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sexta-feira, 11 de maio de 2012

CETICISMO (material introdutório)

 Capítulo do livro introdutório Uma introdução contemporânea à filosofia (São Paulo: Martins Fontes 2002) - C.F. Costa



                CETICISMO: QUANDO A PÁ BATE
                                NA PEDRA DURA*


O ceticismo pode ser definido como uma posição filosófica crítica, que coloca em questão a validade de nossas pretensões de conhecimento; um cético é uma pessoa que põe em dúvida coisas que habitualmente supomos conhecer. Podemos classificar o ceticismo quanto a força da dúvida cética e quanto a sua abrangência.
     Quanto a força da dúvida, o ceticismo será de um tipo forte quando através dele for negado que tenhamos conhecimento ou mesmo que seja possível que tenhamos conhecimento. O filósofo grego Górgias, por exemplo, tendo afirmado que nada existe, que se existisse não podería ser conhecido, e que se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado, defendia uma modalidade forte de ceticismo. Para ele o conhecimento da natureza não era absolutamente possível. Uma forma fraca de ceticismo consiste na afirmação de que em geral nunca podemos estar certos de que sabemos. Bertrand Russell ao escrever seus Ensaios Céticos tinha em mente essa forma de ceticismo. Considerando que a ciência nos tem mostrado que o nosso conhecimento empírico é geralmente falível, essa forma fraca de ceticismo tornou-se hoje um lugar comum. Podemos considerá-la mesmo uma atitude saudável, pois previne o dogmatismo ao exigir que estejamos sempre preparados para submeter nossas crenças ao escrutínio crítico. É no sentido forte, no entanto, que geralmente nos referimos ao ceticismo.
     O ceticismo pode aplicar-se a um domínio maior ou menor de nossas pretensões de conhecimento. Podemos chamá-lo de abrangente quando ele diz respeito a maior parte do conhecimento, ou mesmo à sua totalidade. Górgias, ao lançar dúvida sobre nosso conhecimento da natureza e sobre a opinião dos homens, estava propondo um ceticismo forte e abrangente, que se estendia a grande parte de nossas pretensões de conhecimento. Mas o ceticismo também pode ser localizado, dizendo respeito a um âmbito mais ou menos restrito do conhecimento. Exemplos de ceticismo localizado em filosofia podem ser a rejeição da possibilidade do conhecimento indutivamente fundado, o agnosticismo com relação ao problema da existência de Deus e o relativismo acerca dos valores morais.
     Seria possível um ceticismo forte e totalmente abrangente? Parece que não, pois essa posição seria logicamente incoerente. Suponhamos que alguém afirme: “Nada sabemos”. Podemos então lhe perguntar se ele sabe o que acabou de afirmar. Se ele responde “sim”, então ele se contradiz, admitindo que sabe alguma coisa. Se ele responde “não”, então ele admite o fracasso de sua posição, posto que nega que tenha querido afirmar que nada sabemos. O cético que afirma não saber absolutamente nada está sendo contraditório, pois se nada pode ser sabido, então não pode ser sabido que nada pode ser sabido.
     Não obstante, a lógica sozinha não é suficiente para nós nos protegermos de todo e qualquer ceticismo radical e abrangente. Digamos que o cético afirme algo como “Só sei que nada sei”. Com isso ele admite que conhece o seu não saber, sem por isso deixar de estender a dúvida a tudo mais. “Há algo que podemos saber”, afirma ele, “qual seja, que nada podemos saber além disso”. Nesse caso a estratégia para se responder ao cético consistiria em mostrar que ele não possui razões suficientes para a sua dúvida radical, ou que essas razões não são tão fortes quanto as razões que temos para acreditar que temos conhecimento daquilo que ele nega ser possível conhecer.
   No que se segue, quero abordar o ceticismo em sua evolução histórica, distinguindo duas fases: a do ceticismo antigo e a do ceticismo moderno e contemporâneo.



