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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

METAFILOSOFIA (4): religião e filosofia (Auguste Comte)

  

 

 

                                                         IV

 

               RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS

                                             DA FILOSOFIA

 

 

„Überall suchen wir das Unbedingte, und finden nur Dinge.“

[Em tudo buscamos o incondicionado, e o que encontramos são apenas coisas.]

Novalis

 

The aim of philosophy, abstractly formulated, is to understand how things, in the broadest possible sense of the term hang together in the broadest possible sense of the term.

[A finalidade da filosofia é entender como as coisas, no sentido mais amplo do termo, se adequam entre si no mais amplo sentido do termo.]

Wilfried Sellars

 

 

Por que Kant e Hegel são inevitavelmente chamados de ‘filósofos’, enquanto o mesmo não se aplica, com igual naturalidade, a Marx, que, mais (ou menos) do que um filósofo, foi considerado por Isaiah Berlin o verdadeiro fundador da sociologia?[1] Afinal, também a obra de Marx, como a história demonstrou, é profundamente especulativa e resistente a consensos sobre o que nela pode ser considerado verdadeiro.

     A resposta reside no escopo. Enquanto os sistemas de Kant e Hegel são omniabrangentes, buscando resolver uma questão filosófica por meio da solução de todas as demais, o pensamento de Marx se limita a uma filosofia política e social, moldada por reflexões econômicas e pelos dados empíricos fornecidos pela revolução industrial. Diversamente de Hobbes, Marx é tanto filósofo político quanto sociólogo, embora a ideia de que sua sociologia seja científica seja hoje amplamente considerada um exagero. Muitos exemplos semelhantes poderiam ser mencionados. É aqui que entra em questão outro aspecto da filosofia que não podemos deixar de mencionar: a abrangência. Os sistemas de Platão, Aristóteles, Kant e Hegel são universais em sua ambição. Eles partem da premissa de que a mente humana é, por natureza, orientada para compreender o todo. De onde vem esse ímpeto?

     O caso acima nos sugere que, embora possamos conceber a filosofia, em termos gerais, como uma forma conjectural caracterizada pela ausência de respostas definitivas, isso não esgota seus traços distintivos. Permanecem sem explicação certos elementos presentes nas caracterizações históricas da filosofia: a busca da sabedoria, o espanto originário, o frequente apelo a princípios de explicação cuja validade é cognitivamente controversa, bem coo o impulso que objetiva integrar nossas experiências em uma visão abrangente, capaz de “resolver de modo convincente nossas grandes questões concernentes à realidade e o lugar que nela ocupamos”.[2] Foi esse impulso que motivou a elaboração dos grandes sistemas filosóficos, de Platão a Hegel. Nada disso se deixa compreender plenamente se reduzirmos a filosofia a um conhecimento público não consensualizável, ou a um empreendimento cognitivo antecipatório da ciência, como discutido no capítulo anterior.

     No presente capítulo, mostrarei que a resposta a tais questões pode ser encontrada quando, em vez de investigarmos a propriedade da investigação filosófica de não alcançar um conhecimento público consensualizável, tal como ocorre na ciência, perquirirmos o modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a filosofia com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.

 

 

1.     FILOSOFIA E RELIGIÃO: A ABORDAGEM

    GENÉTICA

 

Há duas características particularmente importantes que a filosofia compartilha com o pensamento religioso: a abrangência – entendida como a capacidade de incorporar os mais diversos elementos e aspectos – e a profundidade – referente ao nível de reflexão envolvido. A essas pode-se acrescentar a elevação, que diz respeito à ascensão espiritual, intelectual e moral. Esses três traços podem ser encontrados variadamente em filósofos religiosos como Plotino, Agostinho e Anselmo; são de difícil caracterização, embora se encontrem aqui inter-relacionados.

     Religiões monoteístas, como a judaico-cristã, buscam atributos como abrangência, profundidade e elevação por meio da invocação de um Deus transcendente situado além do mundo da experiência, embora misteriosamente concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora da realidade. Por essa via, tais religiões alcançam uma notável abrangência: o conceito de Deus ocupa o centro de uma doutrina que visa integrar nossas formas de compreender o mundo e o papel do ser humano nele, permitindo a derivação de normas para a orientação da conduta humana. Historicamente, muito da filosofia tem preservado aspirações similares de abrangência, profundidade e elevação, embora realizando-as no mais das vezes sem o apelo a um Deus pessoal transcendente.

     Filósofos tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, o que levou muitos de seus expoentes à construção de sistemas filosóficos amplos, voltados para a explicação da realidade como um todo e, com frequência, à derivação de diretrizes gerais para a conduta humana, como exemplifica de forma notável o pensamento de Spinoza. Mesmo que as aspirações da filosofia do século XX não sejam tão elevadas, ainda persistem, como critérios de avaliação, elementos como amplitude de propósito, profundidade, elevação e nível, como se observa no caso da obra de Wittgenstein.

     Quanto à alegada profundidade e elevação, embora a filosofia não recorra ao sobrenatural da mesma maneira que a religião, ela frequentemente apela a princípios metafísicos de explicação que permanecem além das possibilidades concretas de experiência e entendimento. Ainda que tais princípios não sejam seres espirituais, como os deuses das religiões, não raro se mostram difíceis de distinguir deles. Tal como os deuses, é comum que não possam ser plenamente alcançados pelo entendimento humano, que possuam algum atributo mental e que se relacionem ao mundo sensível de maneira obscura e misteriosa. Para compreendermos a imensa relevância desses princípios metafísicos, basta considerarmos o lugar central que sempre ocuparam na história da filosofia. Eis uma breve lista, de Tales a Wittgenstein:

 

-         A água (Tales); o ilimitado (Anaximandro); o ar (Anaxímenes); a terra   (Xenófanes); o pensamento (Anaxágoras), a razão (Heráclito); o ser (Parmênides); os átomos (Demócrito); o número (Pitágoras), os quatro elementos (Empédocles).

-         as ideias, especialmente a ideia do Bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (Scotus Eriugena); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e outros filósofos medievais);

-         a substância pensante finita e infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); ideias (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental (Kant); o Eu Puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a Vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); o Ser (Heidegger); o indizível (Wittgenstein).

 

 

O relacionamento entre filosofia e religião pode ser abordado, historicamente e geneticamente, por meio da consideração de princípios ou entidades-princípio – entes que geralmente atuam como fundamentos capazes de produzir, determinar ou sustentar as coisas. É amplamente reconhecido que a filosofia ocidental emergiu do solo da mitologia grega e da religião. Por volta de 600 a.C., a partir de Tales de Mileto, os pensadores gregos se tornaram insatisfeitos com as explicações mitológicas dos eventos da natureza e da vida humana, começando a substituí-las por explicações filosóficas. Historiadores da filosofia já sugeriram que o contato com outras culturas, com seus diferentes deuses e valores, poderia ter contribuído para enfraquecer a crença dos gregos em suas explicações mitológicas.[3]

     Alguns historiadores da filosofia sugerem que o contato com outras culturas, com diferentes deuses e valores, pode ter contribuído para o enfraquecimento da crença dos gregos em suas narrativas tradicionais. No entanto, esse fator, por si só, não parece suficiente para explicar o surgimento da especulação filosófica, uma vez que muitas culturas foram igualmente expostas a influências externas, sem que desenvolvessem qualquer tipo de filosofia – algumas, ainda, reagiram a tal exposição pelo revigoramento reativo de suas próprias crenças; considere, por exemplo, a sobrevivência do judaísmo em seus dois mil anos de diáspora.

