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sábado, 18 de outubro de 2025

METAFILOSOFIA (2) FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL

  

 

 DRAFT 

 

 

                                                            II

 

FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL

 

Eine ganze Wolke von Philosophie kondensiert zu einem Tröpfchen Sprachlehre.

[Toda uma nuvem de filosofia se condensa em uma gota de gramática.]

                               Wittgenstein

 

 

Quando, na condição de metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre a história da filosofia, há explicações de sua natureza que somos tentados a rejeitar sem maiores considerações.

   Esse é o caso de qualquer explicação que se pretenda fundamentar no objeto próprio ou no método próprio da filosofia. Afinal, há quase tanta diversidade de objetos e métodos quanto de filosofias – ou, ao menos, de movimentos filosóficos.[1] Ademais, as muitas subdivisões da filosofia teórica (voltada para o input do mundo sobre o sujeito) e prática (voltada para o output do sujeito sobre o mundo) parecem corresponder a uma variedade igualmente ampla de objetos específicos, com metodologias que variam conforme as exigências de cada domínio.

   Somente o metafilósofo de orientação prescritivista ainda pode nutrir a esperança (ou a fantasia) de delimitar o objeto de investigação próprio da filosofia. Já o metafilósofo descritivista tenderá a ver tais tentativas como inerentemente redutivas ou ampliativas, estreitando ou alargando as fronteiras da filosofia para além dos limites que lhe seriam mais adequados.

     Como minha intenção é mais construtiva do que crítica, concentrar-me-ei no exame das metodologias analíticas em filosofia. Essas metodologias já foram identificadas com o método de investigação próprio da filosofia e, como estruturas conceituais, com seu objeto próprio. Ela concepção subjaz a desenvolvimentos particularmente relevantes da filosofia do início do século XX, em especial à ideia extraordinariamente influente de que o método próprio da filosofia é o de análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia é o que Ernst Tugendhat descreveu como a estrutura dos conceitos mais centrais ao nosso entendimento do mundo. [2]

   Uma tal concepção foi, de maneiras diversas, sustentada por filósofos como Wittgenstein, Bertrand Russell, G. E. Moore, Friedrich Waismann, A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michael Dummett e R. E. Brandom, entre muitos outros. Além disso, como veremos, ela pode ser estendida a muito da tradição filosófica se nos lembrarmos de que o Sócrates dos diálogos platônicos – cuja indagação recorrente assumia a forma “O que é X”, em que o X vinha no lugar de um termo conceitual como ‘amizade’, ‘amor’, ‘beleza’, ‘justiça’, ‘conhecimento’...

     A concepção da filosofia como análise conceitual foi seriamente desafiada pela assim-chamada “virada naturalista”, inicialmente promovida por W. V. O. Quine, sob uma perspectiva deflacionária.[3] Para ele, a filosofia não se reduz à mera questão de investigação linguístico-conceitual, dado que ela não se distingue essencialmente da ciência empírica.

   Aliás, em seu entendimento, não há sequer uma distinção real a ser traçada entre ambas: a filosofia forma um continuum com a ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais, como as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país.[4]

     Quaisquer que sejam as vantagens desse ponto de vista, persiste o problema de que nenhum advogado da ideia de que a ciência e a filosofia se distinguem apenas arbitrariamente é capaz de explicar por que nos sentimos tão relutantes em conceber as fronteiras entre a ciência e a filosofia como resultado de acordos convencionais arbitrários. A tese quineana, segundo a qual a distinção entre filosofia e ciência decorre de uma decisão artificial, também não explica por que resistimos tão fortemente à ideia de modificar essas fronteiras – por exemplo, ao reclassificar como ciência o que tem sido chamado de filosofia, e vice-versa. Mais ainda – e isso me parece decisivo – a tese tampouco explica por que somos capazes de identificar uma nova teoria como filosófica ou científica sem recorrer a qualquer novo acordo convencional.

     A velha concepção da filosofia como análise conceitual tinha, ao menos, o mérito de buscar responder a essas questões por meio da explicitação de características distintivas da prática filosófica. Ademais, a admissão de que a filosofia se distingue da ciência por seus próprios meios não implica necessariamente na admissão do que Timothy Williamson chamou de excepcionalismo – a ideia de que os métodos da filosofia seriam intrinsecamente próprios, essencialmente distintos e, supostamente, superiores aos da ciência.[5]

     Embora exista uma variedade de versões da concepção de filosofia como análise conceitual, proponho reduzi-las aqui de modo um tanto artificial a duas formas gerais, no intuito de melhor evidenciar as qualidades e limitações intrínsecas a essa concepção. Chamarei essas duas variantes de filosofia de:

 

a) crítica da linguagem e de

b) análise da linguagem.

 

Pela crítica da linguagem, buscamos analisar ou elucidar conceitos com o intuito de dissolver confusões filosóficas. Já, pela análise da linguagem, o objetivo é examinar conceitos, visando a uma compreensão mais profunda de nossa arquitetura conceitual. A seguir, explicarei o que entendo por cada uma dessas formas de abordagem filosófica, argumentando que, apesar de seus méritos metodológicos, ambas falham em nos oferecer uma adequada explicação da natureza própria da filosofia.

 

 

1.     OS ATALHOS DA CRÍTICA

DA LINGUAGEM

 

A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos filosóficos, muitos deles oriundos da filosofia tradicional. Historicamente, isso tem sido realizado de duas maneiras. A primeira consiste em uma análise da estrutura lógica das sentenças – o que chamarei de análise formalmente orientada. A segunda envolve um exame cuidadoso dos significados ou usos das expressões de nossa linguagem natural em seus contextos interpessoais – o que chamo de forma comunicacionalmente orientada.

   Utilizo essas expressões, respectivamente, em substituição a uma distinção de conotação mais restritiva, a velha distinção entre a filosofia da linguagem ideal (guiada pela lógica matemática de Frege e Russell) e a filosofia da linguagem ordinária (guiada pela linguagem do cotidiano, como em Wittgenstein e entre os filósofos de Oxford de meados do século passado).[6] Digo que essa distinção é hoje restritiva porque embora ela leve em conta a distinção entre a filosofia do atomismo lógico em Russell e no Tractatus como exemplos de filosofia da linguagem ideal, e a filosofia terapêutica de Wittgenstein nas Investigações filosóficas, além do trabalho dos filósofos da de Oxford como Gilbert Ryle, J. L. Austin e P. F. Strawson, como exemplos de filosofia da linguagem ordinária, ela não contempla os desenvolvimentos posteriores dessas duas tradições.

   Ela não leva em conta, por exemplo, a oposição entre os herdeiros da filosofia da linguagem ideal, que se utilizaram de novos instrumentos formais, como a lógica modal em Kripke, Putnam e Kaplan, além do caso dos herdeiros posteriores muito mais sistemáticos da filosofia da linguagem ordinária, como John Searle, Paul Grice e mesmo Jürgen Habermas. Daí que a distinção entre filosofias formalmente e comunicacionalmente orientadas se torna aqui justificada pela sua maior amplitude. A primeira, propondo desafios metafísicos instigantes, mas de plausibilidade por vezes questionável; a segunda, propondo respostas prima facie plausíveis, mas que podem ser insuficientes e até mesmo triviais.

     A crítica da linguagem formalmente orientada pode ser ilustrada por meio das investigações de filósofos analíticos, como Bertrand Russell.[7] Um exemplo ajuda a esclarecer: uma razão subjacente à criação da doutrina das ideias por Platão teria sido uma confusão decorrente da identidade superficial entre as estruturas gramaticais de sentenças como: “A beleza é agradável” e “Sócrates é calvo”.

