minha
Ode
funerária à filosofia perdida
RIDICULÍSTICA
ODES
AO ÓPIO
Enunciamento
1.
Evocação
2.
Epístola a Dionísio
3.
Ruvstoff
4.
O mijo dos sapos
5.
Burlupt: o que uma bolha diz
CANÇÕES
DO LOUCO ALEGRE
1.
Formas hipotéticas
2.
O pato hermenêutico
3.
Suggestion du Chef
4.
Cantata de Vogel
5.
The song of Bong
CANTARES
DA NINFAS DO RENO
1.
Sacerdocterum Ergospasmus
2.
Sigfried confia seu sonho aos pássaros
A
MALÍCIA DO ENGENHO
1.
A evolução no planeta dos sapos
2.
O flagelador de si mesmo
3.
Goofy Symphony
CONTOS
Conto
infantil
A
conquista do Cantabala
Meu
amigo Alceu e eu
POSFÁCIO (2010)
PRÓLOGO
Oh, idólatras adoradores do sol! Vós que
crédulos confiais em uma incerta miragem do além-mundo. A pura beleza, luz
decantada de perfeições. Eis aí o cadáver de um deus! Uma divindade imberbe que
não gostava de vinho e nem ao menos sabia dançar.
Que está morto não tenham dúvidas. Não
respira. Dentro do peito já não bate o trêmulo coração, e o corpo principia a
entrar em rigor mortis. Breve será a vez dos trabalhadores da
morte.
O diagnóstico é duvidoso. Mas desconfio
que tenha sido vital à sua psicologia divina, que pela relaxada indolência de
seu caráter ele tenha se deixado abandonar em um circo infecto, contentando-se
com as acrobacias verbais de um arlequim grotesco a tapear em farsa servil a
sua pobre impotência; domando os mesmos ursos, que sempre tomaram o cuidado de
vestir novas peles; fingindo voar ao cair do trapézio e depois espatifando-se
no solo; enfiando a cabeça na boca babosa de velhos leões desdentados; – os coelhos
eternamente os mesmos, retirados sempre da mesma cartola. Tudo para um mesmo e
fiel público: abestalhados comedores de pipoca, sempre ávidos de prazeres
pueris.
Mas... what’s done cannot be undone. E que por um breve momento, ao menos, sua principal
carpideira, o poeta, seja ouvida.
LÍRICA
The sun is rising
If
the sun rises, the flowers rise too.
I like
the sun;
The sun is the hot of human bodies.
Because if the sun rises
The man awakes.
Green Leaves
Paráfrase
Eu ouço o som do abandono
Onde as trevas desfazem a nítida estrela
E augúrios de morte me chamam.
Mas; vem ó cálida estrela
Para desfazer os tristes augúrios do abandono
Com teus ternos lábios.
Eu ouço a voz do silêncio.
Não me abandones, silêncio meu,
Pois tu sabes que és minha única voz.
Uma
Flor
Eis
Uma flor
– Desgastada
– Perdida
– Sumida
– Na insípida,
úmida e fria
– Cidade do
adeus.
Que:
Corre com seus passos leves no curto espaço de seus
sons imutáveis
Sem eco
Mudos e rutilantes, bem como anelantes da fala
inarticulada
de uma lira inexistente que toca sem cessar ao longe
em momentos de adeus.
Choras então:
O choro indolor que te puseram ao experimentar a cruel
e delicada, dolorosa e fóssil, insignificante e séssil, obscena e dourada, bem
como pedunculada
– Flor
– Desgastada
– Perdida
– Sumida
– Na insípida, úmida e fria
– Cidade do adeus.
Narciso
TEUS OLHOS
Olho encerrado em ambigüidades;
Encantador e encantado
Sonhas com o paraíso e imerges em teu sonhar.
Lá onde o real e o imaginário idênticos se tornam,
Lá onde os tempos se confluem em um eterno presente
E a luz do crepúsculo já na aurora se vem iluminar,
Lá voltas-te para a indivisa origem de teus sonhos.
Tu encantado imobilizas o gesto em êxtase.
TEU CORPO
De um corpo pleno de anelos, fala-te o desejo
solitário
De imóveis anseios, o puro aroma em que se enlevam.
E que à esquecida fonte primeva seja retornado
Um tênue cristal que a um só tempo espelhe
A pérfida lua e o portentoso sol
Em que todos se refletem
Em que tudo se extingue
E que indistinto na suave transparência
Torne-se o corpo de sua imagem.
Nômades
Qual líquidos de matéria sem forma
Frias e inertes aparências de infinitude
Rimo-nos da imobilidade do tempo presente
E fazêmo-lo escoar para o imaginário.
Nada nos toca sem que nosso úmido afago
Não profane o recôndito mistério.
E quebrado o cálido cristal, esvaímo-nos silentes
Sempre em busca de novas formas.
Preenchendo os volumes em moldes inumeráveis
Disseminando o nada,
Profanamos a imobilidade natural da matéria
Ao construir um templo para o qual
Desconhecemos o deus.
Sem vida, morte ou sono reparador,
Variedades de ser em imitações recriamos,
Só para perdê-las no esquecimento.
Moramos em cidades onde ninguém habita.
Qual Sísifos do querer aprisionados
Nosso destino é o eterno amanhã.
Devoradora
O que queres de mim é com os fios do teu tear
Enlear-me em tudo aquilo em que não me reconheço
A esse e a essa a aquele e a aquela e a aquilo e a
tudo e a todos,
Até que inteiramente enlaçado por fios invisíveis
Eu me creia como em uma rede leve a balançar
Saboreando doces manjares ao som de suaves melodias...
É então que abrirás tuas cruéis mandíbulas
Que cravarás impiedosamente em meu peito,
Para esvaziar-me de toda a seiva vital.
E findado o teu repasto te afastarás indiferente
Deixando a carcaça seca a balançar entre os fios
Até que algum vento mais forte venha a rompê-los
Para desfazer esse perverso mal-entendido
Em piedoso esquecimento.
A SEREIAZINHA
DO MAR DE AZUL PROFUNDO
À noite, fui sozinho para fora ver o mar,
Que onde estava era quase sem ondas
Devido à proteção dos arrecifes.
Sentei-me em uma pedra próxima da água e olhei para o
fundo,
Era um poço escuro que refletia a luz do luar.
Foi quando ela apareceu, brilhando, luminosa,
A sereiazinha do mar de azul profundo.
Ela veio a mim e seu rosto me lembrava o de um anjo barroco,
O modelo de bondade humana seguidamente escolhido
Pelos mestres italianos junto aos membros do povo.
Esse rosto cuja pureza resplandece
Como o mármore pálido de sua tez.
Ela me disse:
– “Venha! Venha banhar-te nas águas.”
– “Venha viver comigo no mundo azul do mar,
Mundo do mar de azul profundo.”
Ela me segurou a mão e me levou para uma região
Que de início me parecia ser como dos sonhos,
Um mundo invertido de luzes e sombras
Povoado de imagens tornadas etéreas
De nosso próprio mundo e de nossas vidas,
Onde tudo é o prazer do ser um em dois,
E onde alma e corpo se consumam.
O mar de onde nunca mais voltei,
O mar onde ainda hoje me encontro,
O mar no qual ainda hoje abito,
O mar no qual sempre habitarei.
FRAU
LIEBERMAN
Liebe
Frau Lieberman,
Aqui
venho outra vez cantar-vos meus pobres versos de amor.
A
vós, cuja sensibilidade ressoa em todos os recantos de minha alma,
Aqui
venho outra vez contar-vos minhas dores e os amargores
que
tua ausência me traz!
Bendita
sois vós entre as mulheres,
Benditos
sejam vossos músculos pélvicos,
Benditas
a celulite a marcar um erotismo abrasador.
Bendito
o indevassável abismo de tua rósea conchinha,
Bendito
vosso beijo leve, molhado, apaixonado,
Bem
como a tua alma bondosa de anjo maravilhoso,
Mit shöne Grüssen,
Euer
untergegebsten treuer diener.
Não quero
mais aqui!
