Texto extraído do livro Uma introdução contemporânea à filosofia (São Paulo: Martins Fontes 2002) - C.F. Costa
EPISTEMOLOGIA DA MEMÓRIA: REAVALIANDO A TEORIA IMAGISTA
Memória é a capacidade de reter e atualizar conhecimentos adquiridos no passado. Há uma variedade de classificações de espécies de memória. Como onde há conhecimento deve haver memória, podemos utilizar as três formas de conhecimento consideradas no capítulo 6 (sec. 1) como fio condutor para uma distinção entre as principais formas de memória. Naquele capítulo vimos que há ao menos três formas de conhecimento: conhecimento de particulares, conhecimento como habilidade e conhecimento proposicional. Assim, correspondendo ao conhecimento de particulares, há uma memória de particulares ou pessoal, que entendida de maneira ampla envolve a capacidade de lembrar de objetos, eventos, episódios e situações experienciadas por uma pessoa no passado. Correspondendo ao conhecimento proposicional (knowing that), há uma memória de proposições, que é a capacidade de reter e manifestar o conhecimento proposicional. E correspondendo ao conhecimento como habilidade (knowing how) há uma memória de como fazer, uma memória-hábito, que é a capacidade de reter e manifestar o conhecimento como habilidade.
Comecemos com a memória pessoal ou de particulares. Poderíamos chamá-la de “memória do passado”, pois ela se deixa definir como a recordação que uma pessoa tem daquilo que ela mesma experienciou em seu passado. Se uma pessoa se recorda de um evento que testemunhou no passado, digamos, de ter quando criança presenciado um incêndio em uma casa da rua onde morava, trata-se de uma memória pessoal ou de particulares. A memória de particulares é, pois, a capacidade de reter e atualizar o conhecimento do que foi objeto de experiências pessoais (o que pode incluir a experiência das próprias experiências). Essa forma de memória – diversamente das outras – pode ser considerada uma fonte de conhecimento, no sentido de que recorremos a ela para justificar pretensões de conhecimento: uma pessoa pode afirmar que houve um incêndio em uma casa da rua onde morava quando criança com base em sua recordação, sendo essa a fonte de sua pretensão de saber desse fato. O objeto da experiência de que nos recordamos pode não sê-lo em um sentido meramente passivo: é freqüente que nos recordemos de uma experiência sensório-motora, digamos, quando alguém se recorda de ter participado de uma maratona. Finalmente, a memória de particulares não precisa ser episódica, referindo-se a uma experiência que nunca mais se repetiu, como no caso da recordação do incêndio: é freqüente termos recordações experienciais de eventos-tipo que se repetem, por exemplo, a recordação de um local freqüentado no passado ou do rosto de um amigo.
Em contraste com a memória de particulares temos as memórias proposicionais e de habilidade (memória-hábito). A memória é tipicamente proposicional quando alguém se lembra do teorema de Pitágoras ou de sua demonstração, quando alguém se lembra de que o aumento da velocidade de um corpo é proporcional à força a ele aplicada ou de que o estrôncio é um elemento da tabela periódica. Em tais casos a enunciação do conteúdo mnêmico costuma vir tipicamente precedida da preposição ‘que’. Quanto à memória de habilidade, ela se evidencia, por exemplo, quando alguém demonstra – através da ação – que sabe andar de bicicleta, nadar ou falar português.
A memória de fatos passados pode vir sob a forma de memória proposicional no proferimento: “Lembro-me de que presenciei um incêndio quando criança”; mas posso reverter essa forma aliminando a frase complementar com o proferimento “Lembro-me do incêndio que presenciei quando criança”. Há aqui uma diferença: no segundo proferimento refiro-me a um evento particular do qual guardo memória (memória de particulares); no primeiro proferimento pode ser que eu não guarde memória do evento particular, pois as imagens do evento já se perderam, mas que eu ainda saiba que presenciei tal evento. Em tal caso trata-se de uma memória proposicional de um fato particular (do saber do fato) e não mais de memória de particulares. Mais adiante veremos que essa diferença não é irrelevante.
O ponto onde as memórias proposicional e de habilidade mais diferem da memória experiencial é que elas não são propriamente memórias do passado. Elas são, em um sentido, “memórias do presente”, pois o que é relevante é que certos conhecimentos ou habilidades existentes como disposições sejam atualizados. Mesmo que em uma época passada eu tenha aprendido que o estrôncio é um elemento da tabela periódica e que eu tenha uma vez aprendido a andar de bicicleta, se me recordo ou não dessas experiências é algo completamente irrelevante para as respectivas memórias proposicional e de habilidade que tenho dessas coisas.
Certamente, todas as três memórias recém consideradas são importantes. Mas os problemas epistemológicos que incidem sobre a memória proposicional e a memória-hábito não chegam a ter uma relevância própria. A memória só se torna uma fonte autônoma de perplexidades quando é memória de particulares, memória do passado, pois é aí que aparece o problema da relação entre a memória e os particulares que a originaram. A essa memória Russell chamou, seguindo Bergson, de memória verdadeira. Por isso, no que se segue a nossa discussão ficará restringida à memória de particulares.
