2.
SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA
Segundo uma divisão bem conhecida, o
significado pode ser de três tipos: referencial
(relativo a regras cognitivas, responsáveis pela representação de estados
coisas objetivas), performativo
(relativo a regras de interação comunicacional) e expressivo (relativo a regularidades reprodutoras de expressões
emocionais). Como nesse livro estamos interessados no problema da referência, o
significado que iremos considerar será quase sempre o referencial
(representacional, cognitivo, factual). No presente capítulo quero fazer uso da
conceitologia wittgensteiniana para esboçar o que poderia ser chamado de uma apresentação panorâmica (übersichtliche
Darstellung) do conceito de
significado referencial em nossa linguagem representativa, com base principalmente
em uma leitura reconstrutiva das sugestões semânticas feitas por esse filósofo.
No próximo capítulo irei aplicar os resultados desse procedimento à semântica
fregeana, no intento de produzir uma análise filosoficamente esclarecedora de
suas principais distinções. E depois ainda quero considerar em que medida
minhas conclusões podem ser aplicadas em uma interpretação da semântica
filosófica de Edmund Husserl.
O elo semântico-cognitivo
O ponto de vista que pretendo sustentar nesse
livro é o de que uma expressão referencial, seja ela qual for, só é capaz de
referir devido a algum elo intermediário capaz de vinculá-la a sua
referência. Quero defender que esse elo intermediário é de natureza
semântico-cognitiva no sentido de que ele pode ser sempre considerado sob duas
perspectivas: uma semântica e outra psicológica. Sob a perspectiva semântica
ele é geralmente chamado de sentido
ou significado, uso, modo de uso, intensão,
conotação, conceito, conteúdo informativo , proposição, e ainda critério
ou regra criterial ou verificacional. Já sob a perspectiva psicológica esse
mesmo elo tem sido geralmente chamado de idéia,
representação, intenção, concepção e cognição. Eis um esquema:
ELO SEMÂNTICO-COGNITIVO
a) sentido, significado, conteúdo,
EXPRESSÃO intensão,
modo de uso, critério, REFERÊNCIA
LINGUÍSTICA regra criterial, proposição...
b) idéia, representação, pensamento,
cognição, intenção, concepção...
Quais
são as denominações mais adequadas? Quais as que devem ser excluídas? Devemos
excluir os ítens psicológicos, de modo a não contaminar a semântica com
psicologia? Ou devemos abandonar tais abstrações semânticas vazias em troca de
concretudes empíricas?
Essas são maneiras correntes, mas em meu juízo
confusivas, de se colocar as questões. Quero sugerir que as perspectivas
semântica e psicológica não são alternativas que se excluem, mas que se
complementam. Isso é assim pelo fato de que o elo intermediário entre as
palavras e as coisas pode ser aproximado de duas maneiras: (i) enquanto elo
cognitivo de natureza psicológica, consistindo de elementos que devem ser no
final remetidos a tokens mentais em
indivíduos concretos; (ii) enquanto elo semântico de natureza semiótica, devendo
ser remetido a types considerados na abstração de suas instanciações em
indivíduos concretos, não sendo nesse sentido psicológicos, mesmo que não
possuam nenhuma realidade fora dessas instanciações. Essa maneira de ver parece
confirmar-se quando notamos a correspondência aproximada que alguns sub-ítens
de (a) e (b) demonstram entre si. Eis algumas:
Perspectiva semântica Perspectiva psicológica:
Sentido, significado ≈
ideia
Conceito ≈ concepção, ideia
Configurações criteriais ≈ representações, imagens mentais
proposições ≈ ocorrências de pensamento
No que se segue quero buscar alguma elucidação para esses sub-itens e para as
relações entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestões feitas por
Wittgenstein.
Porque o significado não pode ser a própria
referência
Quando consideramos o elo semântico, as
palavras que mais facilmente nos ocorrem são ‘sentido’ e ‘significado’ (em
geral usadas como sinônimas), além de termos cognatos mais técnicos como ‘conteúdo’
ou ‘intensão’. Mas o que é o significado? Uma resposta que nos interessa considerar
é a oferecida pelo que pode ser chamado de referencialismo
semântico, a concepção segundo a qual o significado de uma expressão é a
sua própria referência ou extensão. Essa concepção nega a existência ou a
importância de um elo intermediário semântico-cognitivo. Wittgenstein considerou
essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, por ele chamada de “teoria
agostiniana da linguagem”:
As palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de
tais denominações. Nessa imagem da linguagem encontramos as raízes da idéia: cada
palavra tem um significado. O significado é correlacionado à palavra. Ele é o
objeto para o qual a palavra aponta.[1]
O
principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o referencialismo
semântico dos nomes de objetos simples defendido por ele mesmo em seu primeiro
livro, o Tractatus Logico-Philosophicus.
Esse modo de ver tem um apelo natural. Afinal, é usual esclarecermos o
significado de uma palavra apontando para um objeto que exemplifique o que ela
quer dizer. Explicamos o que queremos dizer com o nome ‘Fido’ apontando para o
cão que leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o próprio
objeto referido: aqui está o nome, lá está o seu significado. Contudo, essa foi
considerada pelos filósofos da linguagem ordinária uma idéia primitiva e
enganosa, que tem servido como uma séria fonte de equívocos em filosofia da
linguagem[2], ainda
que a sua influência até hoje perdure no domínio das metafísicas da referência.[3]
Há conhecidos argumentos que parecem tornar
evidente a falsidade da concepção referencialista do significado. Um deles é
que muitos termos singulares têm a mesma referência, mas sentidos
(significados) claramente diversos: os termos singulares ‘Sócrates’ e ‘o marido
de Xantipa’ têm significados claramente diversos, embora se refiram a um mesmo
homem. E o oposto pode acontecer com termos gerais: o predicado ‘...é rápido’
na frase “Bucéfalo é rápido” se refere a uma propriedade de Bucéfalo e na frase
“Silver é rápido” se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas
embora se referindo a diferentes propriedades singularizadas, o termo geral
guarda certamente o mesmo significado ao ser aplicado aos diferentes cavalos.
O principal argumento contra a concepção
referencialista do significado, contudo, é mais fundamental e também mais
destrutivo: trata-se do fato de que quando uma expressão referencial não tem
referência, ela não parece perder nada do seu significado. O termo singular
‘Eldorado’ e o termo geral ‘flogisto’ não têm referência alguma, mas nem por
isso deixam de ter significado.
Consciente dessas dificuldades Bertrand
Russell decidiu defender a concepção referencialista do significado em uma
forma minimalista, concernente apenas aos supostos elementos atômicos da
linguagem e do mundo. É instrutivo considerar sua tentativa. Para Russell ao
menos o significado de alguns termos designadores de objetos simples, por ele
chamados de nomes próprios lógicos, seria o próprio objeto referido; esse poderia ser o caso
de uma palavra como ‘vermelho’. Afinal, nota Russell, um cego não é capaz de
aprender o seu significado.[4]
Contudo, um pouco de reflexão demonstra ser insustentável a idéia de que
o significado de alguma palavra possa se reduzir a sua referência tout court.
Suponha que alguém aplique demonstrativamente a palavra ‘vermelho’ a uma ocorrência do vermelho (seja ela um
breve estado no mundo externo, como no caso da propriedade espaço-temporalmente
singularizada de um objeto de ser vermelho pelo tempo apontado, seja ela uma
ocorrência supostamente interna, como seria o caso de um sense datum de vermelho presentemente experienciado, como queria
Russell). Poderia ser tal ocorrência o seu significado?
Há
uma razão óbvia para pensarmos que não: a ausência de critérios de identidade. Isso
se nota quando consideramos que a ocorrência de vermelho – seja ela fisicamente
ou fenomenalmente pensada – será sempre
outra a cada nova experiência. Assim,
se o significado de ‘vermelho’ for apenas o vermelho-como-ocorrência, cada nova
ocorrência de vermelho deverá ser um novo e distinto significado.
Russell encontrou um meio de defender-se de tal acusação, mas só ao
preço de cair em uma dificuldade ainda pior. Ele sugeriu que o
objeto-significado do nome próprio lógico fosse um sense datum referido por um demonstrativo como ‘isso’ apenas pelo
tempo em que possuíssemos consciência do sense
datum. Essa resposta é coerente, o
significado dura apenas o quanto dura a sua experiência pessoal. Mas ela é extremamente
problemática. Pois está claro que ela conduz diretamente ao solipsismo. Como
inserir o significado de um nome próprio assim considerado na linguagem? Que critérios
de correção poderiam ser aplicados ao seu uso se nem a sua própria reutilização
em um mesmo sentido ganha o direito de ser considerada?[5] Wittgenstein
bem notou que as regras linguísticas demandam ao menos a possibilidade de
correção intersubjetiva; mas esse é um dos casos nos quais tal possibilidade inexiste.
Com
efeito, em nossa linguagem conhecer o significado de uma palavra como
‘vermelho’ é na verdade saber reconhecer uma ocorrência do vermelho como sendo igual a outras ocorrências do vermelho.
Mas esse reconhecimento não está incluido na idéia de que o significado da
palavra se reduz à própria ocorrência e a nada mais. A noção de significado de
um termo exige essencialmente que este termo unifique múltiplas ocorrências daquilo
a que se refere sob um mesmo significado.
É
verdade que uma concepção realista do significado, segundo a qual o significado
de uma palavra como ‘vermelho’ seria um vermelho-type, entendido como uma entidade abstrata comum a todas as
ocorrências (tokens) poderia ser
capaz de resolver esse problema. Mas essa solução nos comprometeria com alguma
forma de platonismo, levantando à justificada suspeita de uma reificação
ininteligível do type em um topos atopos.
Uma alternativa seria considerar o vermelho-type em questão como sendo o conjunto das
ocorrências idênticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo, mas não o
elimina, pois conjuntos parecem ser entidades abstratas irredutíveis. Além
disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando ou diminuindo, enquanto
o significado da palavra ‘vermelho’ não tem tamanho e nem aumenta nem diminui.
A
seguinte alternativa parece ser mais viável. Podemos considerar o significado
de ‘vermelho’ como sendo qualquer ocorrência considerada igual a uma ocorrência
que estejamos usando como modelo (a
qual poderia ser eventualmente um sense
datum) Assim, se reconheço aquilo que
me está sendo atualmente dado como sendo uma ocorrência de vermelho, pode ser
porque percebo que essa ocorrência é igual a outras que já me foram dadas antes
como sendo as de vermelho – um modelo do qual guardo memória – o que me faz ganhar
a consciência de que se trata de uma cor igual a que experienciei nas outras
vezes. Assim, chamando as diversas ocorrências experienciadas de vermelho de {V1, V2... Vn } e a
ocorrência que serve de modelo de Vm posso dizer que V1 = Vm, que V2 = Vm e que Vn = Vm, e que
por isso V1 = Vm = V2 etc. sem recorrer a uma entidade platônica ou mesmo à noção de
conjunto. O que chamamos de significado da palavra ‘vermelho’ pode, sob essa
perspectiva, ser identificado com a conexão referencial, a saber, com a regra cognitiva que relaciona a ocorrência experienciada a ocorrências-modelo
de maneira a produzir a consciência do que está sendo experienciado como sendo uma
cor vermelha. Como o conhecimento dessa regra cognitiva requer a memória de modelos
intersubjetivamente experienciáveis, fica explicado porque o significado da
palavra ‘vermelho’ não pode ser aprendido por um cego. Contudo, é preciso notar
que a regra semântico-cognitiva dependente
de ocorrências-modelo para a identificação de novas ocorrências como sendo instâncias
de vermelho é independente dessa ou daquela ocorrência particular do vermelho;
ela apenas se instancia nas ocorrências que a satisfazem, ainda que não exista
na independência delas, a menos como disposição. Enfim: ao refletirmos sobre a
questão, mesmo para uma coisa tão simples como a cor vermelha, acabamos por abandonar
uma concepção propriamente referencialista do significado.
Mesmo
que o referencialismo estrito seja insustentável, há uma lição a ser aprendida.
Nossa última sugestão salva do referencialismo russelliano uma sugestão
importante, que é a da necessária existência de algum objeto de referência para
os nomes dos objetos que a linguagem supostamente toma como simples. Mesmo
entendendo a expressão ‘objeto simples’ em um sentido que não é absoluto, restringindo-se
a uma entidade não-decomponível em certa prática linguística, como bem poderia
ser o caso de um sense datum de vermelho ou do vermelho como
uma propriedade singularizada dada à experiência, a conclusão é a de que para
que tais nomes tenham significado eles precisam ter referência. Eis porque, em
um sentido importante, um cego não pode aprender o significado da palavra
‘vermelho’: não podendo ter contato sensorial com coisas vermelhas ele não pode
construir a regra semântico-cognitiva constitutiva do significado da palavra. Ao
menos no caso de nomes de objetos simples, referidos por algum subrogado dos
nomes próprios lógicos que seja restrito a certa prática linguística, a
existência de alguma referência é indispensável. Mas isso não quer dizer que o
significado do nome seja a própria referência. Isso quer dizer apenas que a
referência é necessária à constituição da regra semântica através da qual o nome
do objeto admitido como simples ganha referência.
Significado, uso, regra semântica
Passemos agora a um segundo candidato a elo
semântico: o uso ou aplicação. Esse candidato foi privilegiado por Wittgenstein,
o qual sugeriu que o significado de uma expressão lingüística é o seu uso (Gebrauch) ou aplicação (Verwendung). Como ele escreve em uma
famosa passagem das Investigações
Filosóficas:
Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra
‘significado’ – senão para todos os casos de sua utilização – explicá-la assim:
o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem.[6]
Essa sugestão se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica
claramente aos usos performativos das expressões, como o do verbo pedir em
proferimentos do tipo “Peço que p”. Esses
usos constituem tipos de interação entre falante e ouvinte denominados forças
ilocucionárias. Trata-se aqui do significado performativo, que não é o único
nem o mais importante para nossos interesses.
Contudo, a identificação do significado com o uso não se aplica facilmente
ao significado descritivo ou cognitivo ou epistêmico das expressões, que é
aquele que entra em questão quando tratamos da referência. O significado da
frase descritiva “O céu está azul” não parece se reduzir ao seu uso. Uma maneira
possível de aproximar o significado descritivo do uso consiste em produzir uma
extensão aceitável da identificação, sugerindo que no caso de expressões
descritivas o que está em causa é o uso
referencial: o uso envolvido no ato
de tornar pública uma descrição de como as coisas são. Podemos entender o uso
referencial de expressões como aquele em que um falante comunica ao ouvinte a
cognição de como as coisas são. Assim, se um falante diz “O céu está azul”,
além de usar a frase com a força ilocucionária de uma asserção, ele geralmente
a usa para comunicar um conteúdo asserido na intenção de reproduzir um juízo
similar sobre esse conteúdo no ouvinte.
Contudo, o que dizer da compreensão de um enunciado pelo ouvinte? O
ouvinte, afinal, não está usando o enunciado no ato de compreender o seu
significado. Se ele o usa é aqui de outra maneira. Aqui precisamos recorrer a outra
extensão da palavra ‘uso’. É possível dizer que usamos as expressões em pensamento. Quando
penso que o céu está azul, eu realmente uso essa frase de modo referencial em
meu pensamento. E o pensamento é, como o definiu Platão, um “diálogo da alma
consigo mesma”. Se concordo com algo que me é dito, aprendo algo, me pergunto
algo, constato algo para mim mesmo... Trata-se de usos internos de expressões
determinados por regras também de algum modo envolvidas na comunicação.[7] Podemos
chamar isso de o uso referencial-cognitivo
de uma expressão. Quando admitimos essa segunda extensão do conceito de uso,
vemos que o uso referencial em pensamento que o ouvinte imprime à expressão,
quando ele a compreende, também existe, e que ele não precisa ser diferente
daquele que o falante imprime à mesma expressão.
