Quem sou eu

Minha foto
If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

FREUD E A EMOÇÃO ESTÉTICA

C.F. Costa - Artigo publicado no livro Estudos Filosóficos (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1999)




PROCESSO PRIMÁRIO E EMOÇÃO ESTÉTICA


Costuma-se dizer que a psicanálise não se ocupa do fato estético em si mesmo. Isso é amplamente verificado a um primeiro exame dos ensaios dedicados por Freud ao assunto. Neles, o que se busca é, preferencialmente, uma compreensão da psicologia individual do artista por intermédio do exame de sua obra. Exemplos disso são "Dostoievski e o parricídio", "O Moisés de Michelangelo", "Uma recordação infantil de Goethe" e o estudo sobre Leonardo da Vinci. Também pode ser encontrada a análise, não do artista, mas de um personagem específico de sua obra, como é o caso de Hanold, figura central da Gradiva de Jensen. Em qualquer dos casos, porém, o objetivo principal não vai além da ambição de encontrar, na obra de arte, evidências confirmadoras da teoria psicanalítica. Justifica-se assim a freqüente afirmação de que a psicanálise se ocupa, quase que exclusivamente, do conteúdo da obra de arte e não de sua estrutura.
   Nas notas esboçadas a seguir, gostaria de demonstrar a possibilidade de que a obra de arte, em ao menos alguns de seus aspectos mais básicos, seja susceptível de uma compreensão psicanalítica feita sob o exclusivo ponto de vista de sua forma ou estrutura. Penso que isso possa ser concebido como um estudo introdutório ao reconhecimento de uma dimensão da estética que faz continuidade com a teoria psicanalítica. Afinal, o fenômeno estético apresenta uma variedade de dimensões: uma dimensão semiótica, outra psicológica, outra sociológica... e não seria de todo surpreendente se este múltiplo fenômeno - a arte - caso venha a ser compreendido em seus limites últimos, forçasse a maior parte da estética especulativa a dissolver-se naquilo que ela freqüentemente dá a impressão de ser: por meio de metáforas abstratas, uma tentativa de dizer o que ainda não sabemos.

1. O PROCESSO PRIMÁRIO COMO CONDIÇÃO DE PRODUÇÃO E
COMPRENSÃO DA  OBRA  DE ARTE
Uma primeira característica descoberta pela psicanálise na obra de arte é que esta última costuma apresentar-se como resultado do que Freud chamou de processo primário. Neste aspecto, a arte compartilha seu lugar com o sintoma neurótico, o sonho, o devaneio, o pensamento infantil e primitivo, a religião e a mitologia, que para Freud também são resultantes do processo primário. Essa não seria, portanto, uma característica distintiva suficiente para uma demarcação psicanalítica dos limites da obra de arte enquanto tal, mas uma característica ao menos necessária à sua existência. Se admitirmos como ponto de partida a inclusão da obra de arte entre os efeitos e meios ocasionadores do processo primário, pode-se extrair daí uma sugestão inicial demasiado óbvia: a obra de arte, tanto para a sua produção como para a sua apreciação, pressupõe a dimensão inconsciente do psiquismo humano.

2. OS DOIS MECANISMOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PRIMÁRIO
Pode-se definir o processo primário como o pensamento no qual as cargas (Besetzungen) ou intensidades afetivas não se encontram estritamente ligadas às representações que lhes são correspondentes, mas permanecem relativamente livres. Nesse caso, as cargas podem desligar-se das representações inconscientes para fixar-se em outras representações, de um ou de outro modo associadas às primeiras, as assim chamadas representações substitutivas, as quais são por si mesmas passíveis de se tornarem conscientes. Ao se ligarem a tais representações substitutivas, as cargas afetivas inconscientes podem penetrar na consciência, obtendo-se assim uma espécie de liberação ou descarga afetiva. Tal descarga, por sua vez, produz prazer ao fazer baixar o nível de tensão endopsíquica.
   O processo primário é, de acordo com Freud, essencialmente caracterizado por dois mecanismos fundamentais: a condensação e o deslocamento. Ao esclarecer o deslocamento nos sonhos, Freud diz que ele se manifesta de duas maneiras:

Na primeira delas, um elemento latente é substituído, não por uma parte componente de si mesmo e sim por algo mais remoto - isto é, por uma alusão; e, na segunda, o acento psíquico é transferido de um elemento importante para um outro sem importância, de modo que o sonho se apresenta centrado de forma diferente e insólita(1).

