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sábado, 19 de janeiro de 2019

NIETZSCHE: O PAPEL DO IDEAL ASCÉTICO NA FILOSOFIA


NIETZSCHE E O IDEAL ASCÉTICO NA FILOSOFIA



Nietzsche foi perspicaz ao perceber que em um sentido importante o pior do cristianismo é aquilo que ele chamou de o ideal ascético: o ideal de aliar-se masoquisticamente à pobreza, à humildade, à castidade e a outras formas de auto-negação, como forma de se obter um prazer doentio e pervertido. Para ele a função do ideal ascético é a de dar sentido ao sofrimento, pois sem sentido o sofrimento é insuportável. O ideal ascético tem como seu maior mentor a figura do padre ascético, que se opõe à vida valorizando a auto-mortificação, a auto-flagelação e o auto-sacrifício. Essas atitudes parecem suicidas, mas na verdade são maneiras veladas de preservar a vida. E o seu objetivo último, para Nietzsche, é o de limitar o ser humano e envenenar as mentes do que ele chamou de homens superiores.
   Para ele a assim chamada consciência moral resulta de uma internalização e espiritualização da crueldade. Como ele escreveu em uma passagem muito citada:

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isso é o que chamo de internalização do homem. Aquelas terríveis instituições pelas quais o estado se protege a si mesmo... Tem como resultado que aqueles instintos do selvagem, do livre homem rude se voltam contra ele mesmo. Animosidade, crueldade, o prazer de possuir, de mudar e destruir – tudo isso é forçado contra a pessoa que possui tais instintos: essa é a origem da “má consciência”.[1]