Não é
difícil questionar a legimidade da extensão da noção de uso que acabo de
propor. Ela é pouco natural. Mas ela tem, como veremos, a vantagem de localizar
o significado na praxis linguística,
na totalidade concreta do ato de fala, capaz de indidividuá-lo em seu nível
mais adequado de precisão, não permitindo que nada dele seja distorcido ou
deixado de fora.
Também
importante é perceber que na identificação do significado com o uso não se
trata simplesmente de uso no sentido de uma mera ocorrência espaço-temporal (token) da expressão lingüística, pois uma
ocorrência difere sempre da outra em sua localização espaço-temporal. Se fosse
assim o significado seria um outro a cada nova ocorrência, o que tornaria o
número de significados de cada expressão ilimitado. A alternativa plausível é
entender o uso no sentido de modo de
uso (Gebrauchsweise) ou modo de aplicação (Verwendungsweise), pois uma mesma palavra pode ser usada muitas
vezes do mesmo modo. Mas o que é o modo de uso? Ora, ele não parece ser outra
coisa senão algo do-tipo-de-uma-regra (etwas
Regelartiges). O próprio Wittgenstein chegou a essa conclusão em uma importante,
mas pouco quotada passagem de sua última obra, Sobre a Certeza:
Um significado de uma palavra é um modo
de sua aplicação (Art der Verwendung)...
Daí que existe uma correspondência entre os conceitos ‘significado’ e ‘regra’.[8]
Com
efeito: usar uma expressão de modo significativo é usá-la de acordo com o seu
modo de uso. E isso quer dizer usá-la corretamente, a saber, segundo as regras de
significação apropriadas. A correspondência entre modo de uso e regra fica
clara através de uma ilustração: imagine que você compre uma câmara de vídeo e que
na embalagem encontre um caderno no qual está escrito “MODO DE USO”. O que vem
a seguir são instruções que nada mais são do que regras para a correta
utilização do aparelho. O significado só pode ser aproximado do uso enquanto
for entendido no sentido de modo de uso, de algo do-tipo-de-uma-regra (etwas Regelartiges), que determina os
usos-ocorrências singulares. E o que vale para a palavra ‘uso’ em geral vale
também para o uso referencial-cognitivo, que pode ser visto como uma forma particularmente
importante de modo de uso.
Mas
por que um filósofo como Wittgenstein escreve em Sobre a Certeza que o significado é determinado por regras? Por que não podemos identificar o
significado de nossas expressões lingüísticas com regras simpliciter? A meu ver a resposta também foi aproximada por
Wittgenstein com sua analogia da linguagem com um cálculo[9],
além das muitas e de outro modo inexplicáveis considerações sobre o seguimento
de complexas combinações de regras em jogos de linguagem no Livro Marrom e nas Investigações Filosóficas. As expressões lingüísticas em seu uso
geralmente envolvem cálculos, os quais nada mais são do que combinações ou
concatenações de regras. E os significados que elas possuem parecem
constituir-se dessas combinações de regras que são convenções automatizadas,
mais ou menos compartilhadas entre os falantes. É isso o que justifica a
comparação da linguagem com um cálculo. A multiplicação ‘12 . 30 = 360’, por
exemplo, pode para certa pessoa resultar da combinação de três regras, uma
multiplicando 10 por 30, outra multiplicando 2 por 30, e ainda outra somando os
resultados 300 e 60 de modo a obter 360. O significado, entendido como o
conteúdo cognitivo da multiplicação ‘12 . 30 = 360’ seria dado por esse e outros
cálculos equivalentes. O que havíamos chamado de algo do-tipo-de-uma-regra deixa-se
esclarecer, pois, como uma combinação de regras. O significado de uma expressão
lingüística deve ser o mesmo que certas regras
ou combinações de regras que eventualmente determinam usos-ocorrências corretos,
quer performativos quer referenciais, quer na linguagem falada quer na
linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo ‘regra’ de maneira a incluir
combinações de regras, o que é no final das contas uma extensão justificada do
termo, posto que uma combinação de regras não é nada mais do que uma regra composta, que embora não seja ela própria convencional (o seu
compartilhamento pelos falantes não é pressuposto), costuma ser convencionalmente
fundada, a saber, constituída com base em convenções. Quando alguém diz (como
Wittgenstein por vezes o faz) que o significado é determinado por regras, o que ela quer dizer é a meu ver apenas que
o significado também pode ser uma combinação de regras e nada mais.
Há ao menos duas espécies de regras de
significação que não podem deixar de ser distinguidas. A primeira é a das
regras cognitivo-criteriais responsáveis pelo significado referencial das
sentenças declarativas. Critérios são, no dizer de Wittgenstein, “aquilo que
confere às nossas palavras os seus significados comuns”.[10] Para ele
as regras semânticas são baseadas em critérios, que são condições que precisam
ser independentemente dadas para que tomemos consciência de que algo é o caso. Usando
um exemplo do próprio Wittgenstein, se alguém afirma “Está chovendo” isso
envolve a aplicação de uma regra criterial, uma regra que demanda que sejam
dadas certas condições, como a de gotas de água caindo das núvens, para que
haja a cognição – a tomada de consciência do fato de que está chovendo. A
segunda espécie de regra de significação a ser mencinada é a constituida de convenções
performativas, determinadoras do sentido ilocucionário, ou seja, tematizadoras
da espécie de interação a ser estabelecida entre falante e ouvinte. Se ao fazer
um pedido digo “Por favor, feche a porta”, essa frase não será verdadeira ou
falsa, mas bem sucedida ou não, sendo a regra performativa aquilo que nela é
tematizado.[11]
Como já notei, as regras performativas estão fora do âmbito de investigação
desse livro, sendo aqui mencionadas apenas no intuito de prevenir confusões.
Mas
se uma análise do apelo ao uso termina por apontar para regras cognitivo-referenciais,
então por que o apelo ao uso? Por que não começar logo pela investigação dessas
regras e de suas combinações? A resposta é que começar pelo uso tem para
Wittgenstein uma importância heurística. As ocorrências de uso correto podem
ser vistas como os hard data semânticos:
elas exemplificam as regras de significação onde a linguagem se demonstra como
sendo um instrumento de ação, vindo as regras cognitivo-criteriais
inevitavelmente nelas aplicadas associadas a suas funções performativas publicamente
avaliáveis. O ponto importante a ser notado é que os traços mais gerais do
significado de uma expressão não são relevantes, pois são comuns a muitas outras
expressões e por isso não são capazes de individuá-lo suficientemente. O que
importa são os traços mais específicos. São eles os que são capazes de
individuar um significado de uma expressão como diferente do significado de
qualquer outra ou de outros dela mesma. Mas esses traços só são apresentados na
praxis linguística. Por isso é importante o apelo às ocasiões de uso, que tornam
patentes as sutis variações semânticas que uma mesma expressão pode sofrer ao
ocorrer em diferentes contextos (práticas, jogos de linguagem). Essas sutis
distinções semânticas tem particular importância para a crítica da linguagem,
uma vez que permitem desfazer equívocos surgidos de usos metafísicos das
expressões que venham a confundir essas variações.
Significados e práticas lingüísticas
Há mais a se dizer sobre o significado como
função do uso: é que uma expressão lingüística só ganha sentido quando usada
dentro de um sistema de regras. Podemos comparar uma expressão lingüística com
uma peça de um jogo de xadrez e o seu uso com um lance no jogo. Quando movemos
a peça de xadrez, o significado do movimento não é dado somente pela regra
segundo a qual movemos a peça. Ele é mais completamente dado pela estratégia, pelo
cálculo das possíveis combinações de regras na previsão de possíveis movimentos
do adversário e das respostas que poderiam se seguir. Esse cálculo é um para o
jogo de xadrez e será outro, digamos, para o jogo de damas. Algo análogo se dá
com um proferimento lingüístico. As regras lingüístico-gramaticais de
superfície são como as que permitem os movimentos das peças de xadrez. Não são
elas as que realmente importam. Elas dão à expressão um sentido meramente
gramatical. As regras constitutivas do significado da expressão se assemelham
mais às combinações de regras que justificam o movimento segundo o cálculo
estratégico em um jogo de xadrez. Essas regras de uso de uma expressão
linguística só se articulam no contexto de sistemas
de regras geralmente sintáticas, semânticas e pragmáticas,
que Wittgenstein inicialmente chamava de jogo
de linguagem e mais tarde passou a chamar também de prática lingüística. Exemplos que ele deu de jogos de linguagem foram
ordenar, descrever um objeto pela aparência, informar um acontecimento, fazer
suposições sobre um acontecimento, inventar uma estória, contar uma história, explicar,
descrever uma paisagem, fazer teatro, contar uma piada, traduzir etc.[12]
Ao
fazer depender o significado das expressões de seus usos segundo as regras vigentes
em jogos de linguagem, Wittgenstein estava endossando o que hoje chamaríamos de
uma forma de molecularismo semântico: o significado da expressão não depende
dela mesma em isolamento (atomismo semântico), nem de sua inserção na linguagem
como um todo (holismo semântico), mas de ela ser usada no contexto de uma
prática lingüística (um subsistema molecular da linguagem). Em apoio a essa
concepção ele descreveu a linguagem natural como uma nebulosa de jogos de
linguagem:
A
linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a
linguagem ordinária, circundada de jogos de linguagem particulares mais ou
menos definidos, que são as linguagens técnicas.[13]
A
nebulosa formada pelas práticas linguísticas, por sua vez, é algo que só
encontra a sua razão de ser como parte constitutiva do que Wittgenstein chamou
de uma forma de vida. Ao que consta, ele teria sido influenciado pela leitura
de um artigo do antropólogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para
aprender a língua de um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua
sociedade.[14]
O exemplo usado por Malinovski para ilustrar o seu ponto de vista pode ser
útil: quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expressão ‘remamos em
lugar’, eles querem dizer com ela que estão próximos de uma aldeia, pois como
as em torno das ilhas águas, mesmo próximas da praia, são profundas, varar a
canoa é impossível e eles precisam usar os remos para chegar à aldeia. Só
quando conhecemos o contexto em que os nativos vivem ganhamos condições de
entender o que a expressão quer dizer.
A
importância de muito do que Wittgenstein escreve consiste muitas vezes em ele
ter percebido o alcance e a abrangência de certas idéias. Para ele a expressão
‘forma de vida’ tem o sentido de modo de
vida em sociedade, a dizer, do
complexo de regularidades que determinam a vida das pessoas em um grupo social.
Assim sendo a forma de vida inclui, tomando de empréstimo dois termos de J.R.
Searle, não só um entrelaçado (network) de significações envolvidas,
mas também um pano de fundo
(Background) de habilidades,
capacidades, disposições e maneiras de fazer as coisas, correspondente à forma
de vida. Assim, a linguagem é um sistema imensamente complexo de regras, um
sistema que somos capazes de subdividir de múltiplas formas em subsistemas que
são as práticas lingüísticas, os jogos de linguagem, os quais se encontram por
sua vez enraizados em outro sistema, que é o constituído pelas regularidades
que determinam a vida das pessoas em sociedade, não podendo ser inteiramente separado
desse último. As práticas linguísticas constitutivas de nossa linguagem ordinária
nascem espontaneamente de nossa forma de vida e dela dependem. Mesmo o
aprendizado dos jogos de linguagem especializados das ciências só é possível
porque já pressupõe algum domínio das práticas da linguagem ordinária, também
dependendo, por isso, em última instância, da forma de vida. Eis porque um
computador nunca será capaz de dar sentido às palavras com as quais opera: ele
não é membro perticipante de nenhuma forma de vida.
Podemos
sintetizar as considerações feitas até aqui na seguinte fórmula:
Um
significado de uma expressão x = um
uso-ocorrência de x segundo regras de
uma prática lingüística radicada em uma forma de vida.[15]
Com
isso temos uma espécie de representação panorâmica da gramática do conceito de
significado, capaz de servir de guia e correção para reflexões semânticas e
também de alguma utilidade como fundamento semântico para uma atividade
filosófica terapêutica.
Transgressões do uso lingüístico
Gostaria de fazer agora um breve excurso sobre
as duas maneiras como, em concordância com os textos de Wittgenstein, o uso
lingüístico correto pode ser transgredido em filosofia de maneira a produzir maladies que demandam terapia. Podemos
chamá-los de uso deslocado e condensado de uma expressão, termos que não
sem razão tomo de empréstimo da teoria freudinana sobre os mecanismos do
processo primário (primäre Vorgang). Para compreendermos isso
melhor precisamos lembrar aqui em que se constitui o processo primário. Para
Freud o processo primário é o processo de pensamento constitutivo da formação
de sintomas neuróticos e, principalmente, dos sonhos. No processo secundário as
cargas afetivas (Besetzungen) se
encontram rigidamente associadas às suas representações próprias. Mas no
processo secundário a carga afetiva não se encontra mais rigidamente associada
à sua representação própria. Ela se submete aos processos de deslocamento e
condensação. O deslocamento (Verschiebung)
ocorre quando a carga afetiva de uma representação reprimida passa a outra
representação, a qual é capaz burlar a censura e tornar-se consciente,
produzindo assim liberaçao da energia endopsíquica. Já a condensação (Verdichtung) ocorre quando a carga
afetiva de uma representação complexa se concentra em uma parte dela, a qual se
torna consciente. A semelhança com os dois mecanismos fundamentais do processo
primário, que Freud chamava de deslocamento e condensação, não é mera
coincidência. A atividade filosófica é para Freud uma forma do processo
primário, assim como a arte e a religião. Para ele o mecanismo de deslocamento
é mais relacionado ao inconsciente do que o de condensação, e nada implica que
isso não pode ser o caso nas confusões linguísticas. O próprio Wittgenstein
admitia alguma proximidade entre a sua terapia filosófica e a terapia
psicanalítica, resguadadas as diferenças.[16]
Vejamos agora como é no caso dos equívocos e confusões linguísticas
decorrentes de transgressões do uso das expressões. No uso deslocado uma
expressão é aplicada em um jogo de linguagem ou prática lingüística B
preservando o seu modo de uso na prática lingüística A (ou seja, segundo as
regras semânticas de A). Já no uso condensado tenta-se aplicar uma mesma
expressão que pode ser usada em duas ou mais práticas lingüísticas, digamos, A,
B e C, simultaneamente, como se isso constituísse uma única prática
lingüística.
Exemplos filosóficos desses mecanismos são sempre contestáveis, por isso
vou considerar dois casos muito simples. Quanto ao uso equívoco, considere o
paradoxo de Estilpão. Esse filósofo negou a possibilidade de predicação. Para
ele, se digo que Sócrates é sábio, caio em contradição, pois estou negando que
Sócrates é Sócrates... Ou seja: podemos dizer de alguma coisa que ela é o que
é. Mas se quisermos dizer algo mais do que isso caímos em contradição, pois
estamos negando que ela é o que é. Podemos identificar a falácia cometida por
Estilpão distinguindo práticas linguísticas do tipo A, na qual o verbo ser é
usado no sentido de identidade (ex: “Sócrates é Sócrates”), de práticas
linguísticas do tipo B, nas quais o verbo ser ganha um sentido predicativo (ex:
“Sócrates é sábio”). Estilpão começa por assimilar as práticas do segundo tipo
às práticas do primeiro tipo. Ou seja: ele tenta usar o verbo ser em práticas
do tipo B preservando o sentido de identidade que ele tem em práticas do tipo
A, que é o único sentido que ele reconhece. Com isso ele produz um uso deslocado
que ele percebe ser equívoco. Ao perceber isso, porém, ele não conclui pelo
reconhecimento de práticas do tipo B, mas sim pela rejeição da possibilidade de
usarmos o verbo ser em práticas linguísticas do tipo B, ou seja, práticas
predicativas.