   Induzido por essa identidade, Platão teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um nome próprio referindo-se a um particular, o sujeito de sentenças como a primeira também precisa ser um nome próprio, tendo como referência um particular que ele chamou de a-beleza-em-si-mesma. Contudo, como não encontramos “a beleza” no mundo visível, essa “beleza-em-si-mesma” deve habitar um mundo que é somente inteligível, o mundo transcendente das ideias.

   Contra essa conclusão, a crítica da linguagem, baseada na moderna lógica dos predicados, torna claro que as estruturas lógicas dos dois tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas. Na verdade, a primeira sentença tem uma estrutura lógica muito diversa da sua estrutura linguística aparente. Enquanto “Sócrates (s) é calvo (C)” tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é logicamente analisável como uma abreviação de “Para todo x, se x é belo (B), então x é agradável (A)”, ou “(x) (Bx → Ax)”. Nessa análise, o pretenso nome próprio ‘a beleza’ desaparece, enquanto ‘é belo’ revela-se uma simples expressão predicativa.

   Essa distinção sugere que, por desconhecer a lógica fregeana, Platão foi induzido ao erro pela identidade superficial da estrutura sujeito-predicado de ambos os tipos de enunciados. Tal confusão gramatical teria fornecido uma justificativa ilusória para a sua formulação de uma ontologia de ideias – uma construção metafísica de inegável importância histórica, mas cujos fundamentos, à luz da análise lógica contemporânea, tornaram-se passíveis de questionamento.

     Vejamos agora um exemplo de crítica da linguagem comunicacionalmente orientada, bem próxima daquilo que Wittgenstein chamou de “filosofia terapêutica”. Trata-se da exposição das distorções linguísticas subjacentes ao argumento da ilusão. Esse argumento foi desenvolvido em oposição ao realismo direto, segundo o qual temos acesso direto ao mundo externo, e em defesa do realismo indireto, segundo o qual nosso acesso ao mundo externo, ou mesmo em defesa de um idealismo fenomenalista, que nega o acesso a um mundo material externo.

   Esse argumento parte de casos em que objetos parecem diferentes do que realmente são, como a colher que, ao ser parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A análise desses casos parece conduzir à conclusão de que percebemos os objetos de forma indireta: o que diretamente percebemos não são os objetos materiais, mas apenas nossas representações deles (impressões sensíveis ou sense-data).

   Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem, como J. L. Austin, argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos, mas apenas suas representações; o que realmente dizemos é que vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, ainda que não como eles realmente são. Assim, quando olho para o meu nariz com ambos os olhos, não afirmo que vejo dois narizes, mas antes que vejo o meu próprio nariz duplicado (John Searle). Do mesmo modo, quando vejo uma moeda como elíptica, não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas que estou vendo um objeto redondo que parece elíptico.[8]

     Exemplos como os recém-apresentados servem não apenas para mostrar as qualidades, mas também os limites da crítica da linguagem. Pois é evidente que, sem a doutrina platônica das ideias, o problema continua existindo: trata-se de explicar a predicação, ou, mais precisamente, a função dos termos gerais no âmbito do conhecimento. E também as objeções representacionalistas ao realismo direto (tanto na forma fenomenal quanto na científica) do argumento da ilusão não parecem completamente esgotadas por uma crítica puramente linguística.

   Uma razão para pensar assim é que os argumentos que sustentam a admissão de ideias como fundamento explicativo da generalidade e da predicação, bem como aqueles que defendem a admissão de representações como os objetos mais imediatos da experiência (mediando inevitavelmente nosso acesso ao mundo externo), parecem possuir algum conteúdo substantivo. Esse conteúdo parece só poder ser refutado de forma definitiva mediante considerações teóricas mais amplas — como, por exemplo, a ideia de que, embora tenhamos acesso visual imediato a sense-data (como demonstrado pela reprodução computacional de imagens mentais via fMRI), a mente é capaz de “projetá-los” no mundo externo, com base na satisfação de diferentes critérios de realidade externa, tais como intensidade máxima, intersubjetividade virtual, conformidade com leis naturais, entre outros.   

   Geralmente, a crítica da linguagem não é concebida como uma concepção da natureza da filosofia, mas apenas como uma maneira crítica de fazer filosofia. Não obstante, a crítica da linguagem parece ter se tornado uma concepção da natureza da filosofia em certas passagens dos escritos de Wittgenstein, o qual, segundo alguns, teria concebido a filosofia como uma espécie de terapia linguística sem qualquer conteúdo positivo próprio.[9] Mesmo acreditando que Wittgenstein endossou apenas metodologicamente esse modo de ver, dado que também fez observações que o afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) usualmente retirada de seus textos, de modo que irei expô-la aqui apenas por aquilo que ela é capaz de nos ensinar.[10]

     A concepção terapêutica da filosofia afirma que muito do que se faz sob esse nome (especialmente da filosofia tradicional) é resultado de confusão linguística. Filósofos são indivíduos possuídos por um irresistível anseio por generalidade (craving for generality)[11] que os predispõe a serem confundidos pelas estruturas superficiais de nossa linguagem na construção de ambiciosos “castelos de cartas” teoréticos, ou, quando isso termina em contradição, acabando por serem reduzidos a desesperançados prisioneiros de “nós do pensamento”. Em face disso, a boa filosofia deveria ser terapêutica, sendo seu objetivo o de desmontar os castelos de cartas teoréticos do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais teoristas mais ambiciosos enlearam-se a si mesmos. E o modo de fazer isso não deveria ser por meio da construção de novas teorias, nem pela explicação de coisa alguma, mas por meio de descrições dos modos pelos quais efetivamente usamos nossas palavras – por trazer essas palavras de volta de suas férias metafísicas para o seu labor cotidiano. Sob essa perspectiva, a filosofia deve tornar-se um empreendimento puramente destrutivo, somente bem-sucedido quando o filósofo, liberto de suas preocupações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico liberto de suas fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a filosofia.

   Para ilustrar, considere a tese do perdurantismo na metafísica analítica. De acordo com esse ponto de vista, os objetos materiais são entidades tetradimensionais; definem-se não só por suas três dimensões espaciais, mas também por uma dimensão temporal: seu perdurar no tempo. Isso explicaria como um objeto material – como uma maçã ou uma pessoa – pode permanecer o mesmo, ainda que sofra mudanças significativas ao longo do tempo. O praticante da filosofia, por sua vez, alinhar-se-á ao senso comum e à linguagem natural, sugerindo que o perdurantista apenas refina uma confusão primária entre objetos materiais e eventos ou processos. Sua posição será a do endurantista, segundo a qual os objetos materiais permanecem essencialmente os mesmos, alterando apenas suas propriedades acidentais.

   O problema com uma concepção estritamente terapêutica da filosofia é que ela corta os galhos curtos demais. Nenhuma crítica da linguagem conseguiu ser inteiramente não teórica nem explicativa. O próprio trabalho de Wittgenstein é um exemplo revelador dessa impossibilidade, embora esse fato seja geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos. Como observou criticamente A. J. Ayer:

 

Sua reiterada preferência por descrição em lugar de explicação e a abstenção de teoria, que ele afirmava praticar e se regozijava diante dos seus leitores, não são características de seu procedimento real em nenhum estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das Investigações Filosóficas. Que suas explicações sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições: suas teorias não cessam de ser tais ao serem encobertamente assentadas. [12]

 

