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domingo, 17 de agosto de 2025

COGNITIVISMO SEMÂNTICO: POR UMA NOVA TEORIA DA REFERÊNCIA

 Texto apresentado à ANPOF


COGNITIVISMO SEMÂNTICO: POR UMA NOVA TEORIA DA REFERÊNCIA

Nosso objetivo ao ensinar filosofia não deveria ser o de dar às pessoas o alimento que elas mais apreciam, mas antes oferecer-lhes novo e diferente alimento, de modo a aperfeiçoar seu paladar.

Wittgenstein

 

Resumo: Este artigo sumariza os principais momentos de uma longa pesquisa sobre teorias da referência. O resultado é uma teoria cognitivista da referência baseada em regras criteriais implícitas. Ela pode ser descrita como uma forma mais refinada de teoria do feixe de descrições, embora suficientemente poderosa para responder a quaisquer objeções externalistas, o que a torna capaz de superar o velho conflito entre descritivismo e referencialismo.

 

Abstract: This paper summarizes the main moments of a longstanding research on theories of reference. The result is a cognitivist theory of reference based on implicit criterial rules. It can be described as a more complex and refined form of cluster theory, capable of addressing any externalist objection and thereby overcoming the old stalemate between descriptivism and referentialism.

 

Palavras-chave: referência, nomes próprios, termos singulares e gerais, significado, externalismo

Keywords: reference, proper names, general terms, meaning, externalism

 

Entre 2007 e 2023 dediquei um bom tempo em pesquisar a questão da referência dos termos singulares e gerais. Os resultados foram publicados nos livros Lines of Thought (2014), Philosophical Semantics (2018), Cognitivismo semântico (2022) e How Do Proper Names Really Work? (2023).

   Duvido que especialistas tenham lido alguma coisa. Editoras como a OUP, que detêm o monopólio do mercado, se recusam a avaliar manuscritos de um completo outsider com dislexia social. E quanto ao outsider, este fica com a certeza de que seus livros, diante da vastidão daquilo que é publicado, estarão condenados ao ostracismo, não importando o interesse que possam ter ou não ter. Em um contexto tão desfavorável, alguém poderia inventar a teoria da relatividade que ninguém se daria conta. Daí meu esforço para sair da toca e fazer um resumo comprimido de algumas ideias principais.

 

1

 

Do meu ponto de vista, o externalismo referencialista de Saul Kripke, Keith Donnellan, Hilary Putnam, David Kaplan e vários outros é extraordinariamente importante, imaginativo e desafiador, mas infelizmente falso. Já o internalismo descritivista de Frege, Russell, Wittgenstein, P. F. Strawson e John Searle é intuitivo e verdadeiro, mas infelizmente rudimentar. O que ambos têm de melhor, em meu juízo, é que são capazes de oferecer um aporte positivo para a teoria cognitivista da referência que irei resumir aqui.

   Trata-se de uma forma neodescritivista e tacitamente cognitivista de teoria da referência que, por consequência, é internalista em sua explicação de como os termos singulares e gerais referem. Eu a julgo capaz de superar por completo o tradicional impasse entre descritivismo e referencialismo por reconfigurar o problema da referência, admitindo um desenvolvimento por aproximações sucessivas, mais próximo da ciência e suficientemente eficaz para – se devidamente instalado em um programa de computador junto com os dados requeridos – permiti-lo identificar os referentes. Em meu juízo, mais cedo ou mais tarde, a teoria aqui resumida será inevitavelmente redescoberta, pois não consigo ver outra maneira de superar os já quarenta anos de impasse entre descritivismo e referencialismo.

   Entre meus pressupostos encontra-se a interpretação que Michael Dummett fez do sentido fregeano dos termos como regras criteriais. Como ele escreveu:

 

Para Frege o sentido de uma expressão consiste sempre em uma regra que, tomada em conjunto com as regras constitutivas dos sentidos de outras palavras, determina a condição para a verdade da sentença em que a expressão ocorre. (1981: 194, meus itálicos)

 

E ainda,

 

saber o sentido de um nome próprio é possuir um critério para reconhecer, para qualquer dado objeto, se ou não ele é o portador (referente) daquele nome; conhecer o sentido de um predicado é ter um critério para decidir, para qualquer dado objeto, se ou não o predicado se aplica àquele objeto; e saber o sentido de uma expressão relacional é ter um critério para decidir, dados quaisquer dois objetos em particular ordem, se ou não a relação que eles representam se mantém entre o primeiro objeto e o segundo (1981: 229).

 

Essas ideias ecoam fortemente a sugestão anterior de Wittgenstein de que os critérios – melhor dizendo, as regras criteriais – são: “aquilo que dá a nossas palavras seus sentidos comuns” (1958: 57; Cf. G. P. Baker 1986). Ou então: “Há uma correspondência entre as palavras ‘significado’ e ‘regra’” (1969, sec. 62)

   A mesma intuição foi mais claramente resumida na sugestão especulativa de Ernst Tugendhat (1983: cap. 13.4; 1976: 258-263) de que termos singulares devem possuir regras de identificação (Identifikationsregeln) e que termos gerais devem possuir regras de aplicação (Aplikationsregeln), que devidamente combinadas na frase predicativa singular são capazes de constituir uma regra verificacional (Verifikationsregel).[1]

   Meu ponto de partida foi a análise do nome próprio, que sempre foi o ponto nodal das teorias da referência, com consequências para os outros termos. Quis fazê-lo em busca das formas ou esquemas gerais de regras de identificação do nome próprio.

   Assumindo essa hipótese de trabalho, meu primeiro objetivo foi o de encontrar regras criteriais de identificação dos referentes de nomes próprios – regras capazes de vindicar, no interior do neodescritivismo, a irrecusável ideia kripkiana de que nomes próprios são designadores rígidos. De posse dessa espécie de regra acredito ter demonstrado que uma forma mais refinada de neodescritivismo é capaz de responder eficazmente a todos os contraexemplos da parte de Saul Kripke e Keith Donnellan (Costa 2023 cap. IV), além do paradoxo fregeano da identidade (2023, cap. V; Frege 1892).

   Mas como chegar à regra de identificação? Primeiro, devemos notar que as descrições definidas sugeridas pelos defensores da teoria do feixe nada mais são do que expressões de regras norteadoras da identificação do portador do nome. Podemos chamá-las de regras-descrições.

   Meu primeiro problema foi encontrar as regras-descrições mais fundamentais para a identificação do portador do nome próprio. Me concentrei primeiramente no que é sabido pelo que chamei de usuários privilegiados desses nomes, entendidos como as pessoas que melhor conhecem as fontes que garantem a veracidade das descrições fundamentadoras (especialistas, testemunhas, familiares...), pois isso nos daria maior esperança de regimentar o desmantelo que é o feixe de descrições que nos foi legado pelo descritivismo histórico (Cf. Searle 1958).

   O método seguido para encontrar as regras-descrições mais fundamentais conhecidas dos usuários privilegiados do nome foi inspirado na metodologia pragmática excepcional de J. L. Austin (1961), o filósofo da “linguagem ordinária”: começar examinando o que os dicionários dizem, de modo a fazer um mapeamento pré-filosófico dos sentidos relevantes a serem usados como ponto de partida, seguindo o moto de que a linguagem ordinária pode não ser o fim de tudo, mas também pode (eu diria) ser o começo de tudo.

   O problema é que nomes próprios não costumam ser dicionarizados. Mas tal problema pode ser contornado no fato de que muitos nomes são pelo menos enciclopedizados! Considere o nome ‘Aristóteles’. Tome em mãos qualquer boa enciclopédia, especialmente as mais sintéticas, como o meu pequeno Penguin Dictionary of Philosophy. Lá está escrito que Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a.C., filho do médico de Amintas III, aos 17 anos foi para Atenas onde foi aluno de Platão em Atenas por 20 anos. Com a morte deste foi para Assos, passou dois anos como biólogo em Lesbos, voltou por algum tempo à corte macedônia, mas com o domínio da Grécia por Alexandre viveu os próximos 12 anos em Atenas. Contudo, com a morte de Alexandre ele teve de fugir para Chalcis, aí falecendo em 322 a.C. aos 62 anos. A esse relato se segue uma breve lista de suas principais obras filosóficas (o Órganon, a Física, a Metafísica, a Ética a Nicômaco, a Poética, etc.) acompanhadas de duas páginas de claras e concisas explicações de seus conteúdos.