Para tentarmos um exemplo de uso condensado, considere a sugestão de
alguns filósofos, segundo a qual o verbo ser deve ter um sentido unívoco
originário, que tanto é o de identidade quanto é predicativo e mesmo
existencial! Digamos que, como comprovação disso, nos seja apresentada a frase:
“O Ser é Ser”, com a qual se pretenderia afirmar que o ‘é’ também tem uma
propriedade mais originária, superior a da mera identidade, que simultaneamente
subsume tanto o sentido de identidade do verbo ser, “Ser = Ser” quanto o
sentido predicativo “Ser possui a propriedade de ser”, quanto o sentido
existencial, “O ser existe”. Contra tal sugestão, o crítico da linguagem nos
dirá ser muito mais plausível que aquilo que o filósofo pretende com o ‘é’ da
frase “O Ser é Ser” seja apenas uma incoerente mistura de sentidos sem valor
semântico, a saber, uma simples confusão
decorrente da condensação de três usos da mesma palavra, advindos de várias práticas
lingüísticas distintas: A (de afirmar identidade: “Ser = Ser”), B (de predicar
algo: “Do ser se predica o ser”) e C (de afirmar existência: “O ser é, ele existe”),
do que resulta no melhor dos casos em ambigüidade e no pior em confusão e incoerência
conceitual.
Apresento
essa explicação porque ao praticar a crítica da linguagem recorrerei muitas
vezes a argumentos que denunciam formas do uso deslocado ou condensado das
expressões. Isso mostra que a analogia do procedimento filosófico com uma maladie psicológica e sua correspondente
terapia possui sua justificação psicológica no esforço de generalização (the craving
for generality) tão presente na filosofia e denunciado por Wittgenstein.[17]
Contudo, não devemos esquecer-nos de que a crítica ou terapia da linguagem não
esgota as questões. Em filosofia os usos deslocados e condensados de expressões
ganham sua importância pelo fato de estarem geralmente apontando para questões relevantes,
ainda que insuficientemente ou inadequadamente abordadas. É isso o que a meu
ver Wittgenstein tinha percebido ao notar que as confusões filosóficas possuem
a propriedade de serem ‘profundas’.[18] Ele
percebeu que filosofia é também a atividade conjectural que podemos empreender
enquanto não formos capazes de chegar a uma verdadeira ciência.[19]
Verificacionismo wittgensteiniano
Por hipótese, sob o suposto de que o sentido
referencial das expressões seja dado por regras semântico-cognitivas, deveríamos
poder distinguir para cada expressão referencial uma regra específica. Partindo
de uma maneira de ver semelhante, Ernst Tugendhat seguiu a estratégia de investigar
as supostas regras responsáveis pela referência de enunciados singulares
predicativos ou relacionais. Afinal, são eles os enunciados mais fundamentais da
linguagem extensional, dado que enunciados universais e existenciais podem ser respectivamente
analisados como conjunções e disjunções de enunciados singulares. Assim, admitindo
que o sentido referencial dos termos é dado por regras semântico-cognitivas e lembrando
que frases singulares predicativas - frases da forma Fa – são constituidas por um termo singular e por um termo geral, adoto
aqui a classificação de Ernst Tugendhat[20], pela
qual é suposta a existência de:
(i)
Uma regra semântico-cognitiva para o termo
singular, a regra de identificação
do objeto (Identifikationsregel),
(ii)
uma regra semântico-cognitiva para o termo
geral, a regra de aplicação (Verwendungsregel), e
(iii)
uma regra
semântico-cognitiva para a frase predicativa singular, a sua regra (método, procedimento) de verificação (Verifikationsregel) do que chamo de o fato, o qual pode ser por enquanto simplesmente
estipulado como qualquer coisa que seja o fazedor da verdade (truth maker) do enunciado.
Também seguindo Tugendhat quero supor que o
significado da frase singular predicativa envolve uma regra de verificação resultante
da aplicação combinada das duas regras anteriores, ou seja, da regra de
aplicação do termo geral com base na aplicação
da regra de identificação do termo singular.[21] No
caso da frase singular relacional, a diferença é apenas que o termo geral
relacional tem uma regra de aplicação que se aplica em combinação com duas ou
mais regras de identificação de termos singulares para formar a regra de
verificação da frase relacional. Este recurso à regra de verificação foi,
aliás, entendido por Tugendhat como uma maneira analiticamente mais aprofundada
de se falar da assim chamada condição
de verdade da frase[22] – identificação
à qual deveremos retornar mais tarde.
Com
essa admissão hipotética de que o conteúdo de significação da frase singular seja
dado por sua regra de verificação chegamos a um ponto bastante polêmico da
discussão, qual seja, a admissão do que poderíamos chamar de verificacionismo semântico, que é a identificação do conteúdo de significação
cognitivo (ou representacional ou descritivo ou factual ou informativo) das
frases enunciativas com sua regra ou método de verificação.[23] Embora
não seja de conhecimento geral foi Wittgenstein a primeira pessoa a sugerir essa
identificação.[24]
Vale, pois, considerarmos o que o autor de uma idéia disse a seu respeito. Eis
algumas de suas declarações:
Uma frase (Satz) que não se
deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).[25]
São
duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condições, então elas têm o
mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam diferentes).
Determino
sob que condições uma frase pode ser verdadeira ou falsa, então determino desse
modo o sentido da frase. (Esse é o fundamento de nossas funções de verdade.)[26]
Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento
muito bem definido para saber se a frase é verificada.[27]
O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio
sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira ou falsa,
assim determino o sentido da frase.[28]
O sentido de uma frase é o método de sua verificação.[29]
O que primeiro chama atenção em tais
formulações é que elas são quase trivialmente intuitivas, parecendo confirmar a
sugestão wittgensteiniana de que teses filosóficas são exposições de lugares
comuns acerca dos quais deveríamos todos estar de acordo. Sem dúvida, se
considerarmos exemplos muito simples (e por isso mesmo modelares) como “O céu
está azul”, “A vassoura está no canto”, “A chave está em cima do armário”,
parece claro que só sabemos o que esses enunciados querem dizer na medida em
que sabemos como eles podem ser tornados verdadeiros e, correspondentemente, só
sabemos o que quer dizer a negação desses enunciados por sabermos o que os
torna falsos, que é simplesmente a ausência daquilo que os torna verdadeiros.
Outro aspecto importante é que, diversamente
do que os membros do Círculo de Viena tentaram fazer com a sua sugestão,
Wittgenstein não se colocava dentro de uma perspectiva logicista que tornasse
imprescindível a descoberta de uma formulação “formalmente precisa” do
princípio, capaz de dar conta de suas mais variadas aplicações. Suas
formulações são intuitivas, possuindo um viés operacionalista: nelas as
condições de verdade dadas à experiência parecem ser melhor entendidas como constituintes
distais da regra (procedimento, método) verificacional.[30]
Ainda outro aspecto é que o princípio não é de
antemão apresentado por Wittgenstein como arma ideológica no combate à
metafísica; a sua função primeira é a de expor uma condição lógico-gramatical que
parece encontrar-se no fundamento de toda a nossa linguagem factual.
Finalmente, é questionável a sugestão
frequente de que Wittgenstein teria mais tarde abandonado o princípio da
verificação em favor da idéia de que o significado é o uso, como se as duas
sugestões fossem fatalmente inconsistentes entre si. Em oposição a isso Moritz
Schlick, o mais brilhante leitor de Wittgenstein daquele período, notou:
Enunciar
o significado de uma sentença é o mesmo que enunciar as regras de acordo com as
quais a sentença é para ser usada, e isso é o mesmo que enunciar o modo pelo
qual ela pode ser verificada. O significado de uma proposição é o método de sua
verificação.[31]
Com a palavra ‘uso’ quer-se dizer aqui ‘modo
de uso’, que é regra de uso, que ao menos envolve uma regra semântico-cognitiva
a ser resolvida na regra (método, procedimento) de verificação, a qual é também
uma regra criterial, posto que estabelecedora dos critérios de verificação.
Regra verificacional como portadora da
verdade
É preciso ter em mente o que a regra de verificação verifica. Ela verifica o portador da
verdade, que é aquilo do que se diz mais propriamente que é verdadeiro ou falso.
Ela não verifica a frase, pois a frase não é o portador da verdade. A frase não
possui a estabilidade necessária ao portador da verdade, que precisa ser sempre
verdadeiro ou sempre falso na independência das circunstâncias.[32]
Também o enunciado, entendido como sendo a frase adicionada ao seu sentido
gramatical, entendido como as suas regras sintáticas, não pode ser portador da
verdade pelas mesmas razões. O portador da verdade só pode ser, portanto, o
significado ou conteúdo proposicional, epistêmico, cognitivo, descritivo ou
factual da frase enunciativa, o qual seria a própria regra de verificação. Mas
então o que a regra de verificação verifica? Ora, o que ela verifica é o
conteúdo epistêmico do enunciado, mas como ela mesma é esse conteúdo, o que ela
verifica é a si mesma! Mas como isso é possível? Ora, porque a regra de
verificação verifica-se a si mesma através de uma propriedade própria que as
regras podem ter, que é a de se demonstrarem realmente, efetivamente aplicáveis.
Daí podermos concluir que a verdade de uma regra de verificação é a sua
aplicabilidade e que a sua falsidade é a sua inaplicabilidade.
Também é preciso considerar que a regra de verificação vem associada
tanto à verificação quanto à falsificação do enunciado. E a razão disso
encontra-se no fato de que essa regra, sendo o próprio significado entendido
como o conteúdo cognitivo ou epistêmico do enunciado, verifica-se a si mesma ao
aplicar-se e se falsifica a si mesma ao se demonstrar inaplicável. Considere uma
frase predicativa como “Frege é barbudo”. A regra de verificação desse
enunciado se aplica a um fato no mundo, logo o conteúdo epistêmico é verdadeiro
e a própria regra é verdadeira, pois factualmente aplicável. Considere agora o
enunciado “Russell é barbudo”: aqui a regra de verificação não se aplica a
nenhum fato no mundo, logo o conteúdo enunciativo é falso, a própria regra,
inaplicável, é falsa.
Regra verificacional como regra
cognitivo-criterial
Podemos compreender melhor a noção de regra de
verificação tal como ela foi apresentada por Wittgenstein pela consideração da
noção de critério e regra criterial que, como já notamos, também se origina de
sua filosofia.[33]
As inicialmente supostas regras semânticas de identificação, aplicação e verificação,
também podem ser vistas como regras criteriais, a saber, regras que
estabelecem os critérios de identificação
do objeto para o termo singular, os critérios
de classificação da propriedade para o termo geral, e os critérios de verificação do fato para a
frase singular.
A
palavra ‘critério’ é, aliás, ambígua. Ela pode se aplicar:
(i)
a elementos constitutivos da regra
criterial, a saber, a condições que só existem como representações em nossas
mentes, ou então
(ii)
à
condição correspondente, objetivamente dada, que satisfaz os elementos
constitutivos da regra criterial, permitindo sua aplicação.
Tanto
num quanto noutro caso, os critérios costumam ser decomponíveis em
configurações criteriais. Assim, a regra verificacional se aplica quando as
configurações criteriais concebidas são satisfeitas pelas configurações
criteriais objetivamente dadas, as quais de um ou de outro modo lhe são
correspondentes e constitutivas de fatos, entendidos como sendo os seus fazedores
da verdade objetivos.
A
satisfação da regra criterial parece ter como condição mínima a satisfação de
um isomorfismo estrutural entre, de um lado, os elementos inter-relacionados que
constituem as configurações criteriais pensadas e, de outro, os elementos
inter-relacionados que constituem configurações criteriais efetivamente dadas
no mundo atual. A verdade do conteúdo epistêmico da frase enunciativa, ou seja,
de sua própria regra verificacional, resulta da aplicabiliade dessa regra, a
qual depende da satisfação da variadade de configurações criteriais que podem
ser pensadas quando a regra é pensada pela variedade das configurações
criteriais constitutivas dos fatos como fazedores de verdade independentes do
sujeito da experiência. E a falsidade do significado epistêmico da frase
assertórica, a falsidade da regra verificacional, resulta de sua
inaplicabilidade, a qual se deriva da ausência da satisfação de suas
configurações criteriais com as configurações de elementos constitutivos do
fato. Como essa satisfação pode ser pensada em termos de isomorfismo
estrutural, ou seja, considerando que a configuração criterial pensada deve ter
uma relação biunívoca com uma análoga configuração criterial objetivamente
dada, essa seria, teoricamente, a maneira de se conformar o verificacionismo
com uma concepção correspondencial da verdade.
Para esclarecer esse ponto, considere os critérios para a constatação de
que está chovendo, que podem ser enunciados como “visão de gotas d’água caindo
do céu”. Ora, esse processo é constituído de propriedades identificadoras de gotas e caracterizadoras de seus
movimentos e direções. Essas configurações criteriais podem ocorrer no mundo
externo independente de nós, mas elas também podem ser meramente concebidas na ausência da observação,
como acontece quando alguém imagina gotas D’água que caem das núvens. Para
enunciados completos deve haver critérios que se constituem em configurações de
elementos (propriedades, relações, objetos...) atuando como fazedores de
verdade a satisfazerem a regra de verificação.
Também sobre a relação entre a regra de verificação e os a diversidade
de configurações criteriais por ela gerada há duas passagens esclarecedoras em Wittgenstein. A
primeira consiste na observação de que:
Tudo o que é necessário para que nossas frases (sobre a probabilidade)
tenham sentido é que nossa experiência em
algum sentido (in irgendeinem Sinne)
com ela concorde ou não concorde. Isso é: a experiência imediata deve comprovar
apenas alguma coisa delas, alguma faceta.[34]
A segunda consiste em um exemplo por ele dado:
A consideração do modo como o significado de uma sentença é explicado
torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge ganhou
a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, obviamente não é o
significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não é a disjunção ‘eu
vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se excluirmos
qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós alteraremos o seu
significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós excluíssemos da
verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se excluíssemos todos
os meios de verificação, isso iria destruir o significado. É claro que nem toda
espécie de verificação é realmente usada para verificar “Cambridge venceu” nem
qualquer verificação dará o significado. As diferentes verificações do vencer a
corrida de barcos têm diferentes lugares na gramática de “ter vencido a corrida
de botes”.[35]
Essa
passagem de Wittgenstein merece alguma atenção: “Cambridge venceu a corrida de
botes” é uma frase predicativa singular em que as regras fundamentais devem ser
a regra de identificação do termo singular ‘a equipe de Cambridge’ e a regra de
aplicação do predicado ‘...venceu a corrida de botes’. Mas o procedimento verificacional
é mais complexo; ele costuma se ramificar em variadas formas verificacionais. O
significado de uma frase deve ser constituído pelas formas verificacionais que
terminam nas configurações criteriais cuja satisfação elas requerem. Há
configurações criteriais fundamentais, como a observação direta do
acontecimento, feita por alguém que realmente vê a equipe de Cambridge vencer a
corrida de botes... Mas existe também uma variedade indefinida de configurações
criteriais secundárias, de sintomas, que nos permitem inferir que Cambridge
venceu a corrida de botes, como é o caso da notícia de jornal ou um novo troféu
na estante do clube de regatas. Essas regras podem ser aplicadas diretamente no
caso em que alguém assiste a equipe de Cambridge vencer a corrida, ou
indiretamente, quando a sua aplicabilidade é inferida de outros fatos.