Vou viver lá onde as macieiras florescem
Todas juntas perfumando o ar,
Ou talvez no mundo inferior do Hades
Se o meu destino for por lá ficar.
Mas não quero mais aqui!
Vou viver lá onde alguma
candeia de luz
Ainda me ofereça uma réstia
de esperança,
Ou terei de me esconder entre
as pedras
E ser caçado feito um
animal
Até ser atravessado por uma
lança.
Mas não quero mais aqui!
Vou viver no mar profundo,
Onde as correntes decidirão
O meu destino ao léu,
Ou cairei em um esgoto podre
Onde ratazanas me comerão
Até só restarem os ossos.
Mas não quero mais aqui!
Mas não quero mais aqui
Porque não posso mais aqui
E não posso mais aqui
Porque não devo mais aqui!
A
voz pela qual fala o poeta
Breves instantes são os versos de um poeta.
Não captam a duração inefável do devir
Nem a circularidade revolta do tempo;
Deixam-nas passar
Como água que escorre por entre as mãos.
Pedras frias escondem
O fundo ardor do coração
Que é seu real anseio.
A verdadeira voz pela qual fala o poeta
Não deveria ser como as passageiras ondas
a morrer na areia
Nem como a voz mutável do dia-a-dia
Nem como o gemido lastimoso do vento
Nem como o trovejar de relâmpagos...
No tempo perdido do antes e do após
No mudo ecoar do seu silêncio,
É que se oculta e se encerra
A verdadeira voz pela qual fala o poeta.
À
noite
Em silêncio despertáramos no vácuo
Nada sob os pés na escuridão vazia;
Nus em um gélido deserto
Flutuávamos no ignorado leito dos sonhos.
Então a escuridão aconchegou-nos aos braços
E fez-nos ela um suspeitoso ninho
Onde amargura alternava-se ao delírio.
(Então sentimento de pequenez e imensidão infinitas
Acercara-me o espírito...
E meu corpo era carente de formas, tempo ou vida;
– Que
imaginário fosse, era necessário vê-la,
Para vendo-a refletir-me em seu olhar.)
Ah! Indecifráveis loucuras do imaginário!
Loucuras da memória que se agita entre coisas proibidas.
Pálidas canções com que nos vemos
A tão branda e tão sólida esperança.
Ah! Branca voragem de sonhar a quem amássemos
Fim de um vácuo silencioso;
Gélido deserto por onde se agita um delírio inquieto.
Ode funerária à filosofia
perdida
Antes
vivíamos em um mundo de luz e sombra.
Hoje
vivemos no sagrado mundo do LUSCO-FUSCO!
Onde
todas as vacas são igualmente cinzentas.
E o
que restou da grande filosofia?
PORCARIA!
PORCARIA!
A
filosofia alemã... sabe-se que ela morreu.
A
filosofia francesa... essa também morreu.
A
filosofia anglo-saxônica... se estrebucha.
Alguns
dizem:
A
grande filosofia morreu de velha.
Eu
digo: foi ENVENENADA!
Envenenada
pelo positivismo cientificista
Envenenada
pela democracia de fachada
Envenenada
pela alienação meta-capitalista
Que
sequestra o gênio antes de ele haver nascido,
Que
dá poder aos que não podem
E voz
a um sem número
De
imaturas e deformadas mentes;
E que
ao espírito de meleca
Com a
sensibilidade de um cavalo
E a
profundidade de um pires
Um
lugar errado no mundo dá.
Metagnoseôntica
Hipernaturalista
1. Ser = Ente
= Algo = tudo o que há.
2. Todo ente é
empírico.
3. O ente
empírico físico, psíquico, abstrato: diversamente a mesma coisa.
4. Ente
psíquico mera superveniência do ente físico: resquício psicofísico.
5. Da
interconexão entre os entes físico e psíquico advém o ente abstrato, que de
abstrato só leva mesmo o nome.
6. O ente
empírico é o que se dá no espaço-tempo, como o psíquico.
7. O ente
abstrato possui localização espaço-temporal difusa, atual ou possível; ele se
assemelha a uma nuvem.
8. Entes podem
ser simples e complexos.
10. Entes simples abstratos podem ser concebidos enquanto
tais.
11. Entes simples concretos são propriedades - físicas
ou mentais - que concebemos como tais.
12. Propriedades são entes físicos ou psíquicos ou mesmo
abstratos.
11. Convergências de propriedades são entes complexos.
12. Substâncias são convergências localizadas de
propriedades.
13. Entes quaisquer podem existir no mundo ou só na
imaginação.
14. O ente psíquico pode ser representacional ou não.
15. O ente representacional é um símile de outro, que pode existir ou não.
16. O ente que existe é o que existe fisicamente
(podendo ser representacional) ou o que existe mentalmente (como ente psíquico
não-representacional).
17. O ente que não existe concretamente é o que só
existe como ente cognitivo-representacional.
19. Esse é o abstract de toda a metagnoseôntica
hipernaturalista.
20. C’est sufisant.
SATÍRICA
Somos unas
ervitas; pequeñitas
Masticadas
al sabor del viento
Por la grande vaca cosmica.
Mario Gabaldo
Vou:
Vou para o polo Sul para fazer churrasco de pinguim,
Vou para o polo Norte para um urso me comer a mim.
Vou me jogar no vulcão Krakatoa e ficar com a bunda
assada,
E depois irei boiar no mar morto para a carne ficar
salgada.
Vou para a chapada dos Veadeiros para virar veado,
Vou para a Terra do Fogo para virar um bom assado.
Vou virar um papagaio pra só falar de mim,
Vou virar um cervo pra no natal usar sinim,
Vou virar uma tartaruga pra poder me esconder em mim,
Vou virar um jegue pra poder comer um bom capim,
Vou virar porco-do-mato que ejacula sem ter fim.
Estase
e êxtase
Agora o fogo é brando e a chama não queima
Ares, Cronos, Atenas e Apolo
Tomaram o lugar dos deuses brincalhões
Como Dionísio e os Sátiros.
Agora o pranto molha o rosto e o pranto
não tem consolo.
Periquitos depenados são cozinhados
em frigideiras de aço,
Uma multidão de corvos alça vôo
e obscuresce o sol,
E os girassóis sofrem de torcicolo
– de tanto procurar.
Do mágico encantador de serpentes, resta apenas
a ventríloqua sombra
E olhos violentadores rasgam
o ventre pálido das mentes.
Agora silêncio culpado borra a noite
em perpétua núvem.
A árvore foi tombada
E em seu lugar
Construiu-se uma estátua;
Homenagem ao soldado desconhecido,
Também chamado o soldado cagão.
Mentiroso e covarde.
Agora
Ainda
Agora
Em cálidos suspiros tudo se põe a revolutear
O ar, a água, a terra, o fogo e o ar,
Sinfonia das almas que vestem-se de ar.
Agora
Ainda
Agora
Sob líquidos e folhas dormentes, dança
a dança dos
signos
Não em um delírio desconexo, obsceno e louco
Mas no interior de insólitas grades
Jaulas da geometria divina
Bombas aspirante-prementes
Hemisférios de Magdemburg
Câmaras de combustão
Vasos comunicantes
Alcovas que gemem
Shopping-Centers
Prostíbulos
Estábulos
Pocílgas
Cumbucas
Caixões
Caixas
Conas
Cuias
Cuas
Cus
Caixas de Pandora
Conspícuas teias de aranha
Musgosos pântanos de lodo
Leitos imóveis por onde correm os rios.
..............................................................
O implacável relógio do mundo
A marcar
Transformações obscenas...
A dor lancinante do prisioneiro pensar
A terrível ordem sob a mais absurda loucura
E a tudo submeter sua lei.
DURA LEX,
SED LEX.
A
canção das bestas
I
Imóvel sob o infinito azul de cobalto,
A besta dorme em seu leito incauto.
Eu assisti ao desmame das bestas
A besta cor de rosa
A besta amarelo limão
A besta verde esmeralda
A besta azul de cobalto
A besta dorme em seu leito incauto.