 Podemos resumir isso dizendo que o essencial daquilo que Freud chama de deslocamento é que a carga psíquica de uma representação (ou grupo de representações) R1 passa para uma representação (ou grupo delas) R2, que se torna consciente. Exemplo: uma paciente de Freud, pertencente ao judaísmo, sonha que dá seu pente a alguém; a análise mostra que a representação desse ato vem no lugar da representação inconsciente de sua união com um homem não-judeu, a qual ela secretamente deseja. A representação do pente, que é substitutiva, é associada à representação inconsciente devido a um episódio no qual ela foi advertida de não usar certo pente que fora usado por um empregado da casa, a fim de "não misturar as raças". A representação substitutiva recebe, em circunstância da vigência do processo primário, a carga afetiva da representação inconsciente, que desse modo burla a censura e passa à consciência.
  A condensação, por sua vez, é apresentada como uma espécie de tradução abreviada ou fundida do conteúdo latente. Segundo Freud, ela se realiza no sonho das seguintes maneiras:

1) determinados elementos latentes são totalmente omitidos; 2) apenas um fragmento de alguns complexos do sonho latente transparece no sonho manifesto e, 3) determinados elementos latentes que têm algo em comum são combinados e fundidos em uma mesma unidade no sonho manifesto(2).

 Também para a noção de condensação podemos sugerir uma fórmula que sintetiza o que lhe é essencial: na condensação a carga psíquica do conjunto de representações (ou da representação composta) R1, R2, R3... é concentrada em uma representação (ou representação parcial) R1, a qual se torna consciente. Exemplo: se a paciente do sonho anterior tivesse sonhado ter recebido uma mecha de cabelos do homem quem deseja, a representação da mecha poderia estar no lugar de sua completa representação desta pessoa, condensando em si as cargas afetivas referentes à última. A diferença entre os dois mecanismos considerados pode ser em certa medida ilustrada por meio do seguinte diagrama:

                   Deslocamento:                            Condensação:
                       R1 ->  R2                             R2  -> R1 <-   R3

   Por permitir um aparentemente completo desaparecimento da representação inconsciente, o deslocamento foi considerado por Freud como sendo necessariamente um produto da censura. A condensação, por sua vez, tanto poderia ser efeito da censura como simples resultado de causas mecânicas e econômicas(3).

3. DE COMO A INTENSIDADE DA EMOÇÃO ESTÉTICA
DEPENDE DO PROCESSO PRIMÁRIO
Às considerações anteriores pode ser adicionada a seguinte sugestão: a intensidade da emoção estética decorre dos dois principais mecanismos do processo primário.
   No caso do deslocamento, pode-se supor que a intensidade da emoção estética se deva ao fato de a obra de arte tornar possível o desenvolvimento e a descarga de intensidades afetivas que se teriam acumulado em torno de representações reprimidas. Nesse caso, uma intensidade afetiva ligada a uma representação R1 e longamente acumulada será enfim liberada ao ser cedida a uma representação R2, passível de ser tornada consciente. Simbolizando com uma seta a passagem da carga psíquica de uma representação para outra, e com um traço oblíquo a instância censora que ela atravessa, podemos esquematizar tal passagem como se segue:

                                         R1    ->     /   ->      R2

  Adicionalmente é mesmo possível aventar a hipótese - interessante para o caso de produções estéticas - de que uma intensidade afetiva coarctada em seu desenvolvimento pudesse ter seu potencial desenvolvido ao ser cedida a representações que, ao se tornarem conscientes, se associassem a toda uma rede de outras representações.
  Já no caso da condensação, a intensidade da emoção estética deve resultar, não da descarga de uma intensidade afetiva acumulada e necessariamente vinculada a representações inconscientes, mas, por razões predominantemente econômicas, da concentração de cargas psíquicas provenientes de diferentes representações (geralmente apenas pré-conscientes) sobre uma menor quantidade de elementos ou representações substitutivas. Isso pode ser ilustrado pelo seguinte esquema, no qual a censura não está necessariamente presente:

                                         R1    >
                                         R2        >        R2  
                                         R3... >

  Deste modo, a liberação afetiva vinculada à apreciação estética - aquilo que desde Aristóteles tem sido vagamente chamado de catarse - embora sob um ponto de vista estritamente quantitativo, pode ser abstratamente justificada pela teoria psicanalítica. Ela deve resultar da liberação de cargas psíquicas intensificadas, quer devido ao seu represamento, ao serem repetidamente ligadas a representações reprimidas no trabalho psíquico inconsciente (ou talvez também pela possibilitação de seu desenvolvimento não-coarctado), no deslocamento, quer através de sua concentração em uma única representação (ou grupo delas), na condensação.
  Tais suposições podem afigurar-se estranhas a quem não estiver habituado a ver na psicanálise um sistema teórico explicativo do funcionamento da mente em sua dimensão afetiva e volitiva. Mas elas se encontravam, certamente, pressupostas nos próprios comentários de Freud, o que justifica, por exemplo, a sua observação sobre Hamlet em "O Moisés de Michelangelo"(4), em que ele sugere que o enigma do efeito produzido seja explicável pelo envolvimento do tema edipiano. Só que tais conseqüências, engendradas pela própria teoria, não obtiveram de Freud uma consideração mais particularizada.

4. A LIMITAÇÃO DAS EXPLICAÇÕES AO ASPECTO
QUANTITATIVO DA EMOÇÃO ESTÉTICA
Falamos do aspecto quantitativo da emoção estética; com efeito, cabe distinguir explicitamente entre o seu aspecto quantitativo e o seu aspecto qualitativo. O primeiro, o único ao qual efetivamente me refiro, diz respeito apenas à intensidade da emoção estética. Sob o aspecto da intensidade, a emoção estética não se distingue de outras: emoções podem ser mais ou menos intensas, independentemente de sua tonalidade própria. Chamo de qualidade da emoção às suas características peculiares, que nos permitem identificar uma emoção e diferenciá-la de outras. Ela pode ser muito específica, por exemplo, a suave melancolia evocada nos quadros de Jean-Francois Millet. Mas ao menos em certa medida também parece ser, em um nível mais geral, aquilo que distingue o sentimento estético do sentimento proveniente de outros resultados (não estéticos) do processo primário (e.g., o sonho, o chiste, o sintoma neurótico), e ainda de outros. Para exemplificar: a qualidade das emoções envolvidas na apreciação de obras de arte singulares, digamos, a envolvida na tela de Max Ernst, Loeil du silence, ou no poema de Mallarmé, L'aprés midi d'un faune, só surge como efeito, não só, como veremos, de condensações, mas de determinadas condensações; a misteriosa beleza e a injustificada juventude esculpidas no rosto da Pietá de Michelangelo podem ser efeito de um deslocamento, mas isso não é por si só suficiente para que possamos compreender a razão pela qual a emoção resultante torna-se investida de qualidades estéticas. Ao nível mais essencial da qualidade da emoção, que pode bem ser um elemento mais distintivo do que pertence à arte, a consideração dos dois mecanismos fundamentais do processo primário parece capaz de levar-nos muito adiante.