     Uma explicação mais plausível para o nascimento da filosofia ocidental foi a proposta por W. K. C. Guthrie: a descoberta da ciência abstrata entre os gregos sugeriu à mente humana o uso da generalização.[4] Contudo, esse fator, por si só, não seria suficiente para produzir a emergência do pensamento filosófico, posto que generalizações do senso comum sobre fenômenos ordinários sempre existiram, como a de que o Sol nasce todos os dias ou, digamos, a de que a soma de um objeto com outro é sempre igual a dois objetos. Tais generalizações são tão evidentes que sempre foram sabidas, não exigindo reflexão filosófica.

     Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação filosófica ocidental, incorporando a explicação aceita por Guthrie, seria a seguinte: os gregos, muito em consequência de sua exposição a outras culturas, desenvolveram avanços científicos em aritmética, geometria, física e astronomia. Contudo, enquanto outros povos viam esses conhecimentos como meros instrumentos para fins práticos, os gregos foram os primeiros a considerá-los em abstração dessas finalidades, ou seja, como generalizações científicas.

   Essa atitude os capacitou a reconhecer as características intrínsecas desse tipo de generalização. Eles perceberam que as generalizações científicas possuem um poder explicativo que vai além do que é abertamente observável, como é o caso das generalizações de senso comum, alcançando a natureza oculta dos fenômenos. Nesse contexto compreenderam que a forma científica de explicação científica se fundamenta na existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nos elementos formais. Tais regularidades não apenas se refletem nas generalizações, mas também permitem, quando empíricas, explicar fatos e fazer previsões (como o haviam demonstrado as predições astronômicas) e, quando matemáticas, justificar inferências (como nas provas dos teoremas), em um procedimento análogo.

     Ao assumir a possibilidade de tais generalizações abstratas, sustentadas por inferências baseadas em regularidades dadas, seguidas de explicações e previsões, os primeiros filósofos gregos teriam alcançado aquilo que chamo de ideia de ciência, tanto empírica quanto formal. Essa ideia envolvia procedimentos de inferência indutiva de leis gerais, acompanhados de explicação e previsão, além de estruturas inferenciais silogísticas que seriam posteriormente sistematizadas e formalizadas no Organon aristotélico.  Tratava-se de um novo tipo de explicação dos fatos, radicalmente diferente daquela promovida pelo antropomorfismo religioso.

     Diante disso, a questão que se impõe é: não teria sido a descoberta da mera possibilidade de substituir explicações religiosas por explicações baseadas em princípios ou leis, aplicáveis mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a centelha que acendeu o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-socráticos? A ideia subjacente, creio eu, que emergiu na mente desses primeiros filósofos, que eram pessoas cientificamente instruídas, foi simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado, não por apelo à vontade arbitrária dos deuses, mas por meio de regularidades semelhantes àquelas reveladas pela ciência.

     É evidente que nenhuma das questões poderia ser abordada de forma verdadeiramente científica. Mas, ainda assim, elas se prestavam à abordagem especulativa, por meio de conjecturas respaldadas naquilo que denominei ideia de ciência, além de resultados que, embora não passíveis de obter acordo consensual, eram intelectualmente estimulantes. A prática desse procedimento especulativo oriunda de uma espécie de hedonismo intelectual no sentido mais elevado e profundo da expressão, constituiu a característica mais marcante da filosofia pré-socrática.

     Dada a influência do modelo científico, seja ele empírico ou formal, não é surpreendente que, no nascimento da filosofia grega, o primeiro filósofo da tradição ocidental, Tales de Mileto, fosse também astrônomo e matemático de notável competência. Conta-se que previu o ano de um eclipse solar e desenvolveu o teorema que leva seu nome. Sua hipótese de que a água seria o princípio, a arché (ἀρχή), isto é, a causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de substituir explicações baseadas na vontade dos deuses por abordagens mais próximas da explicação não antropomórfica provida pela ciência.

     Certamente, uma tal explicação não poderia ser formulada em termos extremamente científicos, pois lhe faltaria o tipo de acordo consensual que vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem seus sucessores tinham condições de alcançar uma compreensão científica de uma questão tão abrangente quanto a dos constituintes e determinantes últimos da natureza, já que tais consensos dependem da realização de observações sofisticadas, inconcebíveis na época. Ainda assim, os pensadores pré-socráticos eram pelo menos capazes de especular filosoficamente sobre tais questões, oferecendo vislumbres conjecturais acerca da natureza das coisas. Suas sugestões, embora indeterminadas, incompletas, provavelmente equivocadas, eram ainda assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar nosso entendimento da realidade.

      O que filósofos como Tales e, com maior refinamento e profundidade, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram ideias esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja, formas embrionárias de teorias frequentemente assumiam o papel de causas eficientes e sustentadoras do mundo que experienciamos. Inicialmente, tratava-se de coisas sensíveis, como a água ou a terra, mas logo essas entidades se tornaram mais evanescentes, como o ar invisível de Anaxímenes, e, ao final, foram consistentemente substituídas por princípios não acessíveis aos sentidos – como o ilimitado de Anaximandro, o número de Pitágoras, a razão de Heráclito, o ser de Parmênides. Tais entidades foram inevitavelmente substituídas por inúmeras outras hipóstases que permearam a história da filosofia. Irei aprofundar a análise desses princípios, mas, antes, é necessário considerar algumas ideias de Auguste Comte, que podem nos oferecer uma orientação valiosa.

 

 

2.     A LEI COMTIANA DOS TRÊS ESTÁGIOS

 

A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como substituto das explicações da mitologia e da religião traz à memória a assim chamada “lei dos três estágios”, formulada por Auguste Comte como uma ordenação da longa jornada da mente humana, que passa da superstição à ciência.[5]  Pretendo recorrer a essa lei adiante. No entanto, como creio que a lei de Comte é de considerável relevância, propondo reconstruí-la em alguns de seus aspectos, respondendo na próxima seção, às objeções mais influentes contra ela levantadas.[6]

     A lei dos três estágios pode ser entendida em três planos distintos:
 

(a) o desenvolvimento da cultura humana em suas diversas ramificações;

(b) o desenvolvimento da mente individual;

(c) o nível do desenvolvimento da sociedade humana como um todo.

 

No nível mais abrangente, como uma lei geral que rege o desenvolvimento da cultura humana, a lei dos três estágios torna-se particularmente importante. Segundo Comte, em conexão com a emergência das ciências básicas (cap. III), a cultura humana atravessa três fases sucessivas: o estágio religioso ou fictivo, o estágio metafísico ou abstrato e, por fim, o estágio científico ou positivo. Eis um esquema orientador:

 

                                                                                           Subestágios:

                                             Estágios:                               (i) animista   

(1)  religioso ou fictivo         (ii) politeista

                    Níveis:                                                           (iii) monoteista

                    a) cultural        (2) metafísico ou absoluto

                                             (3) científico ou positivo

Lei dos

três              b) individual     (1), (2) e (3)

estágios

                    c) social            (1), (2) e (3)

 

O estágio religioso ou fictivo é o ponto de partida necessário da evolução cultural humana. Ele é dominado pelo antropomorfismo: a mente humana projeta suas próprias características sobre o mundo externo na tentativa de explicar as anomalias da natureza. Fenômenos naturais, sobretudo os desviantes, são explicados como manifestações da vontade de seres dotados de poderes sobrenaturais: os deuses ou o Deus. O conhecimento acerca dessas sobrenaturais supostamente adquirido nesse estágio é tido como absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente ilusório, não sendo produto da razão, mas tão somente da imaginação.