Considere-se, por exemplo, as observações de Wittgenstein sobre nomes próprios nas Investigações Filosóficas.[13] Elas são concebidas como uma crítica à “teoria do rótulo” dos nomes próprios, segundo a qual o significado de um nome próprio é o objeto que ele apresenta, à semelhança do rótulo colado em uma garrafa. No entanto, ao refutar essa teoria, Wittgenstein estava, intencionalmente ou não, ideando uma versão própria da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios. Essa teoria explica o significado de nomes como “Moisés” pelas diferentes descrições a ele associadas, como “o homem que conduziu os israelenses através do deserto”, “o homem que viveu naquele tempo e lugar e que foi chamado de ‘Moisés’”, ou “o homem que, quando criança, foi retirado do Nilo pela filha do faraó”. (Usando o vocabulário próprio de Wittgenstein, poderíamos acrescentar que essas descrições são expressões de regras que auxiliam na identificação do objeto nomeado, regras que devem constituir, conjuntamente, aquilo que queremos dizer com o nome próprio, mais precisamente, seu sentido referencial.) Como consequência, as considerações de Wittgenstein sobre nomes próprios terminam por ser teóricas, pois a sua eficácia terapêutica depende de uma generalização insinuada a todos os nomes próprios, sendo claramente explicativas, pois objetivam explicar como podemos identificar pessoas usando nomes próprios. Isso é demonstrado pelo fato de que essas mesmas ideias foram retomadas mais tarde, na sugestão, explicitamente teorética e explicativa, de uma teoria do feixe para nomes próprios por J. R. Searle[14] e, de forma mais definitiva, pelo autor do presente livro.[15]

   Exemplos como esses mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a doença e não apenas minorar esse ou aquele sintoma ocasional, deve ser baseada em generalizações dotadas de poder explicativo, mesmo que implícitas. Quando desenvolvidas, essas generalizações forçam-nos a abandonar o terreno das considerações sobre a linguagem ordinária, de onde originalmente partiram, e a avançar rumo a construções teóricas cada vez mais elaboradas.

   Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente dissociadas, pois elas são como os lados opostos da mesma moeda filosófica, sendo mais uma questão de temperamento quando um filósofo prefere enfatizar um ou outro lado. [16]

 

 

2.     FILOSOFIA COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM

 

O fracasso de uma concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos a considerar a filosofia como análise da linguagem. Trata-se do lado construtivo e teorético da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à crítica da linguagem e até de torná-la uma extensão de si mesma. Como já fiz notar, a análise da linguagem também pode ser feita de um modo formalmente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”) ou de um modo comunicacionalmente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”).

   Um exemplo da abordagem sintaticamente orientada foi o esboço de uma estrutura geral da linguagem formal, evidenciado na distinção introduzida por Carnap entre regras de formação, responsáveis por especificar os símbolos e as sentenças bem formadas, e regras de transformação, responsáveis por determinar as possíveis relações lógicas entre as sentenças.[17]

   Por outro lado, um exemplo de análise da linguagem em sua forma pragmaticamente orientada foi a teoria dos atos de fala de J. L. Austin. Na interpretação feita por Searle dessa teoria, a estrutura de nossas ações comunicativas é geralmente reduzível à forma F(p), em que p representa o conteúdo proposicional e F representa a força ilocucionária, essa última definindo o tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe que seja associado ao seu conteúdo.[18] Para ilustrar: ao dizer “Peço-lhe para fechar a porta”, o proferimento possui uma força ilocucionária, a de um pedido, e um conteúdo proposicional, que diz respeito ao ato de fechar a porta.

   Posteriormente, Searle desenvolveu uma notável teoria da intencionalidade em filosofia da mente baseada na forma internalizada desse mesmo esquema: o que temos é a intenção I relacionada a um conteúdo intencional p, produzindo I(p).[19] Por exemplo: se eu quero que a porta seja fechada, o que tenho é uma intenção (a de querer) seguida de seu conteúdo intencional (que a porta seja fechada).

   Construções analíticas como essas são teorias gerais e diversas em escopo, além de serem desenvolvimentos capazes de conduzir-nos próximos aos horizontes da ciência. De fato, a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de transformação já foi há muito incorporada a vários domínios da lógica simbólica, que se consolidou como uma ciência formal, e a teoria dos atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática linguística, mais do que à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser empregadas como instrumentos críticos, essa não foi sua motivação principal. Seu propósito fundamental foi ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.

     No que se segue, e como metodologia geral subjacente a todo este livro, apresentarei uma versão robusta da concepção de filosofia como análise da linguagem. Trata-se de uma abordagem comunicacionalmente orientada que se estende aos limites da tolerância e da defensabilidade teórica. Algo semelhante pode ser encontrado, com variações individuais, nas concepções de praticantes tardios e mais refinados no uso dos métodos analíticos, como as de Peter Strawson e Ernst Tugendhat.

   Uma assunção básica da concepção mais robusta da filosofia como análise da linguagem, repetindo o que já foi notado no capítulo anterior, é a ideia de que não temos consciência da estrutura extraordinariamente complexa dos conceitos mais centrais de nossa linguagem natural, os quais se encontram em alguma medida intrinsecamente relacionados uns aos outros, como os conceitos de verdade, crença, percepção, conhecimento, causa, tempo, bem, justiça, beleza... possivelmente formando uma rede conceitual densa e extremamente refinada, que usamos cotidianamente sem perceber a sua profundidade. Como escreveu Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus, acentuando essa ideia:

 

A linguagem corrente é parte do organismo humano e não menos complexa do que ele. Dela é humanamente impossível extrair imediatamente a lógica da linguagem. A linguagem disfarça o pensamento a tal ponto que, da forma externa de sua roupagem, não somos capazes de inferir a forma subjacente do pensamento, já que a forma externa da roupagem serve a fins inteiramente diferentes dos de revelar a forma do corpo.[20]

 

Como também já foi observado, essa falta de consciência das estruturas conceituais tem uma explicação: não aprendemos esses conceitos por meio de definições explícitas, mas, desde a infância, por meio de uma praxis não cognitiva baseada em exemplificações positivas e negativas, na qual nosso aprendizado é repetidamente submetido à correção interpessoal. Por isso, embora pareça evidente que conhecemos os significados de palavras como ‘justiça’, ‘tempo’ e ‘verdade’, posto que sabemos usá-las corretamente, permanecemos incapazes de explicitar as regras constitutivas de seus significados, ou seja, os próprios contornos de seus conceitos. Eis por que, embora sejamos proficientes em seu uso, costumamos sentir-nos paralisados quando solicitados a explicar o que queremos dizer com elas.

   A falta de consciência das regras que governam o uso de palavras que possuem um papel central em nosso entendimento do mundo facilita o surgimento de confusões filosóficas: filósofos – especialmente aqueles que se ocupam com metafísica especulativa – confundiram sistematicamente os usos de nossas expressões, ainda que por meio dessas confusões possa haver algo de relevante a ser manifestado.

   Sob a perspectiva que acabei de apresentar, a filosofia da análise conceitual constitui, em si, um empreendimento crítico; seu objetivo principal é construir teorias capazes de explicitar estruturas conceituais mais centrais, o que, por si só, já seria suficiente para dissipar confusões conceituais. Por envolverem generalizações, essas teorias também possuem valor explicativo. Seu propósito mais distintivo deveria ser o de fornecer aquilo que, junto com Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação panorâmica (übersichtliche Darstellung), ou seja: uma espécie de “teorização orgânica”, que nos permitiria visualizar as relações estruturais entre conceitos de interesse filosófico. Vale traduzir a célebre passagem central:

 

Uma fonte principal de nossa incompreensão é a falta de transparência em nossa gramática. A representação panorâmica permite ao entendimento perceber as conexões. Daí a importância de encontrar e inventar elos intermediários. O conceito de representação panorâmica é, para nós, de importância fundamental. Ele revela a forma de nossa representação, o modo como vemos as coisas. (É isso uma cosmovisão?)[21]

 

Dado que nossos conceitos filosoficamente relevantes se encontram, em alguma medida, inter-relacionados, a representação panorâmica poderia tornar explícita a relação sistemática entre eles. Seu objetivo é elucidar o que Tugendhat chamou de malha conceitual (begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um todo.[22]

     Para completar nosso quadro, é preciso mencionar um traço particularmente esclarecedor da filosofia analítica, identificado por W. V. O. Quine sob o termo ascensão semântica (semantic ascent)[23] e que nós – sem medo da intencionalidade – poderíamos chamar de ênfase linguístico-conceitual. Trata-se de uma espécie de ênfase discursiva sobre os elementos linguísticos e conceituais. Por meio da ascensão semântica, aspectos linguístico-conceituais de nossas expressões são focalizados de maneira a tornar explícitas distinções mais sutis e prevenir confusão.

   Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos, não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual ‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos fatos, não o das coisas, pode ser referido”.

   Essa noção de ascensão semântica é, aliás, uma reação ao conceito carnapiano correlato de modo de dizer formal, entendido como o registro adequado para tratar das questões linguístico-conceituais próprias da filosofia. No entanto, como Quine perspicazmente observou, a distinção carnapiana revela-se equivocada na medida em que ele quis torná-la caracterizadora da filosofia como tal. Como Quine bem notou, a noção de ascensão semântica difere do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não apenas às sentenças filosóficas, mas a qualquer sentença concebível. Como ele escreveu:

 

A ascensão semântica aplica-se a todo lugar. “Há masurpiais na Tasmânia” pode ser parafraseado como “‘Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na Tasmânia”, se houver algum ponto nisso. Apenas acontece de ser a ascensão semântica mais útil em conexões filosóficas.[24]

 

A noção de ascensão semântica, a ênfase linguístico-conceitual, pode ser explicada em maior detalhe quando consideramos que, para prevenir erros, a filosofia analítica frequentemente apresenta seus argumentos, de forma mais explícita, em uma metalinguagem que nos permite centrar nossa atenção nas palavras e conceitos expressos.

   É aqui que importa sublinhar que, em filosofia, a ascensão semântica é geralmente realizada por meio de uma metalinguagem semântica, e não meramente por uma metalinguagem sintática. Essa consideração torna possível responder à objeção de que a filosofia analítica, por ser um empreendimento linguístico-conceitual, inevitavelmente acaba por deixar de fora o mundo. Para esclarecer esse ponto, compare as duas sentenças seguintes:

 

(a)   “’Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras”.

(b)  “’Cracóvia’ é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”

 

Na sentença (a) empregamos uma metalinguagem sintática para tratar da palavra como sinal físico. Já na sentença (b) recorremos a uma metalinguagem semântica para falar não só da palavra, mas também do que ela significa. Utilizando um vocabulário fregeano, podemos dizer que, ao adotar uma metalinguagem semântica, estamos tornando explícitos os sentidos de nossas palavras, mas, ao fazermos isso, também estamos falando sobre aquilo a que elas se referem, ou seja, sobre o mundo, considerando que essas referências, sejam elas objetos ou propriedades, só são cognitivamente avaliáveis por meios conceituais.[25]

   Em síntese: por meio de uma metalinguagem sintática, falamos somente dos signos em abstração de seus significados: esse pode ser o caminho de um formalismo árido. Por outro lado, pela metalinguagem semântica, preservamos os sentidos junto ao que eles se referem, e não apenas os signos: esse é o caminho propriamente filosófico, pelo qual a análise da linguagem pode ser estendida das palavras ao que se quer dizer com elas e, assim, ao próprio mundo. Por conseguinte, fica claro que a ênfase conceitual propiciada pela ascensão semântica é apenas um modo de centrar nossa atenção na linguagem, sem excluir nada de valor que possa ser por ela representado.

     Embora a análise formalmente orientada, em boa medida praticada por filósofos como Carnap, Quine, Donald Davidson, Saul Kripke, Hilary Putnam e David Lewis, também empregue a ascensão linguístico-conceitual, ela difere de maneira importante da concepção mais robusta de análise, especialmente em suas posturas diante das exigências do elemento comunicacional presente no senso comum e na linguagem natural. Filósofos formalmente orientados tendem a privilegiar a consistência interna de suas teorias, mesmo que isso implique renunciar à consonância com o senso comum, com as intuições da linguagem ordinária, ou mesmo com a ciência empírica. Estão, por isso, sempre mais dispostos a sacrificar as últimas pela primeira, substituindo o ônus heurístico por um bônus imaginativo.

     Com efeito, muitas das ideias advindas da abordagem sintaticamente orientada de análise da linguagem encontram-se em flagrante contradição com certas intuições fundamentais. Qual seria a razão disso? Creio que a resposta não seja difícil de encontrar. Todos sabemos, com base na semiótica, que a linguagem se estrutura em três dimensões: sintática, semântica e pragmática.[26]

   O que pretendo demonstrar é que de um modo geral (ainda que o reverso seja em alguma medida possível) existe uma relação de pressuposição entre essas dimensões, na qual:

 

a dimensão da semiótica:

SINTÁTICA

é pressuposta pela dimensão

SEMÂNTICA

que é pressuposta pela dimensão

PRAGMÁTICA.

 

Ou seja: a dimensão pragmática tende a exigir uma já constituída dimensão semântica, a qual, por sua vez, depende de uma base sintática já constituída. Assim, a dimensão pragmática costuma pressupor as outras duas. Essa hierarquia tem consequências para o que chamei de robusteza teórica no domínio da filosofia analítica, com o que quero justificar a intuição de Searle de que a filosofia de inspiração comunicacional (a sua) é “mais forte”.[27] Vejamos o argumento.

     Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem, isto é, as regras para a combinação de seus signos, mesmo em estado de ignorância, sem conhecer as referências desses signos, sem saber como usá-los em situações concretas, sem, desse modo, sequer conhecer seus significados. O inverso, contudo, é muito menos concebível: não podemos ter acesso adequado aos significados resultantes de combinações de signos, nem compreender os modos como esses signos são usados referencialmente em contextos quaisquer, sem antes conhecer suas funções sintáticas, ou seja, sem saber como podem ser combinados na construção de sentenças bem formadas.

   Como resultado, embora o entendimento da dimensão sintática da linguagem não pressuponha o entendimento da dimensão semântica, o contrário não se sustenta: para que essa última seja adequadamente compreendida, é necessário já ter domínio da dimensão sintática. E o mesmo se aplica quando comparamos a dimensão semântica com a dimensão pragmática. Isso significa que a dimensão pragmática tende a carregar consigo a pressuposição de todo o conjunto de regras semânticas da linguagem, um arcabouço articulador de nossas intuições linguístico-conceptuais, de nossas intuições de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser manifesto nos modos pelos quais as usamos.

     A assimetria recém-notada tem consequências filosóficas. Dela decorre que a análise formalmente orientada, enfatizando a sintaxe, é menos dependente das outras dimensões, podendo ser desenvolvida sem considerá-las com grande atenção, consequentemente, também em maior desacordo com elas, sem perda de inteligibilidade. Daí que o analista conceitual sintaticamente orientado se sente mais livre para confrontar assunções fundamentadoras da racionalidade da linguagem e de nosso entendimento comum do mundo (ainda que de modo ilusório), sobretudo quando seu procedimento for redutivo e dependente de uma livre rejeição dessas assunções.

   Isso ajuda a explicar por que muitos argumentos desafiadores, propostos por filósofos como Quine, Kripke, Hilary Putnam, David Kaplan e David Lewis, puderam se opor mais facilmente ao senso comum linguisticamente expresso na linguagem ordinária. Em contraste, filósofos de inspiração comunicacional, como John Searle, P. F. Strawson e Paul Grice, só poderiam fazê-lo a um custo de inconsistência evidente.

     Na próxima seção, as consequências teóricas que os filósofos derivaram das concepções recém-apresentadas serão avaliadas criticamente. O objetivo será demonstrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem e, por extensão, como crítica da linguagem, embora eficaz em indicar como a filosofia deve poder ser, é incapaz de mostrar-nos o que a filosofia realmente é.