   Há dois tipos de regras-descrições que podem ser facilmente abstraídas desse verbete, como de todos os verbetes sobre nomes próprios nas enciclopédias que formos buscar. Eles formam duas condições que chamei de fundamentadoras:

 

1)    Uma condição localizadora: ela estabelece local e tempo do surgimento do portador do nome e até mesmo suas origens, junto à sua carreira espaço-temporal e ao local e tempo de seu possível desaparecimento.

2)    Uma condição caracterizadora: ela estabelece a razão ou principais razões pelas quais nós usamos o nome próprio.

 

Consideremos mais detidamente o nome ‘Aristóteles’. Sua condição localizadora pode ser resumida a partir de sua origem (filho do médico da corte de Amintas III), local e data do nascimento (Estagira, 384 a.C.), sua carreira espaço temporal (atravessou o mar Egeu aos 17 anos para ir estudar com Platão, permaneceu na academia por 20 anos, após a morte do último foi para Assos, etc.) e seu desaparecimento (faleceu em Chalcis em 322 a.C.). O mesmo podemos fazer com a condição caracterizadora. Nós só nos lembramos de Aristóteles pela razão de ter sido ele o autor do opus aristotélico, o maior sistema filosófico da antiguidade, ainda hoje influente.

   Tudo isso, sabemos, é conhecido e até os mínimos detalhes pelos usuários privilegiados do nome, que no caso são os intérpretes e historiadores. Parece de bom senso que nos concentremos primeiro no estudo do nome próprio tal como ele é conhecido por tais usuários, deixando para depois o caso de usuários que conhecem pouco, mesmo porque o mecanismo de referência dos últimos, como veremos, é muito diferente.

   Surge aqui a pergunta: em que a descoberta dessas duas condições fundamentais pode ajudar? Afinal, Kripke estava certo em notar que em um mundo possível Aristóteles poderia ter nascido muitos anos depois ou mesmo nada ter deixado escrito (1980: 62). Isso é verdade, mas em um aspecto essas regras-descrições fundamentadoras são indispensáveis: é impossível imaginar uma situação na qual nada do que elas demandam seja o caso. Não é possível que nosso Aristóteles histórico seja um aluno recém-matriculado na Universidade de Atenas, nem que ele seja o armador grego Aristóteles Onassis, nem que ele tenha sido, como notou Searle (1967: 490), um iletrado vendedor de peixes que viveu em Veneza na Renascença tardia.

   Para se notar a maior importância das condições ditas fundamentadoras, basta compará-las com o que chamei de regras-descrições auxiliares, geralmente acidentais. Considere o caso de descrições metafóricas, como “o mestre dos que sabem”, usada por Dante para se referir a Aristóteles, ou descrições bem conhecidas, mas acidentais, como “o tutor de Alexandre” ou “o fundador do Liceu”, ou ainda descrições acidentais pouco conhecidas, como “o neto de Achaeon” e “o marido de Pítias”. Considere ainda descrições adventícias como “o filósofo mencionado pelo professor na última aula”, que são indexicais e que geralmente de pouca duração. Todas essas descrições definidas podem faltar e mesmo assim ter Aristóteles existido. Por contraste, não podemos conceber nenhum Aristóteles histórico que satisfaça todas essas descrições auxiliares, mas não satisfaça absolutamente nada das descrições fundamentais. Imagine o diretor de um liceu no Maranhão de nome Aristóteles, cuja esposa se chamava Pítias, que teve um aluno chamado Alexandre e que era considerado um verdadeiro “mestre dos que sabem” pelos colegas. As coincidências podem causar estranheza, mas ele jamais poderá ser confundido com nosso Aristóteles histórico.

   Há, pois, uma diferença importante que merece ser investigada. As descrições auxiliares, mesmo quando alvissareiras, não vingam. Elas desorientaram filósofos no passado. Assim, Frege substituiu o nome ‘Aristóteles’ por ‘o aluno de Platão e o tutor de Alexandre o Grande’ (1892: 28, nota), e Wittgenstein substituiu ‘Moisés’ por ‘o homem que quando criança foi retirado do Nilo pela filha do faraó’ (2009, I, sec. 79); ambas são descrições auxiliares acidentais bem conhecidas. Tais descrições são inegavelmente orientadoras em direção à referência e fazem parte do feixe – mas são dispensáveis.

   Um importante caso de descrição definida auxiliar acidental bem conhecida é a que tem a forma de ‘o portador do nome N’, por exemplo, ‘o portador do nome Aristóteles’, que originou as infames teorias metalinguísticas do nome próprio. Essa descrição nada tem de fundamental. Imagine que em um mundo possível muito próximo ao nosso, o médico da corte de Amintas III tenha tido em 238 a.C. dois gêmeos: um deles foi batizado como ‘Aristóteles’ e o outro como ‘Pitacus’.  Digamos que Pitacus tenha tido exatamente a mesma carreira espaço-temporal de nosso Aristóteles, estudando com Platão, escrito o opus pitacosano (idêntico ao nosso opus aristotélico) e morrido em Chalcis em 322 a.C. Imagine também que o gêmeo de nome Aristóteles tenha se tornado médico como o pai e que tenha se juntado às hostes de Alexandre, morrendo de fome e sede ao retornar da Índia. Em momento algum hesitaríamos em identificar nosso Aristóteles com Pitacus e jamais com o infeliz Aristóteles que seguiu Alexandre.

   Considerei as mais diferentes opções com o intuito de organizar as condições fundamentadoras em um esquema de regra que as tornasse eventualmente determinantes da rigidez dos nomes próprios. Em geral a disjunção inclusiva dessas regras-descrições é suficiente. A satisfação completa de ambos os disjuntos ou mesmo de um único disjunto não é necessária. Mas uma satisfação insuficiente também não basta: se em um mundo possível o único filho do médico da corte de Amintas III nascido em 384 fosse um feto anencefálico e vivesse menos de uma semana sem ser sequer batizado, sem que nesse mundo tivesse havido nenhuma obra aristotélica, nós hesitaríamos em reconhecê-lo como o nosso Aristóteles. E também não reconheceríamos como nosso Aristóteles alguém que na época tivesse escrito somente a Magna Moralia, uma obra informativa, mas hoje considerada espúria. Além disso, só admitimos que um único portador satisfaça o suficiente das condições fundamentadoras, o que é melhor obtido pela adição da condição de que o portador que melhor as satisfaz é que deve ser escolhido. Assim, se de um mundo possível tudo o que soubéssemos sobre o assunto é que duas pessoas viveram na Grécia nos tempos de Aristóteles, uma delas tendo escrito a Metafísica e a outra a Magna Moralia, preferiríamos reconhecer como melhor competidor o autor da Metafísica, quiçá nosso Aristóteles. O resultado, para resumir, foi o seguinte esquema de regra:

 

ER: Um nome próprio N (ou um nome equivalente) possui portador

see

(i-a) satisfaz sua condição de localização

e/ou

(i-b) satisfaz sua condição de caracterização

(ii) de maneira no todo suficiente e

(iii) melhor do que qualquer outro concorrente.

 

O nome ‘Aristóteles’ preenche esse esquema de regra através da regra de identificação resumida a seguir:

 

RI: ‘Aristóteles’ (ou um nome equivalente) possui portador

see

(i-a) satisfaz a condição localizadora já resumida acima.

e/ou

(i-b) satisfaz a condição caracterizadora de ter escrito as principais obras do opus aristotélico.

(ii) ele satisfaz essas condições no todo suficientemente.

(iii) ele satisfaz essas condições melhor do que qualquer outro competidor.

 

O esquema RI pode ser considerado standard. Ele se aplica a nomes próprios como Paris, a Mona Lisa, a Torre Eiffel, o Taj Mahal, o Everest, o Rio Amazonas, o Vale da Morte... Mas também ele admite grandes variações. Em alguns casos, como o do próprio Aristóteles, a caracterização vale mais. Em outros a localização vale mais e até muito mais. Considere o caso do planeta Vênus. Nesse caso, a órbita entre a Terra e Mercúrio desde sua descoberta é o que conta, mesmo porque o fato de ser um planeta (e não, digamos, um simples asteroide) já vem embutido na condição localizadora. E há nomes próprios de um pé só, como 'universo’, caracterizado como tudo o que existe, logo sem localização, ou o nome ‘O’ identificando o circuncentro de um triângulo onde só a localização é o que conta.