     O estágio religioso se desdobra-se em três subestágios subsequentes, cada um passando a um nível de abstração mais alto. No primeiro, o subestágio animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes são vagamente concebidos como dotados de vida, paixões, vontade e entendimento. No segundo, o subestágio politeísta, tais objetos são substituídos por deuses, seres vivos semelhantes aos humanos, porém imortais e sobrenaturais, normalmente invisíveis, que costumam intervir arbitrariamente no curso da natureza, inclusive na vida humana (os gregos viam os homens como o brinquedo dos deuses). Por fim, no subestágio monoteísta, as divindades do politeísmo são condensadas de modo a formar um único Omni-Deus, característico da tradição judaico-cristã.

    Comte viu esse movimento como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos.  Nesse estágio a mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão. (No plano individual, o estágio religioso corresponde à infância; nele somos como crianças que acreditam na existência de um mundo mágico, ainda incapazes de distinguir plenamente o real do imaginário.)

     O segundo estágio, chamado de metafísico (que considero extensível à tradição filosófica em geral), é, para Comte, apenas transicional. Ainda assim, representa um avanço notável, pois os princípios explicativos deixam de ser atribuídos a divindades sobrenaturais e passam a ser buscados na própria natureza. No entanto, embora esses princípios costumem ser dados como pertencentes à ordem natural, eles se apresentam de maneira oculta. Eles são chamados de poderes naturais, propriedades essenciais ou entidades abstratas.

    Exemplos de tais princípios eram, para Comte, o flogisto, que antecedeu a química moderna, e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais conceitos, segundo ele, possuem um caráter essencialmente equívoco. Eles deveriam fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos, ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas falham nesse propósito. Por outro lado, não podem ser concebidos como agentes pessoais sem que se recaia no estágio teológico. São, portanto o que Comte, muito convenientemente, chamou de abstrações personificadas (abstractions personnifiées), expressão que revela a tensão interna desses conceitos.

    Mais adiante, testaremos essa ideia, aplicando-a de forma mais ampla às entidades-princípios evocadas pelos filósofos. (O estágio metafísico, no plano individual, corresponde à adolescência, quando construímos ideações as mais diversas, geralmente críticas, sem suficiente apoio na realidade.)

     Comte tinha uma visão bastante crítica sobre o valor dos dois primeiros estágios, o teológico e o metafísico, em termos de conhecimento do mundo real. Para ele, ambos são basicamente dependentes da imaginação, e nem as explicações nem as previsões que deles derivam, podem ser consideradas genuínas. Sua utilidade deriva sobretudo dos efeitos sociopsicológicos que produzem, pois contribuem para a estruturação da sociedade e do pensamento, além de nos encorajarem a enfrentar dificuldades e atenuar a ansiedade diante do que escapa ao nosso controle.

   Afora isso, há uma consequência prática de imensa importância a longo prazo: é apenas por meio dessas construções conceituais ilusórias que o caminho para o estágio científico é preparado.[7] A mente humana, pensava Comte, não pode investigar sem ser guiada por alguma teoria. Os estágios teológico e metafísico fornecem teorias que, embora equivocadas, permitem à razão iniciar a investigação e, movida pela ilusão de conhecimento, perseverar na observação cumulativa dos fatos, o que ao final acaba por conduzir à ciência.

   O exemplo mais expressivo desse procedimento foi a transição da astrologia para a astronomia: a longa, persistente e sistemática observação dos corpos celestes, motivada pelo desejo de prever o destino humano, levou ao desenvolvimento de mensurações matemáticas que, por sua vez, criaram as condições para o surgimento da astronomia como ciência.

   Para Comte, o estágio metafísico é uma fase intermediária e provisória, não passando de uma laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo. É somente neste último que a ciência se consolida como a única forma adequada de investigação, enquanto as antigas questões teológicas e metafísicas são abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis.

     No estágio positivo ou científico, o conhecimento deixa de buscar verdades absolutas e passa a ser entendido como relativo, reconhecendo a falibilidade inerente a toda investigação humana.[8] A pretensão de explicar o mundo como um todo é reconhecida como uma ilusão. Só podemos compreender seus constituintes fundamentais, tarefa que cabe às ciências básicas. Afinal, como aplicar conceitos que objetivam classificar os constituintes do mundo ao mundo como um todo? Além disso, os fenômenos deixam de ser explicados pela imaginação e passam a ser compreendidos essencialmente pela razão. Esta, por sua vez, abandona a busca por causas essenciais ocultas, concentrando-se na descoberta de leis, ou seja: regularidades verificáveis entre os fenômenos. O conhecimento dessas regularidades permite explicar de forma realista as associações entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando, assim, a realização de predições. Esse poder de prever conduz a um domínio efetivo – e não meramente imaginário – sobre a natureza. A explicação pelo “porquê” é aqui substituída pela explicação pelo “como”. (No plano individual, o estágio positivo corresponde à maturidade do ser humano adulto, que entende as coisas como realmente são e pouco se deixa influenciar pela imaginação.)

     Também é importante lembrar que a transição do estágio metafísico para o estágio científico ocorreu em tempos diferentes em cada ciências básica (cap. III), o que significa de forma distinta e por caminhos diversos. Isso resultou em uma progressão escalonada, o que nos leva a reconhecer que grande parte de nosso saber ainda permanece, em muitos aspectos, em um estágio “metafísico”, a despeito do otimismo de Comte.

     Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no desenvolvimento da mente individual, o que revela sua raiz biológica. Como ele observou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em parte vivemos (ou vivíamos) em um mundo imaginário povoado por seres míticos como fadas e bruxas... Na adolescência, tornamo-nos metafísicos quando, ainda sem pleno domínio dos fatos, acreditamo-nos capazes de explicar a razão[9], elaboramos explicações as mais infundadas e acreditamos nelas com convicção. Por fim, quando nos tornamos adultos (na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos, segundo ele, “físicos”, aceitando apenas o conhecimento positivo, firmado e confirmado por meios científicos.

     Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta ao nível da organização social e de suas práticas. Contudo, essa manifestação depende da efetiva consolidação dos estágios no domínio da cultura. Ora, considerando que as ciências básicas foram inevitavelmente constituídas em tempos diversos (posto que o desenvolvimento de uma ciência mais complexa e menos ampla pressupõe, em grande medida, o avanço de outra mais simples, porém mais ampla e inclusiva) e que o progresso técnico necessário à mudança social costuma ser consequência do desenvolvimento teórico da ciência, é razoável supor que o impacto social da formação das ciências básicas na “positivação” da organização econômica e social seja antes um fenômeno tardio.

    Comte sugeriu que, no plano da organização social, o estágio teológico durou até o fim da Idade Média, caracterizando-se por uma sociedade autoritária e militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma Protestante, as ideias metafísicas passaram a orientar a sociedade, instaurando o império das leis e dos direitos abstratos. Somente após a Revolução Francesa e com o advento da Revolução Industrial, em um período em que todas as ciências básicas alcançaram a sua “positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social. Esse novo período seria marcado pela emergência de uma sociedade pacífica, na qual a vida econômica dos indivíduos passa a ocupar o centro das atenções. Nessa sociedade, a ciência é destinada a assumir um papel determinante, devendo conduzir a uma estrutura social organizada e regulada por uma elite de cientistas, encarregada de aplicar o conhecimento positivo à administração da vida coletiva.