1. CETICISMO ANTIGO
O ceticismo antigo começou com os sofistas gregos, mas tornou-se uma escola de pensamento no período helenístico por obra de Pirron de Élis, que nada deixou escrito. Segundo a exposição de seu pensamento feita por Sexto Empírico, Pirron parte de uma preocupação prática, que é a de encontrar a felicidade, que consiste na ataraxia, a paz interior. Para tal parece necessário primeiro superar as tensões da dúvida, chegando ao conhecimento. A busca do conhecimento é, porém, decepcionante. Para o filósofo pirrônico, essa busca leva fatalmente à isostenia, que é a oposição de teses contraditórias e de igual peso, sem que se consiga chegar a uma decisão sobre qual delas é a verdadeira. Exemplos. Um objeto parece quente. É realmente quente, ou só é quente para os nossos sentidos? A ordem celeste parece indicar uma providência divina; mas há o fato de que aos bons freqüentemente sofrem o mal, enquanto os maus são beneficiados. Existe ou não uma providência divina? Para o cético pirrônico não há como decidir. Essa constatação de que a busca do conhecimento conduz apenas a contradições insolúveis leva o filósofo à resignação, à desistência, ao que o cético chama de epoché: a suspensão do juízo. Mas eis que ao realizar essa suspensão do juízo o filósofo alcança, inesperadamente, o que mais buscava: a paz interior ou ataraxia. Uma vez ciente disso, o filósofo cético conclui que ele não deve mais obstinar-se na ingrata tentativa de alcançar o conhecimento, mas antes habilitar-se na arte de produzir a isostenia e ser por ela reconduzido à renúncia cética.
     Há duas críticas a serem salientadas. Uma primeira é a de que a suspensão do juízo é incompatível com a vida. Se alguém come pão é porque, em seu juízo, o pão alimenta. Se alguém se recusa a saltar em um precipício é porque, em seu juízo, morrerá. A resposta de Sexto Empirico é a de que o ceticismo pertence a um plano teorético. O que foi suspenso é um juízo cuja natureza é teórica; a vida prática, contudo, pode seguir de forma absolutamente normal.
     A dificuldade que se torna visível nessa resposta é que uma tal separação não parece realmente possível. Parece certo considerarmos que o critério realmente decisivo para dizermos que uma pessoa assente muitos de seus juízos não é o seu proferimento desse juízo, nem mesmo o seu ato mental consciente de julgar, mas o seu modo de agir, o seu comportamento. Por exemplo: mesmo que uma pessoa afirme ter suspendido o juízo de que uma dose de ácido sulfúrico, se ingerida, lhe fará um terrível mal, se essa pessoa evita a todo custo provar uma colheirada é porque, através de seu comportamento, ela está assentindo esse mesmo juízo; o comportamento é aqui a evidência mais forte do que a pessoa crê, mesmo que ela não queira se fazer consciente disso. Em geral, o critério último com base no qual muitas vezes dizemos que uma pessoa assente seus juízos não é tanto o que ela diz ou pensa, mas como ela se comporta. Aplicando esse modo de pensar à posição de Sexto Empírico, concluímos que a sua rejeição do assentimento de juízos teóricos acaba entrando em contradição com o assentimento prático dos mesmos, o que torna essa modalidade de ceticismo incoerente.
   Uma outra crítica denuncia a fraqueza do princípio da isostenia. Não será que o cético resigna cedo demais ao conhecimento, apenas por não querer saber? É a paz interior resultado do insucesso na busca da verdade, ou antes, o resultado de um esforço programático e sistemático de evitar uma busca genuína do conhecimento?(1)

2.  FORMAS MODERNAS E CONTEMPORÂNEAS
DE CETICISMO: TRÊS EXEMPLOS
O ceticismo antigo tem hoje em dia um valor principalmente histórico. O mesmo, contudo, não pode ser dito do ceticismo moderno, que é predominantemente motivado por uma problemática exclusivamente epistemológica. Seu objetivo é produzir um desafio a nossas pretensões de conhecimento, um desafio que pode ser importante justamente pelas respostas que é capaz de evocar. No que se segue, quero expor três exemplos de objeções céticas.

     1. Uma primeira objeção cética é a seguinte: quando pretendemos conhecer alguma coisa, podemos sempre incorrer em erro; ora, se é assim, o conhecimento é impossível. Para responder a essa objeção é interessante explicitá-la melhor, colocando-a sob forma silogística:

     1  Se temos conhecimento, então precisamos estar certos.
     2  Nunca estamos certos de que sabemos.
     3  Logo, nunca temos conhecimento.