   E que dizer dos nomes próprios não-dicionarizados? Esses costumam ter a caracterização muito mais vaga e dispersa do que, digamos, Napoleão, mesmo assim sendo identificáveis com a ajuda de coisas como o histórico pessoal, documentos de identificação e as memórias de familiares, amigos e colegas.

   Nesse ponto alguém poderia objetar que meu esquema de regra regimentador de feixes de descrições é demasiado vago. Qual o limite dos detalhes descritivos fundacionais que precisam ser adicionados? O quanto é “ser suficiente no todo”? ou “não possuir competidor à altura?” Minha resposta é aristotélica e Wittgensteiniana. Como o primeiro escreveu na Ética a Nicômaco: “É próprio do homem instruído buscar a precisão em cada classe de coisas, apenas na medida em que a natureza do assunto o permite.” (1984: 1, 3, 24-25). E como Wittgenstein repetidamente notou em suas Investigações filosóficas – contra a limpidez idealizada do formalismo anterior – a linguagem natural é um instrumento vivo e flexível, que é vago e precisa ser vago, sendo um erro tentar precisá-la mais do que o necessário. A vaguidade da linguagem natural é inexpugnável e aqui pode ser que devamos agir como os meteorologistas, que se classificam nuvens pelas suas formas, mesmo sabendo-as incontáveis. O importante é que os nomes próprios cumpram bem a sua tarefa nas circunstâncias normais de sua aplicação. Nossas regras criteriais irão sempre falhar onde existirem fronteiras indefinidas (blurred borders) ou conflitos criteriais. Nossas mentes são computadores analógicos e não digitais. A própria noção de designação rígida demandaria em Kripke a adição da condição de que o portador do nome deva ser definidamente identificável em qualquer mundo possível. Em nosso caso, a condição é a de que a regra de identificação também seja definidamente aplicável.

   O esquema de regra sugerido já nos ajuda na solução de toda uma grande variedade de questões. Considere, por exemplo, o velho problema do navio de Teseu, que podemos denominar ‘Calibdus’. Teseu navegou nele por muitos anos, sempre substituindo as partes usadas. No final ele substituiu todas as partes, que ficaram guardadas em um depósito. Alguém decidiu renovar as partes e construir um navio igual ao de Teseu. Pergunta: qual é agora o verdadeiro navio de Teseu? Não temos uma resposta segura. Mas para Teseu ela devia importar, pois se os dois navios colidissem e afundassem, ele teria de escolher para qual navio saltar, uma vez que um bom capitão sempre afunda com o seu navio.

   O esquema oferece uma resposta: o primeiro navio satisfaz a condição localizadora. É o navio fabricado por Teseu e que já teve uma longa carreira espaço-temporal. O segundo navio satisfaz mais da regra caracterizadora: ele se caracteriza por possuir pelo menos o material original do navio de Teseu. Temos aqui um conflito criterial, embora a maioria prefira dizer que o verdadeiro navio de Teseu foi aquele no qual ele navegou, pois a condição de localização foi muito melhor satisfeita, e ainda que o material não tenha permanecido o mesmo, a estrutura continua sendo a mesma.

    A frustração não desaparece porque percebemos que o exemplo pode ser modificado. Imagine que logo depois de pronto, depois do batismo, o Calibdus permaneça junto ao estaleiro e que suas partes sejam rapidamente substituídas por outras iguais, de modo que logo comece a surgir ao lado um outro navio idêntico ao dele, que fica pronto em uma semana, com todas as partes do primeiro. Nesse caso, como o percurso espaço-temporal do primeiro navio foi praticamente nulo, tenderemos a dizer que o navio de Teseu apenas mudou de lugar: ele é agora o segundo e não mais o primeiro, a razão sendo que a condição caracterizadora foi completamente satisfeita pelo segundo navio enquanto a condição localizadora mal começou a ser satisfeita pelo primeiro.

   O que apresentei até agora vale como uma teoria do significado referencial do nome próprio. Ele se constitui de um feixe de regras-descrições que possui um núcleo constituído pela regra de identificação e por um halo composto por regras-descrições auxiliares geralmente capazes de uma função direcionadora. Nomes próprios não são termos destituídos de significado, como Kripke gostaria de acreditar. Pelo contrário, eles são excessivamente ricos de significação quando considerados por seus usuários privilegiados. Apenas que seus significados cognitivamente atuantes variam muito e são desconhecidos de muitos falantes. Como muitas vezes os usamos tendo em mente apenas um ou outro sentido específico e quase sempre não somos sequer usuários privilegiados, temos a impressão de falta de significação quando os comparamos com termos gerais com significados que se repetem e que são sempre os mesmos.

 

2

 

Quero agora passar à explicação de como pessoas que não são usuários privilegiados, que chamo de usuários indigentes do nome próprio e que geralmente formam a grande maioria, são capazes de usá-lo referencialmente. Por exemplo: uma pessoa só sabe de Aristóteles que ele foi tutor de Alexandre por ter assistido um filme sobre Alexandre, no qual um velho filósofo aparece ensinando o jovem príncipe. Ou então perguntamos a alguém na rua quem foi Aristóteles e a pessoa responde que foi algum grande filósofo antigo, nada mais sabendo acerca dele. Kripke achava que em ambos os casos a pessoa se refere a Aristóteles. Prefiro dizer que o usuário indigente consegue inserir o nome corretamente no discurso e que a sua referência realmente se dá, mas por meio do que Strawson chamou de empréstimo da referência (1963: 185[2]) e por algo semelhante ao que Searle chamou de referência parasitária (1983: cap. 9).

   Explicando: o usuário indigente conhece, digamos, apenas uma regra-descrição auxiliar ou algo genérico pertencente à regra de identificação. Ele tem um conhecimento tácito de como são os esquemas de regras de identificação. Ele sabe que existem usuários privilegiados que realmente a conhecem. Por conseguinte, ele sabe que não sabe o suficiente para fazer uma referência muito específica com conhecimento de causa. Consciente disso, ele insere a palavra em contextos discursivos suficientemente vagos para que outros a identifiquem sem precisar cair em incorreções. Esses outros falantes saberão tanto, menos ou mais do que ele sobre Aristóteles. Mas fazem uma ideia... Se quiserem saber mais, bastará buscar informações na cadeia de empréstimos da referência até chegar a conhecedores privilegiados ou, digamos, a um repositório da IA que os represente.

   A condição para que uma referência parasitária seja bem sucedida é que ela seja convergente. A convergência se dá pela satisfação de duas condições: (i) classificação aceitável do portador do nome; (ii) conhecimento da linguagem, ou seja, o saber tácito de que não se conhece a regra de identificação suficientemente (sob pena de passar vergonha). Esse uso referencial parasitário ou por empréstimo do nome próprio é na verdade uma referência indireta, apoiada no que a comunidade linguística como um todo é capaz de saber. Ele só é possível porque o usuário indigente sabe que existem usuários privilegiados que conhecem a regra de identificação tão completamente a ponto de garantidamente individuar Aristóteles.

   Para evidenciar esse ponto, suponha que após uma terceira guerra mundial um sobrevivente de uma comunidade que desconhecesse qualquer coisa sobre a história da Europa encontrasse um pedaço de papel no qual conseguisse ler o nome ‘Aristóteles’, seguido da descrição definida ‘o autor do inteiro opus aristotélico’. Não será possível dizer que com auxílio dessa descrição ele será bem sucedido em se referir a Aristóteles, pois não há uma comunidade linguística na qual um falante seja capaz de inserir o nome próprio de maneira a tomar de empréstimo o saber de outros usuários capazes de se apoiar, ao final de alguma cadeia de empréstimos, no conhecimento efetivo dos usuários privilegiados do nome.

   A análise acima pode ser aplicada em oposição a dois exemplos de Kripke contra o descritivismo. Alguém, disse ele, seria capaz de se referir a Robert Feynman apenas por meio da descrição indefinida ‘um físico norte-americano’ (1980: 81), ou se referir a Einstein por meio da descrição definida errônea ‘o inventor da bomba atômica’ (1980: 85). Em ambos os casos, porém, a pessoa consegue se referir ao portador do nome. Contudo, elas inserem o nome de modo convergente no discurso, classificando corretamente Feynman como pertencente à classe dos físicos e Einstein à classe dos inventores, o que nos permite dizer que ela se referiu parasitariamente a essas pessoas. Isso não aconteceria se a pessoa tivesse identificado Feynman com uma marca de perfume e Einstein com o nome de uma pedra preciosa que pertencera à rainha Vitória, pois essas são descrições divergentes. Nesse caso não diremos que a pessoa foi bem sucedida em referir. Ela irá falhar ridiculamente em inserir esses nomes parasitariamente no discurso, ainda que possa ser esclarecida por outros.

