Draft f4
SOBRE A NATUREZA
DA FILOSOFIA
POR UMA TEORIA
ABRANGENTE
________________________
ἡ Σίβυλλα
μαίνεσθαι φθέγξεται ἀστολιστὶ καὶ ἀκαλλώπιστα καὶ ἀμύριστα, διαπεραίνουσα
χιλίων ἐτῶν φωνῇ διὰ τοῦ θεοῦ.*
Heráclito
Nun scheint mir, gibt
es ausser der Arbeit des Kunstlers noch
eine andere, die
Welt sub specie aeterni einzufangen.
Es ist – glaube ich, der Weg des Gedankens,
der gleichsam über die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie
ist – sie von oben von Fluge betrachtend.**
Ludwig Wittgenstein
Science is what we know; philosophy is what
we don’t know. (…) Science is what we can prove to be true; philosophy is what
we can’t prove to be false.***
Bertrand Russell
The gem is of purest ray serene, but it is condemned to remain in
the dark, unfathom’d caves of ocean; the flower has its swetness, although
it is wasted in the desert air.****
Robert Merton
_____________
* A
sibila com boca raivosa proferindo palavras sem riso, sem adorno e sem incenso,
alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita.
** Assim
parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o
mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por
assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu voo.
***
Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o
que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é
falso.
****
A joia é de raio sereno e puríssimo, mas está condenada a permanecer nas
cavernas escuras e insondáveis do oceano; a flor tem sua doçura, embora se
perca no ar do deserto.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
I.
INTRODUÇÃO:
OBJETIVOS E METODOLOGIA
1. Observações Metodológicas
II.
FILOSOFIA
COMO ANÁLISE CONCEITUAL
1. Os atalhos da crítica da linguagem
2. Filosofia como análise da linguagem
3. A falácia objetal na filosofia analítica
4. Para concluir: um paralelo com o Organon
aristotélico
III.
FILOSOFIA
COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA
1. O caráter inevitavelmente conjectural da
indagação filosófica
2. A ideia da filosofia como protociência
3. Origens e divisões da ciência
4. Alguns exemplos de insights filosóficos
protocientíficos
5. Fissão
6. O núcleo resistente de problemas filosóficos
residuais: duas hipóteses
7. Nossa ideia geral da ciência
8. Por uma concepção não-restritiva de ciência
9. Por que conceber a filosofia como um
empreendimento protocientífico?
10. Consequências da concepção proposta
IV.
RELIGIÃO E
OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA
1. Filosofia e religião: a abordagem genética
2. A lei comtiana dos três estágios
3. Uma breve avaliação da lei de Comte
4. Filosofia como uma indagação transitória entre
religião e ciência
5. Conclusões
V.
A RELAÇÃO
ENTRE FILOSOFIA E ARTE
1. O sabor artístico de alguns escritos
filosóficos: similaridades externas
2. Similaridades internas entre filosofia e arte
VI.
PARA UMA
EXPLICAÇÃO ABRANGENTE: INTEGRANDO
AS
CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS
1.
Filosofia
como uma atividade cultural derivada
2.
Uma explicação
integradora da atividade filosófica
VII.
COROLÁRIOS
E PROSPECTOS
1. Formas da Filosofia
2. Três fases históricas na evolução da filosofia
3. A filosofia linguístico-analítica nas rodas da
história
4. O futuro da filosofia
BIBLIOGRAFIA
PREFÁCIO
Em 2002 publiquei um pequeno livro chamado The Philosophical Inquiry:
Towards a Global Account (UPA 2002). Escrevi-o enquanto pesquisador visitante
sob os auspícios da CAPES na Universidade de Berkeley em 1999, enquanto
assistia aos formidáveis cursos de John Searle.
Apesar da avaliação bastante positiva por parte da editora, o livro foi
um dentre os vários natimortos que desde então publiquei em inglês e que não receberam
resenha alguma. Recolhido em um autoimposto exílio no acolhedor Nordeste do
Brasil, numa tentativa de me proteger de dissonâncias cognitivas que
comprometessem minha liberdade intelectual, eu ignorava, à época, que as
grandes editoras anglo-americanas mantêm o monopólio de um mercado majoritariamente
formado pelas bibliotecas universitárias, mesmo que sob o risco de incorrer em
um possível círculo vicioso. Para agravar a situação, essas editoras sempre se
negaram a avaliar manuscritos de um completo outsider socialmente
disléxico. Afinal, quem levaria a sério um livro escrito por um estrangeiro desconhecido,
sem falar de ocultos interesses corporativistas?