1. A TEORIA IMAGISTA DA MEMÓRIA
Assim como há três concepções gerais acerca da percepção: realismo direto, representacionalismo e fenomenalismo (ver cap. 6), pode haver paralelamente três espécies gerais de teorias da memória. A primeira delas é o realismo direto. Segundo o realismo direto, quando nos recordamos de algo, recordamo-nos da própria coisa que causou a recordação. Se me recordo de ter presenciado um incêndio, o objeto de minha recordação é o próprio incêndio, diretamente, com sua fumaça e labaredas reais. Tomada de forma tão crua, essa é uma concepção altamente inverossímil, visto que o incêndio pertence ao passado, não existindo mais; e se ele não existe, como pode ser objeto da memória? Além disso, se o realismo direto, assim entendido, fosse admitido, então poderíamos escrutinizar o passado da mesma forma que podemos escrutinizar as nossas percepções atuais, aumentando sempre mais o que sabemos acerca dele. Também inverossímeis são as aproximações toscamente fenomenalistas; um fenomenalista poderá sustentar que a memória do passado não existe, posto que o passado não existe: o que chamamos de memória de particulares são apenas certas experiências atuais específicas... Resta, pois, o representacionalismo, que ao menos no que diz respeito a teorias da memória de particulares passa a desempenhar um papel central. Essa foi a posição proeminente na tradição filosófica, disso não se seguindo que uma concepção representacional da memória nos comprometa com o representacionalismo em filosofia da percepção.
A primeira concepção representacionalista da memória de que se tem notícia foi a teoria imagista sugerida por Aristóteles em Da Memória. Nesse breve texto ele escreve que a memória ou o recordar (ele tem em mente a memória de particulares) consiste na posse de uma imagem, que é como um molde impresso na alma pela percepção sensível dos movimentos de coisas físicas, sendo essa imagem relacionada por semelhança àquilo de que é imagem(1).
Essa concepção imagista da memória conduz Aristóteles ao seguinte dilema. Quando uma pessoa se recorda, do que ela se recorda? Se ela se recorda da imagem, então parece que não pode haver memória, pois não nos lembraremos de nada que está ausente. Se, por outro lado, aquilo de que a pessoa se recorda é a coisa da qual a imagem deriva, como é possível que, nos sendo dada só uma imagem, nos recordemos da coisa que não está presente e que talvez sequer mais exista?(2) A resposta que Aristóteles dá a esse dilema é que – do mesmo modo que uma pintura destinada a retratar uma pessoa – a imagem pode ser considerada de dois modos: primeiro em si mesma, sob abstração do que ela representa; segundo, como representação, como símile de alguma outra coisa. Quando nos recordamos de alguma coisa, utilizamos a imagem como símile de alguma outra coisa, recordando-nos da coisa através da imagem, da mesma forma que vemos como alguém é através do seu retrato.
Mesmo que Aristóteles tenha respondido ao seu dilema, há por trás disso uma questão mais importante que ele não considera. Ele não nos diz o que assegura que uma imagem mnêmica representa efetivamente um fato ou evento passado; ele não nos diz qual é o critério da memória autêntica ou verídica.
Respostas para essa questão foram tentadas por dois outros defensores de versões da teoria imagista da memória: Hume e Russell. Hume distingue entre duas espécies de idéias (imagens, em um sentido amplo): idéias da imaginação e idéias da memória. As idéias da imaginação são combinações de idéias que não exigem correspondência com o que realmente existe; já as idéias da memória são reproduções das impressões sensíveis que nos foram causadas no passado, exigindo tal correspondência. Hume sugeriu então duas marcas ou critérios distintivos das idéias da memória: primeiro, elas devem ter maior vivacidade e vitalidade do que as idéias da imaginação; segundo, enquanto as idéias da imaginação não ficam restritas à mesma ordem e forma das impressões originais, as idéias da memória estão restritas à mesma forma e ordem das impressões originais, sem nenhum poder de variação(3).
Os dois critérios propostos por Hume são, porém, claramente inadequados. O critério de intensidade falha por que há muitos casos de imagens mnêmicas tênues, por exemplo, de um passado distante, certamente menos fortes do que produtos mais vívidos da imaginação (segundo relatos, Flaubert chegou a adoecer e a sentir o gosto amargo do arsênico ao descrever o suicídio de Madame Bovary, e na psicose alcoólica a imaginação produz alucinações que são tão intensas quanto as imagens reais). Quanto ao critério de identidade de forma e de ordem com a impressão original, o próprio Hume admite a sua inutilidade: para conferir a validade do critério precisaríamos comparar a imagem mnêmica com a impressão passada, o que é impossível.
Bertrand Russell sugeriu uma teoria representacional segundo a qual a memória depende não só de uma imagem, mas também de uma crença associada a ela: a crença de que tal imagem é de um determinado acontecimento passado. E para ele o que torna essa imagem confiável são essencialmente dois critérios de veridicidade mnêmica, que são o sentimento de familiaridade e o sentimento do passado, ao que ele adiciona o contexto, dado que as imagens “são lembradas sucessivamente ou em um processo total simultâneo”(4). Uma objeção que tem sido feita aos critérios de Russell é a de que sentimentos como o de familiaridade ou de passado dizem respeito simplesmente à nossa crença de que as representações mnêmicas são verídicas; mas isso é justamente o que os critérios de confiabilidade da memória devem garantir, o que faz com que a sua explicação pressuponha o que pretende explicar.
