Texto apresentado à ANPOF
COGNITIVISMO SEMÂNTICO: POR UMA NOVA TEORIA DA REFERÊNCIA
Nosso
objetivo ao ensinar filosofia não deveria ser o de dar às pessoas o alimento
que elas mais apreciam, mas antes oferecer-lhes novo e diferente alimento, de
modo a aperfeiçoar seu paladar.
Wittgenstein
Resumo: Este artigo sumariza os principais momentos de uma
longa pesquisa sobre teorias da referência. O resultado é uma teoria cognitivista
da referência baseada em regras criteriais implícitas. Ela pode ser descrita
como uma forma mais refinada de teoria do feixe de descrições, embora
suficientemente poderosa para responder a quaisquer objeções externalistas, o
que a torna capaz de superar o velho conflito entre descritivismo e
referencialismo.
Abstract: This paper summarizes the main moments of a
longstanding research on theories of reference. The result is a cognitivist
theory of reference based on implicit criterial rules. It can be described as a
more complex and refined form of cluster theory, capable of addressing any externalist
objection and thereby overcoming the old stalemate between descriptivism and
referentialism.
Palavras-chave: referência,
nomes próprios, termos singulares e gerais, significado, externalismo
Keywords:
reference, proper names, general terms, meaning, externalism
Entre 2007 e 2023
dediquei um bom tempo em pesquisar a questão da referência dos termos
singulares e gerais. Os resultados foram publicados nos livros Lines of
Thought (2014), Philosophical Semantics (2018), Cognitivismo
semântico (2022) e How Do Proper Names Really Work?
(2023).
Duvido que especialistas tenham lido alguma
coisa. Editoras como a OUP, que detêm o monopólio do mercado, se recusam a
avaliar manuscritos de um completo outsider com dislexia social. E
quanto ao outsider, este fica com a certeza de que seus livros, diante
da vastidão daquilo que é publicado, estarão condenados ao ostracismo, não
importando o interesse que possam ter ou não ter. Em um contexto tão
desfavorável, alguém poderia inventar a teoria da relatividade que ninguém se
daria conta. Daí meu esforço para sair da toca e fazer um resumo comprimido de
algumas ideias principais.
1
Do meu ponto de vista, o
externalismo referencialista de Saul Kripke, Keith Donnellan, Hilary Putnam, David
Kaplan e vários outros é extraordinariamente importante, imaginativo e
desafiador, mas infelizmente falso. Já o internalismo descritivista de Frege,
Russell, Wittgenstein, P. F. Strawson e John Searle é intuitivo e verdadeiro,
mas infelizmente rudimentar. O que ambos têm de melhor, em meu juízo, é que são
capazes de oferecer um aporte positivo para a teoria cognitivista da referência
que irei resumir aqui.
Trata-se de uma forma neodescritivista e tacitamente
cognitivista de teoria da referência que, por consequência, é internalista em
sua explicação de como os termos singulares e gerais referem. Eu a julgo capaz
de superar por completo o tradicional impasse entre descritivismo e
referencialismo por reconfigurar o problema da referência, admitindo um
desenvolvimento por aproximações sucessivas, mais próximo da ciência e
suficientemente eficaz para – se devidamente instalado em um programa de
computador junto com os dados requeridos – permiti-lo identificar os
referentes. Em meu juízo, mais cedo ou mais tarde, a teoria aqui resumida será inevitavelmente
redescoberta, pois não consigo ver outra maneira de superar os já quarenta anos
de impasse entre descritivismo e referencialismo.
Entre meus pressupostos encontra-se a
interpretação que Michael Dummett fez do sentido fregeano dos termos como
regras criteriais. Como ele escreveu:
Para
Frege o sentido de uma expressão consiste sempre em uma regra que,
tomada em conjunto com as regras constitutivas dos sentidos de outras
palavras, determina a condição para a verdade da sentença em que a
expressão ocorre. (1981: 194, meus itálicos)
E ainda,
saber
o sentido de um nome próprio é possuir um critério para reconhecer, para
qualquer dado objeto, se ou não ele é o portador (referente) daquele nome;
conhecer o sentido de um predicado é ter um critério para decidir, para
qualquer dado objeto, se ou não o predicado se aplica àquele objeto; e saber o
sentido de uma expressão relacional é ter um critério para decidir, dados quaisquer
dois objetos em particular ordem, se ou não a relação que eles representam se
mantém entre o primeiro objeto e o segundo (1981: 229).
Essas ideias ecoam fortemente
a sugestão anterior de Wittgenstein de que os critérios – melhor dizendo, as regras
criteriais – são: “aquilo que dá a nossas palavras seus sentidos comuns” (1958:
57; Cf. G. P. Baker 1986). Ou então: “Há uma correspondência entre as
palavras ‘significado’ e ‘regra’” (1969, sec. 62)
A
mesma intuição foi mais claramente resumida na sugestão especulativa de Ernst
Tugendhat (1983: cap. 13.4; 1976: 258-263) de que termos singulares devem
possuir regras de identificação (Identifikationsregeln) e que termos
gerais devem possuir regras de aplicação (Aplikationsregeln), que devidamente
combinadas na frase predicativa singular são capazes de constituir uma regra
verificacional (Verifikationsregel).[1]
Meu ponto de partida foi a análise do nome
próprio, que sempre foi o ponto nodal das teorias da referência, com consequências
para os outros termos. Quis fazê-lo em busca das formas ou esquemas gerais de
regras de identificação do nome próprio.
Assumindo
essa hipótese de trabalho, meu primeiro objetivo foi o de encontrar regras
criteriais de identificação dos referentes de nomes próprios – regras capazes
de vindicar, no interior do neodescritivismo, a irrecusável ideia kripkiana de
que nomes próprios são designadores rígidos. De posse dessa espécie de
regra acredito ter demonstrado que uma forma mais refinada de neodescritivismo é
capaz de responder eficazmente a todos os contraexemplos da parte de Saul
Kripke e Keith Donnellan (Costa 2023 cap. IV), além do paradoxo fregeano da
identidade (2023, cap. V; Frege 1892).
Mas como chegar à regra de identificação?
Primeiro, devemos notar que as descrições definidas sugeridas pelos defensores
da teoria do feixe nada mais são do que expressões de regras
norteadoras da identificação do portador do nome. Podemos chamá-las de regras-descrições.
Meu primeiro problema foi encontrar as
regras-descrições mais fundamentais para a identificação do portador do nome
próprio. Me concentrei primeiramente no que é sabido pelo que chamei de usuários
privilegiados desses nomes, entendidos como as pessoas que melhor conhecem
as fontes que garantem a veracidade das descrições fundamentadoras
(especialistas, testemunhas, familiares...), pois isso nos daria maior
esperança de regimentar o desmantelo que é o feixe de descrições que nos foi
legado pelo descritivismo histórico (Cf. Searle 1958).
O método seguido para encontrar as regras-descrições
mais fundamentais conhecidas dos usuários privilegiados do nome foi inspirado
na metodologia pragmática excepcional de J. L. Austin (1961), o filósofo da “linguagem
ordinária”: começar examinando o que os dicionários dizem, de modo a fazer um
mapeamento pré-filosófico dos sentidos relevantes a serem usados como ponto de
partida, seguindo o moto de que a linguagem ordinária pode não ser o fim de
tudo, mas também pode (eu diria) ser o começo de tudo.
O problema é que nomes próprios não costumam
ser dicionarizados. Mas tal problema pode ser contornado no fato de que muitos
nomes são pelo menos enciclopedizados! Considere o nome ‘Aristóteles’. Tome em
mãos qualquer boa enciclopédia, especialmente as mais sintéticas, como o meu
pequeno Penguin Dictionary of Philosophy. Lá está escrito que
Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a.C., filho do médico de Amintas III, aos
17 anos foi para Atenas onde foi aluno de Platão em Atenas por 20 anos. Com a
morte deste foi para Assos, passou dois anos como biólogo em Lesbos, voltou por
algum tempo à corte macedônia, mas com o domínio da Grécia por Alexandre viveu
os próximos 12 anos em Atenas. Contudo, com a morte de Alexandre ele teve de
fugir para Chalcis, aí falecendo em 322 a.C. aos 62 anos. A esse relato se segue
uma breve lista de suas principais obras filosóficas (o Órganon, a Física,
a Metafísica, a Ética a Nicômaco, a Poética, etc.) acompanhadas
de duas páginas de claras e concisas explicações de seus conteúdos.