Em 2005 decidi fazer uma tradução para o português do mesmo livro,
publicando-o pela editora de minha universidade, a UFRN. O que não sabia é que
a editora não fazia distribuição. Ou seja: ainda hoje você poderá encontrar os exemplares
guardados no depósito!
Mas sou persistente e aprecio meu trabalho,
razão pela qual é nele que encontro minha maior recompensa. Esta nova edição,
com um título mais apropriado, contém uma versão completamente revisada e
ampliada do texto original.
Há pessoas às quais devo sincera
gratidão por terem contribuído no sentido de fixar meus valores intelectuais, sem
os quais minhas ideias metafilosóficas talvez nunca tivessem ganhado forma.
Meus professores, Raul Landim e Guido Antônio de Almeida, junto com meus ex-colegas
Fernando Fleck e Fernando Rodrigues, foram os primeiros a me fazer enxergar a
importância da tradição filosófica. Ernst Tugendhat me influenciou pela sua defesa
intransigente de uma visão unificada do que deve ser o trabalho filosófico. John
Searle, que me recebeu em Berkeley quando escrevi a primeira versão desse livro,
foi em seus cursos um exemplo vivo de como se pode realizar um trabalho criativo
em filosofia sem sacrificar o senso de humor, o que é ainda mais raro. Agradecimentos
especiais ao professor Peter Stemmer, que me recebeu em Konstanz no turbulento ano
sabático de 2022, e ao professor Francesco Orilla, que nessa mesma época gentilmente
me convidou a expor minhas ideias sobre metafilosofia na Universidade de Macerata.
Gostaria também de agradecer o apoio dos professores e amigos Cinara Nahra e Eduardo
Maciel pelo seu apoio cultural e humano. Acima de tudo, agradeço à Rita Cristina
Fressa, a quem devo mais do que seria capaz de reconhecer.
APRESENTAÇÃO
Desejo iniciar fazendo um breve resumo da ideia central contida nesse livro,
de modo que seu eventual leitor possa perceber o fio condutor em meio a um texto
repetitivo e marcado por digressões. Meu objetivo principal foi esboçar uma teoria
metafilosófica da natureza da filosofia, mais sistemática, mais complexa e, em
meu juízo, superior a eventuais concorrentes.
Esse trabalho de teorização se desenvolveu
como uma tentativa de esclarecer o lugar cultural dos problemas centrais legados
pela tradição, mas também se estende parcialmente a outras formas quaisquer de
indagação filosófica. Tal abrangência só se tornou possível por se tratar de uma
teoria feita sob uma perspectiva externa a essas formas, permitindo um olhar histórico-cultural
mais amplo do que aquele oferecido por qualquer filosofia específica. A ideia geral
que apresentarei a seguir não é inédita, mas o que importa é sua exploração. Afinal,
ter um caso suficientemente duradouro e aprofundado com uma ideia não é o mesmo
que ter tido um encontro meramente casual com ela.
A teoria que proponho nesse
livro nasceu de uma investigação das conexões entre a filosofia e três atividades
culturais mais fundamentais, que são as da ciência, da religião e
da arte. Ao considerar essas relações, a filosofia é concebida como uma
atividade cultural derivada – uma amálgama de elementos originalmente presentes
no compromisso com a busca da verdade que se espera do pensamento científico, no
ímpeto holístico que dá lugar à religião e nos recursos metafóricos próprios da
arte.
Talvez o exemplo mais emblemático dessa amálgama
seja a filosofia de Platão. Em sua obra, revela-se uma dimensão de busca da
verdade, em um esforço que vem expresso nos argumentos que buscam explicar como
compreendemos o mundo, incluindo momentos de severa autocrítica, como acontece
na primeira parte do diálogo Parmênides. Também em Platão encontramos uma
dimensão místico-totalizante, manifesta em seu aceite de um reino transcendente
das ideias e no apelo aos mitos órficos. Por fim, sua filosofia apresenta um
forte elemento estético, evidente na estrutura dramática dos diálogos, no
estilo refinado, na ironia, nas alegorias e nos mitos que permeiam sua escrita.
Como estratégia, semelhanças e diferenças entre
a filosofia e outras formas de atividade cultural foram investigadas. Em sua proximidade
com a ciência, a filosofia revelou-se um esforço heurístico direcionado à aproximação
da verdade e a resultados efetivos, ainda que por sua própria natureza jamais alcance
uma forma plena.