Apesar disso, penso que Russell tocou no cerne da questão, ainda que de modo equívoco. Primeiro: quando ele menciona o contexto ele chega casualmente ao que me parece o critério central da veridicidade mnêmica. Como sei, por exemplo, que na semana passada fui à reunião do Departamento? Há, certamente, imagens que guardo de minha participação na reunião. Mas o que me garante que essas imagens são verídicas e não um mero produto de minha imaginação? Ora, basicamente porque elas são coerentes com um contexto que envolve outras crenças e recordações que guardo de minha história pessoal... Sei que a imagem é verídica porque sei que sou professor dessa Universidade, porque sei que a reunião ocorre na última segunda feira de cada mês, porque eu relaciono a imagem à minha recordação de ter ido ao Departamento naquela manhã e ao documento que preparei para ser votado, porque eu localizo tais imagens na seqüência de minhas memórias como referindo-se a coisas experienciadas por mim na semana passada, localizando-as dentro de todo um conjunto de crenças. Nada disso posso fazer com relação à imagem fantasiosa que faço de mim mesmo escalando o monte Everest na segunda feira passada. Nesse caso, a crença relacionada à imagem fica desconectada de outras crenças que tenho com respeito às circunstâncias de minha própria existência. Dessas considerações eu concluo que o critério distintivo da memória verídica de particulares deve centrar-se na coerência pela qual as imagens que a constituem (que podem ser visuais, auditivas, tácteis...) se inserem na história pessoal de quem as evoca. Uma ilustração favorável a essa conclusão está na hipótese de uma pessoa que a cada noite tem um sonho no qual ela se vê como habitante de um certo lugar no qual ela havia vivido muitos anos atrás; se supusérmos ainda que além de muito vívido esse sonho seja perfeitamente coerente, continuando-se à cada noite como os capítulos de uma tediosa novela, ao final tornar-se-á compreensível que a pessoa comece a suspeitar que os episódios que ela recorda ter vivido no sonho não teriam sido de fato reais.
Mas não é só a menção ao contexto que na formulação de Russell merece ser resgatada. É verdade que as expressões ‘sentimento de familiaridade’ e ‘sentimento do passado’ designam estados psicológicos subjetivos que são inúteis como critérios. Em casos de déjà-vu, temos uma impressão de já termos estado em um lugar onde com certeza nunca havíamos estado antes. Podemos sonhar que nos recordamos de algo que nunca ocorreu, sentindo-nos familiares com tal evento. E podemos ainda conceber que seja inventada uma droga que uma vez ingerida faça com que a pessoa tenha um sentimento de familiaridade e passado com respeito às suas mais absurdas fantasias: se eu ingiro a droga e imagino que escalei o Everest na semana passada, minhas imagens vêm acompanhadas de um profundo sentimento de familiaridade e de passado... Tal situação é concebível, mas não faria das fantasias que envolvem meus sentimentos memórias verídicas. Com isso não quero dizer que os sentimentos de familiaridade e de passado são coisas sem importância. Pois embora eles não possam ser considerados critérios de memória verídica, quero sugerir que eles são sintomas psicológicos resultantes da aplicação desses critérios. Em outras palavras: os sentimentos de familiaridade e de passado são originados pelo que eu gostaria de chamar respectivamente de localização contextual sincrônica e localização contextual diacrônica. Vou explicar o que quero dizer com essas expressões.
Considere o sentimento que tenho quando me lembro da casa onde moro. Ao me lembrar, eu insiro imagens de minha casa em um contexto temporalmente sincrônico de eventos e estados de coisas: a casa é habitada por certas pessoas, se situa em uma determinada vizinhança, em um certo bairro, há certos sons mais freqüentes, alguns mais incômodos do que outros... Essa localização contextual sincrônica do que é lembrado, que se estende a tudo o que lhe é compresente, ocasiona em mim um sentimento familiaridade. Mas é a localização contextual, não o sentimento de familiaridade, que realmente funciona como critério de veridicidade. Se eu me imagino escalando o Everest, posso vagamente me ver martelando pinos em suas paredes de gelo etc., mas falta uma adequada localização contextual; não posso tornar isso coerente com o contexto de minhas outras memórias – daí faltar também o sentimento de familiaridade.
O segundo critério é o que chamei de localização contextual diacrônica. Quando me lembro de um evento do qual participei, eu o situo no contexto da seqüência de eventos anteriores e posteriores a ele, o que me permite situá-lo no passado e suscita, psicológicamente, o sentimento do passado. Assim, posso lembrar-me da reunião do Departamento como ocorrendo no passado porque ela se deu na segunda feira, após os eventos do final da semana, antes dos eventos da terça feira e da quarta... Isso me permite situar o evento da reunião do Departamento em um passado específico, o que produz em em mim um sentimento do passado. Mas não me seria nada fácil (embora não seja impossível) inserir de maneira coerente a minha imagem de estar escalando o Everest nessa seqüência de recordações.
A inserção contextual de nossas memórias do passado pode ser mais sincrônica ou mais diacrônica, mas é normalmente e constitutivamente ambas as coisas. Assim, se me lembro de um incêndio que presenciei quando tinha nove anos de idade, sei localizá-lo em minha história pessoal, mas sei também que foi de dia, na rua onde eu morava, em uma certa cidade etc. A consideração disso nos permite reapresentar o critério contextual de veridicidade mnêmica de forma mais matizada como a exigência de que a representação mnêmica se insira coerentemente, tanto no contexto sincrônico quanto no contexto diacrônico da história pessoal de quem possui a recordação. Parece que satisfeitas certas condições de fundo que mais tarde consideraremos, podemos dizer que:
A primeira concepção representacionalista da memória de que se tem notícia foi a teoria imagista sugerida por Aristóteles em Da Memória. Nesse breve texto ele escreve que a memória ou o recordar (ele tem em mente a memória de particulares) consiste na posse de uma imagem, que é como um molde impresso na alma pela percepção sensível dos movimentos de coisas físicas, sendo essa imagem relacionada por semelhança àquilo de que é imagem(1).