 

 

     3. UMA BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE

 

A lei dos três estágios foi sempre alvo de críticas. Algumas delas, como a acusação de rigidez e dogmatismo, além do descrédito excessivo às formas não-positivas de pensamento, sem falar em distorções como o otimismo exagerado e o reducionismo característicos do positivismo, parecem-me bastante justificadas. Mas nada disso invalida, em termos gerais, a genialidade da visão. Rejeitá-la in totum seria jogar fora o bebê junto a água da bacia. Outras objeções parecem-me injustas e pretendo respondê-las.

     A primeira objeção, levantada por Jürgen Habermas, sustenta que a lei dos três estágios é ela mesma metafísica, uma vez que teria sido formulada a priori, sem respaldo em fatos observacionais.[10] Isso pode ser demonstrado falso. Comte afirmou explicitamente, e demonstrou em seus escritos, que sua lei resulta de um exame atento dos fatos relativos à evolução da cultura humana e à emergência das ciências básicas, articulado à reflexões consistentes sobre a natureza humana.

    Também de fácil resposta é a objeção complementar de que a própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que se baseia em uma única instância histórica, ela mesma inacabada – a da nossa civilização. A lei dos três estágios pode ser justificada como resultado de uma inferência indutiva, mais especificamente, a inferência à melhor explicação (IBE). Trata-se da única abordagem capaz de reunir sob um mesmo arcabouço interpretativo uma miríade de fatos socioculturais em sua progressão histórica. Com efeito, é precisamente porque essa lei confere alguma coerência à progressão histórica da cultura humana e porque tal coerência é corroborada pela nossa compreensão dessa trajetória, que ela tende a se imprimir em nossas mentes como uma explicação inicialmente plausível e natural. Ademais, porque a lei pode ser gradualmente confirmada, refutada ou, mais provavelmente, corrigida e aperfeiçoada por uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais, tanto passados quanto futuros, ela pode tornar-se, no final, não menos passível de validação empírica do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.

     Uma segunda objeção é que, quando aplicada à explicação dos três estágios em um nível social, a lei de Comte não é capaz de dar conta da ordem de emergência das ciências. Afinal, a matemática já havia emergido entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham emergido quando a sociedade ainda se encontrava no estágio metafísico.

   Assim como a primeira objeção, Comte também respondeu explicitamente a essa crítica. Segundo ele, cada ciência básica só pode nascer após os estágios metafísico e teológico terem se completado em seus respectivos domínios. Contudo, dado que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem alcançar suas positivações simultaneamente. Como consequência, é de se esperar que, no plano social, os estágios acabem se consolidando apenas no final, como resultado da soma das transformações parciais ocorridas em diferentes áreas do saber, o que também deve implicar transformações decorrentes da aplicação dessas ciências.

   Essa ideia pode ser ilustrada por meio de uma analogia: uma criança pode antecipar alguns traços da mente do adulto, assim como o adulto pode preservar aspectos da adolescência e mesmo da própria infância, sem que isso nos leve a confundir suas identidades. (Infelizmente, Comte foi exageradamente otimista quanto ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e o estágio científico da sociedade ainda hoje encontra-se longe de se consolidar.)

     Uma terceira e mais objeção reside no uso que Comte fez da palavra ‘lei’, que para muitos é abusivo e enganoso. A singularidade dos eventos analisados, aliada à vaguidade e à incerteza dos processos envolvidos, não nos autoriza a usar essa venerável palavra; como observou Karl Popper, talvez o melhor que possamos fazer é falar de tendências (trends) sócio-culturais.[11]

     A resposta a essa objeção consiste em lembrar as palavras de Aristóteles ao considerar a investigação ética: “É próprio do homem instruído buscar a precisão em cada classe de coisas apenas na medida em que a natureza do assunto o permite.”[12] Em outras palavras, cada espécie de conhecimento requer uma forma de precisão condizente com sua natureza. No domínio da história sociocultural humana, o que chamamos de “lei” deve assumir um caráter tendencial, a menos que sejamos tomados por um cacoete precisionista que nos leve a exigir dos grandes movimentos socioculturais o mesmo grau de precisão das ciências duras.

   É certo que Comte não descobriu leis no sentido das ciências naturais, mas sim tendências, válidas em termos vagos e probabilísticos. Daí que sua contribuição foi a identificação de uma regra natural tendencial, perfeitamente aceitável como lei dentro das condições de vaguidade que caracterizam a ciência social. A forma própria de uma lei socio-histórico-cultural precisa, inevitavelmente, ser a de uma tendência genérica.

    Não é razoável esperar que uma lei dessa natureza possua a mesma precisão e ausência de exceções das leis das ciências naturais. Seu enunciado não pode oferecer mais do que uma probabilização de certos resultados, dado o número imenso de variáveis que podem intervir no processo. O mesmo vale para grandes insights sociológicos, como o do desencantamento do mundo proposto por Max Weber: sua abrangência em um terreno complexo o torna tão vago quanto deve ser. Pensar que a vaguidade compromete o status científico de uma lei social não passa de preconceito.

     O que mais distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e a precisão – afinal, nenhuma lei estatística satisfaria tal critério –, mas sim a nossa assunção de que a generalização expressa em seu enunciado é de natureza não-acidental. O suposto caráter não-acidental da regularidade afirmada pela generalização pode ser admitido como a única característica comum a qualquer tipo de lei. A ciência, nesse sentido, precisa de um termo para cobrir todos os tipos de generalização que presumimos não resultarem do acaso, e a palavra ‘lei’ mostra-se a mais adequada para desempenhar essa função.

    Sob esse ponto de vista, a lei dos três estágios passa a atender à condição de lei com pretensão científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo possível habitado por seres humanos biologicamente idênticos a nós e submetidos a circunstâncias similares, no processo de se tornar uma sociedade em pleno desenvolvimento científico e tecnológico, seguiria uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos e formas de conhecimento em vez de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio científico. Assim, devemos admitir que estamos tratando de uma lei no sentido liberal: uma tendência sociocultural necessária. Da mesma forma, é plausível admitir que certas civilizações, em certo estágio e sob determinadas condições, se ponham a construir pirâmides.[13]

     Concluímos, portanto, que sob uma interpretação suficientemente tolerante e flexível, a ideia de que o progresso civilizatório humano tende a seguir os três estágios acima descritos permanece plenamente defensável. Nosso próximo passo será considerar a filosofia tradicional munidos das ideias recém-adquiridas, de modo a explorar suas possibilidades.

 

 

4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIA

ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA     

 

Se substituirmos o que Comte chamava de metafísica pela palavra ‘filosofia’, muito mais adequada, o que inevitavelmente associamos a um empreendimento puramente conjectural, podemos sumarizar a visão do lugar da filosofia entre religião e ciência por meio do seguinte esquema:

     

         RELIGIÃO                  FILOSOFIA                   CIÊNCIA

         (explicação                  (explicação                       (explicação

          por deuses)                  por princípios)                  por leis)

 

A despeito do evidente apelo metafilosófico dessa ideia, Comte não a aplicou de forma abrangente aos domínios centrais da filosofia, seguramente devido a um conhecimento deficiente dessa história.[14] Seus exemplos de princípios metafísicos pertencentes à pré-história das ciências positivas, tais como o flogisto, antes da química, e o éter, na física nascente, são corretos. Mas, em princípio, os exemplos poderiam ter sido facilmente estendidos a pensadores tão remotos quanto os pré-socráticos.[15]

     Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, o primeiro passo é explicitar as propriedades mais distintivas das entidades mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas propriedades, que denomino teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:

 

(i)               Transcendência física: Entidades mentais constituídas por uma substância essencialmente distinta da matéria física comum, e dotadas de superioridade extrema. (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma substância pensante infinita);

(ii)             Hipermentalidade: Os poderes mentais dessas entidades são alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes etc.);

(iii)          Hiperfisicalidade: Os poderes físicos dessas entidades encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer leis naturais ou realizar feitos impossíveis à matéria ordinária.);

(iv)           Idiossincrasia mental-corporal: As entidades geralmente mentais ou não se associam necessariamente aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas a eles, não o são necessariamente, nem dos modos usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter corpo físico algum, habitar seres não-vivos, transitar livremente entre corpos ou habitar muitos deles simultaneamente.)