Em sua relação com a religião, ela mostrou-se
inclinada a expandir ao máximo a profundidade e a abrangência de suas sínteses,
incorporando elementos especulativos que inevitavelmente extrapolam os limites
da investigação racional.
Por fim, em sua afinidade com a arte, a
filosofia pôde ser concebida à maneira de uma “arte da razão”, por sugestão:
uma prática que integra – ou tensiona – elementos conceituais com a liberdade e
a flexibilidade proporcionadas pela força da metáfora própria da atividade artística.
As
relações entre filosofia, religião e arte foram concebidas como dinâmicas, sujeitas
a transformações no curso da história. A filosofia ocidental nasceu na Grécia
antiga em substituição às respostas mitológicas e ela própria pode ser substituída.
Aqui pode ser notado que, com o gradual, mas constante desenvolvimento científico,
também a filosofia tem perdido aos poucos seus elos com a religião e com a arte,
sobretudo ao ceder à ciência parcelas que outrora lhe eram constitutivas.
O caráter dinâmico da relação
entre filosofia e ciência me levou a supor que a filosofia possa ser concebida,
mesmo em seus núcleos historicamente centrais, como um esforço conjectural ou especulativo
antecipador da ciência – aquilo que denominei “protociência”. Essa hipótese resulta
do fato de que as ciências básicas nasceram de especulações filosóficas.
Contudo, a concepção da filosofia como o berçário das ciências tem sido
frequentemente pensada como limitadora e empobrecedora de nossa compreensão da
atividade filosófica. Tal crítica revela-se pertinente sempre que temos em vista
uma concepção estreita, tanto de cunho positivista como reducionista, do que possa
ser entendido como ciência ou mesmo como filosofia.
O
conceito de ciência adotado neste texto é suficientemente liberal e flexível
para evitar as dificuldades recém-mencionadas. A ideia central pode ser encontrada
em John Ziman, um físico que investigou o funcionamento social da ciência e a
definiu como conhecimento público passível de consenso.
Desenvolvendo a linha proposta por Ziman, defendi
que a concepção mais intuitiva e plausível da natureza da ciência é aquela que
a entende como toda investigação orientada à obtenção de verdades susceptíveis
de legitimação consensual por uma comunidade crítica de ideias. Essa
comunidade é entendida como capaz de satisfazer suficientemente exigências de
competência, veracidade, transparência e liberdade – condições que só se manifestam
quando encontramos objetividade suficiente para possibilitar consenso. Somente
sob a observância desses pressupostos a ciência se torna apta a produzir acordos
consensuais legítimos acerca da verdade ou falsidade de seus resultados.
Diante de uma concepção tão liberal e flexível
de ciência, torna-se natural reconhecer a possibilidade de que grande parte da
filosofia revele um caráter antecipador daquela. A filosofia configura-se,
assim, como uma indagação voltada para a verdade que, embora desenvolvida sob a
pressuposição de uma comunidade crítica de ideias – aqui entendida como expressão
de uma tradição de pensamento com um lastro crítico cumulativo, – não se demonstrou
em seu tempo capaz de alcançar sequer a possibilidade de obter acordos
consensuais legítimos sobre a verdade ou a falsidade dos seus resultados.
A assimetria entre filosofia e ciência, nesse contexto,
é evidente, embora tenda, progressivamente, a se dissipar, sobretudo quando
reconhecemos que as ciências básicas foram, em alguma medida, antecipadas pela
filosofia.
Uma consequência importante de aceitarmos a
concepção de filosofia como conjectura que, no que possui de verdadeiro, é antecipadora
de um conhecimento passível de legitimação consensual, foi a relativização – e
não a simples refutação – da ideia de que a filosofia consiste em uma simples atividade
de análise conceitual. Essa ideia, quando bem examinada, remonta às indagações
socráticas do tipo “O que é X?”, nas quais X representa um termo conceitual.
No século passado, a chamada filosofia analítica
– entendida como análise linguístico-conceitual – passou a se desenvolver a
partir de avanços semióticos surgidos no final do século XIX, sobretudo pela
obra de Gottlob Frege. Esses avanços incluíam o uso da lógica dos predicados aplicada
à análise da “gramática profunda” de nossa linguagem natural, além da ênfase
propedêutica visível na chamada “ascensão semântica”, concebida como
instrumento na prevenção de confusões conceituais. Entretanto, essa abordagem
precisa manter coerência não apenas com nosso senso comum mais modesto (‘mooreano’
no dizer de D. M. Armstrong), mas também com a imagem científica contemporânea
do mundo.
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