Essa concepção imagista da memória conduz Aristóteles ao seguinte dilema. Quando uma pessoa se recorda, do que ela se recorda? Se ela se recorda da imagem, então parece que não pode haver memória, pois não nos lembraremos de nada que está ausente. Se, por outro lado, aquilo de que a pessoa se recorda é a coisa da qual a imagem deriva, como é possível que, nos sendo dada só uma imagem, nos recordemos da coisa que não está presente e que talvez sequer mais exista?(2) A resposta que Aristóteles dá a esse dilema é que – do mesmo modo que uma pintura destinada a retratar uma pessoa – a imagem pode ser considerada de dois modos: primeiro em si mesma, sob abstração do que ela representa; segundo, como representação, como símile de alguma outra coisa. Quando nos recordamos de alguma coisa, utilizamos a imagem como símile de alguma outra coisa, recordando-nos da coisa através da imagem, da mesma forma que vemos como alguém é através do seu retrato.
Mesmo que Aristóteles tenha respondido ao seu dilema, há por trás disso uma questão mais importante que ele não considera. Ele não nos diz o que assegura que uma imagem mnêmica representa efetivamente um fato ou evento passado; ele não nos diz qual é o critério da memória autêntica ou verídica.
Respostas para essa questão foram tentadas por dois outros defensores de versões da teoria imagista da memória: Hume e Russell. Hume distingue entre duas espécies de idéias (imagens, em um sentido amplo): idéias da imaginação e idéias da memória. As idéias da imaginação são combinações de idéias que não exigem correspondência com o que realmente existe; já as idéias da memória são reproduções das impressões sensíveis que nos foram causadas no passado, exigindo tal correspondência. Hume sugeriu então duas marcas ou critérios distintivos das idéias da memória: primeiro, elas devem ter maior vivacidade e vitalidade do que as idéias da imaginação; segundo, enquanto as idéias da imaginação não ficam restritas à mesma ordem e forma das impressões originais, as idéias da memória estão restritas à mesma forma e ordem das impressões originais, sem nenhum poder de variação(3).
Os dois critérios propostos por Hume são, porém, claramente inadequados. O critério de intensidade falha por que há muitos casos de imagens mnêmicas tênues, por exemplo, de um passado distante, certamente menos fortes do que produtos mais vívidos da imaginação (segundo relatos, Flaubert chegou a adoecer e a sentir o gosto amargo do arsênico ao descrever o suicídio de Madame Bovary, e na psicose alcoólica a imaginação produz alucinações que são tão intensas quanto as imagens reais). Quanto ao critério de identidade de forma e de ordem com a impressão original, o próprio Hume admite a sua inutilidade: para conferir a validade do critério precisaríamos comparar a imagem mnêmica com a impressão passada, o que é impossível.
Bertrand Russell sugeriu uma teoria representacional segundo a qual a memória depende não só de uma imagem, mas também de uma crença associada a ela: a crença de que tal imagem é de um determinado acontecimento passado. E para ele o que torna essa imagem confiável são essencialmente dois critérios de veridicidade mnêmica, que são o sentimento de familiaridade e o sentimento do passado, ao que ele adiciona o contexto, dado que as imagens “são lembradas sucessivamente ou em um processo total simultâneo”(4). Uma objeção que tem sido feita aos critérios de Russell é a de que sentimentos como o de familiaridade ou de passado dizem respeito simplesmente à nossa crença de que as representações mnêmicas são verídicas; mas isso é justamente o que os critérios de confiabilidade da memória devem garantir, o que faz com que a sua explicação pressuponha o que pretende explicar.
Apesar disso, penso que Russell tocou no cerne da questão, ainda que de modo equívoco. Primeiro: quando ele menciona o contexto ele chega casualmente ao que me parece o critério central da veridicidade mnêmica. Como sei, por exemplo, que na semana passada fui à reunião do Departamento? Há, certamente, imagens que guardo de minha participação na reunião. Mas o que me garante que essas imagens são verídicas e não um mero produto de minha imaginação? Ora, basicamente porque elas são coerentes com um contexto que envolve outras crenças e recordações que guardo de minha história pessoal... Sei que a imagem é verídica porque sei que sou professor dessa Universidade, porque sei que a reunião ocorre na última segunda feira de cada mês, porque eu relaciono a imagem à minha recordação de ter ido ao Departamento naquela manhã e ao documento que preparei para ser votado, porque eu localizo tais imagens na seqüência de minhas memórias como referindo-se a coisas experienciadas por mim na semana passada, localizando-as dentro de todo um conjunto de crenças. Nada disso posso fazer com relação à imagem fantasiosa que faço de mim mesmo escalando o monte Everest na segunda feira passada. Nesse caso, a crença relacionada à imagem fica desconectada de outras crenças que tenho com respeito às circunstâncias de minha própria existência. Dessas considerações eu concluo que o critério distintivo da memória verídica de particulares deve centrar-se na coerência pela qual as imagens que a constituem (que podem ser visuais, auditivas, tácteis...) se inserem na história pessoal de quem as evoca. Uma ilustração favorável a essa conclusão está na hipótese de uma pessoa que a cada noite tem um sonho no qual ela se vê como habitante de um certo lugar no qual ela havia vivido muitos anos atrás; se supusérmos ainda que além de muito vívido esse sonho seja perfeitamente coerente, continuando-se à cada noite como os capítulos de uma tediosa novela, ao final tornar-se-á compreensível que a pessoa comece a suspeitar que os episódios que ela recorda ter vivido no sonho não teriam sido de fato reais.