Há dois tipos de regras-descrições que podem
ser facilmente abstraídas desse verbete, como de todos os verbetes sobre nomes
próprios nas enciclopédias que formos buscar. Eles formam duas condições que
chamei de fundamentadoras:
1) Uma
condição localizadora: ela estabelece local e tempo do surgimento do
portador do nome e até mesmo suas origens, junto à sua carreira espaço-temporal
e ao local e tempo de seu possível desaparecimento.
2) Uma
condição caracterizadora: ela estabelece a razão ou principais razões
pelas quais nós usamos o nome próprio.
Consideremos mais
detidamente o nome ‘Aristóteles’. Sua condição localizadora pode ser resumida a
partir de sua origem (filho do médico da corte de Amintas III), local e data do
nascimento (Estagira, 384 a.C.), sua carreira espaço temporal (atravessou o mar
Egeu aos 17 anos para ir estudar com Platão, permaneceu na academia por 20
anos, após a morte do último foi para Assos, etc.) e seu desaparecimento
(faleceu em Chalcis em 322 a.C.). O mesmo podemos fazer com a condição
caracterizadora. Nós só nos lembramos de Aristóteles pela razão de ter sido ele
o autor do opus aristotélico, o maior sistema filosófico da antiguidade,
ainda hoje influente.
Tudo
isso, sabemos, é conhecido e até os mínimos detalhes pelos usuários
privilegiados do nome, que no caso são os intérpretes e historiadores. Parece
de bom senso que nos concentremos primeiro no estudo do nome próprio tal como
ele é conhecido por tais usuários, deixando para depois o caso de usuários que
conhecem pouco, mesmo porque o mecanismo de referência dos últimos, como
veremos, é muito diferente.
Surge aqui a pergunta: em que a descoberta
dessas duas condições fundamentais pode ajudar? Afinal, Kripke estava certo em
notar que em um mundo possível Aristóteles poderia ter nascido muitos anos
depois ou mesmo nada ter deixado escrito (1980: 62). Isso é verdade, mas em um
aspecto essas regras-descrições fundamentadoras são indispensáveis: é
impossível imaginar uma situação na qual nada do que elas demandam seja
o caso. Não é possível que nosso Aristóteles histórico seja um aluno recém-matriculado
na Universidade de Atenas, nem que ele seja o armador grego Aristóteles
Onassis, nem que ele tenha sido, como notou Searle (1967: 490), um iletrado
vendedor de peixes que viveu em Veneza na Renascença tardia.
Para se notar a maior importância das
condições ditas fundamentadoras, basta compará-las com o que chamei de regras-descrições
auxiliares, geralmente acidentais. Considere o caso de descrições
metafóricas, como “o mestre dos que sabem”, usada por Dante para se referir a Aristóteles,
ou descrições bem conhecidas, mas acidentais, como “o tutor de Alexandre” ou “o
fundador do Liceu”, ou ainda descrições acidentais pouco conhecidas, como “o
neto de Achaeon” e “o marido de Pítias”. Considere ainda descrições adventícias
como “o filósofo mencionado pelo professor na última aula”, que são indexicais e
que geralmente de pouca duração. Todas essas descrições definidas podem faltar
e mesmo assim ter Aristóteles existido. Por contraste, não podemos conceber nenhum
Aristóteles histórico que satisfaça todas essas descrições auxiliares, mas não
satisfaça absolutamente nada das descrições fundamentais. Imagine o diretor de
um liceu no Maranhão de nome Aristóteles, cuja esposa se chamava Pítias, que teve
um aluno chamado Alexandre e que era considerado um verdadeiro “mestre dos que
sabem” pelos colegas. As coincidências podem causar estranheza, mas ele jamais
poderá ser confundido com nosso Aristóteles histórico.
Há,
pois, uma diferença importante que merece ser investigada. As descrições
auxiliares, mesmo quando alvissareiras, não vingam. Elas desorientaram
filósofos no passado. Assim, Frege substituiu o nome ‘Aristóteles’ por ‘o aluno
de Platão e o tutor de Alexandre o Grande’ (1892: 28, nota), e Wittgenstein
substituiu ‘Moisés’ por ‘o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela
filha do faraó’ (2009, I, sec. 79); ambas são descrições auxiliares acidentais
bem conhecidas. Tais descrições são inegavelmente orientadoras em direção à
referência e fazem parte do feixe – mas são dispensáveis.
Um importante caso de descrição definida auxiliar
acidental bem conhecida é a que tem a forma de ‘o portador do nome N’, por
exemplo, ‘o portador do nome Aristóteles’, que originou as infames teorias
metalinguísticas do nome próprio. Essa descrição nada tem de fundamental.
Imagine que em um mundo possível muito próximo ao nosso, o médico da corte de
Amintas III tenha tido em 238 a.C. dois gêmeos: um deles foi batizado como
‘Aristóteles’ e o outro como ‘Pitacus’.
Digamos que Pitacus tenha tido exatamente a mesma carreira
espaço-temporal de nosso Aristóteles, estudando com Platão, escrito o opus pitacosano
(idêntico ao nosso opus aristotélico) e morrido em Chalcis em 322 a.C. Imagine
também que o gêmeo de nome Aristóteles tenha se tornado médico como o pai e que
tenha se juntado às hostes de Alexandre, morrendo de fome e sede ao retornar da
Índia. Em momento algum hesitaríamos em identificar nosso Aristóteles com Pitacus
e jamais com o infeliz Aristóteles que seguiu Alexandre.
Considerei as mais diferentes opções com o
intuito de organizar as condições fundamentadoras em um esquema de regra que as
tornasse eventualmente determinantes da rigidez dos nomes próprios. Em geral a
disjunção inclusiva dessas regras-descrições é suficiente. A satisfação
completa de ambos os disjuntos ou mesmo de um único disjunto não é necessária. Mas
uma satisfação insuficiente também não basta: se em um mundo possível o único filho
do médico da corte de Amintas III nascido em 384 fosse um feto anencefálico e
vivesse menos de uma semana sem ser sequer batizado, sem que nesse mundo
tivesse havido nenhuma obra aristotélica, nós hesitaríamos em reconhecê-lo como
o nosso Aristóteles. E também não reconheceríamos como nosso Aristóteles alguém
que na época tivesse escrito somente a Magna Moralia, uma obra informativa,
mas hoje considerada espúria. Além disso, só admitimos que um único portador
satisfaça o suficiente das condições fundamentadoras, o que é melhor obtido
pela adição da condição de que o portador que melhor as satisfaz é que deve ser
escolhido. Assim, se de um mundo possível tudo o que soubéssemos sobre o
assunto é que duas pessoas viveram na Grécia nos tempos de Aristóteles, uma
delas tendo escrito a Metafísica e a outra a Magna Moralia,
preferiríamos reconhecer como melhor competidor o autor da Metafísica,
quiçá nosso Aristóteles. O resultado, para resumir, foi o seguinte esquema de
regra:
ER: Um nome
próprio N (ou um nome equivalente) possui portador
see
(i-a) satisfaz sua
condição de localização
e/ou
(i-b) satisfaz sua
condição de caracterização
(ii) de maneira no
todo suficiente e
(iii) melhor do
que qualquer outro concorrente.
O nome
‘Aristóteles’ preenche esse esquema de regra através da regra de
identificação resumida a seguir:
RI: ‘Aristóteles’
(ou um nome equivalente) possui portador
see
(i-a) satisfaz a condição
localizadora já resumida acima.
e/ou
(i-b) satisfaz a
condição caracterizadora de ter escrito as principais obras do opus
aristotélico.
(ii) ele satisfaz
essas condições no todo suficientemente.
(iii) ele satisfaz
essas condições melhor do que qualquer outro competidor.
O esquema RI pode
ser considerado standard. Ele se aplica a nomes próprios como Paris, a Mona
Lisa, a Torre Eiffel, o Taj Mahal, o Everest, o Rio Amazonas, o Vale da
Morte... Mas também ele admite grandes variações. Em alguns casos, como o do
próprio Aristóteles, a caracterização vale mais. Em outros a localização vale mais
e até muito mais. Considere o caso do planeta Vênus. Nesse caso, a órbita entre
a Terra e Mercúrio desde sua descoberta é o que conta, mesmo porque o fato de
ser um planeta (e não, digamos, um simples asteroide) já vem embutido na condição
localizadora. E há nomes próprios de um pé só, como 'universo’, caracterizado
como tudo o que existe, logo sem localização, ou o nome ‘O’ identificando o
circuncentro de um triângulo onde só a localização é o que conta.