A besta amarela
A besta ocre
A besta ruiva
A besta loira
A besta negra.
Gemendo gemendo numa orgia frenética
Bestas de todas as cores e crenças.
Vejam vejam, bestinha e bestão bostão!
Eu assisti ao desmame das bestas.
II
A besta cheira mal
A besta anda gingando
A besta não escova os dentes
A besta almoça arrotando.
Besta que não sabe chorar nem rir.
A besta dança a passacáglia de Bach
Dança quando não é para dançar
A besta canta o minueto de Bach
Canta quando não é para cantar.
Besta que não sabe rir nem chorar.
III
Assim me pareceu
Toda a humanidade
Com exceção
Da minha augusta e nobre pessoa
Também considerada por muitos
– Uma besta.
IV
Amordaçado erro pelos andares da noite
Aqui a nulidade acavala-se na nulidade.
Um vento frio queima-me a face
Meus olhos vazios procuram
Os sonhos daquela
Que se desfaz na aurora.
Açoitado pelos ventos
Alvejado pelas costas
Cego na escuridão...
Eu sou o valente soldado
Que acaba de morrer
Sobre uma fonte de águas cristalinas.
Trova
D’amour
Cerca-me cândido olhar
Ao tremor do vento vêm-me
A intranquila lembrança
Desesperadamente triste
Como a lágrima de esperma
No olho cego do Cíclope.
Agora ao penetrar tateante e intumescido
Em anti-platônicas cavernas do desejo,
Vermelhos labirintos de limbo contráctil,
(Selva
selvaggia, áspera e forte)
Onde geme o Minotauro;
Agora o coração fremente
Lembra ainda
No leito mágico dos sonhos
Teu oferecimento de noite molhada.
Manhã congelada de enigmas.
O
velho e a cítara
Não pleno é o riso que a tristeza infinda.
No obscuro bosque dos escaravelhos vermelhos,
Entranhas amolecidas, borram em gotas
Orvalho sanguinolento
Fetos anencefálicos gemem baixinho
Sob escombros
Sombras exalam vapor úmido de cadáveres
Putrefeitos
E abrindo serenos à suavidade singela de uma
Clareira
Penetram suaves, enverdecidos raios de um sol
Crepuscular.
Imerso em bruma adolescente ancião nu e calvo
Sobre toco oco morto de abeto cinzento acomodado
E de singulares orquídeas arborescentes
Em guarnição cercado
Ao odor nauseante que enche o ar
Despreocupadamente entre as feridas
Belas moscas azuis passeiam
(Na natureza há lugar e tempo para todos)
E o sangue escorre rubro à santa sombra.
Trás no ânus enfiada culposa adaga
Lâmina ponteaguda que o dilacera internamente:
– Incicatrizável
ferida indissolúvel
– Necrose indissolúvel
– Fibrose indissolúvel
– Adenocarcinoma indissolúvel
– Deliciosa neoplasia em couve-flor
Tudo isso acabando por despertar-lhe sutil prazer
Branco e obsoleto
Pois que lenta e ritmadamente
Eterno, eternamente se regenerando,
Na lâmina ponteaguda o ânus
Se abrindo e fechando.
E o sangue escorre rubro à santa sombra.
Nina ternamente
Irônico em sofrimento
Discreto
À sombra,
Pois que ela se ronca pesadamente
Dentro do
Toco
Oco
Morto
Imenso
De abeto
Cinzento.
Que se próximo ao nariz cítara marrom ergue
Que se da qual elaborar-se faz
Que se pleno
Que se plenamente se fazendo e desfazendo
(andante con sustenuto)
Nas diacronias involuntárias do fantasmático tempo
Entre folhagens e trevas crescendo simbólicas
Sutilmente evanescentes à santa sombra
De uma lira inexistente que toca sem cessar
A lembrar remotamente
Em momentos de adeus
Voz distante
Triste canto
Inexistente
Ao longe
Singelo
BELO
BELO
BELO.
Que amarelecida pelas pressas da milenia
E desconexões do inalterável
À sua frente
De tépida luz rósea banhada
Bela escultura de mármore iluminada
Tronco de uma mulher nua
Em que se nota
A falta de corpo
A falta de membros
E principalmente
A falta
Absoluta
Da cabeça.
Imóvel olhar sorridente
Atento à dispersa canção
Enigmática estátua muda
Puro reflexo de ser
Em obsequioso estupor.
Isso era o que bastava
Para que porco lúbrico
Fiel e libidinoso
Ele se entregasse
À melancólica canção
Cerebral masturbação
Inconseqüente
Incongruente
incoerente
Inquietante
Incessante
Infinda
FINDA
FINDA
FINDA.
Não era minha
Encontrei uma florzinha
Muitas cores ela tinha
Era bem pequenininha
Mas não era minha.
Almocei uma franguinha
Que virou uma galinha
Dos galos era a rainha
Mas não era minha.
Eu catei uma pulguinha
Que sabia dançar sambinha
Que bundinha que ela tinha
Mas não era minha.
Ela era cachorrinha
Sua dona uma gatinha
Que tinha uma escrivaninha
Que também não era minha.
SONU
DI RUÊ
Acordei cum vuntadi di fudê
Mas num tinha perereca preu metê
Pensei im mesmu assim mi resulvê
Pelu auto-serviço acabá u meu sufrê.
Mas intão mi deu um sonu di ruê
I eu mi intortei i mi fui mi reculhê.
RIDICULÍSTICA
O ideal da arte ridícula seria
reinventar,
não aquela que satirize as
coisas mesmas,
mas que
por elas reconheça e destine
a sátira do próprio meio pelo qual opera.
Alexeno de Óspota
ODES AO ÓPIO
Enunciamento:
As poesias aqui apresentadas são cinco prelúdios ao
nada
Que compõem as odes ao ópio.
Mas que se entenda o mencionado ópio
Não no sentido literal e vulgar do termo
Mas num sentido transcendente, burlesco e metafórico
Como homenagem a Baudelaire, o poeta hiperbólico
Ou então
Como consolo último a neoplásicos estropiados e
caquéticos.
A seqüência começa como uma mera evocação
Passando por uma homenagem a Dionisius
Deus do prazer e da criação.
E numa abstração crescente
Revelando-se sempre mais e mais mordaz e descrente
Termina enfim numa assaz enigmática
Veneração ao nada, que tenta explicitar
O canto que uma bolha faz ao arrebentar!
Vamos então a elas:
1. Evocação
Ó aurora! Aurora que já tão cedo
Me anuncias o teu crepúsculo.
Sim! São teus seios que derramam o leite
De meus receptáculos.
Ó estígmas! Frios estigmas de um desastre
Obscuro.
Sim! São tuas marcas que me escandem
Tua luminosidade.
Ó divina e graciosa poesia
Musa opiácea da pressão paradigmática.
Por sobre essa orgia de luminescência
Fala-me de teus mais profundos anseios
Enquanto dura a imensidão do dia
E não se rende à noite
Até que ela o extermine.
2.
Epístola a Dionisius
Lírica epístola
Triste canto
Etimbotúlico estribo
INSPIRADO E PIRAMBÓLICO.
Dos descrédulos vôos dos loucos
Da loucura dilacerada
Da loucura iluminada
Da loucura infinita
Da loucura bendita de um mercenário deus
INSPIRADO E PIRAMBOBÉLICO
Que
CATASTRÓFILO
CATASTRÓFILICAMENTE
CATASTRÓFILOSIFILITICAMENTE
CATASTRÓFILOSÓFICOSIFILITICAMENTE
(Evidente alusão a Nietzsche)
Anuncia o fim dos humanos sonhos
E o começo dos divinos.
Esta é a lírica epístola a Dionisius
Triste canto
Etimbotúlico estribo
INSPIRADO E PIRAMBOBÓLICO.
3. O
mijo dos sapos
Os sapos mijam
Na madrugada cinzenta
Pobres escrementos esquecidos
No amor do pudor do sapo.
Duvidosamente violáceos!
Bem como arborescentes e descrentes.