     Essa objeção se baseia na suposição de que o conhecimento, para ser conhecimento, implica em certeza. Embora essa seja uma idéia da natureza do conhecimento mantida por filósofos tradicionais, que buscavam ansiosamente por um fundamento absolutamente seguro para as suas doutrinas, essa não é a concepção mantida pelo senso comum, menos ainda pela ciência. É habitual que afirmemos saber quando não estamos absolutamente certos, tendo sido Wittgenstein quem insistiu no fato de que é típico da pretensão de conhecimento que ela ocorra tendo como pano de fundo a possibilidade de erro; quando essa possibilidade não está presente, notou ele, pouco sentido faz afirmar que sabemos (normalmente não afirmo que sei que tenho dor de cabeça, mas simplesmente que tenho dor de cabeça)(2). Ao menos quanto ao conhecimento empírico, admitimos que ele é normalmente incerto e falível, ou seja, que é sempre possível que não o tenhamos realmente.

    2. A dúvida cética mais interessante e influente em toda a modernidade foi a seguinte. Tudo aquilo a que temos acesso são os conteúdos de nossa consciência; nossos pensamentos, sentimentos, sensações... Ora, se é assim, é falsa a pretensão de conhecermos um mundo exterior, para além dos conteúdos de nossa consciência. Nada garante que o mundo externo não seja muito diverso de como o representamos, ou mesmo que ele realmente exista.
     Para dar ênfase a essa posição cética, Descartes imaginou a existência de um gênio malígno, enormemente poderoso, que empenhasse toda a sua astúcia em enganá-lo sistematicamente, fazendo-o representar um mundo externo que na verdade não existe(3). Uma versão atualizada disso é a suposição que posso fazer de que eu seja um cérebro em uma cuba, com todos os feixes neuronais aferentes e eferentes ligados a um supercomputador, que produz em mim uma contínua e coerente ilusão de toda a realidade externa, por exemplo, a ilusão de que agora eu tenho diante de mim um PC, de que eu possuo duas mãos, de que conheço outras pessoas semelhantes a mim, de que vivi minha infância em um certo lugar etc. Uma hipótese como a do cérebro na cuba não é logicamente inconcebível, e a sua própria possibilidade parece demonstrar que eu não posso realmente saber que não sou um cérebro na cuba, ou seja: eu não posso saber que o mundo externo realmente é tal como eu o experiencio.
     A admissão dessas possibilidades permite a produção de um poderoso argumento cético para provar que realmente nada sabemos acerca do mundo externo. Para melhor expô-lo, quero começar considerando um otimista argumento anti-cético que se opõe a ele e que tem a forma de um modus ponens; supondo que x está no lugar de qualquer proposição acerca do mundo externo, eis o argumento(4):

         (A)
  1  Se sei que x, então sei que não sou um cérebro na cuba.
     2  Sei que x.
     3  Logo, sei que não sou um cérebro na cuba.

     A princípio esse argumento parece proceder. Suponha que x seja “Tenho duas mãos”. Se sei que realmente tenho duas mãos, então sei que elas não são produtos de uma realidade virtual, então sei que não sou um cérebro na cuba. O argumento cético aparece quando consideramos a conclusão desse argumento e percebemos que ela não parece verdadeira: eu não posso saber que presentemente não sou um cérebro na cuba; tudo o que eu eventualmente posso saber é que fui um cérebro na cuba no passado, caso eu tenha deixado de ser um cérebro na cuba e tenha sido convincentemente informado a respeito.
     Admitindo a falsidade da conclusão de (A), o seguinte argumento cético forte e abrangente pode ser construído com base em um modus tollens:

         (B)
     1  Se sei que x, então sei que não sou um cérebro na cuba.
     2  Não sei que não sou um cérebro na cuba.
     3  Logo, não sei que x.