5. APLICAÇÃO DOS MECANISMOS DE INTENSIFICAÇÃO AFETIVA À
APRECIAÇÃO DE FORMAS DE ARTE DINÂMICAS
O que até aqui consideramos parece ser facilmente aplicável às artes plásticas, representadas em um meio espacial, como no caso da pintura, em que diferentes imagens se fundem ou se aludem umas às outras. Como explicar, no entanto, a emoção estética muito mais intensa, que é proveniente da apreciação de obras de arte representadas em uma seqüência temporal, como é o caso da literatura e da música? Pois bem: também aqui a intensidade da emoção estética pode ser explicada como sendo devida à intervenção de mecanismos do processo primário. Aqui as representações presentes na consciência em um dado momento devem obter sua carga afetiva de outras representações, que não se encontram atualmente na consciência, mas cujas ligações com ela tenham sido ativadas ou reforçadas, quer porque a obra de arte já as tivesse evocado em momentos anteriores da sequência temporal de sua apresentação, quer porque ela as antecipe como possibilidade para momentos ulteriores da mesma seqüência. Essa seqüência ou processo temporal no qual se desenvolve a apresentação e a apreciação estética pode ser grosseiramente ilustrada se simbolizarmos as representações conscientes como R2, R3, R4... R5 dispostas em seqüência temporal, digamos, na ordem em que elas se apresentariam no curso de um texto literário como uma tragédia, e, em um nível subjacente, as representações pré-conscientes e inconscientes R1, R2, R3...R5, cujas cargas cargas afetivas vão sendo ativadas e acabam por serem cedidas às representações simbolizadas no nível superior de uma multiplicidade de maneiras, até o clímax da ação, onde as cargas afetivas passam em maior medida para as representações que tornam conscientes. Não obstante, esta passagem não se dá aqui, como nas artes plásticas, apenas em um "eixo paradigmático" no qual uma representação como R5, digamos, recebe sua carga que se limita às representações inconscientes a ela previamente relacionadas na independência do processo (do desenrolar da trama), como poderia ser o caso de R4. Aqui, a passagem de intensidades afetivas dá-se também ao longo de um "eixo sintagmático" em que a carga de outras representações inconscientes, cujos correlatos representacionais simbólicos conscientes foram ou serão atualizados em tempos distintos (i.e., materializando-se em diferentes regiões do enredo, da melodia etc.), acaba por ser transferida para representações atualmente presentes na consciência, o que não acontece por acaso, posto que  o processo nos faz inadvertidamente antecipar e reter a série das representações que respectivamente serão e que foram conscientes.
   Em tais casos, a intensidade das emoções estéticas parece dever-se predominantemente a uma certa forma de concentração de intensidades afetivas (condensação) que, pelo seu modo peculiar, distinguiremos pelo nome específico de superdeterminação (Überdeterminierung), com o qual podemos nos referir à determinação de conteúdos psíquicos a partir de seqüências de representações inconscientes. A maior intensidade da emoção produzida por formas de arte representadas em um processo temporal unificado encontra aqui uma explicação: ela é devida à maior eficácia catártica resultante dos mecanismos de superdeterminação.

6. ALGUNS EXEMPLOS
O que dissemos torna-se evidenciável na análise feita por Freud da Gradiva de Jensen, em que o leitor deve vincular-se representacionalmente (o que é essencial à compreensão das múltiplas relações inconscientes entre as várias regiões do texto), conscientemente ou não, a algumas expectativas que mais tarde serão realizadas, e a outras, como confirmações de expectativas antecipadoras criadas por passagens anteriores. Semelhante processo de superdeterminação mostra-se particularmente evidente se tomarmos como exemplo um gênero literário fortemente coeso, como é o caso da tragédia. Desde a cena inicial da tragédia de Sófocles, quando Édipo fala ao povo, não é difícil pressentir que estamos próximos do culpado. Este pressentimento inicial torna-se mais intenso com o desenvolvimento da ação dramática, que termina com o cumprimento da profecia. Pode-se encontrar em Édipo Rei a concretização de um esquema como o precedente, em que o conteúdo inicial remete nossa atenção à possibilidade de outros, permitindo, através dessa antecipação, uma evocação de conteúdos inconscientes que é produtora de uma intensificação afetiva que se reforça a cada passo do desdobramento evolutivo da ação dramática. Identicamente, as cenas finais da tragédia parecem retirar toda a sua eficácia do que, em retrospecto, nossa memória reteve das cenas precedentes e aquilo que a elas se deixa associar. Isso é o que deve justificar a elevada intensidade catártica a elas inerente (mas não, obviamente, a sua "qualidade"). Édipo Rei ilustra e exemplifica a fórmula ideal da unidade literária: em meu princípio está meu fim.
   Não só na literatura, mas supostamente também na música, um processo semelhante seria eventualmente concebível. Em tal caso, seria talvez possível pensar na superdeterminação como caracterizada pela condensação de emoções relativas a diferentes combinações de sons (equivalentes a representações), as quais seriam unificadas como partes componentes de sequências de combinações que constituíssem unidades melódicas mais abrangentes (e.g.: o coro na longa frase final da cantata de Bach intitulada Mensch, wo gehst du hin). Assim, a emoção que se impõe à audição das primeiras notas de uma melodia pode ser resultante de alguma forma de superdeterminação premonitória do que virá a seguir; por outro lado, a conclusão de uma seqüência melódica mais abrangente pode também ser superdeterminada por intensidades afetivas inerentes a seqüências de sons anteriores, por ela abrangidas. Tais poderiam ser as razões pelas quais sentimos menor prazer diante de uma melodia da primeira vez que a ouvimos, a menos que já tenhamos uma razoável familiaridade com o seu estilo: não sabemos, pelo reconhecimento de uns poucos sons iniciais, formar uma idéia do que a eles se poderá suceder, e não podemos relacionar premonitoriamente a conclusão com aqueles sons iniciais, dado que a atenção que lhes havíamos concedido não supôs semelhante possibilidade.