É assim que o jardim
Acorda de seus sonhos,
Isto é:
Pelo mijo dos sapos
Na madrugada cinzenta.
4.
Ruvstoff
RUVSTOFF! Ó pássaro do amanhã!
Tremblor for mon cour.
(Iliadilicamente falando:
ARE YOU A THUNDER BIRD?
– No... No...
Cou... Cou...)
RUVSTOFF! Ó pássaro do amanhã!
Fecha as tuas pequeninas asinhas
E repousa silencioso em teu ninho
Para que os outros pássaros não te descubram.
5.
Burlupt: o que uma bolha diz
Falando a um lêmure hipo-ortodoxo
Penso na tumba bumba pra penso falando.
BURLUPT... BURLUPT...
Umba Bumba Tumba Retumba pra penso falando
Assim como
Pra falando penso Retumba Tumba Bumba Umba
Porque
Se o puro delírio toma os sentidos
Se a carne freme ao impacto colinérgico
Então
Umba Bumba Tumba Retumba na falando penso
Porque
BURLUPT... BURLUPT...
Pra penso falando Umba Bumba Retumba
Porque pra falando penso Retumba Bumba Umba.
CANÇÕES DO LOUCO ALEGRE
Mental sanity is a form of
imperfection.
Charles Bukowski
1.
Formas hipotéticas
Formas hipotéticas
Da iris dos teus olhos
Nada certo, nada seguro
Pois as lápides cinzentas do futuro
Formas hipotéticas prenunciam
Da íris dos teus.
2. O
pato hermenêutico
“Quá-Quá” tentou grasnar o pato-prato Sadia
Mas mais não fez que grunhir o seu “Huga-Huga”
Pois não era pato nem prato nem paca ou cutia.
Não tem Quá-Quá.
Não tem rosto nem personalidade
O pato monárquico!
Pato esquálido e pálido
Embrulhado em elástico plástico.
3.
Suggestion du Chef
Humpt-Dumpt gagejando assim falou
Assim falou gagejando Humpt-Dumpt:
PEPÊ-LELÉ-COCÔ-FEFÊS-NONÔ-GRAMÁ-DODÔ...
A fada então tomou-o ao colo e enleou-o ternamente em
seus braços
E num gesto brusco atirou-o ao chão:
– Quebrou-lhe a armadura
– Explodiu-lhe o ventre
– Cegou-lhe os olhos
– Desfigurou-lhe o rosto.
E espalhou sobre o seu culposo manto purpúreo
Uma espécie gosmenta de manteiga
Queijo
E bacon.
Pôs ao fogo durante (aproximadamente) três minutos
Preparando para os convivas um nutritivo hommelete.
4.
Cantata de Vogel
VOGEL
VOGEL
Libelo nascente
Perpétua bruma insurgente
Que em teu repouso de verde relva florescente
Acalentando o vaguear de pássaros
Despede-se insubmissa
Despe-se submissa
Emerge distante
E a eles se abandona...
VOGEL
VOGEL
– Teu cérebro
mastiga insólitos miriápodos
– Frias râs
coaxam por tua boca
– Lobos ouvem
por teus gélidos ouvidos
Chama que eternal se partira,
Tu me esperas sob a relva adormecida.
A um lamento surdo em entrecenas doiradas
Em YAKASSULKA o espetáculo recomeça.
Teatro de insanos
Que alegres enxameiam o paraíso
Ou tristes encerram-se em seus círculos mágicos
Que saltam precipícios
Que correm alucinados
Que morrem grudados
– lama doirada
de
YAKASSULKA
YAKASSULKA.
Lá fora a voejar como mosca
Sobre a carne verde dos mortos
A água que goteja do seu mijo
De seu cérebro sendo decantada,
Lá fora a voejar como mosca
Sobre a carne verde dos mortos
PROSEMBEMBÓLICO E ROTUNDO
o homo sapiens,
sapiens, sapiens.
No branco teatro de YAKASSULKA
Vogel despede-se de mim:
Vogel
de Vogel-Vogel despede-se.
5. The song of Bong
(durchvögel)
Culhomba, minha
pomba!
Abra
a porteira da tua chomba.
Arreganha
o pom-pom
Arrebita
o aprendiz
Ofegalha o impudente!
Ofegalha o impudente!
Degusta
malaca
Catraca
indolente
Engole
o pus
Do
meu avestruz
Ofegalha o impudente!
Ofegalha o impudente!
Gorgoleja
hipócrita demente
O lúbrico
carvalhão fremente:
Glu-glu de peru
Pom-pom de pavão
Glu-glu de peru
Pom-pom de pavão.
Nanecunda
gundadgagalha
Gagalha
nanecundadgunda
Abocalha
abóca a bróca
Abocralha
abrocanalha!
E o
bobo amor
Bobalha
de dor
Bobalha
de amor
No
louco ardor.
(mais
rápido)
E o bobo amor
Bobalha de dor
Bobalha de amor
No louco ardor!
Lub-dub Lub-dub Lub-dub
– MÉÉÉÉÉÉÉÉIIIIIIIINNNNNNNN?
Blupt-rlapt
Blupt-rlapt Blupt-rlapt
– MÉÉÉÉÉÉÉÉIIIIIIIINNNNNNNN?
Bluóargh!
BLUÓARGH!
BLUÓARGH!
BLUÓARGH!
BLUÓARGBLABLOBLUBPLAFTPUF!
Culhomba,
minha pomba!
CANTARES DAS NINFAS DO RENO
I.
Sacerdocterum ergospasmus
(Nibelungengesang)
Oh! Rubicocefálicos orquídeos.
Pensais que vossas moles mouras moiras mentes mórias
Preambulam prefácios de ascendência sublime?
É... É verdade sim...
Mas deixem-me, deixem-me então...
Deixem-me gemer meu despeito!
Oh! Rinocerontobestosauroguanodontos!
Oh majestosos senhores do mundo!
Olhos violentadores de minha impureza
Pensais que os ventos nascem de vosso sopro sublime?
E que o sol
(bola vermelha e nojentinha)
Ascende somente ao vosso chamado?
E que as estrelas
Brilham somente à luz dos vossos sonhos?
E que a miséria amarga deve espojar-se no lodo?
É... é verdade sim...
Mas deixem-me, deixem-me então...
Deixem-me gemer meu despeito!
Eu anão.
Eu porco sublime.
Desprezível arlequim do universo.
Verme inchado de ressentimento.
Deixem-me, deixem-me,
Deixem-me gemer meu despeito!
II.
Siegfried confia seu sonho aos pássaros
VULU-BULU, VULU-BULU, VULU-BULU...
Tirubutilhando pis voa o alegre lepidóptero
Afrontando as franjas frescas do outono em pranto,
Salve
selva selvagem!
Grilo ordeiro
Sapo ortodôntico
Perereca levada
Iguana assanhada
Sibilam silvo estribilho:
– auou auou auou.
– uouch uouch uouch.
– uouá uouá uouá.
– pri-priu pri-priu pri-priu
– AUOU UOUCH UOUÁ PRIPRIU!
(Episteme neocartesiana
Cintilante clara e nua,
Verde esperança
Que cedo extenua.)
Tirubutilhando pis voa o incauto lepidóptero
Tirubutilhando rútilo seu delirante arroubo selvagem,
Salve
selva selvagem a roncar seu revoltoso ronco!
(Mas Wotan não gosta disso.
Wotan veta o manifesto,
Dinossáurios adormecem no colo de Wotan,
Flores perfumam seu leito.)
Tirubutilhando pis voa o pálido lepidóptero
Grasnando rouco
seu arroubo rútilo:
Salva a selva selvagem de roncar seu revoltoso
ronco!
MALÍCIA DO ENGENHO
1.
Evolução no planeta dos sapos
Ciclo Epidemiológico:
1.1 Coaxando
coaxando coaxando coaxando
Um sapo
encaçapa a sapa doutro sapo
Que encaçapada encaçapa o sapo
Que encaçapava a sapa encaçapando os sapos.
Assim um
sapo encaçapa outro sapo que encaçapa
outro sapo que encaçapa outro sapo...