O ideal de aliar-se masoquisticamente à pobreza, à humildade, à castidade e a outras formas de auto-negação é uma forma de se obter um prazer doentio e invertido. A assim chamada ‘consciência moral’ resulta, pois, para Nietzsche, de um processo de internalização e espiritualização da crueldade.
   Em observações como a feita acima Nietzsche antecipava a psicanálise freudiana. Freud analisou o que Nietzsche chamava de ideal ascético em termos de introjeção: pela introjeção a agressividade humana, no caso de Freud, impulsos eróticos e também, em seu pensamento posterior, impulsos de auto-destruição, é internalizada e dirigida para onde veio, para o próprio ego (Ich) tornando-se no ego superego (über-Ich), no caso, consciência moral, sendo essa tensão chamada de sentimento de culpa e expressa na necessidade de punição. A introjeção é para Freud um mecanismo essencial ao processo civilizatório, permitindo ao homem diferenciar-se do animal, sendo difícil pensar que Nietzsche teria maiores discordâncias quanto a isso.
   A psicanálise freudiana nos permite refletir sobre a existência de formas sublimadas de internalização da agressividade ou mesmo notarmos que há instintos altruístas no ser humano, relacionados à sobrevivência da espécie e não apenas do indivíduo, que devem contrabalançar o que Nietzsche chama de crueldade. Seja como for, a simples repressão da agressividade, na medida em que esta não for racionalmente trabalhada, possui um potencial destrutivo e no final das contas mesmo auto-destrutivo. A emergência do nazismo é um exemplo disso. Um outro exemplo histórico é o ocaso do estado espartano. A educação repressora extremamente disciplinar dos espartanos lhes propiciava a capacidade de conquistar novos territórios, mas a inflexibilidade associada a essa mesma educação lhes impedia de fazer acordos que lhes permitissem dominar esses novos territórios a longo prazo. É conhecida a descrição de rituais masoquistas inconsequentes e por vezes mortais após a queda de Esparta, os quais recordam as considerações de Nietzsche.
   Não obstante, é preciso lembrar que Nietzsche também tinha uma visão em parte positiva do ideal ascético. Ele reconhece que a prática científica o exige. Além disso, a própria filosofia depende dele, pois para existir ela demanda o homem inativo, contemplativo, não voltado para a ação. Foi assim que ele escreveu que a filosofia teria sido absolutamente impossível pela maior parte do tempo sobre a terra sem o terno de algodão de um falso conceber ascético.
   Pela característica própria de sua atividade é fácil ao filósofo ser dominado por esse ideal, deixando que ele influa em sua própria filosofia. Com efeito, uma tese de maior importância e a meu ver bastante plausível a ser encontrada em Nietzsche é a de que o ideal ascético não só possibilitou, mas também corrompeu grande parte da filosofia ocidental. Podemos generalizar essa tese para grande parte da história da filosofia, como o demonstram as observações que se seguem:
   O primeiro filósofo a ser corrompido pelo ideal ascético foi Parmênides, com a sua doutrina de que toda a mudança é ilusória. Há aqui o prenúncio de teorias que serão fugas do mundo real, do visível, do sensível, do mundo heracliteano da mudança privilegiado por Nietzsche.
   Outro filósofo influenciado pelo ideal ascético foi Sócrates. Ele foi um precursor do padre ascético, com seu prazer sádico em destruir as crenças das outras pessoas em nome de algum conceito moral ideal. Sócrates era feio, nota Nietzsche, sem falar do fato de ser casado com uma mulher quarenta anos mais jovem que lhe dava muito trabalho e nenhum prazer. Nietzsche notou jocosamente ter sido ela a responsável pelo desenvolvimento filosófico de Sócrates, pois para não ter de conviver com ela ele preferia passar os dias conversando nas ruas, o que lhe fez desenvolver seu talento dialético.
   Platão, provavelmente homossexual, também foi um grande cultor do ideal ascético. O mundo visível, o mundo da vida, não era para ele o mundo real. A pouca realidade encontrada nesse mundo era a de deixar refletir nele o mundo das ideias eternas, imutáveis, pertencentes ao mundo inteligível. É certo que a doutrina das ideias tinha uma função predominantemente epistemológica. Ela tinha a função de explicar a predicação e através disso a nossa capacidade de síntese no sentido de ser a capacidade de dizer e pensar o mesmo de muitos. Contudo, é também verdade que o ideal ascético pode ser visto como a motivação clandestina para a hipóstase das propriedades como ideias abstratas, eternas, imutáveis e constitutivas daquilo que podemos propriamente chamar de real (ainda que Platão tenha sido um filósofo suficientemente sério para encontrar nela graves defeitos, como o atesta a primeira parte do diálogo Parmênides). Aristóteles, que teve mulheres e filho, que era um biólogo e uma pessoa mais afeita ao senso-comum, prescindiu das ideias ou formas como universais, ao menos nas interpretações talvez mais plausíveis, mas sua noção de uma substância material imperceptível como suporte das propriedades deixa-nos ainda hoje perplexos.
   Ontologicamente, a teoria dos tropos contemporânea intenta inverter a equação platônico-aristotélica. O ser enquanto ser, o que em primeiro lugar existe, não são ideias ou formas, mas tropos, que nada mais são do que propriedades espaço-temporalmente localizáveis, começando com qualidades sensíveis como formas, solidez, cores, sons, externas ou internas, o restante devendo ser construído a partir disso. Universais dizem respeito a conjuntos de tropos que podem ser construídos com base em quaisquer tropos precisamente similares a um certo tropo escolhido como modelo; objetos materiais são combinações de tropos espaço-temporalmente localizadas. Assim, pela teoria dos tropos tenta-se construir o geral, o abstrato, o “não-sensível”, a partir do sensível. Curioso é que essa teoria propondo uma completa inversão dos valores ontológicos foi resolutamente proposta apenas na segunda metade do século XX por um único filósofo, Donald Williams, e mais tarde desenvolvida e até mesmo enfraquecida por outros. Por que não foi proposta antes, digamos, durante a Idade Média, no lugar do nominalismo? A resposta me parece ser nietzschiana. Essa teoria se opõe ao ideal ascético filosoficamente justificado pelo menos a partir de Platão, senão já com Parmênides Ela dá um valor fundamental aos objetos da percepção, ao mundo visível, e se propõe a fazer derivar dele o mundo inteligível. Por que ela não foi proposta já pelos antigos? Cabe aqui a objeção: não teriam as doutrinas realistas (platônica e aristotélica), assim como a sua antítese nominalista, apenas reprimido por mais de dois milênios o que seria a solução mais óbvia do problema dos universais e do problema da substância, a qual sempre esteve ao nosso alcance e que hoje é chamada de a teoria dos tropos? Parece que essa última teoria só encontrou lugar na ontologia contemporânea, posto que ela pouco se deixa influir pelo ideal ascético, sendo a resistência que encontra, ao que parece, uma mera resultante do peso da tradição.