Mas não é só a menção ao contexto que na formulação de Russell merece ser resgatada. É verdade que as expressões ‘sentimento de familiaridade’ e ‘sentimento do passado’ designam estados psicológicos subjetivos que são inúteis como critérios. Em casos de déjà-vu, temos uma impressão de já termos estado em um lugar onde com certeza nunca havíamos estado antes. Podemos sonhar que nos recordamos de algo que nunca ocorreu, sentindo-nos familiares com tal evento. E podemos ainda conceber que seja inventada uma droga que uma vez ingerida faça com que a pessoa tenha um sentimento de familiaridade e passado com respeito às suas mais absurdas fantasias: se eu ingiro a droga e imagino que escalei o Everest na semana passada, minhas imagens vêm acompanhadas de um profundo sentimento de familiaridade e de passado... Tal situação é concebível, mas não faria das fantasias que envolvem meus sentimentos memórias verídicas. Com isso não quero dizer que os sentimentos de familiaridade e de passado são coisas sem importância. Pois embora eles não possam ser considerados critérios de memória verídica, quero sugerir que eles são sintomas psicológicos resultantes da aplicação desses critérios. Em outras palavras: os sentimentos de familiaridade e de passado são originados pelo que eu gostaria de chamar respectivamente de localização contextual sincrônica e localização contextual diacrônica. Vou explicar o que quero dizer com essas expressões.
Considere o sentimento que tenho quando me lembro da casa onde moro. Ao me lembrar, eu insiro imagens de minha casa em um contexto temporalmente sincrônico de eventos e estados de coisas: a casa é habitada por certas pessoas, se situa em uma determinada vizinhança, em um certo bairro, há certos sons mais freqüentes, alguns mais incômodos do que outros... Essa localização contextual sincrônica do que é lembrado, que se estende a tudo o que lhe é compresente, ocasiona em mim um sentimento familiaridade. Mas é a localização contextual, não o sentimento de familiaridade, que realmente funciona como critério de veridicidade. Se eu me imagino escalando o Everest, posso vagamente me ver martelando pinos em suas paredes de gelo etc., mas falta uma adequada localização contextual; não posso tornar isso coerente com o contexto de minhas outras memórias – daí faltar também o sentimento de familiaridade.
O segundo critério é o que chamei de localização contextual diacrônica. Quando me lembro de um evento do qual participei, eu o situo no contexto da seqüência de eventos anteriores e posteriores a ele, o que me permite situá-lo no passado e suscita, psicológicamente, o sentimento do passado. Assim, posso lembrar-me da reunião do Departamento como ocorrendo no passado porque ela se deu na segunda feira, após os eventos do final da semana, antes dos eventos da terça feira e da quarta... Isso me permite situar o evento da reunião do Departamento em um passado específico, o que produz em em mim um sentimento do passado. Mas não me seria nada fácil (embora não seja impossível) inserir de maneira coerente a minha imagem de estar escalando o Everest nessa seqüência de recordações.
A inserção contextual de nossas memórias do passado pode ser mais sincrônica ou mais diacrônica, mas é normalmente e constitutivamente ambas as coisas. Assim, se me lembro de um incêndio que presenciei quando tinha nove anos de idade, sei localizá-lo em minha história pessoal, mas sei também que foi de dia, na rua onde eu morava, em uma certa cidade etc. A consideração disso nos permite reapresentar o critério contextual de veridicidade mnêmica de forma mais matizada como a exigência de que a representação mnêmica se insira coerentemente, tanto no contexto sincrônico quanto no contexto diacrônico da história pessoal de quem possui a recordação. Parece que satisfeitas certas condições de fundo que mais tarde consideraremos, podemos dizer que:
A pessoa a recorda-se ≡ A pessoa a é capaz de inserir X coe-
veridicamente do par- rentemente, tanto no contexto sin-
ticular X (objeto, even- crônico quanto no contexto diacrô-
to, situação...) nico de sua história pessoal.
veridicamente do par- rentemente, tanto no contexto sin-
ticular X (objeto, even- crônico quanto no contexto diacrô-
to, situação...) nico de sua história pessoal.
Embora isso não nos forneça nenhuma garantia absoluta, sugiro que seja o que podemos razoavelmente esperar de um critério de veridicidade mnêmica.