 

 

 

 

 

 

Típico das propriedades teomórficas é que elas não são acessíveis a nossa experiência ordinária, seja física ou mental. Ainda assim, à exceção da transcendência física, parece possível concebê-las secundariamente, por meio da ampliação e modificação de conceitos derivados de nossa experiência comum.

   Essas propriedades podem ser compreendidas como condições de identificação, que nos permitem descrever e, eventualmente, reconhecer o sobrenatural e o divino. Importante notar que nem todas precisam estar presentes simultaneamente.

    Filósofos atomistas materialistas se viam em papos de aranha quando se tratava de explicar os deuses ou o Deus, pois para eles tal explicação teria de ser física. Para Demócrito, possivelmente um ateísta precoce que floresceu por volta de 400 a.C., os deuses eram eidola (εἴδωλα): átomos extremamente finos e leves, capazes de penetrar em nossas mentes e produzir delírios e êxtases religiosos. Para ele a vida não existiria após a morte, pois os átomos sutis de nossas mentes se dispersariam. Para Epicuro, um atomista menos afoito, que viveu durante o difícil período helenista, a vida também não existia após a morte, mas os deuses existiam, formados de átomos sutis, vivendo eternamente em estado de perfeição e serenidade, sem qualquer interesse pelos assuntos humanos. Seus deuses, ao menos, satisfaziam a condição de hiperfisicalidade. E para Hobbes, um materialista mecanicista moderno que foi educado por um pastor calvinista, Deus seria o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo. Para ele, se Deus age sobre o mundo, ele também deve ser feito de matéria, o que exclui a propriedade de transcendência física.[16]

   Por outro lado, filósofos dualistas, de Platão a Descartes, tinham nesse aspecto uma liberdade conceitual muito maior: ao admitir a transcendência física, podiam aceitar com mais naturalidade todas as demais propriedades teomórficas.

     Se, seguindo Comte, desejamos conceber as entidades-princípio metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a regularidade das leis científicas, então, devemos entendê-las como consistindo de algo situado entre:

 

A.   O que é teomórfico – isto é, aquilo que possui uma ou mais das quatro propriedades teomórficas anteriormente descritas.

B. O que é natural – isto é, aquilo que possui propriedades físicas, psicológicas, ou mesmo formais (como as dos objetos matemáticos), ordinariamente reconhecidas pelo senso comum e, possivelmente, também pela ciência. Afinal, a ciência também pode ser entendida como uma extensão do senso comum, conquanto esse seja do tipo que chamei de humilde (mooreano).

 

Feita essa admissão, encontramo-nos preparados para distinguir alguns tipos básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é

 

(a)    +A+B: entidade-princípio metafísica híbrida (ou inflacionada). A formulação de um conceito metafísico que visa designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente, mesmo que de forma elusiva, das duas ordens de propriedades, teomórficas e naturais. Por um lado, envolve propriedades teomórficas, constitutivas do sobrenatural; por outro, incorpora propriedades naturais, físicas, mentais ou formais – acessíveis à experiência ordinária, seja pelo senso comum ou pela ciência (a qual, por sua vez, pode nos fornecer acesso a leis científicas). É nesse contexto que emergem as verdadeiras “abstrações personalizadas”.

 

O Deus sive Natura de Spinoza pode servir como exemplo de entidade-princípio metafísica híbrida. Para esse filósofo, o que existe é Deus, ou substância, que é, simultaneamente, natureza. Enquanto natureza, essa substância é acessível a nós por meio de seus atributos essenciais: extensão (ou experiência do físico) e pensamento (ou experiência do mental), o que lhe confere, aparentemente, um status de entidade-princípio natural [+B]. Todavia, essa concepção não é tão isenta de antropomorfismo como parece. Como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um correspondente modo mental, isso implica que todas as coisas físicas (como um círculo, uma cadeira e uma vassoura) também são mentais, possuindo, pois, algum grau de sensiência. Isso demonstra que a natureza spinoziana abriga uma certa idiossincrasia mente-corpo. Mais além, a natureza como “Deus” é hipostasiada como sendo capaz de amar-se a si mesma com amor infinito[17], o que significa que o Deus de Spinoza também possui algum tipo de propriedade teomórfica de hipermentalidade [+A], ainda que não seja transcendente. O resultado é, portanto, uma entidade-princípio do tipo [+A++B].

     Outro exemplo de um primeiro princípio híbrido, rico e multicolorido, é a Natureza em Scotus Eriúgena. Para esse filósofo, a natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é criada. É Deus, o ser perfeitíssimo e incognoscível, origem de todas as coisas. A segunda é a natureza criada que cria. São arquétipos da sabedoria divina, as formas eternas que atuam como causas eficientes de todas as coisas. A terceira é a natureza como o mundo que é criado e não cria. Ela corresponde ao mundo sensível, ou seja, a tudo o que é gerado no espaço e no tempo. Embora não possua poder criador, manifesta Deus por teofania. Finalmente, chegamos à natureza que não é criada nem cria. Ela é Deus como o termo final da criação, quando a natureza se reintegra à sua fonte.

     Considerando o conceito de natureza em Scotus Eriúgena, percebemos que, por um lado, ela se identifica com o Deus pessoal cristão, com as formas platônicas e com a união de tudo a Deus no fim dos tempos [++A]. Mas a natureza criada que não cria é o mundo sensível [+B]. O resultado parece ser do tipo [++A+B], já que Deus não deixa de ser transcendente. Se admitirmos uma unidade no conceito de natureza, o hibridismo exuberante de Eriúgena torna-se tão flagrante que parece encerrar uma inconsistência – uma tensão conceitual insuperável que sempre impressionou os críticos.

     Outra entidade-princípio mista, que, de algum modo, nos recorda a natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é hipermental (posto que é a origem de toda a realidade) [+A], possuindo idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) [+A]. Em contrapartida, ele deve desdobrar-se a si mesmo em um processo que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais [+B], constituindo a natureza como espírito adormecido [+B], que, através de nós, chega a apresentar-se como constituinte do espírito absoluto. Mas como o espírito hegeliano não é transcendente, eu o classificaria como [+A++B]. O idealismo absoluto não é tão religioso quanto possa parecer.

     Outro exemplo de entidades-princípio com algum elemento híbrido, ainda que essencialmente mentais, seria o mundo das mônadas de Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é composto por um número infinito de pontos mentais, chamados mônadas. De um lado, cada mônada contém suas próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras mônadas através de aparências espaço-temporais entendidas como phanomena bene fundata capazes de refletir a estrutura real do universo [+B?]. De outro lado, cada mônada é uma força viva, possuindo algum grau de percepção e consciência, que se estende perspectivamente e em maior ou menor medida, a todo o universo das mônadas. Consequentemente, mônadas também possuem traços teomórficos, como idiossincrasia físico-mental (já que os objetos materiais são apenas aparências fenomenais de agregados de mônadas) e hipermentalidade (porque mônadas são sempre mentais, oniscientes e, em si mesmas, transcendentes, mesmo quando não possuem consciência alguma disso, como no caso das mônadas nuas) [+++A]. O resultado parece ser [+++A+B?]