 

3

 

Um ponto decisivo é a explicação cognitivista do contraste sugerido por Kripke entre designação rígida e descrição acidental ou flácida. Segundo ele, nomes próprios são designadores rígidos porque se referem ao mesmo objeto em todos os mundos possíveis nos quais esse objeto existe, enquanto descrições definidas podem se referir a objetos diferentes ou mesmo a nenhum, sendo por isso chamadas de designadores acidentais (1980: 48).

   Usando um exemplo seu: o nome ‘Benjamin Franklin’ é rígido porque se refere à mesma pessoa em qualquer mundo possível no qual ela exista. É também verdade que a descrição definida ‘o inventor das bifocais’ se aplica a Benjamin Franklin em nosso mundo. Mas podemos perfeitamente imaginar um mundo possível no qual João da Silva e não Benjamin Franklin tenha inventado as bifocais, ou mesmo que apesar de ele ter existido, ninguém inventou as bifocais. (Kripke 1980: 98, 145)

   Para Kripke a distinção entre designador rígido e acidental é uma descoberta de caráter metafísico: o comportamento semântico dos nomes próprios é por essência diverso do comportamento das descrições, razão pela qual o descritivismo sobre nomes próprios é falso. De minha parte vejo isso como uma superstição metafísica e no que se segue irei mostrar que a mais refinada teoria da referência aqui resumida fornece razões conclusivas para se pensar assim.

   A explicação que tenho é que a regra de identificação do nome próprio é um designador rígido porque é tão vaga e flexível que em qualquer mundo possível no qual seu portador definidamente existe, ela se aplica. Mas isso não significa que as regras-descrições auxiliares ou mesmo partes da própria regra de identificação precisem necessariamente se aplicar. Eis a regra de identificação para Benjamin Franklin resumida de uma enciclopédia qualquer:

 

RI ‘Benjamin Franklin’ (ou nome equivalente) possui portador

see

(i-a) satisfaz a condição localizadora de ser uma pessoa que nasceu em Boston, 17 de janeiro de 1706, e faleceu em Filadélfia, 17 de abril de 1790 (...)

e/ou

(i-b) satisfaz a condição caracterizadora de ter sido um polímata considerado um dos pais fundadores dos Estados Unidos, um dos líderes da Revolução Americana, conhecido por suas invenções e experiências com a eletricidade (...)

(ii) Essa combinação deve ser no todo suficientemente satisfeita.

(iii) Ela deve ser satisfeita melhor do que por qualquer outro competidor.

 

Antes de respondermos vale introduzir um artifício facilitador da exposição, que consiste em deitar a regra de identificação de modo a transformá-la em uma descrição definida abreviadora do nome próprio (descrição individuadora ou DI) com a característica de ser um designador rígido. Eis como ela fica:

 

DI de Benjamin Franklin (ou nome equivalente) = A pessoa que (iii) satisfaz melhor do que qualquer outra e (ii) no todo suficientemente a disjunção inclusiva entre (i-a) ter nascido em Boston, 17 de janeiro de 1706 (...) ou (i-b) ser um polímata estadunidense considerado um dos pais fundadores dos Estados Unidos (...).

 

Essa é uma descrição definida muito comprida, mas nem por isso deixa de sê-lo. Importante é que ela torna o nome em questão um designador rígido, pois devido à sua vaguidade e extraordinária flexibilidade ela se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Benjamin Franklin existiu, diversamente das descrições auxiliares ou mesmo de partes da regra de identificação que em situações contrafactuais podem não se aplicar. É esse possível desajuste entre a referência da regra de identificação e a dos componentes do feixe que torna as descrições parciais e auxiliares acidentais, nada existindo de metafísico aqui.

   Há uma maneira contundente de provar que minha explicação é correta e que a de Kripke é ilusória. Basta considerarmos descrições definidas que não fazem parte do feixe de nenhum nome próprio. Por não ser mais possível um desajuste entre suas referências e a referência do nome próprio ao qual pertencem, elas se tornam designadores rígidos, aplicando-se em qualquer mundo possível no qual o objeto por elas referido existe. Os exemplos são raros, mas podem ser encontrados. Eis alguns:

 

1.     O último período glacial,

2.     O assassinato do duque austríaco Franz Ferdinand em Sarajevo em 1914,

3.     A Raflésia descoberta pelo Dr. Joseph Arnold em 20 de maio de 1818,

4.     O 52nd Regimento de Infantaria Inglês,

5.     A série menos rapidamente convergente.

 

Não importa quando, em outros mundos possíveis, terminou o último período glacial, nem se neles o assassinato do duque causou a Primeira Guerra Mundial... Todas essas descrições são designadores rígidos, pois não podem deixar de referir em qualquer mundo possível no qual o processo, evento ou objeto a ser referido por elas existe. E a razão disso é que elas não se encontram associadas a nenhum nome próprio com cuja referência possam contrastar. Chamo essas descrições definidas de autônomas.

   Curioso é que as regras de identificação por elas usadas são exatamente as mesmas que usamos na identificação dos portadores dos nomes próprios. Considere a descrição definida autônoma (4): ‘o 52nd Regimento de Infantaria Inglês’. A regra de identificação que torna essa descrição rígida pode ser resumida como:

 

DI de ‘O 52nd regimento de infantaria inglês’ = o regimento que (ii) satisfaz de maneira no todo suficiente e (iii) mais do que qualquer outro a disjunção inclusiva entre a condição localizadora de (i-a) ter existido de 1757 a 1881, sendo estacionado em Oxfordshire, tendo agido na Guerra Americana de Independência, na Guerra anglo-mysore na Índia e nas guerras napoleônicas ou a condição caracterizadora de (i-b) consistir de um ou dois batalhões de infantaria ligeira cada qual com aproximadamente 1000 homens recrutados em Oxfordshire.

 

Essa descrição autônoma é um designador rígido, pois tem suficiente flexibilidade para se aplicar em qualquer mundo possível no qual aquele vetusto bastião do império existiu.

   Vejamos agora, para contrastar, o que acontece com exemplos de descrições definidas que pertencem ao halo ou até mesmo ao núcleo semântico de nomes próprios:

 

1.     A águia de Haia.

2.     O marechal de ferro.

3.     O fundador do Liceu.

4.     O primeiro imperador romano.

5.     A cidade luz.

 

Elas são acidentais pelo seu possível desajuste referencial com a regra de identificação do nome próprio a cujo feixe de descrições pertencem em situações contrafactuais. Afinal, em diferentes mundos possíveis o navio de Rui Barbosa poderia ter afundado antes de ele chegar a Haia, Floriano Peixoto poderia ter sofrido um acidente fatal antes de ter chegado à presidência, Aristóteles poderia não ter retornado a Atenas para fundar o Liceu, César poderia não ter atravessado o Rubicão e Paris poderia ter sido destruída antes de ter se tornado a Cidade Luz.

 

4

 

Passemos agora aos brilhantes contraexemplos que Kripke e Donnellan apresentaram contra o descritivismo. Todos eles foram facilmente explicados nos textos. Escolho aqui apenas dois.

   Comecemos com o mais famoso, o de Gödel-Schmidt (1980: 83-84). Suponha, diz Kripke, que Gödel tivesse um amigo chamado Schmidt que descobriu o teorema da incompletude. Logo após ter escrito o artigo, Schmidt foi encontrado morto sob circunstâncias suspeitas. Imagine agora que Gödel tenha roubado o manuscrito da prova e publicado em seu nome e que uma usuária indigente chamada Maria conheça apenas a prova e associe o nome Gödel à descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’. Imagine que se torne público que foi Schmidt e não Gödel quem fez a descoberta. Como para o descritivista a descrição associada ao nome é aquilo que possibilita a referência, Maria deveria concluir que Schmidt é o verdadeiro Gödel. Mas não é isso o que acontece. Para Maria Gödel continua sendo Gödel.