     Saber que não sou um cérebro na cuba parece asssim necessário para que eu possa reivindicar o conhecimento de qualquer proposição contingente acerca do mundo. Afinal, se eu não posso saber que não sou um cérebro na cuba, do que mais poderia eu saber? Digamos que eu pretenda saber que tenho duas mãos. Ora, se sei disso, então devo saber que não se trata de uma alucinação produzida por um supercomputador, mas de duas mãos verdadeiras. Mas como eu não posso saber que não sou um cérebro na cuba, então não posso saber que tenho duas mãos. O argumento cético exposto em (B) está em conflito com o argumento otimista exposto em (A). A questão não parece ser tanto a de se decidir entre (A) e (B), mas principalmente a de se saber o que há de errado com (B).
     Há uma variedade de tentativas contemporâneas não muito bem sucedidas de se resolver esse problema. Uma delas, que exponho pela sua originalidade, é a de Fred Dretske(5). Segundo Dretske, quando sabemos algo, isso ocorre sob a consideração de alternativas relevantes. Mas a alternativa de que eu possa ser um cérebro na cuba não é relevante para o meu conhecimento de algo como o fato de que tenho duas mãos ou qualquer proposição geralmente colocada no lugar de x. Suponha, por exemplo, que eu vá a um zoológico e lá encontre um algumas zebras. Claro que eu sei quando estou vendo zebras. Mas suponha agora a hipótese de que na verdade não se tratem de zebras, mas de mulas pintadas pelas autoridades do zoológico de maneira a parecerem zebras. Não sendo nenhum zoólogo conhecedor de detalhes acerca dos animais, eu não posso pretender que sei que não estou vendo mulas pintadas de zebras. O seguinte argumento cético localizado – paralelo ao argumento cético (B) – parece poder ser construído:

         (C)
  1  Se sei que estou vendo zebras então sei que não estou vendo
      mulas pintadas de maneira a parecerem zebras.
     2  Não sei que não estou vendo mulas pintadas de maneira
         a parecerem zebras.
     3  Não sei se estou vendo zebras.

     Mas essa conclusão é certamente absurda. E a razão pela qual ela é absurda, segundo Dretske, é que para saber que x (no caso, que estou vendo zebras) é necessário sabê-lo somente dentro de um contexto de alternativas relevantes. Mas a alternativa em questão (de que eu esteja vendo mulas pintadas) não é relevante, não importando para saber que x. A conclusão é a de que a primeira premissa é falsa. Por razões semelhantes, a primeira premissa do argumento cético (B) também é falsa, invalidando a conclusão cética.
     Uma dificuldade com esse paralelo é que enquanto faz sentido dizer que eu não sei que não sou um cérebro na cuba, não parece fazer sentido que eu, observando as zebras de um zoológico, deva pensar que não sei que não estou vendo mulas pintadas. De fato, eu tenho boas razões (ainda que negativas) para pensar que sei que não estou vendo mulas pintadas de zebras; afinal, encontro-me em um zoológico convencional e é excessivamente improvável que as autoridades do zoológico fossem fazer uma brincadeira tão esquisita justo na ocasião de minha visita. Há, portanto, uma forte justificação probabilística para a negação da hipótese cética em tal caso. (Pense quão diferente seria o caso de uma pessoa que estivesse participando de uma espécie de jogo no qual lhe fossem apresentadas zebras reais e mulas pintadas de zebra, cabendo a ela adivinhar.) Parece, pois, que estamos diante de dois casos essencialmente diferentes, pois para a proposição “Eu sei que não sou um cérebro na cuba” não possuo qualquer razão ou justificação concebível.
     Quero expor agora o que penso ser a resposta certa para o argumento cético (B)(6). Para aceitá-la é necessário primeiro admitir que (B) é na verdade um argumento abreviado ou entimemático, e que em sua forma mais completa ele se desdobraria como se segue:

          (D)
1       Se sei que x, então sei que o mundo externo é real.
2       Se sei que o mundo externo é real, então sei que não sou um cérebro na cuba.
3       Não sei que não sou um cérebro na cuba.
     4   Logo, não sei que x.

     Com efeito, o que está implicado em minha pretensão de saber que x é o conhecimento de que o mundo externo possui realidade, e (B) é apenas um caso do argumento cético mais geral, “Se sei que x, então sei que o mundo externo é real; mas não sei se o mundo externo é real; logo não sei que x”.
     Se esse ponto – que considero de bom senso – for aceito, então já não fica mais difícil refutar o cético. Pois é possível mostrar que o argumento acima é equívoco, não possibilitando a conclusão a que parece conduzir. Para isso, considere a proposição

     “Sei que o mundo externo é real”.