No
primeiro caso Wittgenstein falaria de critérios
primários e no segundo de critérios secundários ou sintomas.
Os critérios primários são definitórios: uma vez dados, eles decidem que o fato
está sendo dado; já os critérios secundários ou sintomas apenas probabilizam o
fato em questão.[36]
Assim – para tormar um exemplo de Wittgenstein – pingos de chuva caindo do céu constituem
critério (primário) de chuva, enquanto calçadas molhadas são sintomas ou
critérios secundários de chuva, pertencendo secundariamente ao significado da
atribuição de chuva.[37] A
investigação precisa e detalhada da estrutura das regras de verificação em
diferentes espécies de enunciados é um empreendimento que me parece importante
e que não foi levado a termo.
Relevante
é também o conceito de condição de verdade. A condição de verdade de um
enunciado p pode ser definida como a
condição de que p seja realmente o caso.
A condição de verdade da sentença “Frege é barbudo” é a condição de que seja
realmente o caso que ele é barbudo. Isso quer dizer que a condição de verdade
de p é a condição de que o fato
fazedor da verdade de p exista
realmente. Pelo que foi considerado, a questão da condição de verdade não pode
ser dissociada da questão dos critérios constitutivos da regra de verificação.
A condição de verdade é a da existência do fato verificador e esse fato só é
assegurado pela satisfação das configurações criteriais que nos permitiria
verificar o enunciado. Contudo, se alguém verifica que Cambridge venceu a
corrida por encontrar uma taça no armário de um clube, esses critérios
secundários (sintomas) não serão parte do fato (evento) de Cambridge ter
vencido. Se vejo que o barômetro indica que está chovendo, esse critério também
é secundário, um mero sintoma de chuva, que não é parte constitutiva do fato de
que está chovendo, diversamente dos pingos de chuva caindo, que posso discernir
de várias maneiras. Essas considerações mostram que o verificacionismo pode ser
considerado como uma forma analisada de teoria do significado como condição de
verdade, como pretendeu Tugendhat.[38]
O
mais importante é que o exemplo nos leva a reconhecer que a condição de verdade
não pode existir na independência de seus critérios. Ela não é algo que se
encontra para além deles, na independência deles, mas algo que só pode ser dado
pela satisfação dos critérios. É um equívoco filosófico a crença de que uma
condição de verdade possa existir ou ser concebida sem os critérios que a constituem.
Regra verificacional e a relação
correspondencial
Uma conexão importante aqui é com a teoria
correspondencial da verdade. Alguns pensam que a adoção do verificacionismo significa
o abandono da concepção correspondencial da verdade. Afinal, em geral um
enunciado pode ser verificado de variadas maneiras. Mas aquilo que verifica
pode variar muito enquanto o conteúdo expresso pelo enunciado deve permanecer sempre
o mesmo. Mas nesse caso, como eles podem corresponder?
Minha
sugestão é a de que essa é uma questão traiçoeira e que só chegamos a esse
resultado porque procuramos a correspondência no lugar errado. Geralmente ela
não é entre o conteúdo de um enunciado e as variadas configurações criteriais
capazes de verificá-lo, mas entre o conteúdo de um enunciado e a espécie de
conteúdo inferida a partir dessas variadas configurações criteriais. A relação
correspondencial possui uma pragmática na qual podem ser considerados três
momentos[39]:
1)
O momento de uma suposição, hipótese p? com a qual nos perguntamos se um dado
conteúdo proposicional é verdadeiro.
2)
O momento de uma constatação, que consiste na
observação ou derivação de um conteúdo proposicional q!, o qual é simplesmente aceito como o fazedor da verdade.
3)
O momento conclusivo, no qual estabelecemos
uma relação correspondencial na qual constatamos que o conteúdo da hipótese p? é idêntico ao conteúdo da constatação
q! , caso no qual concluimos que p é uma proposição verdadeira ou ├p, ou na qual constatamos que o conteúdo
da hipótese p? é diverso de q!, o que nos faz concluir que p é uma proposição falsa ou ├~p. O procedimento ou regra
verificacional é constituído pela concepção desses três momentos, que quando
realizados constituem uma aplicação do procedimento ou regra verificacional.
Um
exemplo pode esclarecer. Digamos que eu faça a suposição de que a maré deve
estar baixa em Natal hoje pelas 18 horas. Essa suposição eu faço com base no
fato de que há cerca de quatro dias tinha visto a maré alta nesse mesmo
horário. Considerando que pelo que sei a cada dia a maré se retarda cerca de
duas horas, e que ela leva seis horas para encher, ela deve estar baixa hoje às
18 horas. Essa é uma hipótese que chamo de p?
Chamo-a de hipótese porque não estou nem um pouco certo disso... Digamos agora
que eu vá à praia e constate que a maré está baixa pela observação direta do
nível do mar. Chamo esse conteúdo observacional de q! Ora, isso me permite chegar à conclusão de que p corresponde ao fato, que p foi verificada. Como? Ora, eu
simplesmente comparo o conteúdo da suposição p? com o conteúdo de q! e
percebo que eles são iguais, que eles se correspondem, q! verifica p. Se, por
outro lado, q! fosse diferente de p, se eu observasse a maré cheia, eu
concluiria que p não corresponde ao
fato, que p foi falsificada.
A
história não termina aqui. Há maneiras indiretas de se verificar p e estas são as mais comuns. Digamos
que haja no porto uma luz vermelha que se acende quando a maré está baixa e que
eu possa vê-la de onde estou. Ver a luz acesa não é, porém uma maneira de
encontrar uma correspondência, pois consiste na proposição r! cujos critérios são muito diversos de uma observação direta do
fato (ou partes do fato) de a maré estar baixa em Natal. O que quero fazer notar com esse exemplo é que
a correspondência entre o conteúdo da proposição e o conteúdo verificador é muitas
vezes obtida de forma indireta, de modo que o conteúdo verificador é
simplesmente inferido de constatações observacionais outras, que nada tem com
uma relação de correspondência no sentido de identidade de conteúdo. Em outras
palavras: a verificação é o encontro de uma igualdade entre o conteúdo de uma
hipótese e outro conteúdo que geralmente é resultado inferencial de observações,
as quais não precisam possuir as mesmas constelações criteriais dadas à
observação, não tendo nada a ver com aquilo que queremos fazer corresponder.
Generalização para as ciências formais
O mesmo ponto também pode ser ilustrado em
ciências formais, o que nos permite generalizar nossa teoria correspondencial
para um domínio tradicionalmente ocupado por teorias coerenciais da verdade.
Digamos que eu queira demostrar porque a soma dos ângulos de um triângulo é de
180°. Posso fazê-lo primeiro traçando uma reta que passa sobre um dos vértices
do triângulo e que é paralela ao lado que se opõe ao vértice escolhido.
Naturalmente, como a soma do ângulo vértice escolhido com os outros dois ângulos
formados pela reta deve ser 180° e esses dois ângulos devem ser idênticos aos
dos outros dois ângulos internos do triângulo, disso resulta que a soma dos
ângulos internos de quaquer triângulo deve ser de 180°. Note-se que a hipótese p? é idêntica ao resultado q de um procedimento de soma dos ângulos
e não de alguma consideração mais básica aqui assumida, como a do axioma das
paralelas.
Para
um exemplo em aritmética, digamos que eu queira demonstrar a hipótese p?, que no caso é “2 + 3 = 5” à maneira
de Leibniz. Primeiro, por definição “2 = 1 + 1”. Logo, “(1 + 1) + 3 = 5”. Por
definição “3 = 2 + 1”. Logo “3 = (1+1) + 1”. Logo “(1 + 1) + ((1 + 1) + 1) = 5”.
Como “5 = 1 ‘+ 1 + 1 + 1 + 1”, fica claro que “(1 + 1) + ((1 + 1) + 1) = 1 + 1
+ 1 + 1 + 1”, que é “2 + 3 = 5”, que é um conteúdo igua ao do conteúdo da
hipótese. Vemos outra vez que o conteúdo que serve de verificação para a
hipótese de que “2 + 3 = 5” não é o mesmo que as definições de 2 ou 3... mas é
o mesmo que o resultado do raciocínio que fazemos a partir disso, o qual possui
um conteúdo que é idêntico ao da suposta identidade 2 + 3 = 5.
Um
último exemplo, agora concernente à lógica. Considere o seguinte teorema “P → ◊P”. Ele pode
ser considerado nossa hipótese p?
Como prová-la? Usando o sistema modal S5 podemos começar admitindo como
premissas os axiomas AS1, “◊P ↔ ~□~P” e AS3, “□P → P” e, com ajuda das regras
da lógica proposicional, chegar a uma prova do teorema. Ei-la:
1 □~P → ~P AS3
2
~~P → ~□~P 1TRANS.
3
P → ~□~P 2DN
4
◊P ↔ ~□~P AS1
5
~□~P → ◊P 4 ↔E
6
P → ◊P 3,5 SD
Como o conteúdo da conclusão da prova é
igual ao conteúdo da hipótese p? nós
concluímos que essa hipótese é verdadeira, O procedimento pelo qual verificamos
as verdades formais é, portanto, estruturalmente similar ao procedimento pelo
qual verificamos verdades empíricas. Além disso, não há contradição alguma
entre o procedimento verificacional e a correspondência, uma vez que essa seja
corretamente compreendida como a identidade do conteúdo de uma hipótese com o
conteúdo resultante de um procedimento verificacional.
Mas o que é precisamente esse conteúdo? Em
minha opinião ele nada mais é do que um conjunto de inferências possíveis. Ou
seja: dizer que o conteúdo da hipótese é idêntico ao conteúdo do resultado do
procedimento verificacional seria o mesmo que dizer que o conjunto de
inferências possíveis constitutivas da hipótese é idêntico ao conteúdo de
inferências possíveis constitutivo do resultado do procedimento verificacional.
Coerência como elemento intermediador da orrespondência
Ainda um
interessante ponto sobre esse entendimento da relação de correspondência é que
ele permite a absorção da teoria coerencial da verdade na teoria
correspondencial. A coerência pode ser compreendida como um procedimento pelo
qual a correspondência é obtida. Na prova modal acima não chegamos diretamente
de AS1 e AS3 mais regras da lógica proposicional diretamente a “P → ◊P”. Nós utilizamos passos
inferenciais, sendo nisso que se constitui a coerência, especialmente
valorizada como critério de verdade em ciências formais. Ela é constituída no
caso por implicações materiais, mas poderia ser constituída de inferências indutivas
se a verificação fosse a de uma proposição empírica.
Para exemplificar o último caso quero
considerar um exemplo.[40] Suponha
que um presente seja anonimamente enviado a você. Você abre e vê que é o livro O visconde partido ao meio de Ítalo
Calvino. Você se pergunta foi Silvia quem o enviou. Mas Sílvia vive em São Luis
e o presente foi enviado do Rio de Janeiro. Você percebe que esse livro poderia
ter sido enviado de algum outro lugar. Você também sabe que você presenteou
Silvia com um exemplar do livro Cidades
Invisíveis, do mesmo autor, para Sílvia alguns meses atrás e ela lhe disse
que O visconde partido ao meio era um
livro divertido... Um defensor da teoria da coerência da verdade diria que a
proposição p “Minha amiga Sílvia me
enviou um exemplar de O visconde partido
ao meio” é tornada como verdadeira por sua coerência com outras proposições
como r “Eu dei um exemplar de Cidades Invisíveis para Sílvia”, s “Sílvia me disse que O visconde partido ao meio é um livro
divertido”, t “O presente de Sílvia
poderia ter sido enviado também do Rio de Janeiro”. A crença em p é verdadeira porque é coerente com as
crenças r, s e t.
Contudo, podemos ter aqui o mesmo
procedimento indireto de verificação da correspondência via coerência. Eu posso
supor que você tem para começar a hipótese p.
As crenças q, r e s juntas tornam
indutivamente provável a conclusão q.
Mas você vê que p = q em conteúdo, ou seja, que a proposição
p corresponde à proposição q, disso se seguindo seu juízo ├ p, ou seja, a conclusão de que p é uma proposição verdadeira. Mas é
importante notar que essa conclusão se deve à coerência de p com as proposições r, s e
t, ou seja, que r & s & t tornam q
provável e q! = p?
Poderíamos nos perguntar se não é a correspondência
que deveria ser dependente da coerência e não vice-versa. Mas a resposta é que
isso só ocorreria se as proposições tivessem o mesmo grau de probabilidade. No
caso em questão é claro que r, s e t descrevem
proposições factuais, por exemplo, s é
algo que Sílvia me disse e de que me recordo. Elas se devem mais diretamente à
correspondência com os fatos. E são elas que para mim garantem q e não o contrário. Essa garantia de q, por sua vez, é aquilo que faz p uma proposição verdadeira. A coerência
não teria nenhuma força se não fosse em algum momento fundada em proposições
observacionais, no caso de verdades empíricas, e em axiomas, no caso de
verdades formais.
Mas o
que verifica o verificador?
Há, junto às
questões consideradas, outra mais séria, sobre o possível regresso ao infinito com
respeito ao conteúdo que verifica a hipótese. Se o conteúdo verificador precisa
ser verificado então precisaremos nos valer de um novo conteúdo proposicional
idêntico para verifica-lo e assim sucessivamente. Isso aconteceria no caso da
verdade de frases observacionais como ‘Há um golfinho nadando no mar’. A verdade dessa frase depende da observação
intersubjetiva do golfinho vindo à tona outras vezes. Mas se a verificação não
é feita pelo próprio fato, mas por um conteúdo de observação interno, então
parece que ela precisa ser tornada verdadeira por uma nova observação e assim
por diante. A resposta rápida que quero dar aqui é que podemos muito bem postular que em circunstâncias adequadas
o conteúdo observacional expresso por q! tenha
a função de fazedor da verdade da hipótese p?
No presente caso, a postulação é a de que o conteúdo interno de q (“Estou vendo um golfinho emergir da
água”) é o mesmo que o estado de coisas no mundo (“Um golfinho acabou de
emergir da água”). Mas essa postulação não é absoluta. Ela pode ser falseada,
de modo que o estado interno deixe de ser a interpretação correta do que
acontece. Digamos, por exemplo, que um mergulhador nada com um golfinho de
borracha preso sobre as costas de modo a produzir nos banhistas a ilusão de que
ele de quando em quando ele vem à tona...
O
problema do círculo linguístico
Uma objeção semelhante a recém-considerada e
talvez a mais influente é a de que proposições só podem ser comparadas com
proposições e que ao compararmos proposições hipotéticas com conteúdos de
constatações observacionais, mesmo que tidos como certos, permanecemos presos
no interior de um círculo lingüístico que exigirá novas verificações, as quais
serão inevitavelmente também intra-linguísticas etc. o que nos fará cair em uma
redução ao infinito que tem como corolário o ceticismo epistêmico.