A teoria imagista da memória encontra-se ainda aberta à objeção de que na verdade muitas de nossas memórias do passado não dependem de imagens. Segundo alguns, essa objeção é fatal para a teoria imagista, sugerindo que em substituição seja desenvolvida alguma forma algo impalpável de teoria proposicional da memória(5). Em favor dessa objeção está o fato de que as imagens mentais são geralmente vagas, distorcidas, esquemáticas. Além disso elas sequer estão sempre presentes: sou perfeitamente capaz de nomear as pessoas que estiveram presentes à reunião do Departamento, sem recorrer às suas imagens. E por vezes elas sequer ocorrem: Lembro me de que acabo de tossir, mas não recorro a imagem alguma para isso. Além disso, coisas muito distintas podem fazer o papel de representação, não precisando existir nada em comum entre elas. Conseqüentemente, o papel da imagem é auxiliar e contingente(6)
Não estou convencido da força desses argumentos. Que as imagens mentais possam ser vagas, esquemáticas etc. não pesa contra elas, conquanto elas sejam capazes de exercer sua função. Lembro-me de ter visto uma arara e não um papagaio, pois me lembro de que o tamanho do bicho era maior. A imagem que eu faço é muito vaga e não sou capaz de descrever detalhes, mas ela preserva as diferenças que circunstancialmente importam. Além disso, imagens não precisam ser visuais, podendo ser traços deixados por quaisquer outros sentidos. Também pode ocorrer que esses traços sensíveis, essas imagens, sejam substituídas por representações simbólicas abstratas, acabando então por desaparecer; nesse caso a memória de particulares é substituída pela memória proposicional, que não depende de imagens. Não obstante, a imagem sensível parece ser primária e indispensável, pois não parece possível que uma pessoa possa realmente se recordar de uma experiência que ela teve sem que se recorde de qualquer imagem visual, auditiva, táctil... dessa mesma experiência. Se não tenho um traço sensível, algo em que me fiar, isso basta para a conclusão de que eu não me recordo. Posso, certamente, repetir automaticamente os nomes das pessoas que estiveram na reunião do Departamento sem recorrer mais a imagens; mas o que me assegura a autenticidade dessas lembranças são as imagens em sua inserção contextual. Se me lembro de ter tossido agora mesmo é porque o som como que ainda ressoa em meus ouvidos; e se realmente me lembro de ter tossido há algumas horas atrás, então eu preciso, ainda que vagamente, lembrar-me desse ato. Uso palavras sem representações sensíveis da mesma forma que alguém usa um cartão de crédito, fiando-se no fato de haver um depósito em dinheiro.(7)
A teoria imagista da memória encontra-se ainda aberta à objeção de que na verdade muitas de nossas memórias do passado não dependem de imagens. Segundo alguns, essa objeção é fatal para a teoria imagista, sugerindo que em substituição seja desenvolvida alguma forma algo impalpável de teoria proposicional da memória(5). Em favor dessa objeção está o fato de que as imagens mentais são geralmente vagas, distorcidas, esquemáticas. Além disso elas sequer estão sempre presentes: sou perfeitamente capaz de nomear as pessoas que estiveram presentes à reunião do Departamento, sem recorrer às suas imagens. E por vezes elas sequer ocorrem: Lembro me de que acabo de tossir, mas não recorro a imagem alguma para isso. Além disso, coisas muito distintas podem fazer o papel de representação, não precisando existir nada em comum entre elas. Conseqüentemente, o papel da imagem é auxiliar e contingente(6)
Não estou convencido da força desses argumentos. Que as imagens mentais possam ser vagas, esquemáticas etc. não pesa contra elas, conquanto elas sejam capazes de exercer sua função. Lembro-me de ter visto uma arara e não um papagaio, pois me lembro de que o tamanho do bicho era maior. A imagem que eu faço é muito vaga e não sou capaz de descrever detalhes, mas ela preserva as diferenças que circunstancialmente importam. Além disso, imagens não precisam ser visuais, podendo ser traços deixados por quaisquer outros sentidos. Também pode ocorrer que esses traços sensíveis, essas imagens, sejam substituídas por representações simbólicas abstratas, acabando então por desaparecer; nesse caso a memória de particulares é substituída pela memória proposicional, que não depende de imagens. Não obstante, a imagem sensível parece ser primária e indispensável, pois não parece possível que uma pessoa possa realmente se recordar de uma experiência que ela teve sem que se recorde de qualquer imagem visual, auditiva, táctil... dessa mesma experiência. Se não tenho um traço sensível, algo em que me fiar, isso basta para a conclusão de que eu não me recordo. Posso, certamente, repetir automaticamente os nomes das pessoas que estiveram na reunião do Departamento sem recorrer mais a imagens; mas o que me assegura a autenticidade dessas lembranças são as imagens em sua inserção contextual. Se me lembro de ter tossido agora mesmo é porque o som como que ainda ressoa em meus ouvidos; e se realmente me lembro de ter tossido há algumas horas atrás, então eu preciso, ainda que vagamente, lembrar-me desse ato. Uso palavras sem representações sensíveis da mesma forma que alguém usa um cartão de crédito, fiando-se no fato de haver um depósito em dinheiro.(7)
2. CETICISMO ACERCA DA MEMÓRIA
Há algumas objeções céticas à respeito da confiabilidade da memória que vale a pena considerar. A primeira é uma versão da objeção cética standard contra nossas pretensões de conhecimento (ver cap. 5, sec. 2). Trata-se da objeção de que se a memória falha em nos prover de uma garantia de que aquilo que parecemos nos recordar é verdadeiro, então não é razoável confiarmos nela.
De fato, em um sentido absoluto tal garantia não existe. Entretanto, esse argumento contém uma premissa oculta: a de que uma crença, para ser razoável, deve ter uma razão justificacional capaz de garantir a sua verdade. Mas essa herança absolutista, reminiscente da tentativa de platônica de identificar os standards do conhecimento empírico com os do conhecimento matemático, é algo que, como já vimos, não precisa ser aceito.
Uma segunda objeção cética é a de que a veridicidade mnêmica só pode ser confirmada através de argumentos que recorram a outras memórias, não sendo possível confirmar a validade de nossas recordações na independência disso; por conseguinte, a confirmação de nossas recordações é, ao fim e ao cabo, circular. Com efeito, se for necessário confirmar a minha recordação de ter comparecido à reunião do Departamento na última segunda feira, isso pode ser possível se outras pessoas que lá estiveram foram perguntadas; se elas responderem que me viram lá, isso confirmará minha recordação. Contudo, elas só poderão apresentar essa confirmação recorrendo às suas próprias memórias, que poderão ser por sua vez questionadas... Pode ser que eu tenha assinado algum papel, ou que, digamos, a reunião tenha sido gravada e que a minha voz tenha aparecido na fita. Mas será necessário então que outras pessoas se lembrem dos papéis terem sido assinados, de terem gravado a reunião, de como soa a minha voz etc. Assim, em algum ponto da confirmação recorreremos sempre à memória... Uma resposta plausível para essa objeção seria coerencial: a veridicidade de nossa memória não envolve somente a aplicação do critério contextual de veridicidade mnêmica anteriormente proposto, mas para além dele, envolve a sua virtual confirmação interpessoal através de sua coerência com as memórias de outras pessoas e também a sua coerência com confirmações empíricas, como estados de coisas deixados por eventos passados recordados.