     Essa proposição é na verdade ambígua. Com ela posso querer dizer (a) “Sei que esse mundo externo é real” como também (b) “Sei que esse é o mundo externo real”. A diferença é sutil. Ela fica mais clara quando parafraseamos (b) como (b’): “Sei que de todos os mundos externos possíveis, esse é o mundo real”. Vejamos cada caso isoladamente.
     No caso da proposição (a), ela é certamente verdadeira, pois o que com ela se pretende é apenas imputar realidade aos constituintes do mundo externo atual, os quais experienciamos e conhecemos. Para concluir que esse mundo é real, basta eu considerar que os constituíntes do mundo por mim experienciado satisfazem certos critérios de realidade, critérios pelos quais reconheço as coisas físicas como reais, tais como a independência da vontade, a possibilidade de acesso interpessoal, a co-sensorialidade, o seguimento das leis naturais etc. Como os constituintes do mundo externo satisfazem tais critérios, ele é um mundo real no sentido de possuir realidade, e não deixaria de sê-lo mesmo que eu fosse um cérebro na cuba. Chamo a esse sentido ou uso da palavra ‘realidade’ de sentido inerente, a saber, dependente da satisfação dos critérios de realidade inerentes a um sistema estruturador de crenças sobre o mundo externo por mim aceito, o que chamarei de sistema de realidade.
     Consideremos agora as proposições (b) ou (b’). A verdade dessas proposições não pode ser realmente sabida, posto que é sempre possível que esse não seja o mundo real, que eu seja um cérebro na cuba ou uma alma cartesiana enganada pelo gênio maligno. Mesmo assim é possível que eu forme crenças negativas a esse respeito: é possível que eu venha a me convencer a posteriori que (b) é uma proposição falsa, caso eu acorde em um outro mundo no qual seres muito diferentes dos que eu até então havia conhecido se esforçam por me convencer que a minha vida pregressa não havia sido no mundo real, mas no mundo ilusório de um cérebro na cuba; e também me é possível imaginar que eu venha a ser conscientemente submetido a um experimento de realidade virtual no qual, embora eu saiba que aquilo que experiencio como pertencente ao mundo externo seja bem real no sentido (a), sei que o mundo externo que eu experiencio na verdade nada tem de real no sentido (b), de ser o mundo real, ou no sentido (b’), de ser o mais real dos mundos. Chamo ao sentido da palavra ‘realidade’ nas proposições (b) ou (b’) de sentido aderente da palavra, cuja eventual aplicação vem condicionada à rejeição de um sistema de realidade pela correspondente adoção de outro.
     Com isso em mente, consideremos outra vez o argumento (D). A premissa 1 nos diz “Se sei que x, então sei que esse mundo é real (possui realidade)”, pois o conseqüente só pode ter o sentido (a): é porque ‘realidade’ aqui tem o sentido inerente que podemos passar do conhecimento de algo externo (que é independente da vontade, interpessoalmente acessível etc., satisfazendo os critérios de realidade) para o conhecimento de que aquilo que experienciamos como mundo externo possui realidade. Vejamos agora a premissa 2:  “Se sei que o mundo externo é real, então sei que não sou um cérebro na cuba”. Claro que o antecedente precisa ter aqui o sentido (b)-(b’) e a palavra ‘real’ tem um sentido aderente; só disso, isto é, do fato de eu saber que dentre os mundos possíveis esse é o mundo real, pode advir a conseqüência de que eu sei que não sou um cérebro na cuba. Tanto a primeira como a segunda premissa podem ser verdadeiras. Mas o problema é que como o conseqüente da primeira premissa e o antecedente da segunda premissa possuem sentidos diferentes, não se pode aplicar a elas as regras lógicas que nos permitiriam inferir a conclusão cética. A despeito das aparências, o argumento é inválido, posto que equívoco. E essa conclusão pode ser generalizada para a sua forma contraída (B).
     Quer dizer então que é o argumento anti-cético (A) que é correto? Também não. Pois (A) deve ser visto como uma forma entimemática do seguinte argumento:

         (E)
     1  Eu sei que x.
     2  Se eu sei que x, então sei que o mundo externo é real.
     3  Se eu sei que o mundo externo é real, então sei que não sou
         um cérebro na cuba.
     4  Sei que não sou um cérebro na cuba.