Em
resposta a essa objeção e ecoando a posição de Schlick, A.J. Ayer escreveu:
Nós
rompemos o círculo ao usarmos nossos sentidos, ao realmente fazermos observações,
disso resultando aceitarmos um enunciado e rejeitarmos outro. Claro que usamos
a linguagem para descrever essas observações. Fatos não figuram no discurso, exceto como enunciados
verdadeiros. Mas como poderia ser esperado que eles devessem fazê-lo?[41]
Apesar de seu forte apelo ao bom senso, o argumento de Ayer parece
contradizer outra idéia, também de bom senso, que é a de que a constatação é
uma crença e de que o conteúdo de uma crença deve ser algo de natureza mental,
já que nunca temos acesso direto e definitivo às coisas tal como elas são. A
resposta que me parece mais plausível é a de que o conteúdo da constatação
observacional possui uma face de Janus: ele pode ser visto, quando considerado
dentro de um contexto de experiências psicológicas, como
(a) um conteúdo de
crença psicológicamente determinado,
susceptivel de ser falseado.
Mas ele também pode ser considerado, dentro de
um contexto fisicalista, como:
(b)
O que assumimos ser um conteúdo
observacional independente de nós mesmos, o fazedor da verdade, o fato, sob o
suposto da verdade do conteúdo informacional subjacente legitimizador da
prática lingüístico-verificacional em questão.
O conteúdo da constatação observacional é
visto por nós da maneira (b) quando por
meio dele desejamos confirmar uma suposição ou hipótese como sendo verdadeira.
Já esse mesmo conteúdo é visto por nós da maneira (a) quando desejamos
questionar uma pretensão de verdade, o que acontece sempre que percebemos que o
conteúdo informacional subjacente se altera de modo a dar-nos razões para
questionarmos o status desse conteúdo como sendo o de um conteúdo factual
fazedor da verdade. Semelhante mecanismo é o que permitiria explicar a
falibilidade de nossas constatações observacionais em seu papel fundamentador da
verdade, admitindo generalização para outras formas de constatação.[42]
O status
ontológico dos fatos
Como lançamos mão do conceito de fato,
especialmente de fato empírico, para explicar a correspondência de enunciados
observacionais, importa aqui responder a uma controvérsia entre os que julgam
que fatos empíricos são entidades objetivas que estão no mundo e aqueles que
acreditavam que fatos são sempre entidades abstratas ou coisa que o valha. Em
um influente artigo P.F. Strawson sugeriu que fatos empíricos – o que
certamente deve incluir fatos observacionais – são meros correlatos
pseudo-materiais, não se encontrando, pois, no mundo.[43] Seu
mais incisivo argumento é o de que fatos não são espaço-temporalmente
localizáveis diversamente dos eventos.
Assim, o evento da travessia do Rubicão por Cesar, por exemplo, deu-se no ano 47 a .C.; mas esse fato não
ocorreu no ano 47 a .C.,
pois fatos simplesmente não ocorrem.
Contudo, essa controvérsia é falsa. Uma
maneira fácil de contorná-la foi proposta por John Searle. Para ele nós
precisamos de uma palavrinha para designar aquilo no mundo que torna o
pensamento verdadeiro. A palavra fato está à mão. Assim, por que não usá-la estipulativamente para designar o
fazedor da verdade, seja ele qual for?[44]
Parece-me claro que mesmo esse recurso é desnecessário, sendo ao menos
curioso que os argumentos de J.L. Austin a favor da realidade objetiva dos
fatos tenham sido tão pouco ouvidos.[45] Não
estou querendo dizer que todos os fatos empíricos sejam objetivamente reais. O
fato de que a Lua não é azul não me parece um estado de coisas efetivamente
dado no mundo. Mas quero defender que fatos observacionais devem ser
considerados objetivamente reais. Penso ter nesse sentido o argumento-chave
para regenerar a idéia de que os fatos empíricos podem ser correlatos objetivos
dos pensamentos de modo que fatos empíricos enunciados por sentenças
afirmativas singulares no final das contas possam ser considerados combinações
de elementos dados no mundo. Minha sugestão de princípio é a de que a oposição
fato-evento proposta por Strawson é falsa, pois eventos nada mais são que
sub-espécies de fatos. Melhor dizendo: ‘fato’ é uma palavrinha guarda-chuva que
serve como hiperônimo de uma diversidade de hipônimos como ‘eventos’,
‘processos’, ‘situações’, ‘estados de coisas’. Esses hiperônimos, por sua vez,
dividem-se em duas classes, sendo que entre elas é que ocorre a oposição
divisada por Strawson. Essas duas classes são as de:
1.
Fatos
estáticos (formais ou empíricos): situações, circunstâncias, estados de
coisas...
2.
Fatos
dinâmicos (somente empíricos): eventos, ocorrências, processos,
acontecimentos... [46]
Fatos estáticos definem-se como os que mantém as mesmas relações entre
seus elementos durante todo o período de sua existência. Fatos formais da
matemática e da lógica são estáticos em um sentido trivial: eles não são
temporais. Mas também há muitos fatos empíricos, como o de que o livro está
sobre a mesa, o de que a Terra é redonda e o de que ela gira em torno do sol,
que são estáticos. Mesmo o fato de a Terra girar em torno do sol é estático no
sentido de que a propriedade de girar em torno permanece a mesma.
Já
os fatos dinâmicos são aqueles que se deixam analisar em termos de
configurações de elementos que se alteram durante o período de sua existência
seguindo certa ordem. Por exemplo: o evento da queda das Torres Gêmeas. A
diferença entre o evento e o processo é que o processo é comparativamente mais
duradouro. Assim, a Primeira Guerra Mundial foi um processo desencadeado pelo
evento do assassinato do arquiduque austríaco. E o aquecimento global é um
processo bastante lento. Tudo isso, no entanto, são obviamente fatos: que as
Torres Gêmeas desmoronaram, que a Primeira Guerra se deu e que o aquecimento
global está ocorrendo são fatos empíricos.
A
travessia do Rubicão por César, por sua vez, é um caso especial. Trata-se de
uma expressão ambígua e enganadora: ela é geralmente entendida de forma
ilustrativa como se referindo a um fato social estático; o estado de coisas
instaurado pela entrada do exército de Cesar no território italiano, violando a
lei e forçando o estado romano a declarar guerra contra ele. Raramente a
travessia do Rubicão será entendida no sentido literal, como um fato dinâmico,
o evento físico da travessia, constituído pelas localizações de César em
relação ao Rubicão em t1, em t2, em tn.
Devido à natureza própria dos fatos dinâmicos, deles dizemos não só que
se situam, mas também que eles ocorrem no tempo, enquanto dos fatos
estáticos dizemos apenas que eles se situam no tempo quando nele se encontram.
Com efeito, apenas os fatos dinâmicos têm a propriedade de ocorrer no tempo,
sendo a palavrinha ‘evento’ a mais apropriada para designá-la. Parece, pois,
que sem ter notado que eventos são subespécies de fatos e percebendo apenas que
só dos eventos dizemos que ocorrem no tempo, filósofos como Strawson concluíram
apressadamente que só os eventos estão no tempo, opondo-os aos fatos
atemporais. Mas isso não é verdade, pois que eventos são subclasses de fatos é
sugerido pela usual intersubstitutividade salva-veritate:
não é incorreto dizer que a ocorrência da travessia do Rubicão por Cesar foi um fato e que esse fato se deu
em 47 a .C.
E não é incorreto entendê-lo como um fato dinâmico. Por outro lado, o estado de
coisas social estabelecido pela travessia foi muito mais duradouro, dele
resultando, como é sabido, o fim da república.
Continua, pois, aceitável considerarmos o fato dado no mundo como
constituido de uma variedade de configurações de elementos, a qual pode
corresponder ou não à configuração de elementos criteriais (propriedades ou
sistemas de propriedades singularizadas) demandada pela regra de verificação,
tal como ela se deixa conceber por sujeitos cognitivos. Por isso não parece
implausível a sugestão de que a correspondência depende da constatação de
alguma espécie de isomorfismo estrutural entre as configurações criteriais
concebidas e demandadas pela regra, de um lado, e as configurações de elementos
(combinações de propriedades singularizadas) constitutivos ou indicadores do
fato no mundo, de outro. Essa sugestão, como as outras, é tal que contra ela
poderia ser erguida uma muralha de argumentos cujas respostas não podem ser
aqui buscadas.
Objeções ao princípio da verificabilidade
Quero agora responder às principais objeções
que tem sido feitas contra o princípio da verificabilidade.
1. Objeção da inverificabilidade do próprio
princípio
A primeira e mais notória objeção ao princípio
da verificabilidade é a de que ele é autodestrutivo. Parece que o princípio da
verificabilidade deve ser ou tautológico
ou sintético. Tautológico, ou seja, analítico,[47] ele
não pode ser, pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece
claramente informativo. Além disso, enunciados analíticos são auto-evidentes e
a sua negação é incoerente, o que não é o caso do princípio da verificabilidade.
Por conseguinte ele é sintético. Mas se é sintético, então ele precisa ser
destituído de sentido, posto que quando tentamos aplicar o princípio da
verificabilidade a ele mesmo, descobrimos que é inverificável. Como
conseqüência, o princípio é destituído de significado pelo seu próprio standard.
Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o
princípio da verificabilidade de fato não tem valor-verdade, pois ele não passa
de uma recomendação metodológica, uma prescrição, uma proposta.[48] A.J.
Ayer defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma opção
mais convincente... Todavia, um ouvinte de outra convicção poderia responder
que simplesmente não sente a necessidade de buscar nem optar por coisa
alguma... Essa não é apenas uma resposta ad
hoc. Ela vai contra a idéia wittgensteiniana de que aquilo que estamos
fazendo é tão somente investigar as intuições subjacentes a nossa linguagem natural
em busca dos princípios da gramática conceitual nela embutidos. Por isso, impor
à nossa linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e
confusivo como meio de esclarecer o significado.
Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de Wittgenstein de que tal princípio deveria
exprimir nosso entendimento do que é efetivamente caucionado pela linguagem
cotidiana de modo a formar uma frase
gramatical expressiva de uma condição que precisa ser satisfeita pela
totalidade de nossa linguagem factual.[49] Ora,
uma vez que admitimos que o princípio faz explícitas intuições lingüísticas
pré-existentes tornamo-nos autorizados a pensar que ele é analítico, ou seja,
que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade entre as expressões
‘significado (representacional) de uma frase’ e ‘modo como o seu valor-verdade
é estabelecido’. Assim, tomando p como
uma frase assertórica qualquer, podemos definir o significado cognitivo de p através da seguinte proposição
analítico-conceitual:
(Df.) Significado cognitivo de p = regra de verificação para p.
Contra isso se poderia insistir em objetar que sendo analítico, o
princípio de verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua negação
ser no incoerente, o que não parece ser o caso. Em busca de uma resposta
gostaria de primeiro lembrar uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke. Esse
filósofo distinguiu entre conhecimento
sensitivo (sintético ou empírico) e relações de idéias (verdades
analíticas); as últimas, por sua vez, foram por ele distinguidas como provendo
conhecimento intuitivo ou demonstrativo.[50] As
frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele
relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação
claramente contraditória. Mas nem todas as frases analíticas são intuitivas. A
frase “A soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos (na
geometria euclideana)” exprime conhecimento demonstrativo, mas apesar disso
exprime para Locke uma relação de idéias – uma frase analítica. Podemos também
escolher como exemplos fórmulas matemáticas complexas ou tautologias complexas.
Considere o enunciado “Chove e faz frio ou não chove ou não faz frio”. Esse
enunciado pode não parecer de imediato necessariamente verdadeiro (analítico)
para pessoas não familiarizadas com lógica, mas ele tem a estrutura lógica da
frase “(A & B) ∨ (~A) ∨ (~B)”, cujo caráter tautológico é facilmente demonstrável.
O
conhecimento demonstrativo é o que pode ser fundado em demonstrações cujas
premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, nomeadamente, por
verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente
informativo, ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio
da verificabilidade não poderia ser ele próprio expresso por uma frase
analítica demonstrativa?
Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da
verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema da
geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal , em casos como os dos teoremas da
geometria e das demonstrações lógicas, os caminhos que conduziram a sua demonstração
já foram conscientemente percorridos e é fácil reencontrá-los. Mas não há um
caminho já conscientemente percorrido na demonstração do princípio da
verificabilidade.
Parece
que a chave para uma resposta pode ser encontrada quando comparamos o princípio
da verificabilidade com enunciados que, tal como ele, não parecem à primeira
vista demonstráveis, mas que através de análise se revelam verdades
demonstrativas encobertas. Um caso
simples, que já vimos, é o de sentenças complexas da linguagem ordinária cuja
forma é tautológica. Mas há exemplos mais esquivos, como o do seguinte
enunciado:
Uma
mesma superfície não pode ser vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto).
Esse enunciado não é analiticamente intuitivo.
Na verdade ele até hoje é visto como um exemplo standard do que poderia ser a
expressão de um juízo sintético a priori.[51] Mas
se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro que (i) cores
podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem ocupar a
mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes, parece daí
se deduzir o caráter analítico do enunciado em questão. Eis como
esse argumento pode ser melhor organizado:
1
Duas coisas diferentes não podem ocupar um
mesmo lugar ao mesmo tempo.
2
Uma superfície delimita um lugar.
3
(1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar
uma mesma superfície ao mesmo tempo.
4
Cores são coisas que ocupam superfícies.
5
(3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a
mesma superfície ao mesmo tempo.
6
Vermelho e verde são cores diferentes.
7
(5,6) O vermelho e o verde não podem ocupar a
mesma superfície ao mesmo tempo.
A
mim as premissas 1, 2, 4 e 6 são (em contextos usuais) intuitivamente
analíticas. Por conseguinte, a conclusão também deve ser analítica, ainda que
não pareça.
A
sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da verificabilidade é
uma verdade analítica demonstrativa encoberta, podendo ter o seu caráter
auto-evidente esclarecido através de elucidação de seus pressupostos. Eis uma tentativa
de chegar a isso:
1.
Sentidos cognitivos são
determinados por regras cognitivas (ou seja: são constituidos por regras
cognitivas ou por suas combinações).
2.
Enunciados têm sentidos cognitivos
(descritivos, factuais, representacionais, informativos).
3.
(1,2) Os sentidos cognitivos dos
enunciados dependem de regras cognitivas.
4.
Regras cognitivas são regras
criteriais (baseadas em critérios).
5.
(3,4) O sentido epistêmico do
enunciado depende de regras cognitivas que são também criteriais (regras
cognitivo-criteriais).
6.
O sentido epistêmico de um
enunciado depende dos modos de determinação de sua verdade.
7.
Os modos de determinação da
verdade do enunciado são constituidos por suas regras cognitivo-criteriais.
8.
(5,6,7) O sentido epistêmico do
enunciado depende de regras criteriais que são modos de determinação de sua
verdade.
9.
As regras cognitivo-criteriais
determinadoras da verdade do enunciado constituem aquilo que podemos chamar de
sua regra de verificação.
10.
(7,8) O sentido epistêmico do
enunciado é constituido por sua regra de verificação.
Para
mim as premissas 1, 2, 4, 6 7 e 9 (que é definicional) soam mais claramente
analíticas do que 10. Com efeito, elas se mostram claramente analíticas se
pensarmos que os sentidos devem ser obviamente regras ou combinações de regras,
se considerarmos que enunciados têm obviamente sentidos epistêmicos dependentes
de critérios, sendo as suas regras de significação regras cognitivo-criteriais,
as quais não podem ser outras que não as regras determinadoras do valor-verdade
desses enunciados... Muitos filósofos da linguagem discordarão. Mas como não
posso me estender mais nesse argumento prefiro evadir-me com a escusa de um
personagem de Borges: “São as vossas impurezas que vos proibem de reconhecer o
esplendor da verdade”.