Até que
todos os sapos estejam encaçapados.
1.2 Na rútila
prisão
Os sapos
coaxam então
A
implorar verde rouxinol
Que faça
amor com o sapo Rei.
1.3 Então,
1.4 Forte odor
acre de suor e semem enlouquece
os
sapos,
Que
coaxando coaxando coaxando coaxando
Quebram
a caixa que os encaçapava.
1.5 Rei e
rouxinol são mortos
1.6 Então,
1.7 Após breve
trovejar do mais pomposo êxtase
2.1 Coaxando coaxando coaxando coaxando
Um sapo
encaçapa a sapa doutro sapo
Que encaçapada encaçapa o sapo
Que
encaçapava a sapa encaçapando os sapos.
Assim um
sapo encaçapa outro sapo que encaçapa
outro sapo que encaçapa outro sapo...
Até que
todos os sapos estejam encaçapados.
2.2 Na rútila
prisão
Os sapos
coaxam então... (repetir ad infinitum)
2. O
flagelador de si mesmo
(Canção do covarde que quer vingança)
Entre bater e ser batido
Entre beber e ser bebido
Entre comer e ser comido
Melhor não ser consumido.
Entre bater e ser batido
Melhor mesmo é bater bem batido.
Mas se bater bem batido é bater sentido
Mas se fazer sentido é bater bem batido
Não bater bem batido é ser consumido
Não bater bem batido é ser bem batido.
Mas se é difícil bater bem batido
Entre bater e ser batido
Melhor mesmo é ser bem batido
Bater bem batido, bater bem sentido.
Entre bater em quem se bate
Entre em si mesmo se bater embate
Entre bater em quem não se bate
Bater sendo batido é bater sentido
Bater bem batido é ser bem batido.
Melhor se bater por não poder bater
Que ser batido sem não bater
Melhor se bater bem batido
Melhor se bater com látego sentido
Melhor se bater bem sofrido
Melhor se bater sem sentido
Melhor se bater por não poder bater
Que ser batido sem não bater.
(É assim que eu penso...)
3. Goofy Symphony
I
penso...........não penso...........penso que não
penso...........penso no penso
que não penso..........penso no penso no penso que não
penso..........penso
no pensar do pensamento de que não penso...........penso
deixando es cap
ar o fugidio pensar..........deixar pensar...........deixar
escapar..........pensar escapar pensar pensar.............pensar que pensei isso
e mesmo pensar em
tudo o que foi desde o início pensado...........pensar
o penso...........pensar
o não penso..............pensar o penso que não
penso..............pensar deixar escapar o fugidio pensar..........pensar o
penso que pensar que pensei isso
..............pensar que pensei isso.............pensar
que pensar que pensei isso ..............pensar que pensar que pensar que pensei
isso.............pensar que pensar que pensar que pensar que pensei isso................e
não mais pensar nisso..........e pensar em não mais pensar nisso.............e
pensar que penso
que não penso que pensei isso.............e que pensei
mais isso e que penso
que pensei isso e que penso que pensei no isso e que penso no mais isso ...........pensar
que penso que pensei a última coisa que pensei................e
por fim sem deixar de pensar no por fim pensar em por fim...............todo
o pensamento perdido se pensa perdido perdido e eu
penso que penso o perdido pensar do pensamento que pensa
o pensamento do pensamento pensado.
II
penso................................penso...............penso........penso...penso..penso
ant antes do penso penso penso penso.........penso o
que penso do penso penso penso penso........penso
que penso várias partes daquilo que penso
que penso que
penso penso penso penso............e refletem-se e multipli-
cam-se infinitos pensares que são os pensares do
pensamento que penso penso penso penso..........
e penso pensar que penso em mil coisas e
não
penso em nada pensando pensar
que pensei. Sim, é sim, isso sim é que é pensar! Alegra-me
pensar que
penso que nada pensei.
III
Janela janela janela janela... parede parede parede parede... cadeira ca-
deira cadeira cadeira... pensolito
pirolito piropenso pensofangoefungo e
fango e fungo parasita do pensopensar e olho pra cima e penso
no pen-sentido sem sentido........penso no pensamento
do pensentido sem sentido
.........mas deixar de pensar o pensamento tem
sentido? Penso que penso
muito mais do que penso
pensar..................penso que cheiro a coconha e penso coca e penso em cola
e bebo e
bebo coca-cola fanta uva e
limão
............e sobretudo penso pensar o pensamento do pensar
o pensamento
do pensado pensamento que pensa pensa pensa pensa........pensamento
da besta que pensa pensa pensa pensa.................... .......sinfonia do pensar
do pensamento da besta que pensa pensa pensa pensa ...............sinfonia meio
esquisita do pensar do pensamento vazio da besta que pensa pensa pensa pensa.
IV
Besta sinfonia do pensar o nada pensar......................nada
há a criticar no pensar da besta sinfonia do besto pensar que pensa pensar o
pensamento
que pensa pensa pensa pensa...................como é
triste pensar o pensar do pensamento que
pensa que pensa
e repensa o desolador
passar
do pensamento pensado no passado................é que penso pesando
pesados pedaços pensados de pensares do pesado pensamento
pensado no passado...................pedaços
de pensares ................ pedaços
incolores de pensares ......... pedaços vazios e incolores
de pensares que vêm ao mundo despejar o peso do pensar..............sinfonia sinfonia
besta.............sinfonia louca............. sinfonia besta e louca................sinfonia
pateta besta e louca .......................besta sinfonia pateta e louca
aquela do tentar pensar o nada pensar.............triste é pensar o pensamento
pensado no passado................
sinfonia do pesado pensar do pensamento pensado, que
desenvolve sinfo- nicamente seu magnífico pensar que
pensa pedaços pesados pedaços pensados do pensamento repetidamente
pensado
do pensamento do destroçado pensar do
pensar de
pensares do pensamento pensado ao
pensar o pesado pensamento pensado no passado.
CONTOS
Que a esse caos eles pertençam!
E ao seu dionisíaco, telúrico telos! Há
nisso um smukizugui, eu
sei, mas é do tipo tomorowdown e não do tipo blacksburnian.
Explicando-me melhor: não se trata do esforço de um saltimbanco hidrogenado,
mas do colecionador do impressivo no viver, tanto em suas profundezas abissais
quanto em suas superficialidades frugais. Ou seja, aqui e ali, a vida em seus delineamentos
vários. So long! E pong!
João das Couves
CONTO INFANTIL
I
L’amour est un caillou Riant dans le soleil.
Jacques Lacan
Foi uma vez, há muitos e muitos anos, nas longínquas terras do reino encantado
da Gatolândia, mais distante do que a perdida Conchinchina, a fantástica
Passárgada e mesmo a incrível e perfeitamente inacreditável Momolândia.
Rosmildo chamava-se ele; um pobre e solitário ratinho sofredor, que de há muito
vivia refugiado em sua humilde toquinha. Quase não ousava sair, pois lá fora
rondava furioso o guardião da gatocracia do castelo; um enorme gato com unhas e
dentes afiados chamado Gam-Gão. Terrível, ele era temido por todos os animais
pequenos da redondeza.
Mas nem só de medo vivia o
ratinho. Também de respeito e consideração. E presumivelmente de amor, pois no
fundo mais recôndito de sua terna alma feminina ardia o fogo de uma paixão que
era só febre e delírio. E a mais evidente prova disso era que, por estranho que
possa parecer, o único retrato que adornava a sua pobre alcova era uma
fotografia em preto e branco que pertencera aos donos da casa, e que Rosmildo
havia roubado da cesta de lixo, na calada da noite, enquanto Gamgão roncava.
Nela aparecia, levantado sobre as patas traseiras e ostentando um sorriso
bossal, nada mais nada menos do que o próprio gatão!
Para afugentar a sua solidão,
Mildinho cantava alto: “Bandeira branca amor, eu peço paz...” e a sua voz se
perdia pelos corredores, pelas frestas, pelos esgotos, pelos espaços vazios de
sua própria alma. Quando não cantava era possível que estivesse abocanhando
torrões de farinha que a muito custo afanava da dispensa, ou então masturbando-se
ferozmente em algum oculto cano de esgoto, ou ainda a chorar baixinho a desdita
de sua absurda paixão.