E que dizer dos nomes próprios
não-dicionarizados? Esses costumam ter a caracterização muito mais vaga e
dispersa do que, digamos, Napoleão, mesmo assim sendo identificáveis com a
ajuda de coisas como o histórico pessoal, documentos de identificação e as
memórias de familiares, amigos e colegas.
Nesse ponto alguém poderia objetar que meu
esquema de regra regimentador de feixes de descrições é demasiado vago. Qual o
limite dos detalhes descritivos fundacionais que precisam ser adicionados? O
quanto é “ser suficiente no todo”? ou “não possuir competidor à altura?” Minha
resposta é aristotélica e Wittgensteiniana. Como o primeiro escreveu na Ética
a Nicômaco: “É próprio do homem instruído buscar a precisão em cada classe
de coisas, apenas na medida em que a natureza do assunto o permite.” (1984: 1,
3, 24-25). E como Wittgenstein repetidamente notou em suas Investigações
filosóficas – contra a limpidez idealizada do formalismo anterior – a linguagem
natural é um instrumento vivo e flexível, que é vago e precisa ser vago, sendo
um erro tentar precisá-la mais do que o necessário. A vaguidade da linguagem
natural é inexpugnável e aqui pode ser que devamos agir como os meteorologistas,
que se classificam nuvens pelas suas formas, mesmo sabendo-as incontáveis. O
importante é que os nomes próprios cumpram bem a sua tarefa nas circunstâncias
normais de sua aplicação. Nossas regras criteriais irão sempre falhar onde
existirem fronteiras indefinidas (blurred borders) ou conflitos
criteriais. Nossas mentes são computadores analógicos e não digitais. A
própria noção de designação rígida demandaria em Kripke a adição da condição de
que o portador do nome deva ser definidamente identificável em qualquer
mundo possível. Em nosso caso, a condição é a de que a regra de identificação também
seja definidamente aplicável.
O esquema de regra sugerido já nos ajuda na
solução de toda uma grande variedade de questões. Considere, por exemplo, o
velho problema do navio de Teseu, que podemos denominar ‘Calibdus’. Teseu navegou
nele por muitos anos, sempre substituindo as partes usadas. No final ele
substituiu todas as partes, que ficaram guardadas em um depósito. Alguém
decidiu renovar as partes e construir um navio igual ao de Teseu. Pergunta:
qual é agora o verdadeiro navio de Teseu? Não temos uma resposta segura. Mas
para Teseu ela devia importar, pois se os dois navios colidissem e afundassem,
ele teria de escolher para qual navio saltar, uma vez que um bom capitão sempre
afunda com o seu navio.
O esquema oferece uma resposta: o primeiro
navio satisfaz a condição localizadora. É o navio fabricado por Teseu e que já teve
uma longa carreira espaço-temporal. O segundo navio satisfaz mais da regra
caracterizadora: ele se caracteriza por possuir pelo menos o material original
do navio de Teseu. Temos aqui um conflito criterial, embora a maioria prefira
dizer que o verdadeiro navio de Teseu foi aquele no qual ele navegou, pois a
condição de localização foi muito melhor satisfeita, e ainda que o material não
tenha permanecido o mesmo, a estrutura continua sendo a mesma.
A frustração não desaparece porque
percebemos que o exemplo pode ser modificado. Imagine que logo depois de
pronto, depois do batismo, o Calibdus permaneça junto ao estaleiro e que suas
partes sejam rapidamente substituídas por outras iguais, de modo que logo comece
a surgir ao lado um outro navio idêntico ao dele, que fica pronto em uma semana,
com todas as partes do primeiro. Nesse caso, como o percurso espaço-temporal do
primeiro navio foi praticamente nulo, tenderemos a dizer que o navio de Teseu apenas
mudou de lugar: ele é agora o segundo e não mais o primeiro, a razão sendo que
a condição caracterizadora foi completamente satisfeita pelo segundo navio
enquanto a condição localizadora mal começou a ser satisfeita pelo primeiro.
O que apresentei até agora vale como uma
teoria do significado referencial do nome próprio. Ele se constitui de um feixe
de regras-descrições que possui um núcleo constituído pela regra de
identificação e por um halo composto por regras-descrições auxiliares
geralmente capazes de uma função direcionadora. Nomes próprios não são termos
destituídos de significado, como Kripke gostaria de acreditar. Pelo contrário,
eles são excessivamente ricos de significação quando considerados por seus
usuários privilegiados. Apenas que seus significados cognitivamente atuantes
variam muito e são desconhecidos de muitos falantes. Como muitas vezes os
usamos tendo em mente apenas um ou outro sentido específico e quase sempre não
somos sequer usuários privilegiados, temos a impressão de falta de significação
quando os comparamos com termos gerais com significados que se repetem e que
são sempre os mesmos.
2
Quero agora passar à
explicação de como pessoas que não são usuários privilegiados, que chamo de
usuários indigentes do nome próprio e que geralmente formam a grande
maioria, são capazes de usá-lo referencialmente. Por exemplo: uma pessoa só
sabe de Aristóteles que ele foi tutor de Alexandre por ter assistido um filme
sobre Alexandre, no qual um velho filósofo aparece ensinando o jovem príncipe.
Ou então perguntamos a alguém na rua quem foi Aristóteles e a pessoa responde
que foi algum grande filósofo antigo, nada mais sabendo acerca dele. Kripke
achava que em ambos os casos a pessoa se refere a Aristóteles. Prefiro dizer que o
usuário indigente consegue inserir o nome corretamente no discurso e que a sua
referência realmente se dá, mas por meio do que Strawson chamou de empréstimo
da referência (1963: 185[2]) e por algo semelhante ao
que Searle chamou de referência parasitária (1983: cap. 9).
Explicando: o usuário indigente conhece,
digamos, apenas uma regra-descrição auxiliar ou algo genérico pertencente à
regra de identificação. Ele tem um conhecimento tácito de como são os esquemas
de regras de identificação. Ele sabe que existem usuários privilegiados que realmente
a conhecem. Por conseguinte, ele sabe que não sabe o suficiente para fazer uma
referência muito específica com conhecimento de causa. Consciente disso, ele
insere a palavra em contextos discursivos suficientemente vagos para que outros
a identifiquem sem precisar cair em incorreções. Esses outros falantes saberão tanto,
menos ou mais do que ele sobre Aristóteles. Mas fazem uma ideia... Se quiserem
saber mais, bastará buscar informações na cadeia de empréstimos da referência
até chegar a conhecedores privilegiados ou, digamos, a um repositório da IA que
os represente.
A condição para que uma referência
parasitária seja bem sucedida é que ela seja convergente. A convergência
se dá pela satisfação de duas condições: (i) classificação aceitável do
portador do nome; (ii) conhecimento da linguagem, ou seja, o saber tácito de que
não se conhece a regra de identificação suficientemente (sob pena de passar
vergonha). Esse uso referencial parasitário ou por empréstimo do nome próprio é
na verdade uma referência indireta, apoiada no que a comunidade linguística como
um todo é capaz de saber. Ele só é possível porque o usuário indigente sabe que
existem usuários privilegiados que conhecem a regra de identificação tão
completamente a ponto de garantidamente individuar Aristóteles.
Para evidenciar esse ponto, suponha que após
uma terceira guerra mundial um sobrevivente de uma comunidade que desconhecesse
qualquer coisa sobre a história da Europa encontrasse um pedaço de papel no
qual conseguisse ler o nome ‘Aristóteles’, seguido da descrição definida ‘o
autor do inteiro opus aristotélico’. Não será possível dizer que com auxílio
dessa descrição ele será bem sucedido em se referir a Aristóteles, pois não há uma
comunidade linguística na qual um falante seja capaz de inserir o nome próprio
de maneira a tomar de empréstimo o saber de outros usuários capazes de se
apoiar, ao final de alguma cadeia de empréstimos, no conhecimento efetivo dos
usuários privilegiados do nome.
A análise acima pode ser aplicada em
oposição a dois exemplos de Kripke contra o descritivismo. Alguém, disse ele,
seria capaz de se referir a Robert Feynman apenas por meio da descrição indefinida
‘um físico norte-americano’ (1980: 81), ou se referir a Einstein por meio da
descrição definida errônea ‘o inventor da bomba atômica’ (1980: 85). Em
ambos os casos, porém, a pessoa consegue se referir ao portador do nome.