Uma objeção sofisticada é a proveniente da
generalização da tese de Duheim feita por W.V-O. Quine. Segundo Quine, “nossos
enunciados sobre o mundo externo não fazem frente à experiência sensível
individualmente, mas em um corpo corporativo”.[52] A
implicação anti-verificacionista disso é clara: como o que é verificado é todo
um sistema de enunciados, e nunca um enunciado soladamente considerado, não faz
sentido pensar que um enunciado isolado possui uma regra de verificação
distintiva ou intrínseca, que possa ser identificada com o seu significado.
Parece-me
claro que se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de que nenhum
enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do sistema é
correta. Ela constitui o que poderíamos chamar de um holismo formal ou estrutural.
Mas a conclusão insinuada por Quine de que isso destrói o verificacionismo – ao
implicar o que poderíamos chamar de um holismo
verificacional ou funcional – nada
tem de segura, uma vez que nesse último caso precisaremos levar em conta a
variedade de formas de interdependência vigente entre os enunciados que formam
o sistema.
Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é
retirada do fato bem conhecido pelos filósofos da ciência, de que enunciados
observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses auxiliares para poderem ser verdadeiros. In abstracto isso é correto; afinal, não
há dúvida q ue nossas crenças são
interdependentes. Mas se desse holismo formal ou abstrato se segue um holismo
verificacional no nível mais concreto é outra questão. Em meu juízo, a tese de
Quine é equívoca porque embora no final das contas o sistema de enunciados
realmente deva se confrontar como um todo com a realidade, os seus enunciados
não se confrontam nem conjuntivamente nem simultaneamente com a realidade.
O
exemplo da descoberta dos satélites de Netuno por Galileu pode ser aqui útil.
Galileu descobriu a verdade do enunciado: (a) “Júpiter tem quatro luas” pela
observação telescópica. Seus contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados
da observação telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas
filósofos da ciência hoje admitem que eles não estavam de todo destituídos de
razão. Pois uma assunção auxiliar para a aceitação da verdade do enunciado
“Júpiter tem quatro luas” é que o telescópio seja um instrumento confiável. Ao
aperfeiçoar o telescópio Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do
telescópio, segundo a qual o seu poder de ampliação resulta do seu comprimento
focal dividido pela distância focal da ocular. Mas para que essa assunção
auxiliar fosse garantida, faltava ainda no tempo em que Galileu construiu
o seu telescópio, a comprovação de outras assunções auxiliares, como as que
constituem as leis da óptica.[53]
Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i/sen
r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida por Snell, em 1626, enquanto as
observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas
outras hipóteses auxiliares assumidas, a verificação feita por Galileu de que o
planeta Júpiter tem quatro luas pode ser apresentada como resultado do seguinte
argumento indutivo:
1.
Observação telescópica de quatro pontos
luminosos orbitando Júpiter.
2.
(Lei da ampliação do telescópio)
3.
((sen i / sen r = n2/n1)) .
4.
Conclusão: O planeta Júpiter tem quatro
luas.
Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça
secundariamente o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria bem mais o
argumento. Da consideração da inclusão dessas e de outras premissas
constitutivas de hipóteses auxiliares comprovadas, o holista verificacional
conclui que a conclusão 4 não possui uma regra de verificação independente,
constitutiva de seu sentido.
Mas
há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que esses
enunciados não são simultaneamente verificados. O enunciado 4 foi verificado
como conseqüência direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se
realizou pela observação diárias que Galileu fez das variações das posições dos
quatro pontos luminosos alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se
deu simultaneamente à verificação dos enunciados 2 e 3. Na verdade, a
inferência da conclusão 4 com base em 1 em boa medida pressupõe uma anterior verificação da premissa 2, que por sua vez
em alguma medida pressupõe a
verificação da premissa 3 (o que é indicado pelos parênteses). Ora, por serem
anteriores e pressupostas, torna-se claro que as verificações de 2 e 3 são
independentes da verificação de 4 por 1 e vice-versa.
Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o
enunciado observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de
raciocíno própria do procedimento verificacional não é
O
A1
+ A2... + An
Logo P
Mas sim:
O
(pressupondo
a prévia verificação de A1 + A2... + An)
Logo P
Essa pressuposição de uma verificação prévia das hipóteses auxiliares é o que em meu juízo faz toda a
diferença, pois permite-nos separar a regra de verificação de P, que associa P mais
diretamente às observações constitutivas de O, das regras de verificação das
hipóteses auxiliares, que são assumidas como já tendo sido aplicadas.
Além disso, podemos claramente distinguir o que verifica cada hipótese
auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser verificada
através de simples medições empíricas; e a lei da refração foi estabelecida com
base em medições empíricas da relação entre variações do ângulo de incidência
da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade que em um nível
formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da verificação de
outros, no nível dos procedimentos cognitivos concretos a verificação dos
enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que nos permite isolar os
procedimentos verificacionais inerentes ao próprio enunciado em questão e
identificá-los com aquilo que estamos querendo dizer com ele. Ou seja: o que
nos permite distinguir modos de verificação específicos é que os diferentes
enunciados auxiliares precisam ser verificados anteriormente ao procedimento
verificacional que conduz à conclusão de modo a servirem de pressupostos para a
inferência. Isso nos permite distinguir e individuar o procedimento através do
qual cada enunciado é cognitivamente verificado, o modo (regra) de verificação
de cada enunciado, o que torna o holismo inofensivo como crítica ao
verificacionismo semântico. Por abstrair esse ponto, o argumento de Quine
produz a impressão equívoca de que a própria verificação de cada enunciado
individual é holística e de por isso o significado do enunciado não pode ser
identificado com uma regra de verificação.
Finalmente, como cada enunciado tem um
sentido que lhe é próprio, torna-se outra vez razoável identificar o sentido do
enunciado com o seu modo de verificação, posto que ambos são individuados pelo enunciado e não pelo sistema de
enunciados. A conclusão inescapável é que o holismo verificacional não se
sustenta, pois a simples admissão do holismo formal, i.e., do fato dos enunciados estarem sempre em alguma medida inferencialmente
enovelados uns aos outros, não é suficiente para nos fazer concluir que as suas
regras verificacionais não possam ser distinguidas umas das outras de modo a
serem identificadas com os significados cognitivos de seus respectivos
enunciados.
O que
esse argumento sugere é que Quine estende indebitamente um holismo formal
perfeitamente justificado às regras de verificação, quando na verdade esse
holismo forma, com elas, apenas um pano de fundo sobre o qual elas se
ressaltam. Isso produz a ilusão de que os enunciados não possuem significados
próprios, pois o suposto significado-verificação aparece como se fosse uma
nuvem dispersa no sistema de enunciados, não podendo enquanto tal diferir de um
para outro enunciado. Contudo, um exame concreto dos procedimentos
verificacionais, tal como eles concretamente ocorrem, nos mostra que as regras
de verificação são distinguíveis umas das outras precisamente na mesma medida
dos significados dos enunciados correspondentes, o que outra vez aconselha a correlação entre o significado
epistêmico do enunciado e a sua regra de verificação.
3. O
problema da assimetria existencial-universal
Outra objeção é a de que o princípio da
verificabilidade só se aplica conclusivamente a frases existenciais, mas não a
frases universais. Para verificarmos um enunciado existencial como “Algumas
peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça
de cobre que se expande ao ser aquecida. Mas para verificarmos conclusivamente
um enunciado universal como “Todas as peças de cobre se expandem ao serem
aquecidas”, precisaríamos vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro
e em seu passado, o que é impossível. É verdade que a universalidade absoluta é
uma ficção e que, quando falamos em enunciados universais o que temos em vista é
um certo universo de discurso. Mas apesar disso o problema permanece. Pois como
o próprio caso da expansão de metais exemplifica, o universo de discurso
costuma ser muito mais amplo do que tudo o que somos efetivamente capazes de experienciar,
impossibilitando uma verificação conclusiva. Adicionando a isso o fato de que
as leis científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu a
alguns perguntar se não seria melhor admitirmos o sentido epistêmico das frases
universais como sendo constituído por regras de falsificação, ao invés de
regras de verificação; seria essa a resposta correta?[54]
Penso que não. A razão é no fundo a mesma pela qual não falamos de uma força
desassertórica da proposição, nem de uma regra de desidentificação do nome ou de
uma regra de desaplicação do predicado. Podemos, por exemplo, falsificar o
enunciado “Todos os corvos são pretos” com a verificação da frase “Esse corvo é
albino”. A regra de verificação desse último enunciado é tal que, se aplicada,
falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”. Mas se o significado do
enunciado universal pode ser também uma regra capaz de falsificá-lo, e a regra
de verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é o que falsifica o enunciado
“Todos os corvos são pretos”, então parece que devemos admitir que esse último
enunciado significa o mesmo que “Esse corvo é albino”. Mas isso é absurdo: a
regra de verificação para corvos albinos não tem nada a ver com o significado
da afirmação de que todos os corvos são pretos.
Em
que sentido podemos então falar de uma regra de falsificação? Para chegarmos a
uma resposta devemos nos lembrar que a regra de verificação é o significado
epistêmico da frase enunciativa, aquilo que Frege chamava de o pensamento por ela expresso, o seu
conteúdo proposicional. Ora, como veremos no próximo capítulo, a verdade
costuma ser admitida como sendo uma propriedade do pensamento ou conteúdo
proposicional. Nesse caso, a verdade também deve ser propriedade da própria
regra de verificação. Como a regra de verificação verdadeira é a que é
aplicável, e a regra de verificação falsa é a que é inaplicável, parece que a
verdade é (entre outras coisas) a propriedade de uma regra de verificação de
ser aplicável, enquanto a falsidade deve ser a ausência dessa propriedade. Se
esse raciocínio estiver certo, torna-se vazia a questão de se saber se o que
está em causa é uma regra de verificação ou de falsificação: todas as regras em
questão são realmente de verificação, dado que a falsificação não é mais do que
uma ausência da propriedade da regra de verificação de se ter demonstrado
aplicável. Eis porque também não existe regra de desidentificação para o termo
singular, nem regra de desaplicação para o termo geral: a desidentifacação e a
desaplicação nada mais são do que a respectiva ausência de aplicação das
respectivas regras. Se formos coerentes com as assunções feitas até agora,
parece que devemos concluir que o princípio da verificabilidade é aquele pelo
qual tornamos verdadeira a própria regra de verificação, o procedimento
verificacional constitutivo do sentido epistêmico da frase enunciativa, e que esse
procedimento consiste na demonstração de sua efetiva aplicabilidade. Mas quando
falamos de uma regra de falsificação de um enunciado, tudo o que podemos ter em
mente é uma regra de verificação de outro enunciado, cuja aplicação falseia o
primeiro, de modo que, seja o que for que fizermos, acabaremos sempre
terminando com uma regra de verificação. (No caso mais simples, a regra que
falsifica ~p é a regra que verifica p.)
Essa
espécie de argumento leva-nos a admitir que o significado do enunciado
universal seja a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece inevitável o
retorno do problema da inconclusividade da verificação desses enunciados. Não é
necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que a objeção da inconclusividade
é falsa, emergindo do fato de que nos enganamos quanto ao reconhecimento da efetiva
forma lógica dos enunciados universais. Basta um breve exame dos exemplos para se
evidenciar que eles são simultaneamente probabilistas e conclusivos. Considere
outra vez a frase:
O
cobre se expande ao ser aquecido.
A sua
forma não é:
Afirmo
que é absolutamente certo que todas
as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas,
onde o ‘absolutamente certo’ significa ‘sem
possibilidade de erro’. Essa forma seria apropriada para verdades formais como
Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,
pois
aqui não pode haver erro (exceto erro procedimental, o que deixamos fora de
consideração). Mas essa forma não é apropriada a verdades empíricas sobre as
quais não vige a certeza resultante das próprias convenções conceituais
adotadas. A forma lógica da frase em questão é outra. Ela é a da certeza
prática expressa por
Afirmo
que é praticamente certo que toda
peça de cobre se expande ao ser aquecida.
Aqui ‘praticamente certo’ significa ‘com uma
probabilidade suficientemente elevada para que a possibilidade de erro possa
ser negligenciada’. Se aceitarmos essa paráfrase, uma frase como “O cobre se
expande ao ser aquecido” se torna conclusivamente verificável, pois podemos
claramente encontrar evidências indutivas protegidas por razões teóricas que
tornem de modo conclusivo praticamente certo que todas as peças de cobre se
expandem ao serem aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal empírico
não é “├Todo S é P” (usando o sinal fregeano de asserção), mas:
Ð
praticamente certo que todo S é P.
Mas enunciados com essa forma são conclusivamente
verificáveis. Conseqüentemente, o significado da frase universal também pode
ser a sua regra de verificação.
Outra objeção comum é a de que a regra de
verificação de frases com conteúdo empírico exige tomarmos como ponto de
partida observações diretas e intersubjetivamente possíveis
dos fatos. Contudo, muitos enunciados não dependem da observação direta para
serem verdadeiros, como é o caso de “A massa do elétron é de 9,109 vezes 10 Kgs
elevado à trigésima primeira potência negativa”. Isso nos força a admitir que
muitas regras de verificação são indiretas.
Como notou W.G. Lycan[55], se
não fizermos isso seremos conduzidos a um instrumentalismo grotesco, no qual
aquilo que é real deve ser reduzido ao que é intersubjetivamente observado, não
existindo mais coisas como eléctrons e suas massas... Mas se pensarmos assim,
como decidir quais são as observações diretas e quais as indiretas? Não se
trata de uma dessas distinções desesperadamente confusas?
Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa
formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com
exigências impróprias. Nossas frases assertóricas são proferidas em práticas
lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se
distinguir a observação direta da observação indireta deve ser sempre relativo a uma prática lingüística que estamos tomando
como modelo. Podemos ser confundidos pelo fato de que nas práticas
cotidianas de observação de objetos físicos a verificação direta costuma ser
considerada (i) aquela resultante da observação virtualmente interpessoal de
objetos sólidos, opacos, de tamanho médio, suficientemente próximos, vistos sob
iluminação adequada por observadores em condições normais, com os sentidos
desarmados etc. Por ser essa a forma primeira e mais natural de observação, ela
tende a ser vista como um modelo standard
de observação direta, a ser contrastado com, digamos, a observação indireta realizada
com base em sintomas perceptualmente acessíveis, como a que é feita através de
instrumentos óticos, através de espelhos etc. Mas é um erro tentar generalizar
esse contraste para outras práticas linguísticas.
Para esclarecer esse ponto, quero considerar primeiro (ii): a prática
linguística do bacteriologista. Nessa prática o que está em causa é a descrição
de bactérias vistas ao microscópio. Nela, ver bactérias ao microscópio é o
modelo da observação e verificação diretas.
Mas o bacteriologista pode dizer que verificou indiretamente a presença de um
vírus devido a alterações que ele constatou nas células por ele vistas ao
microscópio, usando como modelo de observação direta a observação microscópica.
Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista são todas indiretas, a não
ser que tenha em mente a forma standard de observação, o que não seria o caso usual.
Contudo, até esse caso é possível, conquanto o modelo de comparação fique
claro.