 

3.     A FALÁCIA OBJETAL NA

FILOSOFIA ANALÍTICA

 

Como o filósofo analítico está empenhado em expor a estrutura conceitual de nossa linguagem, tanto o defensor quanto o crítico da filosofia como análise conceitual podem bem pensar que ele:

 

(a)   Não está, de modo algum, desenvolvendo hipóteses especulativas sobre o mundo, como fazia o filósofo tradicional de orientação metafísica.

 

Além disso, tende-se a pensar que ele:

 

(b)   Tampouco está formulando hipóteses empíricas sobre o mundo, como fazem os cientistas naturais (ainda que o esforço de descrever o funcionamento real da linguagem possa, de certo modo, ser visto como um empreendimento empírico[28]).

 

Meu objetivo nesta seção é mostrar que nem a asserção (a) nem a (b) são efetivamente satisfeitas pela prática real da filosofia como análise da linguagem, e que tal pretensão repousa em uma insidiosa falácia objetal. Ao evidenciar o caráter falacioso dessas asserções, pretendo também mostrar que é equivocada a suposição de que, do ponto de vista do objeto de investigação, a filosofia analítica se distinguiria de outras formas de atividade investigativa. Afinal, embora tenha como finalidade o esclarecimento de estruturas conceituais, isso não implica abdicar de qualquer pretensão explicativa acerca do mundo.

   O comprido argumento que apresentarei para sustentar esse ponto não é, reconheço, um modelo de linearidade ou transparência. Ainda assim, aqui está ele:

   Para demonstrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar que sua análise possui um objeto de investigação distinto daquele da filosofia tradicional ou da ciência em geral, precisamos começar considerando sua prática efetiva. As teses (a) e (b) poderiam, com efeito, ser consistentemente mantidas se o analista conceitual se limitasse à análise lógica da estrutura das sentenças ou a uma tediosa, quasi-lexicográfica descrição dos usos ou significados das palavras-conceituais filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural, como ocorreu com muito da assim-chamada filosofia da linguagem ordinária.

   No entanto, não foi isso o que realmente aconteceu. Para alcançar relevância filosófica, o analista conceitual sempre precisou ir além: foi necessário inquirir nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, chegando inclusive a identificar, nessa praxis, conceitos para os quais ainda não havia palavras na linguagem. Tais conceitos são selecionados com base em critérios como o aumento da coerência e do poder explicativo.

   Como esses conceitos recém-descobertos só podem ser expressos mediante novas concatenações de palavras, o analista conceitual é frequentemente levado a substituir essas concatenações por termos de arte, criados por razões de economia discursiva. Alguns exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações comunicativas pode analisar nossos “atos de fala” à luz de sua “força ilocucionária”; alguém envolvido com filosofia do conteúdo pode buscar entender a função representacional das sentenças declarativas, seu “significado cognitivo” em termos de “regras de verificação”; um epistemólogo, por sua vez, pode propor uma análise do conceito de nosso conhecimento proposicional (knowing that) como “crença verdadeira justificada enquanto a justificação puder ser interpessoalmente considerada suficiente para torná-la verdadeira.”[29]

   Quando refletimos sobre a questão, um primeiro ponto a ser considerado é que o procedimento supostamente analítico contém um momento de síntese hipotética. Estruturas conceituais profundas são inicialmente descobertas para só então serem analisadas. Nesse processo, o filósofo já realiza um trabalho de generalização. Dito de outro modo, ele busca trazer à tona uma unidade sintetizadora através de elos intermediários que (ao menos para o analítico pragmaticamente orientado) já devem estar implicitamente presentes no uso da linguagem.

   O problema reside no fato de que a adequação desses conceitos unificadores recém-descobertos pode ser altamente hipotética. Isso se evidencia na controvérsia que frequentemente envolve os significados dos termos gerais empregados para explicar uma nova unidade conceitual. Na verdade, o filósofo está empenhado em estabelecer conceitos e relações conceituais inéditos, buscando justificá-los por meio de sua consistência com um tecido conceitual de crenças que ele assume, muitas vezes de forma inconsciente, como verdades. Tal empreendimento é inevitavelmente conjectural. Contudo, nessa busca de equilíbrio reflexivo, o filósofo é capaz de propor hipóteses potencialmente frutíferas.

   Vejamos alguns exemplos dessas hipóteses conceituais formuladas no âmbito da filosofia analítica. Elas dizem respeito: (i) à estrutura empírica da linguagem, como na teoria dos atos de fala; (ii) à função representacional de nossos enunciados, como no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, segundo o qual o significado cognitivo de uma sentença declarativa consiste, conforme a exposição de Wittgenstein, em múltiplos modos de verificação mais ou menos fortes[30]; (iii) à forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que p”, como na definição proposicional de conhecimento. Todos esses casos podem ser considerados, em certa medida, análogos ao trabalho de descoberta de leis naturais nas ciências empíricas, isto é, análogos a algo capaz de explicar uma multiplicidade indeterminada de casos individuais e de serem posteriormente confirmados pela experiência, mesmo que ela diga respeito às regras de interação linguística, no primeiro caso, ou à estrutura de certos processos essencialmente cognitivos, nos dois últimos.

   Penso que um analista conceitual liberal não terá grande dificuldade em aceitar essas conclusões. Ainda assim, ele tenderá a insistir que, embora seu procedimento analítico concreto seja precedido de um momento hipotético de síntese, seu esforço está sempre voltado para tornar explícito aquilo que já pertence ao nosso sistema conceitual, e não, como o cientista empírico ou o filósofo especulativo, para ultrapassá-lo mediante a elaboração de hipóteses sobre o mundo empírico real.

   Contudo, ao examinarmos os exemplos disponíveis, percebemos que muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais ou digam respeito sobretudo ao relacionamento de nossas representações com o mundo, mais do que ao mundo em si mesmo.

   Com efeito, quando examinamos outros exemplos de análise que vão além da filosofia da linguagem, como os encontrados em filosofia da mente ou da metafísica analítica, percebemos que eles podem muito bem fazer parte do próprio mundo empírico.

   Consideremos primeiro o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da mente. Restrinjo-me aqui a uma das primeiras, dentre as muitas teorias da consciência desenvolvidas nas últimas cinco décadas: a teoria proposta por D. M. Armstrong em 1978, um filósofo de formação analítica.[31]  Ela introduziu uma distinção fundamental entre duas formas principais de consciência: a consciência perceptiva, que é a do estar em vigília, percebendo o mundo, e a consciência introspectiva, que é a da submissão de estados mentais ditos “conscientes” às introspecções ou cognições de segunda ordem acerca deles. Embora essa distinção possa ser dita conceitual, ela também diz respeito a classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais difusamente situados no espaço e no tempo.

   No domínio da metafísica analítica, destaca-se hoje a muito discutida teoria ontológica dos tropos, introduzida em 1953 pelo metafísico analítico Donald Williams. Essa teoria renova a análise do conceito fundamental de propriedade. Em oposição às tradicionais análises realistas, que concebem as propriedades como universais abstratos, Williams propôs uma análise alternativa: Para ele, o mundo é basicamente constituído de propriedades espaço-temporalmente localizáveis, às quais ele deu o nome de tropos.[32]

     Vimos que, embora a ideia de que o analista conceitual possa expor estruturas empíricas possa parecer estranha a princípio, há respostas convincentes em defesa disso. Também A. J. Ayer argumentou a favor delas:

 

A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo algum abrupta, pois o mundo é o mundo que descrevemos, o mundo como ele figura em nosso sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema conceitual, você está, ao mesmo tempo, explorando o mundo.[33]

 

A resposta de Ayer torna-se especialmente convincente à luz de nossas considerações anteriores sobre ênfase conceitual e metalinguagem semântica. Ela aponta, ainda que implicitamente, também para o fato de que não podemos distinguir o objeto de investigação próprio da filosofia apenas com base na análise de nossas estruturas conceituais. Afinal, em um sentido análogo, também se poderia argumentar que tanto o cientista empírico quanto o metafísico especulativo estão fazendo um trabalho de “análise conceitual”, a única diferença sendo a de que eles não são conscientes disso, uma vez que a ascensão semântica lhes pode parecer desnecessária.