Contudo, elas inserem o nome de modo convergente no discurso,
classificando corretamente Feynman como pertencente à classe dos físicos e
Einstein à classe dos inventores, o que nos permite dizer que ela se referiu
parasitariamente a essas pessoas. Isso não aconteceria se a pessoa tivesse
identificado Feynman com uma marca de perfume e Einstein com o nome de uma
pedra preciosa que pertencera à rainha Vitória, pois essas são descrições
divergentes. Nesse caso não diremos que a pessoa foi bem sucedida em referir.
Ela irá falhar ridiculamente em inserir esses nomes parasitariamente no
discurso, ainda que possa ser esclarecida por outros.
3
Um ponto decisivo é a
explicação cognitivista do contraste sugerido por Kripke entre designação rígida
e descrição acidental ou flácida. Segundo ele, nomes próprios são
designadores rígidos porque se referem ao mesmo objeto em todos os mundos
possíveis nos quais esse objeto existe, enquanto descrições definidas podem se
referir a objetos diferentes ou mesmo a nenhum, sendo por isso chamadas de
designadores acidentais (1980: 48).
Usando um exemplo seu: o nome ‘Benjamin
Franklin’ é rígido porque se refere à mesma pessoa em qualquer mundo possível
no qual ela exista. É também verdade que a descrição definida ‘o inventor das
bifocais’ se aplica a Benjamin Franklin em nosso mundo. Mas podemos
perfeitamente imaginar um mundo possível no qual João da Silva e não Benjamin
Franklin tenha inventado as bifocais, ou mesmo que apesar de ele ter existido, ninguém
inventou as bifocais. (Kripke 1980: 98, 145)
Para Kripke a distinção entre designador
rígido e acidental é uma descoberta de caráter metafísico: o
comportamento semântico dos nomes próprios é por essência diverso do
comportamento das descrições, razão pela qual o descritivismo sobre nomes
próprios é falso. De minha parte vejo isso como uma superstição metafísica
e no que se segue irei mostrar que a mais refinada teoria da referência aqui
resumida fornece razões conclusivas para se pensar assim.
A explicação que tenho é que a regra de
identificação do nome próprio é um designador rígido porque é tão vaga e flexível
que em qualquer mundo possível no qual seu portador definidamente existe, ela
se aplica. Mas isso não significa que as regras-descrições auxiliares ou mesmo
partes da própria regra de identificação precisem necessariamente se aplicar.
Eis a regra de identificação para Benjamin Franklin resumida de uma
enciclopédia qualquer:
RI
‘Benjamin Franklin’ (ou nome equivalente) possui portador
see
(i-a) satisfaz a
condição localizadora de ser uma pessoa que nasceu em Boston, 17 de janeiro de
1706, e faleceu em Filadélfia, 17 de abril de 1790 (...)
e/ou
(i-b) satisfaz a
condição caracterizadora de ter sido um polímata considerado um dos pais fundadores
dos Estados Unidos, um dos líderes da Revolução Americana, conhecido por suas
invenções e experiências com a eletricidade (...)
(ii) Essa
combinação deve ser no todo suficientemente satisfeita.
(iii) Ela deve ser
satisfeita melhor do que por qualquer outro competidor.
Antes de respondermos
vale introduzir um artifício facilitador da exposição, que consiste em deitar
a regra de identificação de modo a transformá-la em uma descrição definida abreviadora
do nome próprio (descrição individuadora ou DI) com a característica de
ser um designador rígido. Eis como ela fica:
DI
de Benjamin Franklin (ou nome equivalente) = A pessoa que (iii)
satisfaz melhor do que qualquer outra e (ii) no todo suficientemente a
disjunção inclusiva entre (i-a) ter nascido em Boston, 17 de janeiro de 1706 (...)
ou (i-b) ser um polímata estadunidense considerado um dos pais fundadores dos
Estados Unidos (...).
Essa é uma descrição
definida muito comprida, mas nem por isso deixa de sê-lo. Importante é que ela
torna o nome em questão um designador rígido, pois devido à sua vaguidade e extraordinária
flexibilidade ela se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Benjamin
Franklin existiu, diversamente das descrições auxiliares ou mesmo de partes da
regra de identificação que em situações contrafactuais podem não se aplicar. É
esse possível desajuste entre a referência da regra de identificação e a
dos componentes do feixe que torna as descrições parciais e auxiliares acidentais,
nada existindo de metafísico aqui.
Há uma maneira contundente de provar que
minha explicação é correta e que a de Kripke é ilusória. Basta considerarmos
descrições definidas que não fazem parte do feixe de nenhum nome próprio. Por
não ser mais possível um desajuste entre suas referências e a referência do
nome próprio ao qual pertencem, elas se tornam designadores rígidos,
aplicando-se em qualquer mundo possível no qual o objeto por elas referido
existe. Os exemplos são raros, mas podem ser encontrados. Eis alguns:
1.
O último período glacial,
2.
O assassinato do duque austríaco Franz
Ferdinand em Sarajevo em 1914,
3.
A Raflésia descoberta pelo Dr. Joseph
Arnold em 20 de maio de 1818,
4.
O 52nd Regimento de Infantaria Inglês,
5.
A série menos rapidamente convergente.
Não importa quando, em
outros mundos possíveis, terminou o último período glacial, nem se neles o
assassinato do duque causou a Primeira Guerra Mundial... Todas essas descrições
são designadores rígidos, pois não podem deixar de referir em qualquer mundo possível
no qual o processo, evento ou objeto a ser referido por elas existe. E a razão
disso é que elas não se encontram associadas a nenhum nome próprio com cuja
referência possam contrastar. Chamo essas descrições definidas de autônomas.
Curioso é que as regras de identificação por elas usadas são exatamente
as mesmas que usamos na identificação dos portadores dos nomes próprios.
Considere a descrição definida autônoma (4): ‘o 52nd Regimento de Infantaria
Inglês’. A regra de identificação que torna essa descrição rígida pode ser
resumida como:
DI
de ‘O 52nd regimento de infantaria inglês’ = o regimento que (ii) satisfaz de
maneira no todo suficiente e (iii) mais do que qualquer outro a disjunção
inclusiva entre a condição localizadora de (i-a) ter existido de 1757 a
1881, sendo estacionado em Oxfordshire, tendo agido na Guerra Americana de
Independência, na Guerra anglo-mysore na Índia e nas guerras napoleônicas ou a
condição caracterizadora de (i-b) consistir de um ou dois batalhões de
infantaria ligeira cada qual com aproximadamente 1000 homens recrutados em
Oxfordshire.
Essa descrição autônoma é
um designador rígido, pois tem suficiente flexibilidade para se aplicar em
qualquer mundo possível no qual aquele vetusto bastião do império existiu.
Vejamos agora, para contrastar, o que
acontece com exemplos de descrições definidas que pertencem ao halo ou até mesmo
ao núcleo semântico de nomes próprios:
1.
A
águia de Haia.
2.
O
marechal de ferro.
3.
O
fundador do Liceu.
4.
O
primeiro imperador romano.
5.
A
cidade luz.
Elas são acidentais pelo
seu possível desajuste referencial com a regra de identificação do nome
próprio a cujo feixe de descrições pertencem em situações contrafactuais.
Afinal, em diferentes mundos possíveis o navio de Rui Barbosa poderia ter
afundado antes de ele chegar a Haia, Floriano Peixoto poderia ter sofrido um
acidente fatal antes de ter chegado à presidência, Aristóteles poderia não ter
retornado a Atenas para fundar o Liceu, César poderia não ter atravessado o
Rubicão e Paris poderia ter sido destruída antes de ter se tornado a Cidade
Luz.
4
Passemos agora aos
brilhantes contraexemplos que Kripke e Donnellan apresentaram contra o
descritivismo. Todos eles foram facilmente explicados nos textos. Escolho aqui
apenas dois.
Comecemos com o mais famoso, o de
Gödel-Schmidt (1980: 83-84). Suponha, diz Kripke, que Gödel tivesse um amigo
chamado Schmidt que descobriu o teorema da incompletude. Logo após ter escrito
o artigo, Schmidt foi encontrado morto sob circunstâncias suspeitas. Imagine
agora que Gödel tenha roubado o manuscrito da prova e publicado em seu nome e
que uma usuária indigente chamada Maria conheça apenas a prova e associe o nome
Gödel à descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’. Imagine que se
torne público que foi Schmidt e não Gödel quem fez a descoberta. Como para o
descritivista a descrição associada ao nome é aquilo que possibilita a
referência, Maria deveria concluir que Schmidt é o verdadeiro Gödel. Mas não é
isso o que acontece. Para Maria Gödel continua sendo Gödel.