7. O DESLOCAMENTO PROMOVE O SENTIMENTO
APOLÍNEO; A CONDENSAÇÃO, O SENTIMENTO
DIONISÍACO
Com base no que já foi dito, podemos ir mesmo um pouco além, sugerindo a existência de dois gêneros fundamentais de emoção estética, conforme esta última se derive primariamente de condensações ou deslocamentos.
   Um primeiro gênero de emoção estética é aquele caracterizado por obras de arte primariamente fundadas no mecanismo de deslocamento. Ele é mais conveniente à expressão de conteúdos inconscientes recalcados (i.e., incapazes de ser tornados conscientes, sendo portanto inconscientes no sentido mais rigoroso e não apenas pré-conscientes) uma vez que, como observou o próprio Freud, o deslocamento é in totum um produto da censura. O gênero de emoção estética fundado no deslocamento se identifica aproximadamente o sentimento apolíneo, de maneira semelhante àquela pela qual esse sentimento foi reconhecido pela filosofia alemã, de Schelling a Nietzsche. Esse sentimento, tendo como pressuposto a atuação de elementos culturais repressivos, se caracteriza pela sustentação dos ideais clássicos de perfeição, modulação e disciplina espiritual, por isso mesmo só podendo ser alcançado por intermédio de um mecanismo que permita um completo afastamento das representações perturbadoras - o que é precisamente o caso do deslocamento.
   Do lado oposto, temos um segundo gênero de emoção estética, caracterizado por obras de arte primariamente fundadas no mecanismo de condensação. Essas obras de arte são mais propícias à expressão de conteúdos inconscientes não recalcados, ou seja, pré-conscientes. O gênero de emoção estética é aqui fundado na condensação; é o caso da emoção dionisíaca, caracterizada pelo sentimento obscuro, rudimentar e grotesco, uma vez que é própria da livre manifestação de conteúdos inconscientes. A condensação é precisamente o mecanismo que possibilita parcialmente essa livre manifestação das próprias representações perturbadoras, por não depender necessariamente da censura. A costumeira maior intensidade afetiva do sentimento dionisíaco explicar-se-ia pelo fato de que a intensidade afetiva liberada pela condensação tem boas chances de ser maior, dado que aqui a carga de uma multiplicidade de representações se concentra em uma única.