     Esse também é um argumento equívoco, pois o fato de eu saber que x me permite apenas saber que o mundo por mim experienciado possui realidade, isto é, que possui constituintes que satisfazem critérios de realidade; assim, o sentido da palavra ‘realidade’ que faz a segunda premissa verdadeira é o sentido inerente. Mas não é esse o sentido da palavra ‘realidade’ no antecedente da terceira premissa, pois o que me permitiria saber que não sou um cérebro na cuba seria um conhecimento da realidade absoluta do mundo externo, de que ele é dentre os mundos possíveis aquele que é real, o qual não se encontra realmente ao meu alcance. Também esse argumento é inválido, posto que equívoco. E isso parece justo: é saudavelmente cético admitirmos que não sabemos que não somos cérebros na cuba. Se esse argumento é correto, então a mais controversa forma contemporânea do argumento cético acerca do mundo externo se resolve com uma pitada de análise semântica da linguagem ordinária.

     3. Há, enfim, um argumento cético localizado que quero considerar e que tem sua origem em David Hume. A conclusão desse argumento é que não podemos conhecer o que não está sendo imediatamente observado.
     Suponhamos que eu feche a gaveta de minha escrivaninha, deixando a minha caneta lá dentro. Considerando que a caneta não está mais ao alcance de minha visão ou de minhas mãos, como sei que ela permanece dentro da gaveta? Ora, pelas seguintes razões:

     1  Eu me recordo de tê-la posto dentro da gaveta.
     2  Eu posso comprovar que a caneta está na gaveta, sempre que
        eu a abrir.
     3  Podemos estar certos de que os objetos físicos, mesmo quando
    não observados, costumam permanecer tal como eram quando
        estavam sendo observados.

     Supondo, para fins de argumento, que 1 e 2 sejam condições não problemáticas, o pressuposto 3 pode ser considerado pelo cético como altamente suspeito. De um lado ele não é analítico, pois podemos conceber que seja falso; de outro, ele não pode ser provado pela experiência, dado que ele diz respeito precisamente ao que nunca vem a ser empiricamente experienciado. A conclusão cética é a de que nossa convicção de que os objetos físicos, quando não observados, permanecem sendo os mesmos que eram quando estavam sendo observados, não tem um fundamento racional. Por extensão, crenças dependentes de 3, como a de que a caneta permanece como ela é, mesmo quando ninguém a observa, não são mais do que uma injustificada fantasia de nossa imaginação(7).
     A resposta que proponho é a seguinte. A nossa crença de que os objetos físicos não observados geralmente permanecem como eles são quando estão sendo observados pode ser entendida de duas maneiras. A primeira é que 3 é uma maneira um tanto imaginativa de se dizer

     3a  A qualquer momento que objetos físicos forem observados,
           eles normalmente permanecerão como eles eram em obser-
           vações anteriores.

     3a é o enunciado de uma crença indutivamente obtida pela nossa experiência com objetos físicos, e o princípio da indução, que nos permite inferí-lo, é o que Wittgenstein chamava de uma regra da gramática, um postulado implícito fundamentador de nosso sistema de crenças relativas ao mundo externo (ver capítulo 9). Por conseguinte, não há razões específicas para sermos céticos sobre a verdade do enunciado 3 entendido no sentido de 3a.
     Mas 3 também pode ser entendido em um sentido metafísico que o dissocia de 3a, o qual pode ser enunciado como:

     3b  Os objetos físicos que estão sendo observados geralmente
           continuam sendo tal como  eram  quando  estavam  sendo
           observados,  mesmo que a sua observabilidade não  fosse
           virtualmente possível.