Finalmente, um argumento cético similar ao referido no capítulo 5 pode ser aqui repetido. Considere primeiro o seguinte modus ponens:
De fato, em um sentido absoluto tal garantia não existe. Entretanto, esse argumento contém uma premissa oculta: a de que uma crença, para ser razoável, deve ter uma razão justificacional capaz de garantir a sua verdade. Mas essa herança absolutista, reminiscente da tentativa de platônica de identificar os standards do conhecimento empírico com os do conhecimento matemático, é algo que, como já vimos, não precisa ser aceito.
Uma segunda objeção cética é a de que a veridicidade mnêmica só pode ser confirmada através de argumentos que recorram a outras memórias, não sendo possível confirmar a validade de nossas recordações na independência disso; por conseguinte, a confirmação de nossas recordações é, ao fim e ao cabo, circular. Com efeito, se for necessário confirmar a minha recordação de ter comparecido à reunião do Departamento na última segunda feira, isso pode ser possível se outras pessoas que lá estiveram foram perguntadas; se elas responderem que me viram lá, isso confirmará minha recordação. Contudo, elas só poderão apresentar essa confirmação recorrendo às suas próprias memórias, que poderão ser por sua vez questionadas... Pode ser que eu tenha assinado algum papel, ou que, digamos, a reunião tenha sido gravada e que a minha voz tenha aparecido na fita. Mas será necessário então que outras pessoas se lembrem dos papéis terem sido assinados, de terem gravado a reunião, de como soa a minha voz etc. Assim, em algum ponto da confirmação recorreremos sempre à memória... Uma resposta plausível para essa objeção seria coerencial: a veridicidade de nossa memória não envolve somente a aplicação do critério contextual de veridicidade mnêmica anteriormente proposto, mas para além dele, envolve a sua virtual confirmação interpessoal através de sua coerência com as memórias de outras pessoas e também a sua coerência com confirmações empíricas, como estados de coisas deixados por eventos passados recordados.
Finalmente, um argumento cético similar ao referido no capítulo 5 pode ser aqui repetido. Considere primeiro o seguinte modus ponens:
(A)
1 Sei que a revolução soviética se deu em 1917
2 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então
sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
1 Sei que a revolução soviética se deu em 1917
2 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então
sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
O argumento parece fazer sentido. Mas o cético está livre para seguir o caminho inverso, começando por duvidar da conclusão. Suponhamos, como fez Bertrand Russell, que o mundo foi criado há cinco minutos atrás, e nós dentro dele, com todas as nossas memórias de um passado que na verdade nunca existiu. Essa hipótese é estranha, mas logicamente possível. Não temos evidências contra ela, não podendo, portanto, saber que ela é falsa. Ora, se é assim, então não podemos saber se é verdade que o mundo existia há mais de cinco minutos. Isso torna ao cético possível produzir o seguinte modus tollens:
(B)
1 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então
sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
2 Não sei se o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, não sei se a revolução soviética se deu em 1917.
1 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então
sei que o mundo existia há mais de 5 minutos.
2 Não sei se o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, não sei se a revolução soviética se deu em 1917.
Com efeito, se não posso saber que o mundo existia há mais de 5 minutos atrás, então não só não posso saber que a revolução soviética se deu em 1917, mas não posso saber de mais nada do que teria ocorrido antes disso!
A resposta que quero sugerir para esse argumento cético segue as mesmas linhas da resposta sugerida para o argumento cético (B) no capítulo 5 (seção 2). Mas antes de apresentá-la, quero reformular o argumento (B) de modo a revelar todo o alcance da dúvida cética. Colocando x no lugar da descrição de qualquer evento, podemos construir o seguinte argumento cético:
A resposta que quero sugerir para esse argumento cético segue as mesmas linhas da resposta sugerida para o argumento cético (B) no capítulo 5 (seção 2). Mas antes de apresentá-la, quero reformular o argumento (B) de modo a revelar todo o alcance da dúvida cética. Colocando x no lugar da descrição de qualquer evento, podemos construir o seguinte argumento cético:
(C)
1 Se sei que x ocorreu no passado, então sei que existiu
o passado antes do presente.
2 Não sei se existiu o passado antes do presente.
Logo, não sei se x ocorreu no passado.
1 Se sei que x ocorreu no passado, então sei que existiu
o passado antes do presente.
2 Não sei se existiu o passado antes do presente.
Logo, não sei se x ocorreu no passado.
Penso ser possível demonstrar que esse argumento é inválido mostrando que nele a afirmação de que existiu um passado antes do presente é ambígua, possuindo sentidos diversos na primeira e segunda premissas, e que isso se deve a dois sentidos diversos do conceito de existência. Há, primeiro, um sentido inerente da palavra ‘existir’, que é relativo à aplicação dos critérios de existência passada sob o pressuposto da aceitação do sistema estruturador de crenças acerca da história do mundo em que vivemos. Que existiu um passado antes do presente é algo que ao menos nesse sentido posso afirmar que sei, mesmo que se venha a provar que na verdade não existiu passado algum antes do presente. Mas há também um sentido aderente da palavra ‘existência’, que temos em mente quando dizemos que em última instância não podemos realmente saber se existiu um passado antes do presente, posto que é logicamente possível que venhamos a descobrir que aquilo que consideramos passado é meramente ilusório, no caso em que nosso sistema estruturador de crenças acerca da história do mundo venha a perder a sua validade ao ser contrastado com algum outro sistema que passamos a ter por verdadeiro.