   Esses investigadores não se preocupam em destacar aspectos linguístico-conceituais de suas investigações por meio de uma metalinguagem semântica. Esse último ponto pode ser ainda mais bem esclarecido se examinarmos separadamente as objeções levantadas contra as teses (a) e (b).

     Considere-se a tese (a): segundo ela, diferentemente dos filósofos especulativos, os filósofos analíticos não fazem asserções conjecturais sobre o mundo.

     Contra essa tese, é importante ressaltar que a história da filosofia tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional podem ser encontrados no trabalho de filósofos considerados analíticos (por alguns mesmo chamados de pós-analíticos). Sequer faz sentido defender que a filosofia analítica não é especulativa, pois a própria história revela que as distinções que diferentes filósofos mantiveram entre:

 

     Filosofia crítica                  e      Filosofia especulativa

     (ocupada com a defini-              (objetivando alcançar conclusões gerais

     ção e análise crítica                    sobre a natureza do universo e sobre

     dos conceitos de nossa               nosso lugar e expectativas nele)

     vida diária e ciências)                 (Por C. D. Broad);     

  

     Metafísica imanente            e     Metafísica transcendente

     (limitando-se ao mundo             (objetivando ir além dos sentidos,

     dos sentidos)                               relacionando-se com o mundo

                                                         supra-sensível)

                                                         (Por W. H. Walsh);

 

     Metafísica descritiva            e     Metafísica revisionária

     (ocupada com a descrição           (tentando criar uma nova

      de nossas estruturas reais            estrutura de pensamento)

      de pensamento)                           (Por P. F. Strawson);

 

encontram um paralelo no domínio da filosofia analítica, na distinção entre:

 

      os resultados da análise       e    os resultados da análise da linguagem

      da linguagem comunica-           formalmente orientada.

      cionalmente orientada               (filosofia sintática e semanticamente

      (filosofia pragmática-                orientada)

      mente orientada)

 

De fato, há uma razão profunda para a existência desse paralelo. A dependência das intuições de senso comum – frequentemente refletidas nas intuições linguísticas –, geralmente mantida pela filosofia crítica e pelas metafísicas imanentes e descritivas, encontra equivalente na postura do analista conceitual comunicacionalmente orientado. Em contrapartida, vimos que o analista conceitual formalmente orientado demonstra pouca ou nenhuma preocupação em preservar essas intuições ordinárias, espelhadas ou não na linguagem, permitindo-se por isso um trabalho muito mais especulativo.

    Considere, como exemplos de análise conceitual formalmente orientada, o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, com sua teoria dos nomes atômicos referindo-se a objetos absolutamente simples como seus significados; a teoria causal-histórica da referência, proposta por Saul Kripke, segundo a qual nomes próprios identificam seus referentes ao final de uma por vezes imensa cadeia causal externa iniciada por um batismo[34]; ou ainda o caso do realismo modal de David Lewis, que ousou postular a existência de uma infinidade de mundos possíveis mutuamente incomensuráveis.

     Essas observações demonstram que a distinção entre filosofia analítica e tradicional não se aplica ao objeto de investigação. De fato, se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode ser reformulada em um modo de discurso conceptualmente acentuado, ou seja, na forma de ascensão semântica que empregue uma metalinguagem capaz de legitimar a pretensão do filósofo especulativo de realizar análise filosófica nos mesmos termos do analista conceitual.

   Considere, como exemplo radical, o conceito de eu puro no idealismo fichteano. Trata-se de uma entidade acessível apenas intelectualmente, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-se a si mesma (por Selbstsetzung), estabelecendo, simultaneamente, uma necessária oposição a ele, de onde se seguirá, como síntese, o mundo finito externo e interno. Ora, não seria surpreendente se algum filósofo analítico contemporâneo, simpático ao idealismo, decidisse traduzir tais afirmações em uma análise do conceito de “eu elusivo”, entendido como constituído e como sendo constituído pela realidade social sob assunções antirrealistas.

     Mesmo que tal antirrealismo se revele, no final das contas, tão escassamente inteligível e especulativo quanto o próprio modelo fichteano, ele não será menos defensável do que algumas ideias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da ciência.[35]

     Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo analista conceitual formalmente orientado, já vimos que ele exigiria maior esforço por parte do analista conceitual de orientação comunicacional, uma vez que tende a entrar em conflito com as intuições de senso comum que a linguagem ordinária espelha, sem apresentar razão suficiente para tal ruptura.

     Ainda assim, mesmo nesse caso, a estratégia não é inviável: o analista comunicacionalmente orientado pode sustentar que o desacordo com nossas intuições é apenas aparente, buscando mostrar que há alguma forma de harmonizar suas afirmações com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias. O bispo Berkeley, ao defender a ideia de que nosso mundo é constituído apenas por ideias e espíritos, antecipou essa estratégia ao afirmar que seu imaterialismo nada mais fazia do que refletir as verdadeiras expectativas do senso comum, mantidas por pessoas ainda intocadas pela filosofia!

     Para resumir: o trabalho dos filósofos analíticos inclui momentos de síntese hipotética em que novos conceitos são concebidos e explorados em suas possíveis inter-relações. Seu trabalho é capaz de conter (mesmo que apenas indiretamente) inesperadas especulações metafísicas, que podem ter consequências até mesmo no modo como fundamos nossa apreensão da realidade empírica. Já o analista conceitual de orientação formal pode realizar tais especulações com maior leveza, pois terá mais facilidade para sacrificar o alinhamento com expectativas intuitivas acerca do mundo, sem, com isso, comprometer a inteligibilidade de seus argumentos. Isso se deve ao fato de que, para ele, a inteligibilidade repousa sobretudo na coerência formal interna de sua análise.

     Parece evidente, à luz das considerações acima, que todos os domínios da metafísica tradicional podem, de um ou de outro modo, ser alcançados por alguma espécie ampliada de análise linguístico-conceitual capaz de uma ascensão semântica. A conclusão não se faz esperar: manter que há alguma distinção substancial entre filosofia como análise conceitual e filosofia tradicional – mesmo em suas vertentes mais especulativas – é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase linguístico-conceitual.

     Um argumento similar se aplica à tese (b), que afirma que a filosofia difere das ciências empíricas por restringir-se a uma investigação conceitual.

     Que essa tese é falsa já deve ter ficado claro, uma vez que nosso último exemplo de análise conceitual envolvia também o mundo natural, mesmo que de forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser apresentado de forma mais dramática.

    Suponha, primeiramente, a existência de um analista conceitual inteiramente consequente, que, ao adotar a concepção ampla de análise já descrita, considera os conceitos e suas relações como verdadeiros objetos de investigação da filosofia, capaz de distingui-la de outras áreas do saber. Então, como ele veria a ciência? Não seria difícil para ele perceber que Einstein, para chegar à conclusão de que a velocidade da luz é constante para todos os observadores, precisou analisar o conceito de simultaneidade aplicado a observadores movendo-se a grandes velocidades relativas, pois é certo que ele não estava tentando analisar o movimento relativo de carros de pessoas, carros e trens movendo-se no espaço ao nosso redor – nossos conceitos ordinários ganham na física novas aplicações.