   A teoria cognitivista aqui proposta explica o que acontece no interior do internalismo. A regra de identificação de Gödel pode ser resumida na seguinte descrição definida individuadora:

 

DI: ‘Gödel’ (ou nome equivalente) = a pessoa que satisfaz (ii) no todo suficientemente e (iii) melhor do que qualquer outro candidato, a disjunção inclusiva entre (i-a) a condição localizadora de ter nascido em Brünn em 1906, estudado na universidade de Viena, emigrado para os USA pela transiberiana em 1939 e trabalhando em Princeton até 1978, ano de sua morte ou (i-b) a condição caracterizadora de ter sido o matemático que descobriu e publicou o teorema da incompletude, além de outros importantes trabalhos.

 

Qualquer usuário privilegiado do nome Gödel não se sentirá forçado a substituí-lo pelo nome de Schmidt só por ter descoberto que foi Schmidt quem desenvolveu o teorema da incompletude, pois ele sabe que, apesar disso, o nome Gödel continua satisfazendo a regra de identificação muito mais do que Schmidt. Ele satisfaz por completo a condição de localização e ainda parte da condição de caracterização, uma vez que Gödel publicou outros bons trabalhos mais tarde.

   Que dizer de Maria, supondo que ela é uma usuária indigente que apenas sabe o nome do descobridor do teorema da incompletude que ela estudou? Ora, assumindo que Maria é um usuário competente da linguagem, ela sabe que não sabe. Ela sabe que faz um uso emprestado do nome próprio. Por conseguinte, ela não irá mudar o portador do nome enquanto não obtiver maiores informações. E se as obtiver, aí sim terá razões para não mudar o portador do nome.

   Quero examinar aqui apenas um dos excelentes contraexemplos de Keith Donnellan pelo seu caráter instrutivo.[3] Trata-se do caso do filósofo Tales (1972: 377). Tudo o que sabemos de relevante sobre Tales, sustenta Donnellan, é a descrição definida ‘o filósofo que disse que tudo é água.’ Ele supõe então que um historiador que conhecia muito pouco do dialeto local encontrou um inteligente cavador de poços chamado Tales que, farto de sua profissão, disse: “Queria que tudo fosse água para não ter de cavar esses malditos poços”. Confundindo o cavador de poços com um filósofo, o historiador passou a mensagem de que tudo é água para os outros, chegando a Aristóteles e à doxografia por nós herdada. Contudo, imagina Donnellan, coincidentemente em tempos remotos um filósofo eremita realmente afirmou que tudo é água. Se o descritivismo fosse certo então as pessoas deveriam concluir que o eremita é quem foi Tales. Mas o fato é que ninguém deixará de admitir que nesse caso Tales foi realmente o inteligente cavador de poços.

   A resposta é fácil. Embora negue a relevância explicativa da cadeia causal-histórica eu nunca neguei sua existência, dando particular importância ao que chamei de história causal. A história causal é constituída por pontos nodais da cadeia causal-histórica cuja contraparte cognitiva se tornou pública, de modo que ela passou a fazer parte do feixe de descrições geralmente conhecido. Essa história é particularmente notável no caso de Tales de Mileto, filósofo cuja importância é principalmente histórica.

   Eis como fica resumida a condição de caracterização de Tales de Mileto, considerando que os elementos doxográficos fazem parte da história causal:

 

O filósofo que é referido de segunda mão na doxografia de Aristóteles como tendo sido o primeiro filósofo grego, que em sua cosmologia afirmou que a água é o princípio originador do mundo, que permeia todas as coisas, que a Terra repousa na água e que todas as coisas estão cheias de deuses. Ele também foi um astrônomo que, segundo Heródoto, Diógenes Laércio e Dercyllides, previu um eclipse solar e um geômetra que, segundo Laércio. baseado em Hieronymus, mediu as pirâmides por suas sombras. (Kirk & Raven, 1971)

 

Só essa inserção de elementos da história causal na descrição já nos faz concluir que o eremita de Donnellan não pode ter sido Tales, pois ele não consta na doxografia. Mais do que isso, que os doxógrafos tenham dito dele coisas falsas não faz com que seja falso o fato de que os doxógrafos disseram essas coisas, permanecendo a descrição intacta. Assim, a condição de caracterização continua verdadeira mesmo que se descubra que Tales tenha sido um inteligente cavador de poços que gostaria que tudo fosse água!

   A condição localizadora fecha a questão por continuar sendo totalmente satisfeita por Tales em forma e conteúdo. Ele é descrito como:

 

A pessoa que, de acordo com a doxografia de Diogenes Laertius, nasceu em 640 a.C. e morreu em 549-546 a.C. De acordo com Laércio e Heródoto, Tales era um milesiano e Laércio escreveu que ele era filho de Examynes e Cleobulina. De acordo com Laércio e Proclus, ele visitou o Egito, a fonte tradicional da ciência grega em algum momento de sua vida (Kirk & Raven, 1971).

 

Nada nesse registro descritivo da história causal é satisfeito pelo eremita de Donnellan, que viveu em tempos remotos e não foi sequer associado à cidade de Mileto, não sendo referido por nenhuma das fontes históricas inseridas na descrição. Mesmo que se descubra que Tales de Mileto havia sido um cavador de poços, usuários privilegiados irão concordar que ele continua satisfazendo por completo a descrição localizadora. Já os usuários indigentes poderão permanecer na incerteza até serem melhor esclarecidos.

   Encerro essa parte com uma curiosa nota histórica. Com sua distinção entre forma e matéria Aristóteles nos ensinou a identificar indexicalmente um indivíduo pela sua matéria, seguindo-se a isso a identificação essencial da espécie e gênero do indivíduo pela sua forma. Duns Scott sagazmente notou que nem a forma nem a matéria são capazes de individuar, uma vez que elas se repetem em muitos indivíduos. Falta a “característica individuadora” por ele chamada de haecceitas, ou seja, aquilo que faz daquele homem lá Aristóteles e não Teofrasto. Falta a “aristotelicidade” de Aristóteles. O que tentei resumir aqui foi exatamente isso: uma teoria capaz de dar conta das características individuadoras do portador de um nome próprio ou de uma descrição definida autônoma.

 

5

 

Quero agora aplicar a teoria ao enigma fregeano da identidade. O enigma é por demais conhecido: por que razão frases do tipo a = a não são informativas, diversamente de frases do tipo a = b?

   Podemos parafrasear o enigma como um problema da identidade na diferença: como é possível que frases do tipo a = b enunciem identidades ao mesmo tempo que enunciam diferenças? A resposta Fregeana é que a = b afirma uma identidade numérica na referência (Bedeutung) objetiva[4], mas uma diferença nos sentidos, nos modos de apresentação do objeto. Considere como exemplo o enunciado “Phosphorus = Hesperus” (“A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde”). Para Frege tratar-se-ia de um enunciado a posteriori e contingente, pois poderia ser falso. Já para Kripke trata-se de um enunciado necessário a posteriori, pois mesmo que obtidos através da experiência, os designadores ‘Phosphoros’ e ‘Hesperus’ são rígidos, devendo identificar a mesma coisa em qualquer mundo possível.

   Para responder à questão precisamos considerar primeiro a frase de identidade “Vênus = Vênus.” Essa frase identifica duas regras de identificação (significações) do nome próprio ‘Vênus’, que aparecem entre colchetes, o que pode ser apresentado como:

 

Vênus [[5]O planeta especificado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra ao menos desde algum tempo depois de ter sido assim nomeado] = Vênus [o planeta especificado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra ao menos desde algum tempo depois de ter sido assim nomeado[6]].

 

Vejamos agora a regra de identificação para ‘Hesperus’:

 

DI de ‘Hesperus (-Venus)’ = o corpo celeste visto ao anoitecer como o mais brilhante após a Lua e considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, orbitando o Sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.

 

Chamo de Hesperus (-Vênus) porque ao sentido de ‘Hesperus’ enfatizado pelo nome e por mim sublinhado, encontra-se implícita a condição de identificação de Vênus, pois é de todos sabido que Hesperus é também Vênus. Vejamos agora a regra de identificação de ‘Phosphorus’:

 

RI-‘Phosphorus-(Venus)’ = o corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua, que satisfaz suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o Segundo planeta do Sistema Solar a orbitar o Sol entre Mercúrio e a Terra desde pelo menos algum tempo após ter sido nomeado.