     Ao contrário do enunciado anterior, 3b é resistente à verificação ou falseamento, dado que necessariamente transcende o âmbito de qualquer experiência. 3b é um enunciado logicamente inverificável, o que nos faz concluir que ele não chega a fazer realmente sentido. Sua função em nosso sistema de crenças é, para usar uma analogia de Wittgenstein, como a de uma roda solta na engrenagem, que apenas aparenta fazer parte do mecanismo. Podemos especular se nossa impressão de que ele faz sentido não se deve a uma falha em nosso mecanismo cognitivo, comparável à visão de pós-imagens, que advém de uma limitação de nosso mecanismo perceptual.
     O que podemos concluir disso? Ora, que o cético interpreta a proposição 3 como 3b, quando deveria interpretá-la como 3a. O cético pensa que a única opção de interpretação para a proposição 3 é no sentido de 3b, pensando que a palavra ‘permanecer’ deve demandar continuidade per se, em um sentido dissociado da observabilidade, como se o objeto que dizemos permanecer mesmo inobservado continuasse a ser acompanhado por um um olho invisível. Quando não observo um objeto que sei estar próximo de mim, o olho invisível o observa por mim. Mas do mesmo modo como a idéia do olho invisível é uma ficção incoerente que a nossa fantasia produz, também o é esse sentido equívocado da idéia de que algo permanece o mesmo enquanto inobservado. O cético sabe disso. Mas ele pensa ser 3b a única interpretação possível da proposição 3, o que o leva à conclusão cética de que o conhecimento de 3, da permanência do objeto físico, é impossível. Contudo, essa conclusão não se seguiria se ele tivesse percebido que a idéia de permanência expressa em 3 também pode ser entendida no sentido de 3a, pois nesse sentido, afirmar que objetos físicos permanecem quando não os estamos observando é somente uma maneira de dizer que se nos forem dadas as circunstâncias apropriadas, eles se revelarão experiencialmente a nós e a outros sujeitos percipientes quaisquer, o que nada possui de misterioso.
     Com isso terminamos nossa breve discussão de algumas questões céticas. Ela parece confirmar a idéia já mencionada de que a principal função do ceticismo moderno é positiva, qual seja, a de ser um instrumento epistêmico, que nos força a aprofundar e a corrigir nossas concepções acerca do conhecimento.


Notas:

*  “Se esgoto as justificações eu encontro a pedra dura e minha pá se encurva de volta.” (L. Wittgenstein: Investigações Filosóficas, I, sec. 217).

1  F. Ricken: Philosophie der Antike, Stuttgart 1988, p. 189. Ver também, do mesmo autor, Antike Skeptiker, Munique 1994.

2  L. Wittgenstein: Über Gewissheit (Sobre a Certeza), Frankfurt 1983, sec. 553.

3 R. Descartes: Meditações Metafísicas (Meditationes de Prima Philosophia), trad. port. col. Os Pensadores (ed. Abril), São Paulo 1973, vol. XV, Med. Primeira, sec. 12.

4  Este é o caminho seguido por G. E. Moore em sua famosa prova de um mundo exterior: “Posso provar agora, por exemplo, que duas mãos humanas existem. Como? Segurando minhas duas mãos e dizendo, à medida que faço um certo gesto com a mão direita, “aqui está uma mão”, e acrescentando, à medida que faço um certo gesto com a esquerda, “aqui está outra”. E se, fazendo isso, provei ipso facto a existência de coisas exteriores, todos nós veremos que posso também fazê-lo de várias outras maneiras...” (trad. port. de “Proof of an External World”, em col. Os Pensadores, ed. Abril, São Paulo 1974, vol. XLII, p. 358.) 
5  Ver F. Dretske: “Epistemic Operators”, The Journal of Philosophy 24, 1970, pp. 1007-23.

6  O argumento que se segue é inspirado nas observações de Wittgenstein em Über Gewissheit (ver nota 2) e no conhecido artigo de Rudolph Carnap intitulado “Empiricism, Semantics and Ontology”, publicado como apêndice de seu livro Meaning and Necessity, London 1956.

7  Segundo Hume, nossa imaginação em busca de coerência remove as interrupções, fazendo de conta que há uma existência contínua dos objetos, o que nos induz a crer nessa continuidade. Ver D. Hume: A Treatise of Human Nature, I, 4, 2.



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