A teoria cognitivista aqui proposta explica
o que acontece no interior do internalismo. A
regra de identificação de Gödel pode ser resumida na seguinte descrição
definida individuadora:
DI:
‘Gödel’ (ou nome equivalente) = a pessoa que satisfaz (ii) no todo suficientemente
e (iii) melhor do que qualquer outro candidato, a disjunção inclusiva entre (i-a)
a condição localizadora de ter nascido em Brünn em 1906, estudado na
universidade de Viena, emigrado para os USA pela transiberiana em 1939 e
trabalhando em Princeton até 1978, ano de sua morte ou (i-b) a condição
caracterizadora de ter sido o matemático que descobriu e publicou o teorema da
incompletude, além de outros importantes trabalhos.
Qualquer usuário
privilegiado do nome Gödel não se sentirá forçado a substituí-lo pelo nome de
Schmidt só por ter descoberto que foi Schmidt quem desenvolveu o teorema da
incompletude, pois ele sabe que, apesar disso, o nome Gödel continua
satisfazendo a regra de identificação muito mais do que Schmidt. Ele satisfaz
por completo a condição de localização e ainda parte da condição de
caracterização, uma vez que Gödel publicou outros bons trabalhos mais tarde.
Que dizer de Maria, supondo que ela é uma
usuária indigente que apenas sabe o nome do descobridor do teorema da
incompletude que ela estudou? Ora, assumindo que Maria é um usuário competente
da linguagem, ela sabe que não sabe. Ela sabe que faz um uso emprestado do nome
próprio. Por conseguinte, ela não irá mudar o portador do nome enquanto não obtiver
maiores informações. E se as obtiver, aí sim terá razões para não mudar
o portador do nome.
Quero examinar aqui apenas um dos excelentes
contraexemplos de Keith Donnellan pelo seu caráter instrutivo.[3] Trata-se do caso do
filósofo Tales (1972: 377). Tudo o que sabemos de relevante sobre Tales,
sustenta Donnellan, é a descrição definida ‘o filósofo que disse que tudo é
água.’ Ele supõe então que um historiador que conhecia muito pouco do dialeto
local encontrou um inteligente cavador de poços chamado Tales que, farto de sua
profissão, disse: “Queria que tudo fosse água para não ter de cavar esses
malditos poços”. Confundindo o cavador de poços com um filósofo, o historiador
passou a mensagem de que tudo é água para os outros, chegando a Aristóteles e à
doxografia por nós herdada. Contudo, imagina Donnellan, coincidentemente em
tempos remotos um filósofo eremita realmente afirmou que tudo é água. Se o
descritivismo fosse certo então as pessoas deveriam concluir que o eremita é
quem foi Tales. Mas o fato é que ninguém deixará de admitir que nesse caso
Tales foi realmente o inteligente cavador de poços.
A resposta é fácil. Embora negue a
relevância explicativa da cadeia causal-histórica eu nunca neguei sua
existência, dando particular importância ao que chamei de história causal.
A história causal é constituída por pontos nodais da cadeia causal-histórica
cuja contraparte cognitiva se tornou pública, de modo que ela passou a fazer
parte do feixe de descrições geralmente conhecido. Essa história é
particularmente notável no caso de Tales de Mileto, filósofo cuja importância é
principalmente histórica.
Eis como fica resumida a condição de caracterização
de Tales de Mileto, considerando que os elementos doxográficos fazem parte da
história causal:
O
filósofo que é referido de segunda mão na doxografia de Aristóteles como tendo
sido o primeiro filósofo grego, que em sua cosmologia afirmou que a água é o
princípio originador do mundo, que permeia todas as coisas, que a Terra repousa
na água e que todas as coisas estão cheias de deuses. Ele também foi um
astrônomo que, segundo Heródoto, Diógenes Laércio e Dercyllides, previu um
eclipse solar e um geômetra que, segundo Laércio. baseado em Hieronymus, mediu
as pirâmides por suas sombras. (Kirk & Raven, 1971)
Só essa inserção de
elementos da história causal na descrição já nos faz concluir que o eremita de
Donnellan não pode ter sido Tales, pois ele não consta na doxografia. Mais do
que isso, que os doxógrafos tenham dito dele coisas falsas não faz com que
seja falso o fato de que os doxógrafos disseram essas coisas, permanecendo
a descrição intacta. Assim, a condição de caracterização continua verdadeira
mesmo que se descubra que Tales tenha sido um inteligente cavador de poços que
gostaria que tudo fosse água!
A condição localizadora fecha a questão por
continuar sendo totalmente satisfeita por Tales em forma e conteúdo. Ele é
descrito como:
A
pessoa que, de acordo com a doxografia de Diogenes Laertius, nasceu em 640 a.C.
e morreu em 549-546 a.C. De acordo com Laércio e Heródoto, Tales era um
milesiano e Laércio escreveu que ele era filho de Examynes e Cleobulina. De
acordo com Laércio e Proclus, ele visitou o Egito, a fonte tradicional da
ciência grega em algum momento de sua vida (Kirk & Raven, 1971).
Nada nesse registro
descritivo da história causal é satisfeito pelo eremita de Donnellan, que viveu
em tempos remotos e não foi sequer associado à cidade de Mileto, não sendo referido
por nenhuma das fontes históricas inseridas na descrição. Mesmo que se descubra
que Tales de Mileto havia sido um cavador de poços, usuários privilegiados irão
concordar que ele continua satisfazendo por completo a descrição localizadora.
Já os usuários indigentes poderão permanecer na incerteza até serem melhor
esclarecidos.
Encerro essa parte com uma curiosa nota
histórica. Com sua distinção entre forma e matéria Aristóteles nos ensinou a
identificar indexicalmente um indivíduo pela sua matéria, seguindo-se a isso a
identificação essencial da espécie e gênero do indivíduo pela sua forma. Duns
Scott sagazmente notou que nem a forma nem a matéria são capazes de individuar,
uma vez que elas se repetem em muitos indivíduos. Falta a “característica
individuadora” por ele chamada de haecceitas,
ou seja, aquilo que faz daquele homem lá Aristóteles e não Teofrasto. Falta a “aristotelicidade”
de Aristóteles. O que tentei resumir aqui foi exatamente isso: uma teoria capaz
de dar conta das características individuadoras do portador de um nome próprio
ou de uma descrição definida autônoma.
5
Quero agora aplicar a
teoria ao enigma fregeano da identidade. O enigma é por demais
conhecido: por que razão frases do tipo a = a não são informativas,
diversamente de frases do tipo a = b?
Podemos parafrasear o enigma como um problema
da identidade na diferença: como é possível que frases do tipo a = b enunciem
identidades ao mesmo tempo que enunciam diferenças? A resposta Fregeana é que a
= b afirma uma identidade numérica na referência (Bedeutung) objetiva[4], mas uma diferença nos
sentidos, nos modos de apresentação do objeto. Considere como exemplo o enunciado
“Phosphorus = Hesperus” (“A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde”). Para Frege
tratar-se-ia de um enunciado a posteriori e contingente, pois poderia ser
falso. Já
para Kripke trata-se de um enunciado necessário a posteriori, pois mesmo
que obtidos através da experiência, os designadores ‘Phosphoros’ e ‘Hesperus’
são rígidos, devendo identificar a mesma coisa em qualquer mundo possível.
Para responder à questão precisamos
considerar primeiro a frase de identidade “Vênus = Vênus.” Essa frase identifica
duas regras de identificação (significações) do nome próprio ‘Vênus’, que
aparecem entre colchetes, o que pode ser apresentado como:
Vênus
[[5]O planeta especificado como
satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o
segundo planeta do Sistema Solar orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra ao
menos desde algum tempo depois de ter sido assim nomeado] = Vênus [o
planeta especificado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer
outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar orbitando o Sol
entre Mercúrio e a Terra ao menos desde algum tempo depois de ter sido assim
nomeado[6]].
Vejamos agora a regra de
identificação para ‘Hesperus’:
DI
de ‘Hesperus (-Venus)’ = o corpo celeste visto ao anoitecer como o mais
brilhante após a Lua e considerado como satisfazendo suficientemente e mais
do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar,
orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter
sido nomeado.