À noite, recolhido em seu
leito de insônia, permanecia ele até altas horas mergulhado em suas leituras favoritas,
que iam de Emily Brönte a Gustave Flaubert, passando por Baudelaire; ou mesmo a
sonhar com aventuras deliciosamente degradantes, cuja inspiração ele hauria do
anarquismo dionisíaco-lírico de Rimbaud, cuja Saison ele cognominava “a sonata dos lunáticos que se seviciavam
mutuamente ao luar”. E embevecido dizia de si para consigo: “Je suis
Quanto ao gatão Gamgão pesadão,
quando este se aproximava em sua ronda noturna, ocorria-lhe por vezes ouvir
aquela cantoria que mais lhe parecia um interminável suceder de grunhidos,
gemidos e guinchos, não lhe ocorrendo em nenhum momento que tudo aquilo pudesse
ter a mais remota relação com a sua pessoa. É que o seu coração era insensível
e vazio, não lhe permitindo desfrutar do sentido profundo, cheio de meiguice,
ternura e carinho, oculto sob aquelas dóceis palavras.
Certa noite afinal, o rato
tomou uma decisão que lhe haveria de mudar o curso da existência. Pôs-se diante
do espelho, olhou-se furibundo e declarou para si mesmo, alto e de bom som: “Allea jacta est: abravessarei o Rubicão
ou meu nome já não é mais Rosmildão! Digam-me, seus lacaios da bu
rguesia hipócrita, pérfidos anões capitalistas, porcos facistas, míseros
proletários, insignificantes servos da Gleba, abomináveis metecos, fariseus e
saduceus... todos, todos, espíritos
servis! Digam-me: haverá alguma impropriedade, vergonha, mácula ou perfídia, em
uma pobre alminha solitária como a minha trazer no peito, silencioso batendo
calado, descompassado de amor, um coraçãozinho apaixonado?” Cumprido esse
ritual de encorajamento, Mildinho, de natural um rato tímido e medroso, saiu de
seu buraco com cautela, mas firmeza de decisão, correu na ponta dos pés e aproximou-se,
passo a passo, sem o menor ruído, até junto a uma velha árvore de Natal próxima
à lareira, sob a qual, emplachado em um tapete oriental, ressonava enroscado o
gordo gatão. Foi com enorme cuidado que Mildinho levantou a orelha do gato e
sussurou-lhe ternamente: “Gatão Gamgão, ó luz da minha vida, suspiro do meu
coração; eu, Mimildo, sei que tu és machão!”. Gamgão arregalou o olho malvado,
levantou a pata esquerda (ah se fosse a direita!) e deu um pulo em direção a
Rosmildo. Teria sido mesmo o fim do rato se o gato não tivesse tropeçado
desastradamente no fio do abat-jour,
o que apagou a luz e facilitou a fuga de Mildinho que, coitado, só teve mesmo
tempo de sumir de volta no mesmo buraquinho de onde saiu, enquanto lá fora
enfurecido rosnava e rosnava o imenso gatão. Então, como que para aquietá-lo, Mildinho
juntou sofregamente as mãos sobre o peito e cantou na escuridão:
Se il mio nome
saper voi bramate
Dal mio labbro
il mio nome ascoltate
Io son
Rosmildo / che fido v’adoro,
Che sposo vi
bramo
Che o nome vi
chiamo,
Di voi sempre
parlando così
Dall’aurora al
tramonto de dì.
Gatão Gamgão escutou tudo
aquilo meio perplexo, a mente entorpecida diante do inesperado. Mas uma vez
recobrado do espanto inicial, arrefeceu um sorrizo diante daquela voz sibilina.
“Sopranino”, pensou. “Os antípodas se encontram. Nunca pensei que algum dia
pudesse vir a admirar o canto lírico, mas sou testemunha de que mesmo aqui há
um certo encanto, diria mesmo, uma certa espiritualidade. Ora: afinal também eu
sou um ser gatano! E se o rato porventura fala a verdade, é possível que a partir
de agora estejam findados os dias de abstinência desse velho e austero
celibatário aqui.” Gamgão aproximou-se do buraco no qual se ocultara Rosmildo
e, embora sempre dissesse repudiar a sensualidade impudica, licenciosa e
afeminada das óperas italianas, dando preferência aos “poderosos e viris
constructos melódicos da pesada orquestração wagneriana”, encheu os peitos e
berrou:
Celeste
Rosmildo, forma divina,
Mistico serto
di luce e fior
Del mio
pensiero, tu sei regina
Tu di mia vita
sei lo splendor
Il tuo bel cieolo
vorrei ridarti,
Le dolci
brezze del patrio sol,
Un regal serto
sul crin possarti,
Erguer-te um
trono, vicino al sol.
II
Oh, how this spring of love resembleth
the
uncertain glory of an April day;
Which now
shows all the beauthy of
the sun/
And by and by a cloud takes
all the
away.
Shakespeare
Era uma bela manhã de sábado. O céu estava límpido e tinha o aspecto
promissor de um dia de outono, no país dos gatos. Pouca gente havia na igreja.
Para dizer a verdade ela estava mesmo vazia. Pois o resto da gataria decidira
não comparecer, em protesto contra uma união que parecia violentar as mais
primárias convenções do reino animal. E quanto aos ratos, esses também não
vieram, pois temiam que tudo terminasse em um massacre. O sacerdote, um gato
velho, alto, magro, de jeito compenetrado, tinha olhos pequeninos escondidos
atrás dos óculos de aros grossos, bigodinho retorcido para cima e lábios finos,
em cujos cantos pareciam se esboçar alguns traços contidos de sarcasmo felino.
Ele justificava a sua presença lendo as escrituras, rezando, arengando
cantilenas ininteligíveis, gesticulando e benzendo o casal. Gamgão, empertigado em um terno azul marinho
que ele havia alugado especialmente para a ocasião, olhava para o velho
sacerdote com um jeito abstraído. Rosmildo, mais tenso, cobria-se apenas com
uma grinalda de flores que sustentava um pequeno véu branco que lhe caia sobre
os ombros e levava à boca um sorriso medroso, ingênuo e puro.
Terminada a cerimônia, os dois
saíram lentamente de mãos dadas, ambos ainda com um certo acanhamento, parcialmente
desfeito quando, já na rua, Gamgão beijou ternamente a fronte do esposo. E
assim foram os dois pelos jardins do castelo, em direção à alcova de Gamgão.
Tudo eram flores. Riam sem motivo e acarinhavam-se já próximo aos pudendos. Ao
subirem as escadas, Gamgão cantava alto, acompanhado por Rosmildo:
– Lá ci darem la mano, / lá mi dirai di si.
vedi,
non è lontano: / partiam, ben mio, da qui.
– Vorrei,
e non vorrei... / mi trema un poco il
cor...
Felice,
è ver, sarei; ma può burlarmi ancor.
– Vieni, mio
bel diletto.
– Io
Cangerò tua sorte.
– Presto
non son piú forte, non son piú forte.
– Andiam, andiam!
– Andiam.
“Já chega”, interrompeu
Gamgão ao entrarem no quarto: “Luzes, câmeras, ação. Há coisas mais importantes
a fazer. A revolução não precisa de cientistas, nem a alcova de Mozarts. E vós,
meu querido amigo. Vós que me olhais com tamanho embevecimento, tamanha
ternura, tamanha compreensão sempre disposta a perdoar; vós, abençoada
criatura, sois mais belo e digno do meu amor do que todas as Zerlinas que
possais imaginar; mais puro do que a limpidez rarefeita do céu outonal; mais
suave que os outeiros selvagens, quando deslizam o fru-fru de suas folhas
esbeltas acariciando levemente os rotundo plátamos”. Dito isso, ordenou ao
outro que se enfiasse na cama enquanto ele iria tomar um banho, aliás, somente
banho de asseio, pois afinal tratava-se de um gato.