8. EXEMPLOS
Para trazer alguma evidência a favor das hipóteses aqui aventadas, apresentarei agora alguns exemplos de condensação e deslocamento predominantes em artes plásticas, literatura e música.
   No que diz respeito à condensação, a pintura moderna, notadamente em seus estilos cubista e surrealista, oferece um campo de exemplificação bastante claro. Por caracterizar-se pela omissão de detalhes e simplificação das formas, o cubismo fundamenta-se predominantemente na condensação; um elemento toma o lugar de uma multiplicidade de elementos. Também encontramos a condensação ainda mais evidente no surrealismo. Se considerarmos, por exemplo, obras de Salvador Dali como España, Métamorphose de Narcisse e Apparition of  face and fruit dish on a beach, o que encontraremos será a mistura e a fusão de fragmentos surpreendentes e incoerentes do mundo real. É por isso que o cubismo e o surrealismo costumam revestir-se de um caráter dionisíaco imanente: o surrealismo de Dali é conhecido pela facilidade com que penetra no domínio do insólito e do grotesco; as telas cubistas e expressionistas de Picasso, não fosse a consagração de sua arte, teriam sido consideradas escandalosas e ofensivas ao bom gosto. Se atentarmos para a versão picasseana do Almoço na relva, veremos que, apesar de uma certa amenização causada pela economia de detalhes característica da condensação, é um elemento erótico espontâneo, grosseiro e insublimado, o que emerge das figuras, cumprindo assim com uma intenção satírica e destrutiva do autor. De maneira semelhante, em outras épocas, obras como as de Hieronimus Bosch, Pieter Brueghel e algumas telas de Goya - um bom exemplo é Saturno devorando seus filhos, cujo efeito emocional revela-se obviamente dionisíaco - usavam de tais recursos; em Bosch e Brueghel, por meio de formações mistas proporcionadas por uma multidão de aparições perturbadoras; na tela de Goya, pela sobreposição de um repelente jogo de cores a uma monstruosa cena de canibalismo ancestral.
   Os casos predominantemente fundados no deslocamento são mais difíceis de ser analisados, pois, sendo o deslocamento obra da censura, a relação mantida com o conteúdo psíquico inconsciente costuma ser muito melhor dissimulada do que aquela mantida na condensação. Tal seria, contudo, o caso do símbolo fálico visto por Freud na Virgem e o Menino de Leonardo da Vinci. Como evidente resultado da censura, nada poderia despertar nessa tela qualquer repúdio moral, pois que nem público nem autor puderam percebê-lo, mas somente a perspicácia talvez demasiado imaginosa de O. Pfister.
   Também é possível aventurar alguns exemplos em artes cuja forma de representação envolve seqüências temporais de acontecimentos, como a literatura e a música. Nesses casos, como vimos, passado memorizado e futuro expectado são capazes de ser condensados no presente em um processo de superdeterminação. No que diz respeito à literatura, é possível contrastarmos a poesia simbolista de Rimbaud, altamente polissêmica e portanto rica em condensações (os conflitos passionais que produzem Une Saison en Enfer servem, no plano emocional, como uma síntese metafórica abstrata, potencialmente aplicável a uma indeterminada variedade de situações concretas), com os poemas castos de Dante ou T.S. Eliot, menos polissêmicos e comparativamente mais apoiados em deslocamentos. A essas diferenças corresponderiam, como conseqüência, o predomínio do sentimento dionisíaco em Rimbaud e o predomínio do sentimento apolíneo na poesia casta de Dante e Eliot.
   Também na música poderia ser insinuada a hipótese de uma oposição semelhante. As obras de Berlioz e Beethoven, por exemplo, nos soam comparativamente mais dionisíacas - e, por suposto, mais extensamente apoiadas nos mecanismos de condensação - do que as obras de Mozart e Bach, mais marcadas pela contenção classissista, razão de se fundarem mais no deslocamento. A propósito, se a música é por excelência efeito de algum modo de superdeterminação, deveria sê-lo também especialmente da condensação, o que talvez sirva para explicar o fato de ter sido freqüentemente considerada como essencialmente dionisíaca. Não temos, porém, um indício suficientemente claro de como poderíamos explicar satisfatoriamente a ocorrência de tais mecanismos em uma forma tão pouco compreendida de expressão estética.