Chamo de Hesperus (-Vênus)
porque ao sentido de ‘Hesperus’ enfatizado pelo nome e por mim sublinhado, encontra-se
implícita a condição de identificação de Vênus, pois é de todos sabido que
Hesperus é também Vênus. Vejamos agora a regra de identificação de
‘Phosphorus’:
RI-‘Phosphorus-(Venus)’
= o corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua,
que satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o
Segundo planeta do Sistema Solar a orbitar o Sol entre Mercúrio e a Terra desde
pelo menos algum tempo após ter sido nomeado.
Note que tanto Hesperus(-Vênus)
quanto Phosphorus(-Vênus) expressam implicitamente a mesma regra de
identificação do planeta Vênus, diferindo apenas pela adição de subregras
constitutivas de seus sentidos ou modos de apresentação diversos, que a
diversidade dos nomes enfatiza e que por isso eu sublinhei. Com esse
desempacotamento das regras semânticas podemos agora expor a diferença entre
Phosphorus e Hesperus encontrada nos sentidos fregeano diversos dos dois nomes,
ao mesmo tempo que podemos expor aquilo que eles têm de idêntico: iguais regras
de identificação do planeta Vênus embutidas em cada nome. Analisemos, pois, a
frase “Phosphorus = Hesperus”:
“Phosphorus
(-Vênus) = Hesperus (-Vênus)”:
Phosphorus
[Um corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante corpo celestial
depois da Lua, considerado como satisfazendo suficientemente e mais que
qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, que orbita
entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado] = Hesperus
[um corpo celeste visto ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua,
considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a
condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar que orbita o Sol entre Mercúrio
e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.]
O que é diferente nessa
frase do tipo a = b é o que está sublinhado, ou seja, os respectivos sentidos
ou modos de apresentação de ‘Phosphorus’ e ‘Hesperus’ que ladeiam o sinal de
igualdade. O que é idêntico nessa mesma frase do tipo a = b é o que não está
sublinhado, que é a regra de identificação de Vênus, que também aparece ladeando
o sinal de igualdade. Temos agora a explicação para a identidade na diferença: a
identidade é a de duas regras implícitas enquanto a diferença é da subregra
explicitadora dos diferentes sentidos. Ao considerar a diversidade informativa
dos sentidos, Frege ressaltou o que está sendo sublinhado.
Podemos agora identificar o erro de Kripke
ao considerar essa identidade, além de um erro cometido pelo próprio Frege.
Quero começar considerando a maneira como Kripke percebe a identidade acima
apresentada. Para ele o enunciado “Phosphorus = Hesperus” é entendido cortando
as explicitações dos sentidos diversos e substituindo as regras de identificação
de Vênus pela cadeia causal-histórica. “Phosphorus = Hesperus” fica sendo:
“Phosphorus(-Vênus)
– Hesperus(-Vênus)”
Phosphorus [um
corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua e ([7]considerado
como satisfazendo suficientemente e mais que qualquer outro a condição de ser o
segundo planeta do Sistema Solar, que orbita entre Mercúrio e a Terra desde ao
menos algum tempo após ter sido nomeado)] = Hesperus [o corpo celestial visto
ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua e (considerado como
satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo
planeta do Sistema Solar que orbita o Sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos
algum tempo após ter sido nomeado.)]
Claro que assim
considerada essa identidade é tautológica, contendo dois designadores rígidos. O erro de Kripke é o de
desconsiderar a diferença, o que tinha sido grifado, e considerar apenas o que
não foi grifado no sentido da frase “Phosphorus (-Vênus) = Hesperus (-Vênus)”,
fazendo com que ele a veja como uma identidade necessária, embora a posteriori.
O que ele realmente faz é apenas enfatizar a regra de identificação de Vênus
substituída por uma suposta história causal, que se repete ladeando a
identidade. Nesse aspecto a identidade é necessária, pois é numérica. Mas ele
se esquece que a adição dos diferentes sentidos torna a identidade inevitavelmente
a posteriori e contingente. (Basta imaginar uma estranha nuvem de substância
escura que venha a se interpor entre nós e Vênus impedindo-nos de vê-lo.) É
assim que ele produz essa provável aberração que é o necessário a posteriori.
Vejamos agora como Frege percebe o enunciado
“Phosphorus = Hesperus”:
Phosphorus(-Vênus) = Hesperus(-Vênus)
Phosphorus [um
corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua e
considerado como satisfazendo suficientemente e mais que qualquer outro a
condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, que orbita entre Mercúrio e
a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado] = Hesperus
[o corpo celeste visto ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua e
considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a
condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar que orbita o sol entre Mercúrio
e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.]
Frege ignora as regras de
identificação de Vênus implícitas. Vemos, pois, que há aqui também um erro de
sua parte, que é o de considerar somente o que diferencia as regras de
identificação de Phosphorus (-Vênus) e de Hesperus (-Vênus), ignorando o que está
cortado por acreditar que a referência (o Bedeutung = a significação)
seja o próprio planeta, sem perceber que uma mesma regra de identificação de
Vênus se encontra embutida em ambos os lados da identidade. Contudo, como a subregra
que explicita a diferença de sentido é proveniente da experiência, Frege está
certo em considerar essa identidade como a posteriori.
Há uma variedade de casos algo diversos que precisaram
ser considerados separadamente, como “Tulio é Cícero”, que depende do
conhecimento do nome inteiro de ‘Marcus Tullius Cicerus’, ou ainda o famoso
argumento kripkiano do púlpito que necessariamente não é de gelo (Costa 2023:
cap.V).[8]
6
Que dizer agora dos indexicais?
Nesse caso precisaremos estabelecer uma caracterização específica, uma vez que
a localização espaço-temporal já vem dada. Mas só temos acesso epistêmico a
essa localização porque a internalizamos cognitivamente. Sigo aqui Frege (1918:
76): o pensamento (Gedanke) expresso no proferimento indexical
independe do contexto, a prova disso sendo que a frase (Satz) pode ser desvinculada
do contexto ao incluir o tempo do proferimento de modo a exprimir o pensamento
completo.
Perry pensava diferente.
A
sugestão de Perry fica clara se nos recordarmos de seu principal exemplo. Ele
se encontrava empurrando um carrinho de supermercado quando percebeu um rastro de açúcar à sua frente. Ele deu a
volta na estante procurando avisar a pessoa que ela estava fazendo uma bagunça,
só para descobrir que o rastro estava vindo de seu próprio carrinho. Ele reage
pensando: “Eu estou fazendo essa bagunça” (1979: 3).
Perry defendeu que é impossível parafrasear
essa constatação em uma frase eterna que faça desaparecer a função
espaço-temporal concreta do indexical “eu” porque ela não é substituível em
qualquer contexto. Não é possível, por exemplo, que ele diga: “Perry está
fazendo uma bagunça” no caso em que ele esteja com um início de demência e não
se recorde de seu próprio nome…
Considero possível parafrasear fregeanamente
o enunciado de Perry em uma frase eterna como a seguinte:
(E):
Às 10 horas da manhã, 26 de março de 1968, na seção de alimentos do
supermercado Fleury em Berkeley, Perry nota o açúcar caindo de seu carrinho de
compras e pensa que ele está fazendo uma bagunça (ou então
pensa “Eu estou fazendo uma bagunça”) e, de fato (é verdade que), ele
está realmente fazendo uma bagunça.
Está certo que os
indexicais ‘ele’ e ‘eu’ permanecem. Mas, em consonância com Frege, eles se
referem agora aos seus sentidos e não mais a algo lá fora no mundo. O ‘ele’ vem
após um verbo de atitude proposicional em uma frase complementar na qual passa
a se referir ao seu sentido, o mesmo acontecendo com o ‘eu’ na frase entre
aspas. Aqui o indexical foi sequestrado para dentro da frase eterna de modo a
exprimir um pensamento independente do contexto. Examinei os outros exemplos de
Perry chegando ao mesmo resultado (Costa 2014: cap. 4).
Uma objeção seria a de que Perry não pensou
tudo o que se encontra na frase (E). A resposta é que isso é desnecessário. Se
essas informações fossem dadas a Perry, ele tenderia a concordar... Outras
pessoas, comentando o incidente, poderão lembrar de coisas como a manhã do dia
em que isso aconteceu e o nome do supermercado… É verdade que faltam os
conteúdos fenomenais privados vividos por Perry naquele momento. Mas não é
necessário nem possível que eles venham contidos na frase indexical, incapaz de
comunicá-los.