Aplicando essa distinção ao argumento (C) vemos que o sentido da palavra ‘existência’ na segunda premissa é aderente, enquanto o sentido da palavra ‘existência’ no conseqüente da primeira premissa é inerente, visto que é só sob a admissão da validade de nosso sistema de crenças atual acerca da história que posso concluir, de minha memória de algo ocorrente no passado, que existiu um passado antes do presente. Assim, o argumento (C) é inválido, posto que equívoco.
O mesmo se aplica ao argumento (B), que deve ser entendido como uma forma entimemática do seguinte argumento:
Aplicando essa distinção ao argumento (C) vemos que o sentido da palavra ‘existência’ na segunda premissa é aderente, enquanto o sentido da palavra ‘existência’ no conseqüente da primeira premissa é inerente, visto que é só sob a admissão da validade de nosso sistema de crenças atual acerca da história que posso concluir, de minha memória de algo ocorrente no passado, que existiu um passado antes do presente. Assim, o argumento (C) é inválido, posto que equívoco.
O mesmo se aplica ao argumento (B), que deve ser entendido como uma forma entimemática do seguinte argumento:
(D)
1 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então sei
que existiu um passado antes do presente.
2 Se sei que existiu o passado antes do presente então sei
que o mundo existia há mais de 5 minutos.
3 Não sei se o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, não sei se a revolução soviética se deu em 1917.
1 Se sei que a revolução soviética se deu em 1917, então sei
que existiu um passado antes do presente.
2 Se sei que existiu o passado antes do presente então sei
que o mundo existia há mais de 5 minutos.
3 Não sei se o mundo existia há mais de 5 minutos.
Logo, não sei se a revolução soviética se deu em 1917.
O sentido do conceito de existência na primeira premissa é entendido como inerente, posto que relativo à admissão de nosso atual sistema estruturador de nossas crenças acerca da história do mundo, o mesmo se dando com o sentido do conceito de existência na segunda premissa, caso queiramos aplicar coerentemente a ambas as premissas a regra do silogismo hipotético. Mas o uso do conceito de existência na terceira premissa é aderente: é só com base na admissão de um outro sistema de crenças acerca do passado que eu posso eventualmente negar meu conhecimento da existência do mundo há mais de 5 minutos atrás. Como conseqüência desse uso equívoco do conceito de existência, não é possível aplicar o modus tollens à terceira e segunda premissa de modo a se chegar à conclusão cética e o argumento é equívoco.
Notas:
1 Aristóteles: The Complete Works of Aristoteles, (ed. J. Barnes) Princeton 1984, vol. 1, 450a1-451a1, pp. 714-16.
2 Aristóteles, ibid. 450b1, p. 716.
3 D. Hume: A Treatise of Human Nature, (ed. P. H. Nidditch) Oxford 1978, livro I, sec. III, p. 9
4 B. Russell: The Analysis of Mind, London 1989 (1921), p. 162.
5 C. Ginet: Knowledge, perception, and Memory, Reidel 1975, cap. VII.
6 A. J. Ayer: The Problem of Knowledge, New York 1956, p. 140 ss.
7 Ainda uma fonte de confusão parece residir no fato de que memórias experienciais são base de inferências que delas resultam, havendo uma tendência de se confundir uma coisa com a outra. Se me lembro de ter visitado Buenos Aires há muitos anos atrás, mas em nada me recordo da viagem que fiz até lá, posso ainda assim inferir que há muitos anos viajei até essa cidade. Mas essa inferência, como tal, também nada tem a ver com a espécie de memória que estamos examinando. Ela não me autoriza a dizer que realmente me lembro de minha viagem para Buenos Aires. Posso apenas dizer que sei que fiz essa viagem, sendo a memória envolvida do tipo proposicional. E a razão pela qual falta aqui a memória de particulares é apenas a de que os traços mnêmicos capazes de representar esse fato se perderam.
2 Aristóteles, ibid. 450b1, p. 716.
3 D. Hume: A Treatise of Human Nature, (ed. P. H. Nidditch) Oxford 1978, livro I, sec. III, p. 9
4 B. Russell: The Analysis of Mind, London 1989 (1921), p. 162.
5 C. Ginet: Knowledge, perception, and Memory, Reidel 1975, cap. VII.
6 A. J. Ayer: The Problem of Knowledge, New York 1956, p. 140 ss.
7 Ainda uma fonte de confusão parece residir no fato de que memórias experienciais são base de inferências que delas resultam, havendo uma tendência de se confundir uma coisa com a outra. Se me lembro de ter visitado Buenos Aires há muitos anos atrás, mas em nada me recordo da viagem que fiz até lá, posso ainda assim inferir que há muitos anos viajei até essa cidade. Mas essa inferência, como tal, também nada tem a ver com a espécie de memória que estamos examinando. Ela não me autoriza a dizer que realmente me lembro de minha viagem para Buenos Aires. Posso apenas dizer que sei que fiz essa viagem, sendo a memória envolvida do tipo proposicional. E a razão pela qual falta aqui a memória de particulares é apenas a de que os traços mnêmicos capazes de representar esse fato se perderam.
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