Se
a prática for (iii) a da pesquisa paleontológica, então a descoberta de restos
fósseis será considerada uma maneira direta
de se verificar a existência de certos seres vivos em um passado remoto. Embora
também aqui se possa falar de observações indiretas em contraste com a observação
direta de animais pré-históricos opacos e de tamanho médio próximo a nós, há
pouco sentido nisso, uma vez que essa possibilidade se encontra descartada. Em
geral é por comparação e contraste com o seu modelo específico, que é o do
estudo dos restos fósseis, que o paleontólogo geralmente fala de verificações
indiretas. Assim, se pode sugerir que em certo local viverm hominídeos com base
no fato de ter encontrado lesões provocadas instrumentos em ossadas fósseis de
animais, sendo essa constatação resultante de uma verificação indireta na
prática paleontológica: indireta por constrast com que seria a descoberta de restos
fossilizados de hominídeos. Só teremos dúvida se não tivermos claro que modelo
de comparação está sendo usado.
Se
a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de uma
frase pelo próprio falante será dita direta, ainda que subjetiva, enquanto que
a determinação da verdade por terceiros, com base no comportamento, será geralmente
dita indireta (ao menos por não-behavioristas). Não há aqui, aliás, uma maneira
fácil de comparar com a prática de observação de objetos físicos de tamanho
médio para considerar se a verificação é direta, pois elas pertencem a domínios
verificacionais muito diversos.
A conclusão é a de que não há dificuldade real
em se distinguir entre verificações diretas e indiretas, conquanto tenhamos
clareza sobre a prática lingüística com relação a qual essa verificação está
sendo considerada. Para que os falantes se tornem capazes de alcançar acordo
sober se a verificação é direta ou indireta, basta que eles compartilhem entre
si o modelo de comparação da prática ou circunstância na qual o proferimento está
sendo avaliado.
5.
Contra-exemplos empíricos
Outra espécie de objeção diz respeito a
enunciados que possuem sentido, mas que não parecem possuir regra de verificação.
Em minha opinião, esse tipo de objeção demanda consideração caso a caso.
Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, dito em uma
circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de se
demonstrar corajoso. Se adicionarmos ao exemplo a assunção de que o único meio de verificar se João era corajoso é pela observação de seu
comportamento, esse enunciado se torna logicamente inverificável. Sendo assim,
segundo o princípio da verificação esse enunciado não tem significado. Contudo,
ele parece ser perfeitamente significativo!
A
resposta é que o enunciado “João era corajoso”, nas circunstâncias consideradas,
apenas aparenta ter significado. No caso, trata-se de uma frase que possui um
sentido gramatical, dado pela combinação de um nome próprio não vazio com um
predicado. Mas não há critério para aplicarmos ou não esse predicado. Assim, o
enunciado não tem função na linguagem e nada é capaz de dizer. Ele faz parte do
conjunto de enunciados tais como “O universo duplicou de tamanho durante essa
noite” e “O mundo inteiro surgiu cinco minutos atrás”. Esses enunciados apenas
aparentam ter algum sentido epistêmico, pois possuem sentido gramatical e são
capazes de sugerir imagens e produzir ilações em nossas mentes. Mas a rigor
eles nada dizem.
Wittgenstein considerou um caso desse gênero em Sobre a Certeza. Considere a constatação “Você está diante de mim
agora”, dita em circunstâncias normais por uma pessoa que se encontra diante de
outra. Ele sugeriu que tal proferimento apenas aparenta ter sentido, dado que
somos capazes de imaginar situações nas quais ele teria algum uso, alguma
função na linguagem, por exemplo, numa situação em que estivesse tão escuro que
fosse difícil ao interlocutor identificar o falante.[56] Aplicando
essa sugestão ao caso do enunciado “João é corajoso” somos facilmente capazes
de imaginar situações contrafactuais nas quais ele teria ou não teria
demonstrado coragem, ou de pensar nisso como uma possibilidade. Nas
circunstâncias supostas, porém, o enunciado não possui o menor sentido.
É
preciso observar que mesmo frases contextualmente independentes, como “Leo ama
Lia”, que encontro por acaso escrita em uma tira de papel jogada na rua, no
sentido que estamos considerando, é em si mesma e para mim, destituída de
significado. Ela tem significado gramatical: sei que ela contém dois nomes
próprios sintaticamente associados etc. Mas não sei de que Leo e Lia ela trata.
Não conheço nada das regras de indentificação para esses nomes, nem tenho uma
pista sobre como formar uma regra de verificação para o enunciado. A frase não
possui um sentido ou conteúdo representacional resgatável.
O
que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também é
necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de Java
viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado foi plenamente
verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de datação. A
verificação observacional direta de acontecimentos passados é fisicamente e
praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de verificação cuja
aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão, nem sequer do que
queremos dizer com a frase.
Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa pedra
sentou-se um velho barbudo há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou
mais de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não
há nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como
se diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e
provavelmente não é sequer fisicamente realizável. Mas é difícil admitir que
enunciados empíricos cuja verificabilidade é apenas lógica sejam verificáveis
no sentido forte do termo e que, por conseqüência, possam ter algum sentido
epistêmico. Parece que a distinção entre verificabilidade lógica e empírica
(física, prática) é uma distinção entre níveis de verificabilidade,
correspondente a dois níveis de significação, o último pressupondo o primeiro.
Se a verificabilidade for apenas lógica, o enunciado empírico não possui um
sentido cognitivamente relevante, pois não sabemos o que fazer com ele. Ele não
é capaz de cumprir com a sua função própria, que é a de representar como as
coisas atualmente ou possivelmente são.
Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a
diferença de que a verificação direta é fisicamente possível. O proferimento
“Daqui a 7 dias irá chover” é indiretamente verificável pela metereologia, mas
será diretamente verificável em uma semana. O enunciado “Daqui a cerca de onze
bilhões de anos o sol irá se expandir e engolirá Mercúrio” é uma frase que
podemos ao menos indiretamente verificar com base no que sabemos do destino de
estrelas como o sol. Já para uma frase como “O primeiro bebê a nascer em Montes Claros em
2040 será do sexo feminino” temos uma regra de verificação direta que só poderá
ser aplicada no futuro, o que nem por isso a invalida enquanto tal. Esses
enunciados são não só logicamente, mas também fisicamente e em suficiente
medida praticamente verificáveis; o primeiro indiretamente, o segundo
diretamente, mas em um tempo futuro. Vemos que não há uma fórmula geral e única
para o procedimento verificacional. Parece que a espécie de regra de
verificação exigida varia com o enunciado, de acordo com a sua inserção na
prática lingüística na qual ele é realizado, sendo geralmente a confusão entre
casos pertencentes a práticas diversas aquilo que pode levar-nos a crer que
existem enunciados que possuem sentido epistêmico e que apesar disso são
inverificáveis.
5.
Contra-exemplos formais
Pode-se também considerar a aplicação da tese
verificacionista a enunciados formais, como notamos ao considerar a relação
entre verificação e correspondência. Nesse caso a regra verificacional é o
procedimento de prova, que quando instituído verifica o enunciado,
acrescentando-lhe sentido epistêmico dentro do sistema formal no qual é
considerado. Nesse caso, como já notamos, dispor da regra de verificação já é o
mesmo que aplicá-la, dado que os critérios a serem satisfeitos são os próprios
axiomas do sistema.
Um
muito falado contra-exemplo ao verificacionismo aplicado a enunciados formais é
a conjectura de Goldbach. Essa conjectura pode ser enunciada como
g =
Todo número inteiro par acima de dois resulta da soma de dois números primos.
A objeção é a de que essa conjectura é plena
de significado epistêmico, embora nunca se tenha conseguido prová-la, embora o
procedimento verificacional formal para g
não tenha sido ainda encontrado. Logo, o seu significado não pode ser uma regra
de verificação!
A
resposta a esse argumento é simples e advém da observação de que a conjectura
de Goldbach é apenas uma conjectura. Ora, o que é uma conjectura? Não é uma
afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da plausibilidade de algo.
A conjectura de Goldbach tem a forma
É
plausível que g.
Mas “É plausível que g”, melhor dizendo,
[Afirmo que] é plausível que g,
ou ainda (usando o sinal fregeano da asserção)
“├é plausível que g”, é algo
diferente de
Afirmo que g
ou “├g”.
Ora, é claro que a regra de verificação do reconhecimento da plausibilidade de
algo é muito diferente da regra de verificação da sua afirmação. Se nosso caso
fosse o de “Afirmo que g”, a saber,
uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra de verificação seria
realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso caso é
[Afirmo que] é plausível que g,[57]
no qual a regra de verificação consiste tão
somente em um procedimento verificacional que apenas sugere que g possa ser
provada. Ora, esse procedimento verificacional, essa regra, de fato existe. Ela
consiste simplesmente em considerar exemplos de números pares aleatoriamente dados
e verificar se eles podem resultar na soma de dois números primos. E essa regra
verificacional não só existe como tem sido aplicada até hoje sem exceção a
todos os números inteiros pares considerados, o que fornece grande parte da
base que temos para formular a conjectura de Goldbach. Se uma exceção tivesse
sido encontrada a conjectura teria sido provada falsa, pois “├~g” é incompatível com
[Afirmo que] é plausível que g.
Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. O que não é
verificável nem foi verificado é a afirmação de g. Essa afirmação não possui realmente sentido epistêmico, posto
que ainda não dispomos de um procedimento matemático que a verifique. O erro
consiste na confusão do sentido epistêmico de uma suposição com o de uma
afirmação, de uma conjectura com um teorema. Embora seja possível objetar que
em “É plausível que g”, g comparece e g precisa afinal ter sentido apesar de inverificável, podemos
replicar que o g que aqui comparece
tem um sentido meramente gramatical e não, para além disso, um sentido
epistêmico.
Note-se que a conjectura de Goldbach tanto pode ser demonstrada
verdadeira como falsa. Ela será verdadeira se for encontrada uma demonstração a
partir de verdades intuitivas que para nós funcionam como axiomas do cálculo.
Ela será falseada, demonstrada como sendo não-verificável, se for encontrado um
único contra-exemplo. A conjectura será falseada pela não-aplicação da regra
que nos manda encontrar sempre a soma de dois números primos de modo a obter o
número par em questão. A
exceção à regra, se encontrada, torna a afirmação de plausibilidade impossível.
Um caso contrastante é o do último teorema
de Fermat, que chamarei de f. Segundo
esse teorema
f =
não existem três números positivos x,
y e z, que satisfazem a equação “xⁿ
+ yⁿ = zⁿ” se n for superior a
2.
Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995
Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém poderia aqui
objetar que mesmo antes de sua demonstração f
já era chamado de “o teorema de Fermat” e que portanto fazia sentido como
teorema mesmo sem que tivéssemos uma demonstração...
Essa
objeçãos seria, não obstante, falha. Pois com ela se esquece que ‘o teorema de
Fermat’ é apenas uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema equivocamente, somente devido ao fato de que antes de
sua morte Fermat escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia
colocá-la no papel, já que a margem de seu caderno era muito estreita para
cabê-la. (Hoje sabemos, aliás, que essa observação de Fermat não pode ter sido
verdadeira, posto que a matemática da época não lhe provia de meios para
demonstrar a sua conjectura.) Seja como for, a verdade é que f era uma conjectura da forma
[Afirmo que] é plausível que f,
até que Wiles a demonstrou, só depois disso
tornando-se realmente um teorema. Quando dizemos “[Afirmo que] f” ou ├f, o significado completo disso (que muito poucos realmente
conhecem) deve incluir a demostração encontrada por Wiles, que nada mais é do
que a aplicação de uma complexa combinação verificacional de regras.
Há
muito mais a ser dito sobre essas questões, que importam pouco para o objetivo
desse livro. Espero, porém, que essas poucas considerações sejam suficientes
para convencê-lo de que o princípio da verificabilidade se deixa plausivelmente
reabilitar se for aproximado através de uma metodologia que não viole a
tecitura sutil da linguagem natural.
Ceticismo sobre o entendimento de regras
Wittgenstein expôs um enigma cético sobre a
interpretação de regras.[58] Esse
enigma foi retomado por Kripke sob a forma de um paradoxo cético radical que
sabota a possibilidade de seguirmos regras e que – admitindo a ideia de que o
significado é determinado por regras – parece sabotar também o conceito de
significado.[59]
Ele nos interessa aqui porque se ele fosse correto seria um erro admitir que
regras verificacionais sejam responsáveis pelo sentido epistêmico dos
enunciados.
Wittgenstein introduziu seu enigma através de so seguinte exemplo.
Digamos que uma pessoa aprenda a regra de adicionar 2 a números naturais. Se
lhe é apresentado o número 6 ela acrescenta 2 e escreve o número 8. Se lhe é
apresentado o número 743 ela acrescenta 2 escrevendo o número 745. Mas digamos
que lhe seja apresentado pela primeira vez um número maior, o número 1.000, e
que ela então escreva o número 2.004. Se perguntarmos por que ela fez isso ela
responde que havia entendido que deve acrescentar 2 até 1.000, 4 até 2.000, 6
até 3.000 etc. O que o exemplo demonstra é que uma regra pode ser sempre
interpretada de uma maneira diversa daquela que se teve a intenção de ensinar,
por mais detalhes que sejam acrescentados. A consequência disso é que não
podemos estar seguros que seguiremos nossas regras de modo semelhante no futuro,
que possamos, por exemplo, coordenar nossas ações com base nelas. E como o
significado depende do seguimento de regras, não podemos mais estar certos
sobre o significado de nossas expressões, não podemos mais estar certos, por
exemplo, sobre o significado de ‘adicionar mais dois’
Nem
Wittgenstein nem Kripke apresentam uma resposta satisfatória. Ambos tentam uma
solução humiana do tipo “não há uma justificação racional, mas nosso hábito nos
faz inevitavelmente acreditar...” Assim, Wittgenstein escreve que seguir uma
regra é uma prática e que seguimos
regras cegamente... E Kripke sugere que seguimos regras como fato resultante de
nossas disposições sociais e que Wittgenstein percebeu que nossos enunciados
seguem condições (regras) de asserção e não condições (regras) de verdade. Mas
o simples fato de termos até agora coordenado nossas práticas segundo regras não
implica que essa coordenação precise
ser assim e nem mesmo que deva continuar assim. Mas é precisamente esse
ponto que está em questão.
De
minha parte creio que há aqui demasiado barulho por nada e que a resposta certa
para o “paradoxo” não foi adequadamente percebida nem por Wittgenstein nem por
Kripke. A questão é que nós aprendemos as regras de modo similar simplesmente
porque compartilhamos de uma natureza
humana semelhante, que nos faz interpretar as regras que nos são ensinadas
de uma maneira muito parecida, senão idêntica.[60] Alguém
poderia perguntar então o que garante essa similaridade de natureza. A resposta
óbvia é que ela resulta do processo de seleção natural que há muito harmonizou
a natureza humana, eliminado indivíduos dotados de disposições muito diversas
na interpretação das regras que usualmente compartilhamos. A natureza humana
suficientemente similar, adicionada ao modo de vida comum nela radicado,
leva-nos a compreender de modo bastante parecido as regras semânticas que nos
são ensinadas. Basta então assumirmos a continuidade dessa natureza humana
similar no futuro para termos devolvida a confiança de que não demonstraremos
variações inesperadas em nossa interpretação das regras semânticas que nos são
ensinadas!
A interpretação comum de nossas regras só
parece enigmática quando insistimos em ignorar as implicações da teoria da
evolução. Quando isso acontece nós tendemos a nos perguntar (como Wittgenstein
e Kripke) como é possível que essas regras sejam interpretadas e aplicadas de
maneira similar por outros seres humanos. De igual maneira, filósofos modernos
pré-darwinianos de Kant a Fichte se sentiram impressionados com o fato nossas
mentes serem tais que somos capazes de nos entender uns aos outros, apelando ao
Deus criador como a fonte geradora da harmonia entre as mentes humanas no
entendimento das coisas. O enigma sobre a compreensão de como seguir uma regra
é gerado pela mesma velha perplexidade sob uma nova roupagem.