     Por fim, é preciso observar que o elemento B não precisa pertencer ao exclusivamente ao mundo físico ou mental, podendo também ser de natureza formal (embora um filósofo naturalista possa defender que o elemento formal também é, de algum modo, redutível ao empírico). Um exemplo emblemático é o do número concebido como entidade-princípio inflacionada na filosofia de Pitágoras. Para os pitagóricos, assim como para nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são ordinariamente acessíveis (+B). No entanto, o número é também imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos: dele derivam o bem e o mal, o masculino e o feminino, entre outras polaridades fundamentais.

     Como vimos, a quantidade relativa de +A e +B pode variar e muito irá depender da interpretação. O Deus sive Natura spinoziano é quase naturalista [+A++B], enquanto as mônadas distinguem-se através de suas propriedades teomórficas [+++A+B]. A natureza enriquecida de Scotus Eriugena parece situar-se próxima ao meio (++A+B), o mesmo se dando com o misticismo pitagórico, pois se a ele adicionarmos a metempsicose, o resultado parece ser (++A+B), dependendo da interpretação.

   A maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa é, aliás, de um tipo inflacionado, ao aludir simultaneamente a propriedades teomórficas e naturais.

     O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma

 

(b)   –A–B: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A formação de um conceito metafísico destinado a designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como desprovida de qualquer dependência semântica em relação a propriedades teomórficas ou naturais (físicas, mentais ou talvez formais), tal como elas são ordinariamente experienciadas e reconhecidas pelo senso comum e pela ciência.

 

Como consequência dessa estratégia explicativa, o princípio-entidade torna-se, enquanto tal, incognoscível. De fato, ou a palavra-conceito empregada para nomeá-lo é completamente destituída de sentido, ou (como normalmente é o caso) algum sentido lhe é atribuído externamente, por meio do contexto, ou de maneira equívoca, a partir de uma eliminação inconsistente de referências originárias.

     Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, concebido como totalmente inalcançável pelos nossos poderes cognitivos, situado além do pensamento e da linguagem. Contudo, o Uno pode ser aproximado pela sua negação – pelo que ele não é –, já que não corresponde a nada que possa ser conhecido, exceto pela ordem e beleza do mundo, que apontam para algo superior, e pela rara experiência mística de união do ser com a sua origem.

    O exemplo mais notório de entidade-princípio elusiva, porém, é o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências fenomenais. Entre seus habitantes mais ilustres estão a coisa em si, refletida no polo externo de nosso aparato cognitivo, e o Eu transcendental, refletido no polo interno do mesmo.

   Na primeira metade do século XX, surgiram outros exemplos de princípios elusivos, como o conceito wittgensteiniano do indizível (das Unaussprechlichen), que aponta para aquilo que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito heideggeriano de Ser, entendido como aquilo que fundamenta os entes enquanto existentes (das, was allem Seienden zugrunde liegt), somente aproximável pelos meios metafóricos da linguagem literária.

     O princípio do tipo deflacionário possui a vantagem de não correr o risco de ser demonstrado como internamente inconsistente. Mas o preço dessa segurança é alto: ele deixa de ser propriamente um conceito. Essa vacuidade semântica pode, eventualmente, contaminar o restante do discurso filosófico com vacuidade retórica, como, em boa medida, a obra de Heidegger acaba por demonstrar.

     Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos. Considere o caso do conceito de Vontade (der Wille) em Schopenhauer. Em princípio, ele equivale à coisa em si, que Kant estabeleceu como um X incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o suposto designatum de seu conceito só poderia assumir a forma [–A–B]. Mas só isso não basta para satisfazer as intenções filosóficas de Schopenhauer.

    Segundo ele, pela experiência do corpo percebemos que, por trás das aparências sensíveis, o que realmente existe é a Vontade: uma pulsão cega que se manifesta a si mesma como força cega e destrutiva, mais diretamente objetivada em nossa experiência interna da vontade de viver. Essa vontade, por sua vez, é entendida como capaz de se expressar na totalidade do mundo, tanto no orgânico quanto no inorgânico.

    A estratégia de Schopenhauer torna possível que a coisa em si, inicialmente inofensiva, se manifeste como uma perversa vontade cósmica que permeia toda a natureza e constitui, para ele, a verdadeira fonte do interminável sofrimento humano. Assim, aquilo que de início era para ser concebido como da forma [–A–B], adquire propriedades que o transformam em um princípio dotado de caráter de uma lei natural universal (+B), ao mesmo tempo que, em sua manifestação como uma vontade de viver, incorpora traços teomórficos, isto é, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de hipermentalidade [+A].

    Isso ocorre mesmo quando Schopenhauer recorre ao velho expediente filosófico de negar o que já fez depois de já tê-lo feito. Por essa razão, seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma composição conceitual da forma [+A(–A–B)+B] (sendo os parênteses utilizados para delimitar o núcleo originário do processo de constituição conceitual).

     Buscando alternativas entre +A+B e –A–B, entre princípios híbridos e elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades conceituais fundamentais:

 

(c)    +A–B: entidade-princípio teológica. A constituição de um conceito destinado a designar um princípio desse tipo depende semanticamente de propriedades teomórficas não acompanhadas de propriedades naturais.

 

Essa combinação parece imprópria para a filosofia, posto que nos conduz diretamente de volta ao domínio da religião: entidades-princípios que são fisicamente transcendentes e/ou hipermentais e/ou dotadas de uma idiossincrasia mente-corpo, sem qualquer apelo a explicações naturalistas, correspondem precisamente a entidades espirituais, como deuses, tótens e afins.

    Mas não seria um imaterialista como o bispo Berkeley, um defensor filosófico dessa combinação? Afinal, para ele tudo o que existe são espíritos e suas ideias?  Creio que não. Em sua concepção, ideias suficientemente intensas e permanentes não se distinguem da natureza perceptível que nos cerca, o que, segundo ele, é confirmado pelo senso comum. Nessa interpretação, tais ideias seriam do tipo [+B][18], que, em conjunto com as ideias divinas e outras, formariam o tipo [+A+B].

   Mas há ainda uma última alternativa, que consiste simplesmente na recusa do elemento teomórfico:

 

(d)   –A+B: entidade-princípio naturalista. A constituição de um conceito filosófico destinado a designar um princípio desse tipo depende semanticamente de propriedades naturais reconhecidas pelo senso comum e, eventualmente, pela ciência, sejam elas físicas, mentais ou formais.

 

A distinção entre um princípio naturalista e uma lei científica reside apenas em seu caráter filosófico-especulativo. Essa diferença repousa na ausência de um consenso possível quanto aos valores de verdade dos resultados, frequentemente vagos e impalpáveis, dos princípios filosóficos naturalistas.

     A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese de Anaximandro, segundo a qual a Terra está suspensa no vazio, e a de Empédocles, que propôs que os seres humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III.

    O exemplo mais famoso de princípio natural é a teoria atomista de filósofos materialistas Leucipo e Demócrito, segundo a qual as coisas concretas são constituídas de porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito, os átomos possuem formas distintas, responsáveis por diferentes propriedades da matéria, entre outras configurações. Embora os átomos possam ser “teoricamente” divisíveis, já que possuem formas, tamanhos e pesos, eles permanecem fisicamente indivisíveis.[19] Certamente, dado que a hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos teomórficos, o conceito filosófico de átomo entre os gregos, à semelhança de seu equivalente científico moderno, pertence ao tipo [–A+B].