 

Note que tanto Hesperus(-Vênus) quanto Phosphorus(-Vênus) expressam implicitamente a mesma regra de identificação do planeta Vênus, diferindo apenas pela adição de subregras constitutivas de seus sentidos ou modos de apresentação diversos, que a diversidade dos nomes enfatiza e que por isso eu sublinhei. Com esse desempacotamento das regras semânticas podemos agora expor a diferença entre Phosphorus e Hesperus encontrada nos sentidos fregeano diversos dos dois nomes, ao mesmo tempo que podemos expor aquilo que eles têm de idêntico: iguais regras de identificação do planeta Vênus embutidas em cada nome. Analisemos, pois, a frase “Phosphorus = Hesperus”:

 

“Phosphorus (-Vênus) = Hesperus (-Vênus)”:

Phosphorus [Um corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante corpo celestial depois da Lua, considerado como satisfazendo suficientemente e mais que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, que orbita entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado] = Hesperus [um corpo celeste visto ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua, considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar que orbita o Sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.]

 

O que é diferente nessa frase do tipo a = b é o que está sublinhado, ou seja, os respectivos sentidos ou modos de apresentação de ‘Phosphorus’ e ‘Hesperus’ que ladeiam o sinal de igualdade. O que é idêntico nessa mesma frase do tipo a = b é o que não está sublinhado, que é a regra de identificação de Vênus, que também aparece ladeando o sinal de igualdade. Temos agora a explicação para a identidade na diferença: a identidade é a de duas regras implícitas enquanto a diferença é da subregra explicitadora dos diferentes sentidos. Ao considerar a diversidade informativa dos sentidos, Frege ressaltou o que está sendo sublinhado.

   Podemos agora identificar o erro de Kripke ao considerar essa identidade, além de um erro cometido pelo próprio Frege. Quero começar considerando a maneira como Kripke percebe a identidade acima apresentada. Para ele o enunciado “Phosphorus = Hesperus” é entendido cortando as explicitações dos sentidos diversos e substituindo as regras de identificação de Vênus pela cadeia causal-histórica. “Phosphorus = Hesperus” fica sendo:

 

          “Phosphorus(-Vênus) – Hesperus(-Vênus)”

Phosphorus [um corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua e ([7]considerado como satisfazendo suficientemente e mais que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, que orbita entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado)] = Hesperus [o corpo celestial visto ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua e (considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar que orbita o Sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.)]

 

Claro que assim considerada essa identidade é tautológica, contendo dois designadores rígidos. O erro de Kripke é o de desconsiderar a diferença, o que tinha sido grifado, e considerar apenas o que não foi grifado no sentido da frase “Phosphorus (-Vênus) = Hesperus (-Vênus)”, fazendo com que ele a veja como uma identidade necessária, embora a posteriori. O que ele realmente faz é apenas enfatizar a regra de identificação de Vênus substituída por uma suposta história causal, que se repete ladeando a identidade. Nesse aspecto a identidade é necessária, pois é numérica. Mas ele se esquece que a adição dos diferentes sentidos torna a identidade inevitavelmente a posteriori e contingente. (Basta imaginar uma estranha nuvem de substância escura que venha a se interpor entre nós e Vênus impedindo-nos de vê-lo.) É assim que ele produz essa provável aberração que é o necessário a posteriori.

   Vejamos agora como Frege percebe o enunciado “Phosphorus = Hesperus”:

 

          Phosphorus(-Vênus) = Hesperus(-Vênus)

Phosphorus [um corpo celeste visto pela manhã como o mais brilhante depois da Lua e considerado como satisfazendo suficientemente e mais que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar, que orbita entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado] = Hesperus [o corpo celeste visto ao anoitecer como o mais brilhante depois da Lua e considerado como satisfazendo suficientemente e mais do que qualquer outro a condição de ser o segundo planeta do Sistema Solar que orbita o sol entre Mercúrio e a Terra desde ao menos algum tempo após ter sido nomeado.]

 

Frege ignora as regras de identificação de Vênus implícitas. Vemos, pois, que há aqui também um erro de sua parte, que é o de considerar somente o que diferencia as regras de identificação de Phosphorus (-Vênus) e de Hesperus (-Vênus), ignorando o que está cortado por acreditar que a referência (o Bedeutung = a significação) seja o próprio planeta, sem perceber que uma mesma regra de identificação de Vênus se encontra embutida em ambos os lados da identidade. Contudo, como a subregra que explicita a diferença de sentido é proveniente da experiência, Frege está certo em considerar essa identidade como a posteriori.

   Há uma variedade de casos algo diversos que precisaram ser considerados separadamente, como “Tulio é Cícero”, que depende do conhecimento do nome inteiro de ‘Marcus Tullius Cicerus’, ou ainda o famoso argumento kripkiano do púlpito que necessariamente não é de gelo (Costa 2023: cap.V).[8]

 

6

 

Que dizer agora dos indexicais? Nesse caso precisaremos estabelecer uma caracterização específica, uma vez que a localização espaço-temporal já vem dada. Mas só temos acesso epistêmico a essa localização porque a internalizamos cognitivamente. Sigo aqui Frege (1918: 76): o pensamento (Gedanke) expresso no proferimento indexical independe do contexto, a prova disso sendo que a frase (Satz) pode ser desvinculada do contexto ao incluir o tempo do proferimento de modo a exprimir o pensamento completo.

   Perry pensava diferente. A sugestão de Perry fica clara se nos recordarmos de seu principal exemplo. Ele se encontrava empurrando um carrinho de supermercado quando percebeu um rastro de açúcar à sua frente. Ele deu a volta na estante procurando avisar a pessoa que ela estava fazendo uma bagunça, só para descobrir que o rastro estava vindo de seu próprio carrinho. Ele reage pensando: “Eu estou fazendo essa bagunça” (1979: 3).

    Perry defendeu que é impossível parafrasear essa constatação em uma frase eterna que faça desaparecer a função espaço-temporal concreta do indexical “eu” porque ela não é substituível em qualquer contexto. Não é possível, por exemplo, que ele diga: “Perry está fazendo uma bagunça” no caso em que ele esteja com um início de demência e não se recorde de seu próprio nome…

   Considero possível parafrasear fregeanamente o enunciado de Perry em uma frase eterna como a seguinte:

 

(E): Às 10 horas da manhã, 26 de março de 1968, na seção de alimentos do supermercado Fleury em Berkeley, Perry nota o açúcar caindo de seu carrinho de compras e pensa que ele está fazendo uma bagunça (ou então pensa “Eu estou fazendo uma bagunça”) e, de fato (é verdade que), ele está realmente fazendo uma bagunça.

 

Está certo que os indexicais ‘ele’ e ‘eu’ permanecem. Mas, em consonância com Frege, eles se referem agora aos seus sentidos e não mais a algo lá fora no mundo. O ‘ele’ vem após um verbo de atitude proposicional em uma frase complementar na qual passa a se referir ao seu sentido, o mesmo acontecendo com o ‘eu’ na frase entre aspas. Aqui o indexical foi sequestrado para dentro da frase eterna de modo a exprimir um pensamento independente do contexto. Examinei os outros exemplos de Perry chegando ao mesmo resultado (Costa 2014: cap. 4).

   Uma objeção seria a de que Perry não pensou tudo o que se encontra na frase (E). A resposta é que isso é desnecessário. Se essas informações fossem dadas a Perry, ele tenderia a concordar... Outras pessoas, comentando o incidente, poderão lembrar de coisas como a manhã do dia em que isso aconteceu e o nome do supermercado… É verdade que faltam os conteúdos fenomenais privados vividos por Perry naquele momento. Mas não é necessário nem possível que eles venham contidos na frase indexical, incapaz de comunicá-los.

   O importante na paráfrase é que ela desfaz o mito do indexical essencial ao demonstrar que ele não elimina o caráter inteiramente cognitivista e nesse aspecto contextualmente independente de nossos reconhecimentos perceptuais.

 

7

 

A teoria proposta pode ser facilmente estendida a termos gerais, com a diferença de que a condição de localização espaço-temporal inevitavelmente desaparece, já que os predicados se instanciam com respeito aos mais variados locais. Mas o método continua sendo o de Austin: começar examinando o que os dicionários têm a dizer.

   Como é bem sabido, não há uma classificação dos termos gerais que não os sobreponha uns aos outros. O que fiz foi introduzir uma classificação simétrica à dos termos singulares, na qual os termos gerais se dividem em: indexicadores, descritivadores e nominadores.