Mildinho desfez-se do véu que
o cobria, acomodou-se desnudo sob os lençóis frios, fechou os olhos e pôs-se a
sonhar com a felicidade mútua que o futuro parecia prometer. Mas mal havia
começado esse devaneio e lá estava de volta o gatão, agora completamente nu,
com o grosso pênis ereto pingando água, vindo com um sorrizo meio abobalhado em
direção a Rosmildo. Mildinho estremeceu-se todo. Sim, mil vezes sim, era isso o
que ele queria! Gamgão contemplou-o sério, retirou o lençol e mandou-o
virar-se. Obediente, Mildinho ajoelhou-se de bunda pro alto, abrindo um pouco
as perninhas e levantando o trêmulo rabinho. Gamgão passou levemente a pata naquela
bundinha pentelhuda, abriu as nádegas molhadas, e examinou tudo por um breve
momento, com um olhar circunspecto. Ao encostar o pênis naquele pequeno ânus
pensou que era estreito demais. Tanto melhor: gostava de orifícios apertados. E
enfiou-o todo de uma só vez.
Mildinho gemia mais de dor do
que de prazer, mesmo assim abrindo-lhe sempre mais a bunda, enquanto o outro
trabalhava violentamente com a sua caralha enorme naquele pequeno cagador.
Gamgão esporrou com força, miando e ganindo que nem cachorro, enquanto um
pequeno filete de sangue escorria por entre as pernas de Mimildo, chegando a
manchar os lençóis. Satisfeito, o gato desenrijeceu o corpo e fechou os olhos
para melhor saborear aquele odor acre de sangue mesclado a fezes que se
dissipava no ar. Havia algo de perversamente delicioso naquilo, que lhe
lembrava chouriço e lhe enchia o estômago de cócegas. Não havia almoçado. Em silêncio,
retirou cuidadosamente o pênis amolecido, lambeu aquele líquido precioso,
mordiscou levemente e, para completar, cravou profundamente os dentes naquela
coxinha carnuda. Mildinho lançou um grito de dor, olhando aterrorizado para o
esposo. Gamgão fixou-o também, mas seus olhos estavam turvos e seu focinho
inexpressivo. Lançando uma gargalhada estúpida, ele deu-lhe uma violentíssima
patada na fuça, que a deixou uma posta de sangue. Não tinha mais sobre si o
menor domínio. Segurou a cabeça do outro contra a cabeceira da cama,
impedindo-a de se soltar, enquanto com a outra garra e os dentes dilacerava a
carne do pobre animal, que a princípio se debatia inutilmente, mas logo, já
condenado, estertorava.
Gamgão comeu a maior parte,
deixando apenas a carcaça, os ossos e a cabeça que, movido por um impulso
atávico, levou para enterrar lá fora, como prevenção contra uma improvável
necessidade futura.
Era, como já foi dito, uma
fria manhã outonal, e uma brisa purificadora parecia vir do norte. Gamgão
escolheu enterrar os restos do seu esposo na colina de um bosque próximo, ao
lado de uma grande pedra. Não havia em sua alma qualquer resquício de temor ou
arrependimento pelo que fizera, assim como não houvera antes premeditação.
Sabia que aquelas testemunhas mudas, a pedra fria, o sol que já ia alto, as
plantas úmidas que ainda não se haviam de todo despojado do orvalho matinal –
aquela natureza imobilizada e eterna que parecia sorrir-lhe sem memória – eram seus cúmplices. Refletiu sobre a
inexorabilidade trágica do destino, por vezes irônico, por vezes cruel.
Compreendeu então como era estúpido e arrogante ambicionar mais do que aquele
pequenino quinhão de existência que a cada espécie animal a natureza tão sábia
e gentilmente houvera doado.
E concluiu afinal, recordando-se de um velho provérbio de sua própria
autoria: “Dai aos gatos o que é dos ratos e ao gato o que é dos gatos”. Sua
lua-de-mel houvera sido deveras satisfatória. Verdadeiramente completa.
‘Wie ein Hund’ sagte er, es
war, als
sollte die Scham ihn überleben.
Franz Kafka
A CONQUISTA DO
CANTABALA
I
O que não tenho e desejo
É o que melhor me enriquece.
Tive uns
dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei:
ganhei essa prece.
Manuel Bandeira
No morro do Cantabala o que vale é a lei do mais
forte. Lá só quem manda é quem é bom de briga. É briga entre polícia e bandido,
entre bandido e bandido. Bandido às vezes vira polícia e polícia bandido e
bandido homem de bem e vice-versa. Entre os bandidos há os chefões e os seus
capangas. Fora desse entrevero estão os homens de bem, os moradores da favela,
que sobrevivem de algum trabalho honesto e que geralmente preferem ficar
calados e colaborar para não acabarem virando comida de urubu.
Nesse
ambiente selvagem Mangarape sempre foi o bandido mais ladino, aproveitando
todas as oportunidades para se assenhorar de novos territórios. As violências e
temores do mundo dos celerados haviam lhe imbuido de uma mentalidade
absolutista, que tornava a conquista do poder a qualquer preço e por qualquer
meio o ideal inelutável de toda a sua existência.
Bonobo era
diferente. Era um bandidão, sim. Mas o seu negócio não era o poder, mas a
sacanagem. O prazer de sua vida era sacanear. Por isso ninguém o suportava.
Assim, quando Bonobo chegou a ser chefe de gangue ele aproveitou para sacanear
Mangarape de todas as maneiras. Era só o Mangarape levantar a cabeça e lá vinha
pedrada. O problema era que Bonobo não tinha limites. No final ele resolveu
sacanear todo mundo, até mesmo os seus mais íntimos cupinchas, o que fez com
que fosse tirado do poder na marra, sob a pecha de se tratar de um sociopata
incapaz de contribuir positivamente nem mesmo para o mundo do crime. Bonobo resolveu então fazer de conta que
era bonzinho...
II
Only the gods and
the geniuses have the right to lie.
Orson Welles
Só o mérito legitima a ambição.
João das Couves
Mas as coisas não ficaram assim por muito tempo. Pressionado
por suas ambições perversas Mangarape conseguiu enfronhar-se nas tramas íntimas
da mais porca escória dos altiplanos, chegando à conclusão de que toneladas de
cocaína poderiam ser compradas das máfias boliviana e equatoriana, caso ele se
tornasse o comandante-em-chefe do tráfego do Cantabala. Mas não tinha jeito. Havia
policiais demais querendo reprimir o tráfego. E o pior é que o Bonobo estava
ajudando os policiais. Apesar de seu desprezo por Bonobo, Mangarape percebeu
que a única estratégia exequível seria mesmo a de tentar seduzi-lo. Mangarape
era um bom psicólogo e um manipulador de primeira. Conhecia o ponto fraco de
Bonobo: carência afetiva. Bonobo sempre achou que ninguém gostava dele, o que era verdade.
Mangarape resolveu explorar essa fraqueza. Convidou Bonobo a visitá-lo.
Mostrou-lhe a sua coleção de armas. Deu-lhe de presente uma bazuca alemã que
pertencera ao seu avô, que havia sido oficial da SS. Juntou a isso um saco de
cocaína da boa e colocou Ray Conniff pra tocar. Era a combinação perfeita. Ao
ver-se tão bem tratado Bonobo decidiu retornar mais vezes. E a cada vez que
retornava ele ficava mais relaxado e as conversas iam se tornando mais íntimas
e aos poucos ele foi afrouxando até se tornar dócil feito uma menina, pensando
ter encontrado, enfim, alguém que gostava dele, alguém que era como ele! E foi então que Mangarape aproveitou para segurar
firme o Bonobo pelas costas...
Machos são
machos, ao menos
A morte de
Caraminguelas, um policial particularmente teimoso, que não percebeu que estava
mais do que na hora de se escafeder, ficou registrada nos anais do Cantabala
como tendo sido particularmente atroz. Junto a dois capangas, Bonobo o pegou quando
ele estava almoçando com a família. Bonobo caiu em cima dele e o matou com
dezenas de punhaladas, obsessivamente desfechadas em todo o corpo, enquanto
seus familiares eram obrigados a assistir. Dizem que no final Bonobo estava exausto
e tão ensanguentado quanto a vítima, mesmo assim tendo sido necessário
retirá-lo à força de cima dela.