    Princípios naturalistas são aqueles que mais prontamente revelam seu caráter protocientífico, uma vez que ocorrem com mais frequência nas antecipações mais remotas das ciências naturais hoje bem desenvolvidas. No caso do atomismo, seu modelo de desenvolvimento segue o mesmo padrão discutido nos exemplos do capítulo III: o atomista antigo não podia identificar as propriedades de seus átomos, mensurá-las, ou observar os seus traços de modo a obter consenso sobre seus resultados, como fazem os físicos contemporâneos com as partículas elementares. Ainda assim, podiam especular sobre sua existência, formulando teorias que assumiam a estrutura comum às teorias atômicas. Afinal, a ideia de que a matéria não é divisível de forma contínua, mas composta por unidades discretas, é compartilhada tanto pelas concepções atomistas da Antiguidade quanto pelas teorias modernas.

     Parece que, quanto mais remotamente distante de sua realização científica está a ideia que o filósofo busca alcançar, mais teomórfica tende a ser a explicação. No entanto, os atomistas gregos demonstraram que há exceções. O materialismo, como vimos, não exclui a possibilidade da existência de deuses materiais. Materialismo e o atomismo não contradizem necessariamente o teísmo, mas a tensão entre essas posições torna-se evidente quando consideramos que a matéria é geralmente definida como aquilo que possui massa e ocupa espaço, o que deixa a transcendência inexplicada. Um Deus invisível e onipresente é, nesse contexto, muito difícil de conciliar com o materialismo.

     Outro exemplo de princípio naturalista é o ser de Parmênides, uma vez que é destituído de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho da verdade” é o caminho daquilo que é. Substantivando esse aquilo que é como o ser (τὸ ὄν), ele lhe atribui os predicados de unidade, unicidade, eternidade, imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade, redondidade e limitação, tratando-o como pertencente à physis (φύσις), embora acessível somente ao pensamento, e não aos sentidos. Além disso, como pensar o não ser é, para ele, absolutamente impossível, o ser torna-se o único objeto do pensamento, “pois o mesmo que pensar é ser” (τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι).

    A ideia de Parmênides de hipostasiar a palavra ‘Ser’ foi um gesto conceitual genial, a arché definitiva, pois ela poderia ocupar o lugar de todas as demais. O ser passaria, desde então, a ocupar o lugar de uma “metáfora universal”, capaz de substituir qualquer coisa que o filósofo desejasse insinuar, mas para o que ainda não dispunha de palavras adequadas.

    A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica não-determinadora, que parece inevitável ao discurso filosófico: a vaguidade e a incompletude do argumento, somadas à suspeita de inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao ser, abrem espaço para um número indefinido de chaves interpretativas, nenhuma delas inteiramente satisfatória.

     Quanto ao que Parmênides queria expressar com o conceito de ser, meu palpite interpretativo, embora insólito, é que o ser parmenideano poderia ser mais bem compreendido se fosse identificado com o que hoje chamaríamos de a totalidade dos pensamentos (proposições) concebíveis, tanto verdadeiros quanto falsos.  Essa interpretação inóspita que logo tentarei explicar, satisfaz o princípio de caridade ao salvar a maioria das afirmações de Parmênides sobre o ser.

    Consideremos, em primeiro lugar, a totalidade dos pensamentos concebíveis, verdadeiros e falsos. Mesmo os pensamentos formais pertencem ao mundo natural, no sentido de não apresentarem características teomórficas [+B] (suspeito que possam ser reduzidos a algo mental e, em última análise, físico, como tropos de pensamento numéricos ou quaisquer tropos que lhes sejam equinumerosos). Essa totalidade de proposições é, certamente, tudo o que pode ser pensado, isto é, “o que é para ser pensado”.

   Como Frege nos mostrou[20], esse conjunto total de pensamentos é também eterno (ou atemporal), imutável, imperceptível e, em certo sentido, indivisível e homogêneo – em contraste com o mundo acessível aos sentidos. Mas então, o que resta como tentativa de enunciar o impossível não-ser (μὴ εἶναι)? Ora, apenas as sentenças que não podem ser pensadas, as sentenças sem sentido (como “Se o silêncio grita, então o eco é um sussurro de realidade líquida”) e as contraditórias (como “Certos quadrados são redondos”). Essa distinção permite justificar o famoso dictum de Parmênides: “não se pode pensar o que não é.” Por fim, segundo essa interpretação, o “caminho da verdade” admite que pensamentos falsos possam ser pensados – o que torna o ser parmenideano imune à objeção platônica de que Parmênides não poderia dizer o falso.[21]

     Supondo que essa paráfrase seja correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como uma antecipação não-transcendentalista daquilo que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um mundo de ideias; dos estoicos com a sua doutrina do lekton  (a matéria incorpórea do veiculada por signos linguísticos); de C. S. Peirce com a sua categoria de terceiridade; e de Gottlob Frege com o seu reino de pensamentos atemporais e imutáveis (os sentidos das frases assertivas).

   Se essa leitura for válida (provavelmente não menos do que outras), temos um exemplo notável de antecipação especulativa de temas que filósofos posteriores tentaram desenvolver de forma mais sofisticada, ainda que com margem de sucesso muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas diferenciem-se entre si, não estamos autorizados a descartar a hipótese de existirem intuições relevantes que, no desfecho final da investigação, nos permitam alcançar, talvez de modo bastante inesperado, um acordo consensual suficiente.

     Exemplos do tipo [–A+B] são particularmente interessantes, pois podem, em certos casos, ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência, sem ocultar intenção teomórfica deceptiva. Trata-se de construções conceituais voltadas exclusivamente à satisfação de nossa curiosidade especulativa sobre questões que ultrapassam nossas presentes possibilidades de avaliação consensual. Esses casos sugerem que a posição depreciativa de Comte, segundo a qual a indagação metafísica mero produto da imaginação, sem qualquer consequência além de preservar, por meio de esperança e ilusão, a disposição para a investigação, era demasiado pessimista.

     Vale notar, por fim, que a estratégia naturalista também pode ser combinada com outras ao longo do processo argumentativo de estabelecimento de um princípio filosófico e da sua correspondente constituição conceitual. Esse parece ser o caso do conceito platônico de ideia ou forma. Para tornar esse conceito concebível, Platão precisou recorrer a analogias tomadas da experiência ordinária, começando com um uso inovador da palavra ‘ideia’ (ἰδέα), que no grego antigo significava forma, aparência, aspecto, sendo proveniente de ἰδεῖν, que significa ver (algo bastante distinto do conceito psicológico contemporâneo de ideia).

   Esse recurso poderia sugerir uma adição naturalista [+B], mas a assunção platônica de que o mundo das ideias é completamente independente do mundo visível ou sensível [+A] inviabiliza essa possibilidade. Além disso, as ideias platônicas não apresentam as características teomórficas de hipermentalidade e hiperfisicalidade. Contudo, elas ainda assim possuem características de transcendentalidade: embora não mentais, situam-se além do mundo sensível. Há também um equivalente à idiossincrasia que, se não é mental-corporal, é ao menos transcendental-corporal. É que elas são também entendidas como causas do mundo sensível, que só possui realidade por participar (μέθεξις) dessas ideias ou por imitá-las (μίμησις). Há, portanto, um elemento teomórfico na doutrina das ideias, o que nos permite crer que elas possam ser melhor concebidas como princípios do tipo [+A – B].