   Indexicadores são termos como ‘vermelho’ e ‘redondo’ quando usados para designar o que se encontra fenomenalmente dado aos sentidos. Eles ganham seu sentido fenomenal pelo que Russell chamou de familiaridade (acquaintance). As regras de atribuição desses termos são aprendidas interpessoalmente por meio de exemplos positivos e negativos em situações indexicais, o que torna impossível a um cego aprender o sentido fenomenal da palavra ‘vermelho’.

   Os termos gerais descritivadores são análogos às descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de identificadora. Eles são capazes de tomar a forma de descrições indefinidas como nos casos de ‘um caça-dotes’ e ‘uma cabeça de ponte’. Eles são mais estáveis do que os indexicadores, do mesmo modo que as descrições definidas são mais estáveis do que indexicais.

    Finalmente, há os termos nominadores, tradicionalmente chamados de “nomes gerais”, como ‘tigre’, ‘água’, ‘cadeira’. Eles são não só estáveis, tal como as descrições definidas, mas também mais flexíveis, tal como os nomes próprios. E da mesma forma que há uma progressão genética que tendencialmente vai do aprendizado contextual dado por indexicais para o aprendizado de descrições definidas e, finalmente, para os nomes próprios, há também uma progressão genética tendencial, que começa com os termos indexicadores, passando depois aos descritivadores e terminando com os nominadores. Quero analisar a seguir dois casos de termos nominadores para mostrar como o esquema proposto para os nomes próprios pode ser a eles adaptado.

   Considere a maneira como Kripke considerou o termo nominador ‘tigre’. Contra o descritivismo, ele notou que a descrição do tigre como:

 

Dt: grande e feroz animal asiático carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo acastanhado, listas transversais e barriga branca (1980: 119),

 

não é nem necessária nem suficiente. Não é necessária porque podemos em um mundo possível encontrar animais que satisfazem Dt, mas que possuem um layout genético mais próximo dos répteis do que dos felinos; não é suficiente porque podemos imaginar que a evolução produza algo como a vergonha da espécie: tigres pequenos e herbívoros, que andam sobre patas traseiras e são mansos como coelhos.

   O problema está na definição simplificada, baseada apenas em traços superficiais. Eis uma regra de atribuição (a Verwendungsregel de Tugendhat) mais algo adequada a ser associada ao termo nominador ‘tigre’, capaz de torná-lo um designador rígido no sentido de ser aplicável em qualquer mundo possível no qual tigres existam:

 

RA -‘tigre’:

Atribuímos o conceito de tigre a um exemplar

see

   (i)            Ele é um grande mamífero carnívoro pertencente à família dos felídeos e ao genus panthera. É a maior espécie de gato, nativo da Ásia. Sua marca essencial é possuir um mesmo DNA mitocondrial que o torna capaz de se entrecruzar com suas subespécies produzindo descendentes férteis. Ele costuma ser reconhecido exteriormente por suas listas transversais escuras, pelo alaranjado e barriga branca.

 (ii)            Ele satisfaz (i) suficientemente,

(iii)            Ele satisfaz (i) mais do que qualquer outro espécime do genus panthera.

 

Observe que não há mais aqui condição localizadora, já que termos gerais podem se aplicar em lugares e tempos os mais diversos.

   Aqui também encontramos usuários privilegiados e indigentes, assim como a aplicação por empréstimo de referência. Em um exemplo clássico, uma pessoa pode pensar que a baleia é um peixe, quando na verdade é um mamífero aquático, produzindo mesmo assim um uso convergente do termo. Mas se uma criança pensar que baleia é o nome de uma montanha na serra do Caparaó, ela não acerta sequer a classe geral dos animais aquáticos, de modo que não teremos sequer como admitir que ela se referiu a baleias de modo parasitário.

 

8

 

Embora tenha examinado um considerável número de termos conceituais, quero me concentrar agora no termo geral ‘água’, talvez o mais discutido em teorias da referência. Indispensável é notar que aquilo que somos capazes de entender com a palavra ‘água’ sofreu uma modificação revolucionária com o desenvolvimento da química. Disso resultaram dois usos ou núcleos de significação da palavra: o popular e o científico.

   O núcleo popular é o que esteve conosco por milhares de anos: o de um “líquido aquoso”, transparente, inodoro e insípido, que aplaca a sede, apaga o fogo, serve para lavar, cai sob forma de chuva e cobre rios, lagos e mares.

   Foi assim até o final do século XVIII e início do século XIX, quando despontou o que chamo de uso ou sentido científico do termo (Ball 2000). Como Avrum Stroll observou (1998: 71), bons dicionários modernos também dão conta desse sentido, que é sumarizado pela fórmula H2O, mas que é inferencialmente muito mais complexo quando considerado pelos seus usuários privilegiados, que são os químicos. Eles sabem, por exemplo, que a carga ligeiramente negativa da molécula de oxigênio é atraída pela carga ligeiramente positiva das outras moléculas de hidrogênio, formando cadeias responsáveis por sua maior tensão superficial, ou que próximo do zero absoluto a água novamente se liquefaz...

   É também claro que dependendo do contexto de uso um desses sentidos é enfatizado e o outro esquecido. Por exemplo, em um laboratório de química no qual estudantes estejam fazendo experiências com eletrólise, o sentido científico do termo é enfatizado. Mas se considerarmos o contexto de uso de uma comunidade indígena que tenha como único interesse usar água para beber e para lavar, o sentido popular é que é enfatizado.

   A regra de atribuição final que propus como sendo bem conhecida dos usuários privilegiados é:

 

RA-‘água’:

Atribuímos a palavra ‘água’ a uma amostra

see

(i-a) a amostra satisfaz a condição de caracterização constitutiva de seu núcleo popular de significado e/ou

(i-b) ela satisfaz a condição de caracterização constitutiva de seu núcleo científico de significado.

(ii) satisfaz essas condições caracterizadoras em grau no todo suficiente.

          (iii) satisfaz mais do que qualquer outro composto inorgânico.

 

Não se deve confundir essa disjunção inclusiva com a dos nomes próprios. Ela apenas indica o fato de que podemos falar de água tanto considerando o núcleo popular quanto o núcleo científico de significação, não é exigido sequer que usuários indigentes saibam a composição química da água para admitirmos que eles sejam capazes de fazer referência a ela ou que saibam tudo sobre o núcleo popular.

   Com isso se desfaz o velho conflito conceitual entre descritivistas como A. J. Ayer (1984) e Avrum Stroll (1998) e referencialistas como Kripke (1980: 128) e Putnam (1975) sobre o conceito de água. Os primeiros só admitiam o núcleo descritivo popular superficial de significação da palavra, como se fosse inevitável ao descritivismo se comprometer apenas com descrições de superfície, enquanto os últimos só admitiam o núcleo científico. Ambos deixaram de notar que a regra de atribuição admite ambos os casos.

   Quero agora demonstrar o poder explicativo da regra de atribuição, refutando o famoso argumento externalista de Putnam da Terra Gêmea (Putnam 1975: 224). Segundo Putnam, Oscar-1 está na Terra e Oscar-2 se encontra na Terra Gêmea, que é praticamente idêntica à nossa Terra, inclusive historicamente, exceto pelo fato de que o “líquido aquoso” que mata a sede, apaga o fogo e cai sob forma de chuva tem na Terra Gêmea a composição XYZ e não H2O. Assim, diante de uma chuva no ano de 1750, Oscar-1, na Terra, diz: “Isto é água!” E Oscar-2, na Terra-Gêmea, também diz: “Isto é água!” Como por volta de 1750 ainda não se conhecia a composição química da água, tudo o que os Óscares podiam ter em suas cabeças era a mesma ideia do líquido aquoso inodoro e transparente que estava caindo sob forma de chuva. Contudo, eles se referiam a coisas diferentes: Oscar-1 se referia à H20 e Oscar-2 se referia a XYZ, mesmo que não soubessem disso. Para Putnam a diferença é semântica, pois eles “queriam dizer” (‘meant’) coisas diferentes. Daí Putnam ter concluído que Oscar-1 e Oscar-2 sem saber atribuíam significados diferentes à água em 1750: para o primeiro, ‘água’ significava amostras de H2O e para o segundo amostras de XYZ. Conclusão: o significado não está na cabeça! Pois em suas cabeças eles tinham apenas a mesma ideia do líquido aquoso. O significado pertence essencialmente ao mundo externo.[9] Não demorou muito para que um filósofo chamado John McDowell (1992) levasse esse raciocínio ao extremo, concluindo que como o locus do significado é a mente, então a própria mente está fora da cabeça!