O semântico como abstração do psicológico
Tudo o que até agora consideramos sob a forma
de abstrações semânticas pode ser também enfocado sob um ponto de vista
psicológico. Os critérios podem ser objetivamente dados. Mas como sujeitos representacionais
podemos sempre conceber os elementos
criteriais, mesmo na ausência de sua existência concreta. Podemos seguir regras
criteriais instanciando-as cognitivamente, caso em que temos as cognições,
representações, idéias de propriedades, objetos ou estados de coisas. Podemos ainda entender a intensão com ‘s’ como
expressão semântica de uma intenção psicológica, enfatizando a direcionalidade do
sentido.[61]
E nossas cognições, representações, idéias, intenções, podem ser consideradas
como instanciações psicológicas de significados epistêmicos, de regras
semântico-criteriais, de conteúdos semânticos, de intensões com ‘s’.[62]
Vemos,
pois, que o elo intermediário entre palavras e coisas se deixa dizer de maneiras
diferentes, quer sob o modo psicológico, quer sob o modo semântico, em um
entrelaçado de relações. Ou seja: sentidos ou significados são regras de uso;
sentidos epistêmicos são regras de uso cognitivas, que quando analisadas em
termos de suas condições de satisfação podem ser chamados de regras criteriais.
Os sentidos referenciais das frases assertóricas são regras de verificação que
se aplicam quando configurações criteriais por elas requeridas são satisfeitas,
ou seja, quando as configurações criteriais concebidas são demonstradas como
possuindo igual conteúdo que a configurações criteriais efetivamente dadas no
mundo, as quais são constituintes do fato (a condição de verdade) representado
pela frase assertórica, ou pelo menos são tais que nos permitem inferir esse
fato. Quando isso acontece temos a correspondência do conteúdo representacional
com o fato, a saber, a verdade do conteúdo epistêmico da frase. E o ato
cognitivo em questão é a tomada de consciência da aplicabilidade de uma variedade
de relações inferenciais dependentes da existência do fato representado.[63]
Nisso tudo é importante mantermos clara a
distinção entre o semântico e o psicológico. O semântico é convencionalmente
fundado e nesse sentido necessário; o psicológico é espaço-temporalmente dado e
por isso contingente. Mas o semântico não existe fora de suas instanciações
cognitivas. Ele é constituído de estruturas de base convencional que se
instanciam em atos mentais, só que são consideradas em abstração desses
estados. Supor que o semântico possa existir sem o psicológico é, obviamente,
hipostasiar a sua natureza.[64]
[1] Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, parte 1, sec. 1.
[2] A concepção foi ironizada por Gilbert Ryle
como a teoria ‘Fido-Fido’ do significado. Ver seu artigo “The Theory of
Meaning”.
[3] Para uma defesa atual do referencialismo
semântico, ver Nathan Salmon: Frege’s
Puzzles.
[4] Bertrand Russell:
“The Philosophy of Logical Atomism”, pp. 194-5, 201-2. Como notou Mark Sainsbury, a concepção referencialista
do significado é pelo menos implicada em certos textos de Russell (M.
Sainsbury: Russell, pp. 15-16). A
mesma posição foi aceita de forma explícita pelo primeiro Wittgenstein: “O nome
significa seu objeto. O objeto é seu significado”. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.203.
[5] Essa objeção já aparece na discussão em “The
Philosophy of Logical Atomism”, p. 203. Ernst Tugendhat chega a uma conclusão
similar: um termo singular tem a função de especificar um objeto, mas se a
consciência se refere somente a um sense
datum presente, o resultado é que a
palavra ‘isso’ não tem mais nenhuma função. Ver Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p.
382.
[6] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen,
seção 43.
[7] A linguagem não possui apenas uma função
comunicacional, mas também organizativa,
no sentido de que a usamos também para pensar, para organizar nossas idéias e
planejar nossa ação. À primeira vista a identificação do significado com o uso
não parece fazer juz à função organizativa. Mas não precisa ser assim. Se penso
que a Torre Eiffel é de metal, estou usando esse nome referencialmente, em um
diálogo comigo mesmo, ou seja, em pensamento.
[8] Wittgenstein: Über Gewissheit, seções 61-62.
[9] Ver Wittgenstein: Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis,
p. 168, ver também Wittgenstein’s
Lectures: Cambridge 1930-1932, pp. 96-97.
[10] Ludwig
Wittgenstein: The Blue and the Brown
Books p. 57.
[14] Bronislaw Malinowski:
“The Problem of Meaning in Primitive Languages”, publicado como suplemento em C.K. Ogden & I.A.
Richards: The Meaning of Meaning (1923),
um livro lido por Wittgenstein.
[15] Ver meu artigo “Wittgenstein e a gramática do
significado” no livro A Linguagem Factual. Meu pressuposto interpretativo é o de
que Wittgenstein não estava fazendo tentativas de explicar a natureza do
significado, que sempre acabavam se demonstrando fracassadas, sendo então
substituídas por outras, em uma sequência de pouco felizes tentativas
aleatórias, como alguns intérpretes parecem acreditar. O que ele fez foi
desenvolver diferentes sugestões aproximativas, cada qual abordando a mesma problemática
sob uma nova perspectiva, sendo tais sugestões em grande medida complementares
entre si. Sob esse ponto de vista é possível encontrar uma continuidade nas
concepções semânticas de Wittgenstein, que vai dos Livros de Notas 1914-1916 até Sobre
a Certeza.
[16] Ver Sigmund Freud: Die
Traumdeutung, cap. 7. (Que
existem dois modos de transgressão já foi notado antes por Anthony Kenny em sua
introdução à filosofia de Wittgenstein.)
[19] Assim eu interpret
a última frase seção 126 das Philosophische
Untersuchungen. Ver meu artigo ‘Philosophy as Protoscience’, in Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions.
[20] E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propädeutik, pp.
235-6, e Vorlesungen zur Einführung in
die sprachanalytische Philosophie, p. 262.
[21] A brilhante conclusão especulativa de
Tugendhat em sua reflexão sobre o que significa compreender uma sentença é a de
que se a concepção por ele argumentativamente ganha é correta, então “a regra
de aplicação do termo singular e a regra de aplicação do predicado constituem juntas
a regra de verificação da frase predicativa”. E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die
sprachanalytische Philosophie, p. 262.
[22] E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die
sprachanalytische Philosophie, p. 259.
[23] A velha objeção de que não dizemos do
significado de uma frase que ele é verdadeiro ou falso pode ser respondida
quando consideramos a especificidade do conceito de significado em questão:
nada nos impede de dizer que o conteúdo epistêmico, cognitivo, descritivo,
representacional ou factual da frase é verdadeiro.
[24] Como nota o autor do dicionário Wittgenstein:
“o princípio foi primeiramente defendido pelo Círculo de Viena, mas seus
membros o atribuem a Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”. Hans-Johann
Glock: Wittgenstein-Lexikon, p. 354.
[25] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p.
245.
[26] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 244.
[27] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und er Wienner Kreis, p. 47.
[28] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis p.
244.
[29] F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, pp.
226, 227.
[30] Nesse aspecto as formulações de Wittgenstein
o aproximam do físico norte-americano P.W. Bridgman, que em 1927, no livro The Logic of Modern Physics, defendeu
que “nada mais queremos dizer com qualquer conceito do que um conjunto de
operações; o conceito é sinônimo do conjunto de operações” (p. 5).
[31] M. Schlick: Gesammelte Aufsätze, p. 340.
[32] Para
uma discussão sobre isso ver meu artigo “O verdadeiro portador da verdade”.
[33] Uma tentativa de esboçar uma semântica
criterial a partir das sugestões de Wittgenstein foi feita por Gordon Baker em
“Criteria: A New Foundation for Semantics”. Uma discussão útil encontra-se no
último capítulo do livro de P.M.S. Hacker: Insight
and Illusion.
[34] Friedrich Waismann
(ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis,
p. 282.
[36] Wittgenstein: The Blue and the Brown Books, p. 24.
[37] Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-1935, p. 28.
[38] Uma teoria do significado como condição de
verdade é a que foi exposta por Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus.
Segundo a sua versão, o significado de uma frase é o fato possível por ela
representado, sendo tal fato a sua condição de verdade. Outra influente teoria
dessa espécie foi a sugerida por Donald Davidson com base em Tarski. Segundo
essa última teoria, o significado de uma sentença é a sua condição de verdade
(ver Donald Davidson: Inquires into Truth
and Interpretation, caps. 1-5).
Um problema
com essas teorias é que enquanto as condições de verdade não forem explicadas
com base em configurações criteriais elas permanecem filosoficamente triviais,
não fornecendo uma decomposição suficientemente esclarecedora do significado.
Em Davidson, por exemplo, a condição de verdade de uma frase ‘p’ pode ser dada pela própria frase p em seu modo de dizer objetual. A
teoria exposta no Tractatus tem a
vantagem de supor que as frases sejam analisáveis em frases elementares muito
mais complexas, cujos elementos correspondem a objetos simples. Com isso ela já
sugere o caminho para uma análise criterial, mesmo que de uma maneira dogmática.
Só as análises criteriais do significado, como as que serão desenvolvidas em
capítulos posteriores desse livro, permitirão analisar o significado de modo
esclarecedor, decompondo-o em múltiplas constelações criteriais contextualmente
variáveis e individualizáveis. Penso que a distinção feita por Michael Dummett
entre teoria modesta (modest) do
significado, que o traduz para quem já o reconhece, e uma teoria sangüínea (full-blooded)
do significado, que é capaz de explicá-lo para quem não o conhece, busca
refletir em termos metateóricos a diferença entre uma teoria do significado
como condição de verdade e uma teoria criterial. (Ver M. Dummett: The Seas of Language, p. 5 e ss. Também Ernst Tugendhat progrediu nesse sentido
ao concluir que a condição de verdade seria mais profundamente formulada como
uma condição de verificação, baseada obviamente em critérios. Ver E. Tugendhat: Vorlesungen
zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, pp. 259, 410.
[39] Ver C. F. Costa: Paisagens Filosóficas, cap. 1.
[40] Adapto esse exemplo do livro
de Robert Audi: Epistemology, p. 190
[41] “Truth”, in A.J. Ayer: The
Concept of Person and Other Essays (London: Macmillan Press 1963) p. 186.
[42] Ver “A
pragmática da relação correspondencial”, IV-V, in C.F. Costa, A Linguagem Factual (Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro 1996).
[43] P.F.
Strawson: “Truth”. Essa posição foi mais tarde abandonada por Strawson. Ver “Reply to John
Searle”, p. 402.
[44] J.R. Searle: “Truth: A Reconsideration of
Strawson’s Views”.
[46] Ver meu artigo “Fatos empíricos”, p. 122 ss.
[47] Entendo uma proposição analítica como sendo
aquela cuja verdade decorre da combinação dos sentidos de suas expressões
constitutivas. Quine (em “Two Dogmas of Empiricism”) rejeitou essa definição
por ela se basear no conceito demasiado vago de significado. Mas vago ou não,
esse conceito cumpre aqui com a sua
função de produzir uma definição perfeitamente inteligível e em si mesma
irretocável (R.G. Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228;
ver também H.P. Grice e P.F. Strawson em “In Defense of a Dogma”).
Também parece-me
falaciosa a rejeição de Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade
através de sinonimidade e necessidade em razão da excessiva proximidade
semântica entre os vários conceitos envolvidos (significado, sinonimidade,
necessidade...), o que produz, segundo ele, uma quase-circularidade na
definição. Afinal, em nossas definições é natural e mesmo indispensável que os
conceitos usados pertençam a um mesmo campo semântico. Cadeira, por exemplo, se
define como “banco com encosto”, mas tanto o conceito de cadeira, como o de
banco e o de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa
definição é quase-circular. A crítica de Quine ao conceito de analiticidade só
parece convincente por ser confundida com a constatação da vaguidade da
fronteira entre o analítico e o sintético, ou a de que alterações em nossas
práticas linguísticas podem tornar frases analíticas dispensáveis,
relativizando-as nesse sentido.
[48] Essa posição foi aceita ou defendida por
Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A.J. Ayer (ver C.J. Misak: Verificationism, pp. 79-80).
[49] Essa sugestão “naturalista” não é sem antecedentes.
Para Jack Odell, por exemplo, o princípio da verificabilidade concerne a uma prática subjacente de requerer a
possibilidade de confirmação para a aceitação de pretensões empíricas, uma
prática que é necessária à existência das linguagens naturais e que se revela
no modo como agimos, tanto quanto os princípios da não-contradição e da
identidade. S.J. Odell: On the Philosophy
of Language, pp. 98-99.
[50] John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.
[51] Ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason, p. 100 ss.
[52]
W.V-O. Quine: “Two Dogmas of the Empiricism”, p. 41.
[53] Merrilee Salmon: Introduction to Logic and Critical Thinking, p. 276.
[54] Ver C.G. Hempel:
“Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11,
1950, 41-63.
[55]
W.G. Lycan: Philosophy of Language: A
Contemporary Introduction, pp. 121-122.
[56] Ver
Wittgenstein: Über Gewissheit, sec.
10.
[57]
Pode-se objetar aqui que ├g é
apesar de tudo perfeitamente compreensível. Mas podemos replicar que g é na verdade compreensível apenas em
termos gramaticais. Em termos semânticos, porém, compreender completamente o
significado de g é compreender o que
chamei de o seu significado epistêmico, aquilo que Frege chamou de valor de
conhecimento (Erkenntniswert), que no
caso é ser capaz de demonstrar a verdade de g.
[59] Saul Kripke: Wittgenstein on Rules and Private Language.
[60] Wittgenstein percebeu esse ponto quando notou
que a pessoa entende por sua própria
natureza (von Natur aus)
diversamente, tal como uma pessoa que por natureza tende a olhar para o ombro
da pessoa que aponta algo com o dedo ao invés de olhar para o lugar apontado
(sec. 185).
[61] Se nossa perspectiva for correta, então a
intenção psicológica é sempre uma instanciação concreta de uma intensão com
‘s’, de um conteúdo.
[62] Enquanto teorias como a de Davidson ficam
aquém da marca, a teoria griceana do significado passa ao largo dela. O que H.P.
Grice elucida ao sugerir que o significado do proferimento de p pelo falante S está no reconhecimento
pelo ouvinte de sua intenção de dizer p
não é o significado cognitivo do proferimento, mas tão somente parte do
procedimento pelo qual um mesmo significado é comunicado. Ver H.P. Grice: Studies in the Ways of Words, caps. 5, 6, 14 e 18. Na lição 14 de suas Vorlesungen zur Einführung in die
Sprachanalytische Philosophie Ernst Tugendhat desmantela a pretensão de
teorias como a de Grice de explicar o significado próprio dos enunciados.
[63] Observe-se que há outras espécies de regras
constitutivas de significado que não são referenciais: podemos ter regras que
relacionam pela linguagem dados empíricos a cognições, cognições a outras
cognições e cognições a ações. Mas para a questão da referência, o que mais
interessa é a primeira espécie de regra, na medida em que for responsável pelo
sentido referencial.
[64] Há várias maneiras de se incorrer em hipóstases. Uma
delas é identificar o sentido com entidades platônicas (Frege); outra (que será
criticada em seu devido momento) é a de identificar o significado lingüístico
com substratos essenciais das coisas (Putnam); outra é identificá-lo com
unidades mínimas da referência (Russell); e ainda outra é identificar o
significado com intenções meramente psicológicas (Grice).
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