O importante na paráfrase é que ela desfaz o
mito do indexical essencial ao demonstrar que ele não elimina o caráter inteiramente
cognitivista e nesse aspecto contextualmente independente de nossos
reconhecimentos perceptuais.
7
A teoria proposta pode
ser facilmente estendida a termos gerais, com a diferença de que a condição de
localização espaço-temporal inevitavelmente desaparece, já que os predicados se
instanciam com respeito aos mais variados locais. Mas o método continua sendo o
de Austin: começar examinando o que os dicionários têm a dizer.
Como é bem sabido, não há uma classificação
dos termos gerais que não os sobreponha uns aos outros. O que fiz foi
introduzir uma classificação simétrica à dos termos singulares, na qual os
termos gerais se dividem em: indexicadores, descritivadores e
nominadores.
Indexicadores são termos como ‘vermelho’ e ‘redondo’
quando usados para designar o que se encontra fenomenalmente dado aos sentidos.
Eles ganham seu sentido fenomenal pelo que Russell chamou de familiaridade
(acquaintance). As regras de atribuição desses termos são aprendidas
interpessoalmente por meio de exemplos positivos e negativos em situações
indexicais, o que torna impossível a um cego aprender o sentido fenomenal da
palavra ‘vermelho’.
Os termos gerais descritivadores são
análogos às descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de
identificadora. Eles são capazes de tomar a forma de descrições indefinidas
como nos casos de ‘um caça-dotes’ e ‘uma cabeça de ponte’. Eles são mais
estáveis do que os indexicadores, do mesmo modo que as descrições definidas são
mais estáveis do que indexicais.
Finalmente, há os termos nominadores,
tradicionalmente chamados de “nomes gerais”, como ‘tigre’, ‘água’, ‘cadeira’.
Eles são não só estáveis, tal como as descrições definidas, mas também mais flexíveis,
tal como os nomes próprios. E da mesma forma que há uma progressão genética que
tendencialmente vai do aprendizado contextual dado por indexicais para o
aprendizado de descrições definidas e, finalmente, para os nomes próprios, há
também uma progressão genética tendencial, que começa com os termos
indexicadores, passando depois aos descritivadores e terminando com os
nominadores. Quero analisar a seguir dois casos de termos nominadores para
mostrar como o esquema proposto para os nomes próprios pode ser a eles adaptado.
Considere a maneira como Kripke considerou o
termo nominador ‘tigre’. Contra o descritivismo, ele notou que a descrição do
tigre como:
Dt:
grande e feroz animal asiático carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo
acastanhado, listas transversais e barriga branca (1980: 119),
não é nem necessária nem
suficiente. Não é necessária porque podemos em um mundo possível encontrar
animais que satisfazem Dt, mas que possuem um layout genético mais
próximo dos répteis do que dos felinos; não é suficiente porque podemos
imaginar que a evolução produza algo como a vergonha da espécie: tigres
pequenos e herbívoros, que andam sobre patas traseiras e são mansos como
coelhos.
O problema está na definição simplificada,
baseada apenas em traços superficiais. Eis uma regra de atribuição (a Verwendungsregel
de Tugendhat) mais algo adequada a ser associada ao termo nominador ‘tigre’,
capaz de torná-lo um designador rígido no sentido de ser aplicável em
qualquer mundo possível no qual tigres existam:
RA -‘tigre’:
Atribuímos o conceito de
tigre a um exemplar
see
(i)
Ele é um grande mamífero carnívoro
pertencente à família dos felídeos e ao genus panthera. É a maior espécie de
gato, nativo da Ásia. Sua marca essencial é possuir um mesmo DNA mitocondrial
que o torna capaz de se entrecruzar com suas subespécies
produzindo descendentes férteis. Ele costuma ser reconhecido exteriormente por
suas listas transversais escuras, pelo alaranjado e barriga branca.
(ii)
Ele
satisfaz (i) suficientemente,
(iii)
Ele satisfaz (i) mais do que qualquer
outro espécime do genus panthera.
Observe que não há mais aqui
condição localizadora, já que termos gerais podem se aplicar em lugares e
tempos os mais diversos.
Aqui também encontramos usuários
privilegiados e indigentes, assim como a aplicação por empréstimo de referência.
Em um exemplo clássico, uma pessoa pode pensar que a baleia é um peixe, quando
na verdade é um mamífero aquático, produzindo mesmo assim um uso convergente do
termo. Mas se uma criança pensar que baleia é o nome de uma montanha na serra
do Caparaó, ela não acerta sequer a classe geral dos animais aquáticos, de modo
que não teremos sequer como admitir que ela se referiu a baleias de modo
parasitário.
8
Embora tenha examinado um
considerável número de termos conceituais, quero me concentrar agora no termo
geral ‘água’, talvez o mais discutido em teorias da referência. Indispensável é
notar que aquilo que somos capazes de entender com a palavra ‘água’ sofreu uma
modificação revolucionária com o desenvolvimento da química. Disso resultaram
dois usos ou núcleos de significação da palavra: o popular e o científico.
O núcleo popular é o que esteve conosco por
milhares de anos: o de um “líquido aquoso”, transparente, inodoro e insípido, que
aplaca a sede, apaga o fogo, serve para lavar, cai sob forma de chuva e cobre
rios, lagos e mares.
Foi assim até o final do século XVIII e
início do século XIX, quando despontou o que chamo de uso ou sentido científico
do termo (Ball 2000). Como Avrum Stroll observou (1998: 71), bons dicionários
modernos também dão conta desse sentido, que é sumarizado pela fórmula H2O,
mas que é inferencialmente muito mais complexo quando considerado pelos seus
usuários privilegiados, que são os químicos. Eles sabem, por exemplo, que a
carga ligeiramente negativa da molécula de oxigênio é atraída pela carga
ligeiramente positiva das outras moléculas de hidrogênio, formando cadeias
responsáveis por sua maior tensão superficial, ou que próximo do zero absoluto
a água novamente se liquefaz...
É também claro que dependendo do contexto
de uso um desses sentidos é enfatizado e o outro esquecido. Por
exemplo, em um laboratório de química no qual estudantes estejam fazendo
experiências com eletrólise, o sentido científico do termo é enfatizado. Mas se
considerarmos o contexto de uso de uma comunidade indígena que tenha
como único interesse usar água para beber e para lavar, o sentido popular é que
é enfatizado.
A
regra de atribuição final que propus como sendo bem conhecida dos usuários
privilegiados é:
RA-‘água’:
Atribuímos a palavra
‘água’ a uma amostra
see
(i-a) a amostra satisfaz
a condição de caracterização constitutiva de seu núcleo popular de significado
e/ou
(i-b) ela satisfaz a condição
de caracterização constitutiva de seu núcleo científico de significado.
(ii) satisfaz essas condições
caracterizadoras em grau no todo suficiente.
(iii) satisfaz mais do que qualquer
outro composto inorgânico.
Não se deve confundir essa
disjunção inclusiva com a dos nomes próprios. Ela apenas indica o fato de que
podemos falar de água tanto considerando o núcleo popular quanto o núcleo
científico de significação, não é exigido sequer que usuários indigentes saibam
a composição química da água para admitirmos que eles sejam capazes de fazer
referência a ela ou que saibam tudo sobre o núcleo popular.
Com isso se desfaz o velho conflito
conceitual entre descritivistas como A. J. Ayer (1984) e Avrum Stroll (1998) e
referencialistas como Kripke (1980: 128) e Putnam (1975) sobre o conceito de
água. Os primeiros só admitiam o núcleo descritivo popular superficial de
significação da palavra, como se fosse inevitável ao descritivismo se
comprometer apenas com descrições de superfície, enquanto os últimos só
admitiam o núcleo científico. Ambos deixaram de notar que a regra de atribuição
admite ambos os casos.