   Tendo em mente a evolução da regra de atribuição do termo nominador ‘água’, fica fácil refutar o argumento de Putnam (Costa 2022: cap. 8). Para começar, é preciso lembrar que ‘to mean’ significa em inglês tanto “querer dizer” (significar) quanto “apontar para”, como quando alguém diz: “I mean this table and not that chair”. O que Putnam fez foi usar a palavra no primeiro sentido em um contexto no qual o segundo deveria ter prevalência. O que os Óscares “meant” de forma diferente é o referente que eles apontam e não o que eles têm em mente. Contudo, o sentido de ‘to mean’ como “significado”, como “o que se quer dizer” se restringia em 1750 ao sentido popular da palavra, em si mesmo suficiente para sustentar sua aplicação, de modo que ambos os Óscares possuíam somente esse núcleo popular de significado como sendo o de água como o “líquido aquoso” – desprezado por Putnam – em suas cabeças. Por outro lado, é óbvio que quando consideramos ‘meant’ no sentido de apontar, os Óscares estavam, sem saber, apontando para H2O na Terra e para XYZ na Terra-Gêmea.

Considerando essas distinções torna-se claro como funciona o truque semântico: Quando Putnam nos diz que em 1750 os dois Óscares “queriam dizer” (meant) duas coisas diferentes com a palavra ‘água’, ele está apenas nos induzindo subrepticiamente a usar Oscar-1 e Oscar-2 como instrumentos indexicais para o que nós mesmos queremos dizer (‘meant’ no sentido de “significamos”) com a palavra ‘água’ em cada caso. Afinal, é claro que quase todos nós hoje levamos em conta o núcleo científico. Nós entendemos presentemente água como um líquido aquoso de composição H2O quando consideramos o que Oscar-1 está apontando, e consideramos o líquido aquoso apontado por Oscar-2 como XYZ (seja lá o que isso for), sendo claro que o que temos em nossas cabeças é diferente. Por um apelo sub-reptício a nossos estados mentais diferentes aplicados aos objetos referidos pelos Óscares, Putnam conseguiu convencer a muitos e a ele mesmo que os seus Óscares de 1750 realmente queriam dizer (meant) água atribuindo significados diferentes aos seus referentes. Não surpreende que ele tenha muitos anos depois confessado a Searle que havia deixado de acreditar em sua fantasia da Terra Gêmea.[10]

   O externalismo semântico foi importante. Seus argumentos são profundos e, sem eles, por razões dialéticas, a teoria aqui resumida não teria como alçar voo. Mas ele resulta de uma falácia genética: Por causa de suas origens externas o significado, que é inerentemente cognitivo, embora tácito, passa a ser equivocadamente visto como possuindo um componente externo. Que a falácia genética possa ser sempre mais refinada não faz com que deixe de sê-lo (Cf. Kallestrup 2012). Em um sentido secundário o significado pode substituir a palavra ‘importância’; assim falamos de um acontecimento “significativo”. No sentido primário, porém, significados são regras ou combinações de regras linguísticas que se instanciam cognitivamente em nossas mentes e que fazem isso o tempo inteiro na independência do que acontece lá fora.

 

REFERÊNCIAS:

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Kirk, G. S. & G. E. Raven (1971) The Presocratic Philosophers (Cambridge: Cambridge University Press).

Kripke, S. A. (1980): Naming and Necessity (Harvard: Harvard University Press).

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Recanati, François (2022): Mental Files. In Piotr Stalmaszczyk (ed.), The Cambridge Handbook of Philosophy of Language. (Cambridge: Cambridge University Press).

Recanati, François (2012). Mental Files (Oxford: Oxford University Press).

Salmon, Merrilee (2002) Introduction to Logical and Critical Thinking (Wadsworth).

Searle John (1983): Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press).

Searle, John (1967): Proper Names and Descriptions. In Paul Edwards (ed.), The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI (London: McMillan Publishers).

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Strawson, P. F. (1963): Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics (New York: Anchor Books).

Stroll, Avrum (1998): Sketches and Landscapes (Cambridge MA: MIT-Press).

Tugendhat, Ernst (1976): Vorlesungen zur einführung in die sprachanalytische Philosophie (Frankfurt: Suhrkamp Verlag).

Tugendhat, Ernst (1983): Logisch-Semantik Propädeutik (Stuttgart: Reclam).

Wittgenstein, Ludwig (2009): Philosophische Untersuchungen / Philosophical Investigations (Oxford: Blackwell).

Wittgenstein, Ludwig (1969): Über Gewissheit (Oxford: Basil Blackwell).

Wittgenstein, Ludwig (1958): The Blue and Brown Books (Oxford: Basil Blackwell).



[1] É preciso observar que a regra verificacional aqui aludida não tem nada a ver com o non sequitur que os positivistas lógicos fizeram das sugestões que lhes foram dadas por Wittgenstein. Cf. Alice Ambrose (ed.): Wittgenstein’s Lectures 1932-1935 (New York: Prometheus Books), sec. 24-25. Ver Claudio Costa (2018: cap. V).

[2] “Assim, uma referência pode tomar emprestado suas credenciais como uma referência genuinamente identificadora, de outra; e essa de outra. Mas esse regresso não é infinito” P. F. Strawson, Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics (New York: Anchor Book 1963), p. 185, nota.

[3] Os outros contraexemplos, tanto de Gödel quanto de Donnellan, foram todos refutados no capítulo IV de “How Do Proper Names Really Work?”

[4] Na carta dirigida a Russell em 13 de Novembro de 1904, Frege fala da Lua em si mesma como o significado (Bedeutung).

[5] Incluo entre colchetes a descrição do que pertence aos sentidos e significados dos nomes.

[6] Com ‘desde ao menos algum tempo...’ quero bloquear a objeção de que em outro mundo possível ‘Vênus’ possa ter mais tarde alterado sua órbita, ter sido destruído, etc., mas que ainda assim tenha sido identificado.

[7] Incluo entre parênteses o que Kripke não queria considerar, ou seja, as regras identificadoras de Vênus, que Kripke substituiu pela sua cadeia causal-histórica.

[8] Quero considerar esse último apenas para mostrar que há várias maneiras de se produzir um suposto necessário a posteriori. Considere o argumento a favor do necessário a posteriori apresentado primeiro artigo de Kripke (1971), no qual ele demonstra que, dado que seu púlpito não é feito de água, é necessário que ele não seja feito de água. Chamando de P = “Esse púlpito não é feito de água congelada”, o argumento tem a forma: (P → □P) & P Ͱ □P. Expresso de modo extenso o argumento fica sendo: “Se esse púlpito não é feito de gelo então é necessário que ele não seja feito de gelo. Esse púlpito não é feito de gelo. Logo: É necessário que esse púlpito não seja feito de gelo. Ou seja: a conclusão é um enunciado necessário a posteriori porque embora derivado da experiência, é necessário. O problema é que o P do antecedente da primeira premissa não é exatamente o mesmo que o P da segunda, o que torna o argumento equívoco. O primeiro P é hipotético, enquanto o segundo P afirma o que é chamado de certeza prática (Salmon 2002: 237-8), uma certeza que é suficientemente plausível para gerar assentimento, mas que não é absoluta. Como resultado o argumento fica sendo:

Se esse púlpito não é feito de gelo, então é necessário que ele não seja feito de gelo.

É praticamente certo que esse púlpito não é feito de gelo.

Logo: É necessário que esse púlpito não seja feito de gelo.

Devido à natureza falível do conhecimento humano, não podemos saber com absoluta certeza que o púlpito não é realmente feito de gelo de modo a derivar a necessidade lógica de nossa consciência. (Só um Deus onisciente seria capaz disso). Daí que a conclusão de Kripke não se segue.

 

[9] Putnam admitia (1975: 270) que além desse mais importante componente extensional externo do significado da palavra ‘água’ existem marcadores sintáticos (nome de massa) e semânticos (nome de espécie natural), além de estereótipos psicológicos (descrições de superfície). Isso é correto, mas só serve para confundir ainda mais o leitor crédulo.

[10] Tive o cuidado de refutar os outros dois exemplos de Putnam no artigo sobre a Terra Gêmea (Costa 2023: 235-236) junto a alguns engenhosos exemplos de Tyler Burge (1973; Costa 2023: 237-239) e David Kaplan (1989: 516-517, 531-532; Costa 2023: 239-241) respectivamente sobre a externalidade do pensamento e dos indexicais.

 

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