4. O mais ascético dos filósofos pré-cristãos foi Plotino, que provavelmente sofria de hanseníase e tinha os mais fortes motivos para negar o corpo. Para Plotino a alma é má por encontrar-se interconectada com o corpo. Para ele a vida nesse mundo é degeneração, fracasso. Como o mal está no mundo e a alma foi feita para escapar do mal, pensava ele, devemos evadir-nos desse mundo.
   Se mesmo antes do mundo cristão o ideal ascético já impregnava a filosofia, ainda mais, podemos prever, com o cristianismo. E aí a lista se torna longa, indo de Agostinho a Hegel, passando por Descartes, Spinoza, Leibniz e Kant.
    Considere, por exemplo, um filósofo teórico quase contemporâneo como Edmund Husserl, que foi uma pessoa de fé religiosa. É evidente que sua crença deve ter tido influência em sua aceitação de um platonismo de significados e de sua teoria da intuição categorial das essências (uma intuição intelectual), bem como a sua sugestão de um Eu transcendental fundador.
   Podemos especular o que Nietzsche teria considerado nesse aspecto da filosofia de um pensador com temática parecida, como Heidegger. Este último acreditava que o homem é um ser-para-a-morte no sentido de que a consciência de sua finitude é determinadora de suas atitudes diante da existência. Em seus últimos anos ele parece ter se refugiado em um esteticismo místico que via a linguagem como a casa do ser... Em uma entrevista para a revista Spiegel ele observou que só um Deus poderia nos salvar. Sem dúvida, esse poderia ser visto como mais um exemplo de negação da vida, através da substituição da pesquisa filosófica por uma retórica filosófica, o culto de mais uma forma de ideal ascético em filosofia! Heidegger é, sob esse ponto de vista específico, um filósofo pré-nietzscheano que acabou por refugiar-se em uma retórica tediosa como um gorro de dormir, com a qual buscava aproximar-se de um substitutivo de Deus que ele chamava de ser.
   Finalmente, podemos encontrar traços do ideal ascético no início da filosofia analítica contemporânea, em um filósofo como Frege com o seu mundo de sentidos eternos e atemporais. Mais ainda, podemos encontrar traços fortes do ideal ascético em filósofos analíticos contemporâneos como Michael Dummett (católico) e Saul Kripke (judeu praticante, filho de um rabi), que dentro de suas obsessões formalistas sofrem de um certo grau de horror mundi. Não são muitos os filósofos analíticos que resistiram a importar algum traço do ideal ascético em suas filosofias, embora alguns, como Russell e Wittgenstein, me pareçam menos afetados por ele.
   Essa percepção das repercussões filosóficas resultantes do diagnóstico nietzschiano do ideal ascético como sintoma de um adoecimento da civilização ocidental é um ponto importante e a meu ver correto. Podemos encontrar uma justificação para a inclinação ascética do filósofo: ele precisa viver a vida do pensamento, o que inevitavelmente demanda certo distanciamento e repressão das paixões e conflitos mundanos. Filósofos modernos de Descartes a Kant, por exemplo, não se casaram. O próprio Nietzsche praticou esse distanciamento e até muito mais do que outros. Como observou o Mefistófeles de Goethe, "toda a filosofia é cinzenta; verde é apenas a árvore de ouro da vida"[2]. É por isso mais tentador justificar esse distanciamento necessário, muitas vezes reativo (“mal resolvido” no dizer comum) através da ideia de que o mundo da vida é destituído de valor. É parte da integridade e coragem intelectual de Nietzsche ter praticado esse distanciamento sem ter precisado para isso se tornar o que ele chamaria de um “negador da vida”.
   Por outro lado, embora influenciando a filosofia, a aceitação e mesmo defesa do ideal ascético pode atingir muito pouco as ideias de filósofos interessados em questões menos associadas à vida humana, naquilo que mais lhes dá valor, do mesmo modo que o cristianismo doentio de Pascal não atingia as suas contribuições para a matemática enquanto tais.
   Tomemos como exemplo outra vez a doutrina das ideias de Platão. Importa pouco que o ideal ascético tenha participado de sua gênese, uma vez que o objetivo de sua teoria era linguístico-epistemológico-ontológico, buscando explicar como podemos predicar, como é possível dizer o mesmo de muitos. Foi um mérito da doutrina platônica ter sido a primeira tentativa explícita de responder à questão da unidade do múltiplo, mesmo que pela postulação de um mundo intelectivo separado do mundo sensível. Desvalorizar a doutrina platônica com base apenas em seu ascetismo reativo, sem uma cuidadosa avaliação dos argumentos, seria uma vez mais cometer uma falácia genética.





[1] Friedrich Nietzsche: Genealogia da Moral, II, 16.
[2] “Grau, teurer Freund, ist alle Theorie und Grün des Leben goldener Baum.” Faust I, Studienzimmer.




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