   Quanto ao trabalho do cosmologista Stephen Hawking, nosso analista conceitual poderia facilmente perceber que esse cientista não estava envolvido em nenhuma divisão dos buracos negros em si mesmos, mas em importantes análises astrofísicas sobre o que implica o conceito de buraco negro, se desejamos obter uma interpretação coerente do fenômeno. O conceito de evolução natural, como logo notaria nosso analista conceitual, perfeitamente consequente, foi primeiramente assim denominado e analisado corretamente por Charles Darwin, a partir de reflexões baseadas em observações zoológicas e botânicas. Gregor Mendel analisou o conceito de gene, Watson e Crick analisaram o conceito de DNA. O psicólogo Carl Jung vislumbrou e analisou o conceito de inconsciente coletivo, o sociólogo Thorstein Veblen, o de consumo ostensivo. Estavam todas essas pessoas fazendo filosofia?

    Aceitando, como o faz nosso analista conceitual inteiramente consequente, que nosso mundo conceitual é o verdadeiro objeto da filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo trabalho teórico parece aqui tornar-se, de um modo ou de outro, um trabalho de análise conceitual, embora certamente não-filosófico.

     Contudo, é possível imaginar a situação oposta: suponha que tenhamos junto a nós um empirista radical, que parte da premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente conceitual, ainda que seja acessível apenas por meio de conceitos, uma vez que esses conceitos se aplicam a fatos empíricos, mesmo que muito abrangentes. Como ele consideraria a maioria das questões apresentadas pela filosofia?

   Voltando aos nossos exemplos, considerando que a teoria dos atos de fala trata de ações comunicativas humanas em contextos reais; que a análise verificacionista dos sentidos factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como nossas mentes estabelecem verdades sobre o mundo; e que o realismo sobre leis científicas é uma tese acerca da constituição possível da realidade, ele será levado a conceber muito da filosofia como tratando de fenômenos empíricos a serem abordados pela ciência empírica, mesmo nos casos deles serem difusos e abrangentes.

     O caso do analista conceitual inteiramente consequente mostra que uma investigação que não é sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode sempre ser interpretada de modo a envolver conteúdos conceituais. Por outro lado, o caso do empirista radical mostra que uma investigação usualmente concebida como sobre conceitos – como a praticada por filósofos ditos analíticos – pode, em muitos casos, ser interpretada de modo a tornar-se uma indagação que transcende os limites conceituais e adentra o campo do conhecimento empírico.

     Que conclusões podemos extrair de tudo isso? A primeira é que os objetos da filosofia analítica não precisam diferir daqueles da filosofia especulativa tradicional, tampouco dos da ciência. Afinal, a filosofia analítica não pode reivindicar uma distinção essencial em relação a esses empreendimentos apenas por enfatizar o trabalho com estruturas conceituais.

Pretender divergir desses empreendimentos apenas porque enfatizam o trabalho com estruturas conceituais.

   Dessa forma, nossos dois casos demonstram, de maneira inequívoca, que a pretensão de restringir o objeto de investigação filosófica ao exame da estrutura de nossos conceitos, quando devidamente considerada, acaba por inviabilizar qualquer distinção objetal entre a filosofia analítica e outros empreendimentos teoréticos.

 

4.     CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O

     ORGANON ARISTOTÉLICO

 

Qual é, então, a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise conceitual e, de outro, a filosofia especulativa tradicional ou a ciência, uma vez que a diferença não se resume ao objeto de investigação? A resposta é que filósofos analíticos submeteram suas investigações a um controle metodológico muito mais rigoroso, em parte por formularem suas concepções em uma metalinguagem semântica, frequentemente escrutinizando-as por meio de novos instrumentos lógico-formais. Além disso, e de forma cada vez mais relevante, essas concepções são constantemente confrontadas com o pano de fundo de nossa visão de mundo contemporânea, cientificamente informada.[36]

     Conclui-se, portanto, que a filosofia analítica, principalmente o que já foi chamado de “filosofia da análise linguística”[37] – é, em essência, apenas o nome que atribuímos a uma maneira mais refinada de fazer filosofia desenvolvida durante o século XX. Essa abordagem exige ênfase particular no meio linguístico-conceitual, sobretudo por razões de rigor metodológico.

     Considerando que a filosofia pode ser vista como um jogo argumentativo, indiretamente voltado à busca da verdade, realizado por meio de lances argumentativos com um material de símbolos linguísticos, é fácil entender por que o emprego de novos instrumentos procedurais acabou por se tornar uma característica distintiva da filosofia posterior a eles. Tal característica se evidencia especialmente em suas áreas teóricas mais centrais, como a epistemologia e a metafísica, além de outras como as filosofias da linguagem, da ciência, da matemática, da lógica, etc.

     Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a assimilação de procedimentos analíticos nos domínios centrais da filosofia contemporânea.

     Aristóteles via nas novas doutrinas lógicas e metodológicas contidas em seu Organon um instrumento indispensável para o adequado exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon continha uma teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio dedutivo (a silogística), reflexões sobre a natureza das definições, rudimentos de uma teoria da indução, da explicação e da predição científicas, além de uma classificação das falácias.

     A assimilação dessas doutrinas transformou, lentamente, mas decisivamente, os modos de se fazer filosofia em seus núcleos teóricos. Os instrumentos aristotélicos de investigação foram aperfeiçoados nas universidades da Baixa Idade Média, especialmente sob a denominação de dialética, estabelecendo novos e irreversíveis padrões argumentativos em filosofia que, uma vez adotados, nunca mais puderam ser totalmente ignorados, ao menos nos âmbitos de investigação aos quais se aplicavam.

     Ora, a assim chamada filosofia analítica deixa-se explicar como a consequência de uma revolução metodológica análoga. Desde o final do século XIX, surgiram desenvolvimentos extremamente importantes em domínios semelhantes aos cobertos pelo Organon aristotélico. Alguns referem-se à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana), outros à lógica dedutiva (como a lógica dos predicados de primeira e segunda ordem e, mais tarde, a lógica modal...), ao raciocínio indutivo (teorias da probabilidade, teoria descritiva da decisão...), à pragmática (teorias da verificação, a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da explicação, da confirmação...). Seria deveras surpreendente se a filosofia, ao menos em muitos de seus domínios, não acabasse por ser definitivamente alterada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões superiores de claridade e rigor, além de aumentar notavelmente seu potencial heurístico. A incorporação desses novos procedimentos em uma investigação cientificamente informada deve inevitavelmente permitir que vejamos mais com maior nitidez, em uma revolução comparável àquela que a descoberta do telescópio representou para a astronomia.

     Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a filosofia analítica já pareceu ter somente a linguagem como objeto foi sua preocupação propedêutica geral com o elemento linguístico-conceitual, preocupação que se tornou evidente principalmente por meio daquilo que Quine chamou de ascensão semântica. Esse enfoque levou os filósofos analíticos, inicialmente, a confundir os novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser usados em outros lugares – com o método peculiar da filosofia, levando-os ao erro subsequente de confundir o objeto de aplicação desses instrumentos com o objeto peculiar da filosofia.

     O fato de que, em filosofia, nós frequentemente recorremos a uma metalinguagem semântica para promover um tratamento mais rigoroso das estruturas linguístico-conceituais, não implica ignorar seus sentidos e referências – concebidas, aliás, por meio desses mesmos sentidos –, e tampouco nos obriga a renunciar ao acesso ao mundo. Esse recurso, como outros, é um elemento constitutivo do que, de modo um tanto enganoso, tem sido chamado de filosofia analítica da linguagem, que, ao incluir representações panorâmicas, também contém um inevitável componente de síntese teorética.