Bonobo
gostou do novo papel. Ele poderia ter, enfim, a importância que ninguém lhe
havia dado antes, sendo tratado de igual para igual pelos mais poderosos
traficantes da Bolívia e do Equador. E o mais importante é que a favela ficou
ao seu dispor para ele poder sacanear todo mundo, o quanto quisesse.
Claro que tudo isso se tornou um problema
para Mangarape. Como controlar Bonobo? Como suportar Bonobo? Como saciar
Bonobo?! Como, dentro da anarquia instituída, reprimir possíveis rebeliões dos
oponentes e mesmo dos correligionários, que passaram a se sentir logrados pela
pérfida aliança com Bonobo? Como subornar os novos policiais, que serão inevitavelmente
enviados para substituir os que foram expulsos? A vida não é fácil para
Mangarape e nem mesmo para Bonobo. Ser bandido dá trabalho.
It is not madness,
but consciousness,
which changes the world.
The
Fixer
MEU AMIGO ALCEU E EU
Para saber qual é a do rato
você tem de
transar com ele.
Alceu Valença
Já era noite. Eu estava na cozinha fritando um ovo quando
bateu à porta o meu amigo Alceu. Ao entrar ele me olhou com um olhar preocupado
e foi logo dizendo que precisava da minha ajuda para matar um rato que lhe
andava perturbando o juízo e não lhe deixava mais dormir sossegado.
Disse-lhe para não se preocupar, pois tenho
medo de animais maiores, mas não de um simples roedor qualquer. Subi a escada
até o oitavo andar do velho edifício onde morava, entrando no apartamento do
Alceu, que é logo acima do meu. Alceu pegou uma vassoura para si e deu um
pequeno rodo para mim, dizendo que era para dar com ele na cabeça do rato, caso
o avistasse. Fomos até a dispensa, pois ele me disse que o rato deveria estar
ali e que ali mesmo é que seria posto um fim na vida do desgraçado. Buscamos lá
e em todos os cantos e nada de encontrar o infeliz.
Fomos então para a varanda. Quando me recostei
na murada, ele apontou para fora, um pouco acima do peitoril, e disse nervoso:
“Olha, olha que rato, olha!” Eu olhei para fora e, é claro, não vi nada. Foi então
que levei uma vassourada na cabeça seguida de um violento pontapé no traseiro,
o que me fez perder o equilíbrio e despencar lá de cima. Foi ao cair, um segundo
antes de espatifar-me no solo, que eu entendi tudo. Era eu o rato que
perturbava a vida do meu amigo Alceu.
SONHOS:
1.
O príncipe Bernhard tinha um castelo onde habitava só. O castelo era cercado
por uma floresta de pinheiros que tinha a forma de um triângulo obtuso. Bernhard
tinha hábitos estranhos. Só comia peixe defumado. Mas depois decidiu mudar o
cardápio para frango assado podre. Ele mandava enterrar os frangos a dois metros
de profundidade, onde eram deixados por muitos meses até apodrecerem ou
mumificarem. Depois eram desenterrados e assados no fogo. O príncipe adorava
essa receita exótica e não parava de engordar. Era masoquista. Decidiu então
comer-se a si mesmo. Começou comendo as pernas. Ele mesmo as cortava com uma
serra coletando o sangue dentro de um balde para poder beber cada gota que
escorria. Os servos tratavam de fechar as feridas com pontos. Depois de cada
operação trancava-se por um mês em seu dormitório. Mandou fazerem o mesmo com os
braços. Tendo comido as pernas e os braços faltou comer o resto. A grande
barriga de Bernhard foi fatiada pelos servos, que com a gordura lhe preparavam
torresmos que ele considerou divinamente apetitosos. Era-lhe impossível comer
seu aparelho digestivo, sua boca, seus órgãos vitais. Mas ainda pôde comer as
suas orelhas e seus olhos, os últimos cuidadosamente retirados pelos servos. Quis
então cometer um ato que lhe seria fatal. Decidiu comer o seu próprio cérebro.
Os obedientes servos lhe serraram o crâneo. Ficou exposta a massa branca e gelatinosa
do córtex. Os servos tiraram uma primeira colherada. O sangue escorreu.
Enfiaram-lhe na boca. Os dentes trincaram sobre a colher. Não conseguiram mais
retirá-la. O príncipe estava morto.
2.
O já velho doutor Rosemberg chamou aos prantos o hospital. Sua esposa acabara
de se suicidar. Veio a ambulância, veio a polícia. Estranho suicídio esse, com
um tiro na nuca. Mais tarde o Sr. Rosemberg foi visitado por um famoso detetive
chamado Sherlock Holmes, que estava certo de lhe poder arrancar a verdade. Sr.
Rosemberg sempre driblava as perguntas de Holmes. A esposa era muito orgulhosa
para dar um tiro na testa ou na boca, admitindo suicídio. Preferiu na nuca,
sentada em sua poltrona. Estava farta da vida e não queria admitir; tentava
despistar o fato dando festas a noite inteira. De tanto discutirem, Rosemberg e
Holmes ficaram amigos. Longas conversas aos pés da lareira. Um dia Rosemberg
convidou Holmes para jantar aspargos ao molho holandês, prato demasiado intenso
para um inglês de hábitos sóbrios como Holmes, acostumado a comer torradas com
chá. Na saída Rosemberg acompanhou-o junto ao portão. Foi aí que começaram a se
desentender. Consciente de que nada conseguia de seu anfitrião, Holmes apelou
para a sinceridade secreta: “Confesse que você a matou, ao menos em nome de
nossa amizade”, gemeu ele quase em desespero. “Sim”, respondeu Rosemberg. “Eu
poderia tê-la matado; mas não o faria, pois isso poderia me forçar a confessar
esse ato iníquo a um detetive idiota como você!” Holmes perdeu a compostura e deu
o primeiro soco. Os dois começaram a brigar fisicamente junto à amurada. Pareciam
dois arbustos verdes que se moviam de um lado para outro como que levados por
um vento forte. Depois passaram de verdes a arroxeados, parecendo criar tendões
como se fossem dois grandes polvos que se entrelaçavam em uma luta inglória.
Posfácio (2011)
Estes experimentos juvenis de
mérito discutível foram compostos no final da década de 1970. Eles pertencem a
assim chamada literatura noir, cujos
expoentes máximos foram escritores como François Villon, Baudelaire, Rimbaud,
Céline, Henry Miller e Bukowski. Ela foi parte significativa da literatura e
também da pintura e da música de vanguarda do século XX.
Como
arte do feio e do grotesco, a literatura noir
se faz possível porque, pela tematização estética da negatividade, é capaz de
promover contrastivamente a eventual abertura para um melhor entendimento da
condição humana na incomensurável amplitude e multiplicidade de suas dimensões.
Ela ambiciona realizar esse intento de um modo essencialmente crítico, o que a distancia
do ideal de equilíbrio dos grandes clássicos, exemplificado talvez de forma insuperável
pela obra de um dramaturgo como Shakespeare. Mas essa arte, que refletia uma visão
ainda equilibrada do homem em sua integridade, só foi possível do interior da
cosmovisão organizada que o renascimento herdou da cultura cristã,
Nós, que vivemos nossas vidas em um mundo humano
fragmentado por arregimentações e compartimentações, um mundo que há muito
deixou de existir como um todo único, não tivemos tal sorte. Talvez por isso a
literatura noir, que está muito longe
de ser a mais comum, se tenha tornado tão significativa. Falta-lhe tanto a
moldura para as respostas prontas como oráculos a recorrer. Assim, ao invés de
propor direções que rapidamente se desgastam em truísmos, ao invés de
retrair-se à condição de arte menor, ela coloca-nos frente a frente com as
degradações denunciadoras dos embustes ocultos no mundo apolíneo fabricador da
consciência feliz.
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