9. REFUTAÇÃO DE CONTRA-EXEMPLOS
Um leitor crítico poderia, neste ponto, opor-nos uma variedade de contra-exemplos. No que diz respeito à condensação, ele poderia contra-argumentar observando que não é difícil encontrar pinturas cubistas e surrealistas apolíneas, ou que uma poesia de Mallarmé, apesar de não ser propriamente dionisíaca, parece capaz de condensar em suas palavras uma ingente polissemia virtual, sem nisso permitir uma liberação de conteúdos inconscientes reprimidos. Já no que diz respeito ao deslocamento, poderia ser também contra-argumentado que na literatura erótica "dionisíaca" de nossa época, como é o caso do Henry Miller de Tropic of Cancer, formas de deslocamento são constantemente empregadas em um plano retórico, como recurso satírico e humorístico.
   Uma resposta a essa objeção seria a de que nossas considerações anteriores constituem uma esquematização simplificada do que realmente pode ocorrer. Em uma obra de arte de estrutura tão complexa como a do romance ou mesmo da poesia, há uma diversidade de níveis nos quais os mecanismos do processo primário podem de diversos modos desempenhar o seu papel. Pode ser sugerido que os mecanismos de condensação e deslocamento, em suas várias formas, possam, em um romance, se superpor, articulando então uma diversidade de planos semânticos que se pressupõem, sendo os mais elevados, identificadores da singularidade da obra de arte em seu aspecto qualitativo, em um certo sentido dependentes dos níveis mais inferiores, responsáveis pelo tonus geral das emoções. É neste último plano que se fundamentam os sentimentos dionisíaco e apolíneo, que não são privilégio exclusivo da obra de arte. Aplicando essa distinção aos contra-exemplos acima, diríamos que, em um segundo nível, aquele no qual emerge a singularidade de sua escrita, a poesia de Mallarmé se caracteriza por condensações; mas em um primeiro nível, mais básico, no qual se realiza a escolha de seu universo semântico, sua poesia já havia realizado, por uma seleção de elementos mais abstratos e líricos, uma prévia eliminação de quaisquer expressões alusivas a coisas tais como, digamos, formas insublimadas de erotismo. Diríamos que essa última escolha poderia ser por si mesma entendida como constituíndo-se de deslocamentos prévios, subentendidos anteriormente ao próprio texto. Algo assim poderia ser dito opostamente a respeito de uma literatura como a de Henry Miller. No plano superficial de sua retórica, encontramos deslocamentos chistosos; mas, ao nível mais primário da escolha de seu universo semântico, a condensação já havia operado no sentido de converter o seu texto em um escandaloso mostruário de materiais psíquicos socialmente reprimidos.

10. CONCLUSÃO
Nada do que foi sugerido até aqui consiste, é verdade, em pressupostos exclusivos da obra de arte, podendo em alguma medida ser tudo isso encontrado em outras manifestações do processo primário, como o sintoma neurótico, o sonho, o devaneio, o chiste, o mito e a religião. Permanece assim inexplicado o que para a estética realmente importa: o aspecto qualitativo, eventualmente individualizador do fenômeno estético. Um sonho, por exemplo, só costuma interessar àquele que o sonhou; a obra de arte, ao contrário, aparenta-se mais com um sonho que todos aqueles capazes de compreendê-la se comprazeriam em ter sonhado. É como se na obra de arte condensação e deslocamento devessem ocorrer de modo a refletir, na polissemia que evocam, a realidade essencial à condição e natureza humanas.
   Resulta assim evidente que o aspecto qualitativo da emoção estética, aquele pelo qual a obra de arte mais parece se distinguir de outros efeitos do processo primário, não é capaz de encontrar aqui o seu esclarecimento definitivo. Mesmo assim, é importante ter-se em conta a ocorrência desses mecanismos psicológicos, pois é só sobre eles que os outros, mais específicos, poderão fundar-se.


Notas:
1  S. Freud: Introductory Lectures on Psycho-Analysis, in: The Complete Works, London 1969, vol. II, cap. XI, p. 174. A exposição mais detalhada encontra-se em Die Traumdeutung, Frankfurt 1982, cap. VI, pp. 235-258.
2  S. Freud: Ibid, p. 171.
3  J. Lacan (ver. "A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud”, in: Escritos (Écrits), trad. port. ed. Zahar, Rio de Janeiro 1998) foi talvez quem mais claramente compreendeu o quão centrais eram as noções de deslocamento e condensação. Não obstante, a sua tentativa de substituí-las pelas noções de metáfora e metonímia não só nada acrescenta ao que Freud tinha a dizer, mas é restritiva e intrinsecamente inadequada. Ela é intrinsecamente inadequada por razões que não posso considerar aqui; e é restritiva porque aplica-se naturalmente apenas às línguas naturais. A “linguagem” do inconsciente é, entretanto, muito mais ampla, incorporando entre seus signos imagens mentais, comportamentos neuróticos etc. As noções de condensação e de deslocamento dão conta de tudo isso de um modo perfeitamente natural; já as noções sugeridas por Lacan, só são capazes de fazê-lo se forem inadequadamente estendidas para além de sua aplicação à linguagem natural.
4  Op. Cit., vol XIII, p. 212.











Nenhum comentário:

Postar um comentário