     De fato, se “análise conceitual” é o nome de algo, então designa os modos de investigação que incorporam uma consciência semiótica mais refinada, aliada a procedimentos heurísticos que se tornaram comuns nos domínios centrais da filosofia ao longo do século XX, iniciando com Gottlob Frege (para Searle, “o inventor da filosofia analítica”). Em termos mais amplos, podemos dizer que a filosofia dita analítica resultou, em grande parte, do desenvolvimento das “ciências semióticas” aplicadas à filosofia, nada tendo a ver com o método próprio e inalienável da filosofia. Em suma: “análise conceitual” é o nome dado aos traços procedurais mais salientes de um estado da arte historicamente contingente – trata-se, antes de tudo, de um estilo, mais do que de uma coisa, um estilo que procuraremos preservar ao longo de nossa investigação.

    Se, com esse fastidioso capítulo, não fizemos grande progresso, pelo menos livramo-nos de algumas preocupações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Sobre a extraordinária variedade de recursos metodológico-heurísticos de que se valem os filósofos atuais, ver The Oxford Handbook of Philosophical Methodology, editado por Herman Cappelen et all. Apesar de útil, o livro exemplifica uma limitação da filosofia atual: excesso de confiança na sabedoria herdada da filosofia analítica anglófila dos últimos 50 anos, que é aceita de forma não crítica. Filósofos como Wittgenstein, Russel, e mesmo Gottlob Frege, raramente são citados. John Searle, um crítico do formalismo, é silenciado, junto a Susan Haack.

[2] Ernst Tugendhat, Die Philosophie unter den sprachanalytischen Sicht.

[3] W. V. O. Quine, Word and Object, p. 270 ss.

[4] W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann.”

[5] Ver Timothy Williamson: The Philosophy of Philosophy, cap. 1.

[6] Ver J. O. Urmson Philosophical Analysis: Its Development between the Two World Wars.

[7] Bertrand Russell, A History of Western Philosophy, p. 127.

[8] A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento da ilusão é encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma crítica muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser encontrada no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society: Philosophy in the Real World, cap. I, p. 28 ss. A última palavra de Searle em defesa do realismo direto encontra-se em seu livro Seeing Things as they Are (2015).

[9] Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen I, sec. 109, 118, 119... Uma tentativa atual de defender essa interpretação deflacionária de Wittgenstein encontra-se em Paul Horwich, Wittgenstein’s Metaphilosophy.

[10] Prefiro pensar que ao escrever sobre “terapia” Wittgenstein estava falando de seu modo pessoal e minimalista de trabalhar com conceitos filosóficos e não que ele estava propondo o método próprio de filosofar. Só isso explica por que ele também manteve ideias diferentes e aparentemente incompatíveis, como foi apontado por seus melhores intérpretes Cf. Anthony Kenny, “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”. Para uma tentativa de compatibilizar as duas concepções, ver meu livro, A Linguagem Factual, cap. II, que contém um resumo de minha tese doutoral intitulada Wittgensteins Beitrag zu einer Sprachphilosophischen Semantik.

[11] Wittgenstein, The Blue Book, pp. 17-18.

[12] A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p. 137.

[13] L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, sec. 79.

[14] J. R. Searle, “Proper Names.”

[15] How do Proper Names Really Work?

[16] A. J. Ayer, em entrevista com Brian Magee (Brian Magee, Men of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e às observações similares feitas na entrevista com J. R. Searle – uma objeção à qual respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalinguística, inevitavelmente deixa o mundo real de fora (Ver Brian Magee in Confessions of a Philosopher, pp. 74-76).

[17] R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.

[18] J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, p. 138.

[19] J. R. Searle, Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, cap. 1.

[20] Tractatus Logico-Philosophicus 4.002.

[21] Philosophische Untersuchungen I, sec. 122. Sobre o conceito de representação panorâmica (übersichtliche Darstellung), ver os comentários de G. P. Baker & P. M. S. Hacker, em Wittgenstein: Understanding and Meaning, p. 489.

[22] Ernst. Tugendhat, “Die Philosophie unter den sprachanalytischen Sicht“.

[23] W. V. O. Quine: World and Object, p. 270 f.

 

[24] W. V. O. Quine, Word and Object, pp. 271-272.

[25] Frege chamou de sentido de um nome de Art des Gegebenseins eines Gegenstandes: o “modo de se dar do objeto”, mas não chegou a fazer uma análise do sentido da expressão predicativa, supostamente por ter resistido a identificar seu sentido com o conceito.

[26] Como introdução, ver Charles Morris, Foundations of the Theory of Signs.

[27]  Searle notou em aula que sua aproximação (pragmática) às questões é “mais forte” (stronger) do que uma aproximação puramente formal.

[28] Também Kai Nielsen sublinhou o fato óbvio, mas notável, de que quando filósofos descrevem os usos de nossas expressões, “eles estão fazendo observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” (“What is Philosophy?”, em History of Philosophy Quarterly, 10, 1993, pp. 389-390).

[29] Essa ideia antiga foi pela primeira vez adequadamente aprofundada por Robert Fogelin no capítulo I de seu livro Pyrrhonian Reflexion on Knowledge and Justification. Ela foi refinada de maneira que considero definitiva, resolvendo o assim chamado problema de Gettier sem deixar restos, no capítulo V de meu livro intitulado Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions.

[30] A sugestão original de que o significado de uma sentença declarativa se constitui em seus procedimentos de verificação foi feita por Wittgenstein e nada tem a ver com as soluções formalistas insustentáveis tentadas depois pelo círculo de Viena, um boneco de palha que eles criaram para depois, com razão, rejeitar. A sugestão original de Wittgenstein requer um desenvolvimento pragmático que, pelo que sei, nunca foi seriamente tentado. Ver Wittgenstein’s Lectures, pp. 28-29 (sec. 24). Para uma discussão mais detalhada, ver Claudio Costa, Philosophical Semantics, cap. V.

[31] Ver o resumo da teoria em D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, cap. 10. Pessoalmente, acredito na possibilidade de uma teoria integradora e diferenciadora dos subconceitos de consciência; ver meu Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 10.

[32]  Donald Williams, “The Alphabet of Being”. A teoria tem sido aos poucos diluída e pulverizada pelo escolasticismo contemporâneo, de modo que vale a pena voltar ao original.

[33] A. J. Ayer, em entrevista com Brian Magee (Men of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e mesmo a observações similares feitas na entrevista com J. R. Searle – uma objeção à qual respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalinguística, inevitavelmente deixa o mundo real de fora (ver Brian Magee in Confessions of a Philosopher, pp. 74-76). Outros como John McDowell também perceberam isso, mas sob a admissão de um descabido externalismo semântico (Mind and World, p. 27). O significado pertence à linguagem tanto quanto a verdade. Dizemos que a revolução industrial teve grande significado para a evolução da humanidade, mas aqui a palavra ‘significado’ aparece apenas como substituto da palavra ‘importância’. Minha crítica ao externalismo do significado, tal como foi desenvolvido por Hilary Putnam, encontra-se no capítulo VIII de meu livro Cognitivismo semântico: filosofia da linguagem sob nova chave.

 

[34] Note-se que essas cadeias causais externas realmente existem. O problema é que elas não possuem enquanto tal qualquer poder explicativo. Ver John Searle, Intentionality, cap. 9.

[35] Um espécime disso é o livro de B. Latour & S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts. Eles tiveram a ideia (tão original quanto rasa) de investigar os a que acontece em um laboratório como se fosse o que fazem os xamãs em uma comunidade indígena.

 

[36] Uma exceção parece ter sido o filósofo G. E. Moore, que pode ser considerado um herdeiro tardio da antiga escola do senso comum, vivendo entre analíticos e dotado de consciência analítica.

[37] O ápice dessa concepção pode ser encontrado no clássico estudo de Ernst Tugendhat de 1976 intitulado Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, que foi traduzido para o português sob o título de “Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem”.

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