Quero agora demonstrar o poder explicativo
da regra de atribuição, refutando o famoso argumento externalista de Putnam da Terra
Gêmea (Putnam 1975: 224). Segundo Putnam, Oscar-1 está na Terra e Oscar-2 se
encontra na Terra Gêmea, que é praticamente idêntica à nossa Terra, inclusive
historicamente, exceto pelo fato de que o “líquido aquoso” que mata a sede,
apaga o fogo e cai sob forma de chuva tem na Terra Gêmea a composição XYZ e não
H2O. Assim,
diante de uma chuva no ano de 1750, Oscar-1, na Terra, diz: “Isto é água!” E
Oscar-2, na Terra-Gêmea, também diz: “Isto é água!” Como por volta de 1750 ainda não se conhecia a
composição química da água, tudo o que os Óscares podiam ter em suas cabeças
era a mesma ideia do líquido aquoso inodoro e transparente que estava caindo
sob forma de chuva. Contudo, eles se referiam a coisas diferentes: Oscar-1 se
referia à H20 e Oscar-2 se referia a XYZ, mesmo que não soubessem
disso. Para Putnam a diferença é semântica, pois eles “queriam dizer” (‘meant’)
coisas diferentes. Daí Putnam ter concluído que Oscar-1 e Oscar-2 sem saber atribuíam
significados diferentes à água em 1750: para o primeiro, ‘água’
significava amostras de H2O e para o segundo amostras de XYZ.
Conclusão: o significado não está na cabeça! Pois em suas cabeças eles tinham
apenas a mesma ideia do líquido aquoso. O significado pertence essencialmente ao
mundo externo.[9] Não demorou muito para que um filósofo chamado John McDowell
(1992) levasse esse raciocínio ao extremo, concluindo que como o locus
do significado é a mente, então a própria mente está fora da cabeça!
Tendo
em mente a evolução da regra de atribuição do termo nominador ‘água’, fica
fácil refutar o argumento de Putnam (Costa 2022: cap. 8). Para começar, é
preciso lembrar que ‘to mean’ significa em inglês tanto “querer dizer” (significar)
quanto “apontar para”, como quando alguém diz: “I mean this table and not that
chair”. O que Putnam fez foi usar a palavra no primeiro sentido em um contexto
no qual o segundo deveria ter prevalência. O que os Óscares “meant” de forma
diferente é o referente que eles apontam e não o que eles têm em mente. Contudo,
o sentido de ‘to mean’ como “significado”, como “o que se quer dizer” se
restringia em 1750 ao sentido popular da palavra, em si mesmo suficiente para
sustentar sua aplicação, de modo que ambos os Óscares possuíam somente esse
núcleo popular de significado como sendo o de água como o “líquido aquoso” – desprezado
por Putnam – em suas cabeças. Por outro lado, é óbvio que quando consideramos
‘meant’ no sentido de apontar, os Óscares estavam, sem saber, apontando para H2O
na Terra e para XYZ na Terra-Gêmea.
Considerando
essas distinções torna-se claro como funciona o truque semântico: Quando Putnam
nos diz que em 1750 os dois Óscares “queriam dizer” (meant) duas coisas
diferentes com a palavra ‘água’, ele está apenas nos induzindo subrepticiamente
a usar Oscar-1 e Oscar-2 como instrumentos indexicais para o que nós mesmos
queremos dizer (‘meant’ no sentido de “significamos”) com a palavra ‘água’ em
cada caso. Afinal, é claro que quase todos nós hoje levamos em conta o
núcleo científico. Nós entendemos presentemente água como um líquido aquoso de
composição H2O quando consideramos o que Oscar-1 está apontando, e
consideramos o líquido aquoso apontado por Oscar-2 como XYZ (seja lá o que isso
for), sendo claro que o que temos em nossas cabeças é diferente. Por um
apelo sub-reptício a nossos estados mentais diferentes aplicados aos objetos
referidos pelos Óscares, Putnam conseguiu convencer a muitos e a ele mesmo que
os seus Óscares de 1750 realmente queriam dizer (meant) água atribuindo significados
diferentes aos seus referentes. Não surpreende que ele tenha muitos anos depois
confessado a Searle que havia deixado de acreditar em sua fantasia da Terra Gêmea.[10]
O
externalismo semântico foi importante. Seus argumentos são profundos e, sem
eles, por razões dialéticas, a teoria aqui resumida não teria como alçar voo.
Mas ele resulta de uma falácia genética: Por causa de suas origens externas o
significado, que é inerentemente cognitivo, embora tácito, passa a ser
equivocadamente visto como possuindo um componente externo. Que a falácia
genética possa ser sempre mais refinada não faz com que deixe de sê-lo (Cf.
Kallestrup 2012). Em um sentido secundário o significado pode substituir a palavra
‘importância’; assim falamos de um acontecimento “significativo”. No sentido
primário, porém, significados são regras ou combinações de regras linguísticas
que se instanciam cognitivamente em nossas mentes e que fazem isso o tempo
inteiro na independência do que acontece lá fora.
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[1] É preciso
observar que a regra verificacional aqui aludida não tem nada a ver com o non
sequitur que os positivistas lógicos fizeram das sugestões que lhes foram
dadas por Wittgenstein. Cf. Alice Ambrose (ed.): Wittgenstein’s Lectures
1932-1935 (New York: Prometheus Books), sec. 24-25. Ver Claudio Costa
(2018: cap. V).
[2] “Assim, uma
referência pode tomar emprestado suas credenciais como uma referência
genuinamente identificadora, de outra; e essa de outra. Mas esse regresso não é infinito” P. F. Strawson, Individuals:
An Essay in Descriptive Metaphysics (New
York: Anchor Book 1963), p. 185, nota.
[3] Os outros
contraexemplos, tanto de Gödel quanto de Donnellan, foram todos refutados no
capítulo IV de “How Do Proper Names Really Work?”
[4]
Na carta dirigida a Russell em 13 de Novembro de 1904,
Frege fala da Lua em si mesma como o significado (Bedeutung).
[5] Incluo entre
colchetes a descrição do que pertence aos sentidos e significados dos nomes.
[6] Com ‘desde ao
menos algum tempo...’ quero bloquear a objeção de que em outro mundo possível
‘Vênus’ possa ter mais tarde alterado sua órbita, ter sido destruído, etc., mas
que ainda assim tenha sido identificado.
[7] Incluo entre
parênteses o que Kripke não queria considerar, ou seja, as regras
identificadoras de Vênus, que Kripke substituiu pela sua cadeia
causal-histórica.
[8] Quero
considerar esse último apenas para mostrar que há várias maneiras de se
produzir um suposto necessário a posteriori. Considere o argumento a favor do necessário
a posteriori apresentado primeiro artigo de Kripke (1971), no qual ele
demonstra que, dado que seu púlpito não é feito de água, é necessário que ele
não seja feito de água. Chamando de P = “Esse púlpito não é feito de água
congelada”, o argumento tem a forma: (P → □P) & P Ͱ □P. Expresso de modo
extenso o argumento fica sendo: “Se esse púlpito não é feito de gelo então é
necessário que ele não seja feito de gelo. Esse púlpito não é feito de gelo.
Logo: É necessário que esse púlpito não seja feito de gelo. Ou seja: a
conclusão é um enunciado necessário a posteriori porque embora derivado da experiência,
é necessário. O problema é que o P do antecedente da primeira premissa não é
exatamente o mesmo que o P da segunda, o que torna o argumento equívoco.
O primeiro P é hipotético, enquanto o segundo P afirma o que é chamado de certeza
prática (Salmon 2002: 237-8), uma certeza que é suficientemente plausível
para gerar assentimento, mas que não é absoluta. Como resultado o argumento
fica sendo:
Se
esse púlpito não é feito de gelo, então é necessário que ele não seja feito de
gelo.
É
praticamente certo que esse púlpito não é feito de gelo.
Logo:
É necessário que esse púlpito não seja feito de gelo.
Devido
à natureza falível do conhecimento humano, não podemos saber com absoluta certeza
que o púlpito não é realmente feito de gelo de modo a derivar a necessidade
lógica de nossa consciência. (Só um Deus onisciente seria capaz disso). Daí que
a conclusão de Kripke não se segue.
[9] Putnam admitia (1975:
270) que além desse mais importante componente extensional externo do
significado da palavra ‘água’ existem marcadores sintáticos (nome de
massa) e semânticos (nome de espécie natural), além de estereótipos psicológicos
(descrições de superfície). Isso é correto, mas só serve para confundir ainda
mais o leitor crédulo.
[10]
Tive o cuidado de refutar os outros dois
exemplos de Putnam no artigo sobre a Terra Gêmea (Costa 2023: 235-236) junto a
alguns engenhosos exemplos de Tyler Burge (1973; Costa 2023: 237-239) e David
Kaplan (1989: 516-517, 531-532; Costa 2023: 239-241) respectivamente sobre a
externalidade do pensamento e dos indexicais.
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