 

 

     5. CONCLUSÕES

 

O reconhecimento dessas possibilidades revela, especialmente no caso examinado do ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade podem ser justificáveis em filosofia, sobretudo no caso demasiado frequente em que um filósofo está tentando dizer algo que ultrapassa os recursos conceituais disponíveis. Pensadores como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel, Wittgenstein, entre outros, enfrentaram esse desafio. Como H. H. Price observou, em uma passagem bastante sugestiva:

 

Podem muito bem existir algumas coisas que na terminologia avaliável em certo tempo, só possam ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora ou (o que é ainda mais perturbador) em um oxímoro ou em um paradoxo, isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas existentes e que, em seu sentido literal, é absurda. O homem que as diz pode, é claro, estar confundido. Mas é possível que esteja dizendo alguma coisa importante. Nesse caso, seus sucessores podem ser capazes de adivinhar o que ele está tentando sugerir. As regras terminológicas podem ao final mudar. E a metáfora selvagem ou o paradoxo ultrajante de hoje podem tornar-se a platitude de depois de amanhã.[22]

 

Embora eu não creia que filósofos possam pensar algo preciso ou adequado que eles não possam também expressar em uma linguagem suficientemente precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o bastante), parece evidente que filósofos frequentemente têm intuições relevantes, embora imprecisas e conceptualmente insuficientes, que eles só conseguem formular em termos que igualmente imperfeitos. A moral dessas considerações é que, por mais contraditórias, mal concebidas, e mesmo inacreditáveis que sejam as estratégias construídas a partir de princípios-entidade inflacionários e deflacionários, elas podem estar apontando para algo importante ainda oculto sob o véu de nossa ignorância. Ideias filosóficas sugestivas, mesmo que incorretas, são como sinais na estrada, capazes de nos indicar uma direção.

     Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos que a abrangência encontrada na filosofia – aquela que carrega consigo a densidade própria do que é profundo – deriva de uma motivação que também é central à religião: o desejo de encontrar uma explicação integrada do mundo como um todo, bem como do lugar e das perspectivas que o ser humano pode nele ocupar.

    Contudo, essa aspiração não deve ser vista como uma herança infeliz de uma busca impossível. Em filosofia, como Kant demonstrou com sua doutrina das ideias da razão, essa aspiração exerce uma função diretiva indispensável. Além disso, ao considerarmos que as questões centrais da filosofia contemporânea estão em alguma medida inter-relacionadas, torna-se plausível pensar que a abrangência, quando preservada dentro dos limites adequados (tão difíceis de serem encontrados), constitui uma aspiração legítima.

    Mesmo quando entendida como um esforço antecipador da ciência, essa busca por uma totalidade permanece justificada, pois a própria ciência, em sua vocação explicativa, também reivindica direito à abrangência.

 

 



[1] “O verdadeiro pai da história econômica moderna e, aliás, da sociologia moderna, na medida em que um só homem possa reivindicar esse título, é Karl Marx”. Isaiah Berlin: Karl Marx, p. 151.

[2] Nicholas Rescher: Philosophical Dialetics, p. 11.

[3] Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy, vol. I, p. 14.

[4] Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 ss.

 

[5] Uma lei dos três estágios foi primeiramente sugerida por A. Turgot em suas Réflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses (1750). Contudo, ela era voltada para o desenvolvimento material e econômico, nada tendo a ver com os estágios culturais de Comte, sua ideia mais original. De Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vols. I e V. Ver também, Discours sur L’esprit Positif, vol. XI. Uma boa seleção traduzida encontra-se na col. Os pensadores.

[6] O desenvolvimento da assim chamada lei dos três estágios por Comte tem sido frequentemente mal-entendido. A sua plausibilidade é defendida por W. Schmaus em, “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law.”

[7] Sem querer, Richard Rorty capturou, perversamente, algo dessa função ao sugerir que o objetivo da filosofia é “manter a conversação fluindo” (keep the conversation going) em uma espécie de gênero cultural sem objetivo cognitivo, como se fôssemos um bando de papagaios satisfeitos por podermos gritar, trinar e cacarejar em conjunto. E, de certo modo, ele estava certo: muito do que, academicamente, se chama ‘filosofia’ não vai muito além disso. Essa é a principal razão da influência de Rorty: ele baixa o nível, tornando a coisa mais fácil e democrática. Cf. Seu Philosophy and the Mirror of Nature, pp. 264, 377.

[8] Karl Popper observou que não poderíamos reconhecer a verdade absoluta, caso a encontrássemos, uma vez que tudo o que conhecemos pode, em princípio, falseável.  Ver Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, cap. 2.

[9] Segundo Jean Piaget, o raciocínio hipotético-dedutivo com o uso da lógica predicativa e proposicional vinha a ocorrer tipicamente na fase das operações formais a partir dos 11 ou 12 anos de idade, embora fatores educacionais possam hoje apressar esse desenvolvimento.

[10] J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.

[11] Ver K. R. Popper, The Poverty of Historicism, cap. IV.

[12]  Ética a Nicômaco, livo 1, cap. 3, 1094b.

[13] A lei sócio-antropológica poderia ser nesse último caso assim enunciada: “Sociedades que atingem certo grau de complexidade econômica, política e simbólica, tendem a construir grandes monumentos piramidais como expressão de poder, religiosidade e ordem cósmica.”

[14] A história da filosofia era muito menos compreendida no século XIX do que é hoje, dado que não existia uma literatura crítica, nem traduções confiáveis, nem parâmetros de rigor interpretativo a serem seguidos.

[15] A filosofia dos pré-socráticos, que poderia exemplificar perfeitamente o alcance das ideias de Comte sobre a natureza do que ele chama de metafísica, não poderia ser diretamente considerada por ele. No tempo em que ele viveu, somente os especialistas conheceram os fragmentos perdidos, dispersos em citações antigas. Só com a colossal obra de Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, publicada em 1922, na qual as citações dos textos perdidos foram reunidas e enumeradas, a comunidade filosófica conseguiu ter acesso a eles. É provável que hoje saibamos mais sobre os pré-socráticos do que Aristóteles.

[16] Thomas Hobbes, Leviatã, Parte IV, capítulo 25 e capítulo XXXIV.

[17] Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, livro V, prop. 35.

[18] Note-se que para Berkeley esse não é só percipi, mas também percipi possi. Como ele escreveu, minha escrivaninha existe porque posso a qualquer momento percebê-la.

[19] Embora Demócrito nunca tenha dito isso, a conclusão é difícil de ser evitada, dadas as propriedades especiais internas que ele atribui aos átomos (para uma discussão, ver W. K. C. Gutthrie, A History of Greek Philosophy, vol. II, p. 396).

 

[20] Gottlob Frege, “Der Gedanke”.

[21] Uma objeção cabível seria a de que conteúdos proposicionais não seriam naturais, pois não são nem físicos nem psicológicos. Essa objeção seria justificada em uma interpretação platonista natureza desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma interpretação nominalista. Se o conteúdo proposicional for analisado, digamos, como uma representação mental (um tropo) ou qualquer outra qualitativamente similar a ela, então ele pode ser entendido em termos fisicalistas.

 

 

[22] “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough, p. 40.

[23] “Philosophy as Art”, Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J. H. Gill tentou confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos, mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta.

[24] Ver Sigmund Freud, Traumdeutung, chap. VII.

 

[25] Note-se que o processo primário não é suficiente para caracterizar a arte. Se assim fosse estaríamos dispostos a admitir que sonhos são manifestações artísticas apenas pelo fato de que seus conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento e condensação.

 

[26] G. W. F. Hegel,  Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, vol. III, parte III, Der absolute Geist, Sec. 556-577.

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