IV
RELIGIÃO
E OS REMANESCENTES MÍSTICOS
DA FILOSOFIA
„Überall suchen wir das Unbedingte, und finden
nur Dinge.“
[Em tudo buscamos o incondicionado, e o que encontramos
são apenas coisas.]
Novalis
The aim of philosophy, abstractly formulated,
is to understand how things, in the broadest possible sense of the term hang together
in the broadest possible sense of the term.
[A finalidade da filosofia é entender como as coisas,
no sentido mais amplo do termo, se adequam entre si no mais amplo sentido do
termo.]
Wilfried Sellars
Por que Kant e Hegel são inevitavelmente chamados de ‘filósofos’, enquanto
o mesmo não se aplica, com igual naturalidade, a Marx, que, mais (ou menos) do
que um filósofo, foi considerado por Isaiah Berlin o verdadeiro fundador da sociologia?[1]
Afinal, também a obra de Marx, como a história demonstrou, é profundamente especulativa
e resistente a consensos sobre o que nela pode ser considerado verdadeiro.
A resposta reside no escopo. Enquanto os sistemas
de Kant e Hegel são omniabrangentes, buscando resolver uma questão filosófica
por meio da solução de todas as demais, o pensamento de Marx se limita a uma
filosofia política e social, moldada por reflexões econômicas e pelos dados
empíricos fornecidos pela revolução industrial. Diversamente de Hobbes, Marx é tanto
filósofo político quanto sociólogo, embora a ideia de que sua sociologia seja
científica seja hoje amplamente considerada um exagero. Muitos exemplos semelhantes
poderiam ser mencionados. É aqui que entra em questão outro aspecto da filosofia
que não podemos deixar de mencionar: a abrangência. Os sistemas de Platão,
Aristóteles, Kant e Hegel são universais em sua ambição. Eles partem da premissa
de que a mente humana é, por natureza, orientada para compreender o todo. De
onde vem esse ímpeto?
O caso acima nos sugere que, embora possamos
conceber a filosofia, em termos gerais, como uma forma conjectural caracterizada
pela ausência de respostas definitivas, isso não esgota seus traços
distintivos. Permanecem sem explicação certos elementos presentes nas caracterizações
históricas da filosofia: a busca da sabedoria, o espanto originário, o frequente
apelo a princípios de explicação cuja validade é cognitivamente controversa, bem
coo o impulso que objetiva integrar nossas experiências em uma visão abrangente,
capaz de “resolver de modo convincente nossas grandes questões concernentes à realidade
e o lugar que nela ocupamos”.[2]
Foi esse impulso que motivou a elaboração dos grandes sistemas filosóficos, de
Platão a Hegel. Nada disso se deixa compreender plenamente se reduzirmos a
filosofia a um conhecimento público não consensualizável, ou a um empreendimento
cognitivo antecipatório da ciência, como discutido no capítulo anterior.
No
presente capítulo, mostrarei que a resposta a tais questões pode ser encontrada
quando, em vez de investigarmos a propriedade da investigação filosófica de não
alcançar um conhecimento público consensualizável, tal como ocorre na ciência, perquirirmos
o modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a filosofia
com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.
1.
FILOSOFIA E
RELIGIÃO: A ABORDAGEM
GENÉTICA
Há duas características particularmente importantes que a filosofia compartilha
com o pensamento religioso: a abrangência – entendida como a capacidade
de incorporar os mais diversos elementos e aspectos – e a profundidade –
referente ao nível de reflexão envolvido. A essas pode-se acrescentar a elevação,
que diz respeito à ascensão espiritual, intelectual e moral. Esses três traços
podem ser encontrados variadamente em filósofos religiosos como Plotino, Agostinho
e Anselmo; são de difícil caracterização, embora se encontrem aqui inter-relacionados.
Religiões monoteístas, como a
judaico-cristã, buscam atributos como abrangência, profundidade e elevação por meio
da invocação de um Deus transcendente situado além do mundo da experiência, embora
misteriosamente concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora
da realidade. Por essa via, tais religiões alcançam uma notável abrangência: o
conceito de Deus ocupa o centro de uma doutrina que visa integrar nossas formas
de compreender o mundo e o papel do ser humano nele, permitindo a derivação de
normas para a orientação da conduta humana. Historicamente, muito da filosofia
tem preservado aspirações similares de abrangência, profundidade e elevação, embora
realizando-as no mais das vezes sem o apelo a um Deus pessoal transcendente.
Filósofos
tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, o que levou muitos de seus
expoentes à construção de sistemas filosóficos amplos, voltados para a explicação
da realidade como um todo e, com frequência, à derivação de diretrizes gerais
para a conduta humana, como exemplifica de forma notável o pensamento de Spinoza.
Mesmo que as aspirações da filosofia do século XX não sejam tão elevadas, ainda
persistem, como critérios de avaliação, elementos como amplitude de propósito,
profundidade, elevação e nível, como se observa no caso da obra de Wittgenstein.
Quanto à alegada profundidade e elevação, embora
a filosofia não recorra ao sobrenatural da mesma maneira que a religião, ela frequentemente
apela a princípios metafísicos de explicação que permanecem
além das possibilidades concretas de experiência e entendimento. Ainda que tais
princípios não sejam seres espirituais, como os deuses das religiões, não raro
se mostram difíceis de distinguir deles. Tal como os deuses, é comum que não possam
ser plenamente alcançados pelo entendimento humano, que possuam algum atributo mental
e que se relacionem ao mundo sensível de maneira obscura e misteriosa. Para compreendermos
a imensa relevância desses princípios metafísicos, basta considerarmos o lugar central
que sempre ocuparam na história da filosofia. Eis uma breve lista, de Tales a
Wittgenstein:
-
A água (Tales);
o ilimitado (Anaximandro); o ar (Anaxímenes); a terra (Xenófanes); o pensamento (Anaxágoras), a razão
(Heráclito); o ser (Parmênides); os átomos (Demócrito); o número (Pitágoras),
os quatro elementos (Empédocles).
-
as ideias,
especialmente a ideia do Bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus
(Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (Scotus Eriugena); o Omni-Deus (Tomás
de Aquino e outros filósofos medievais);
-
a substância
pensante finita e infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza);
as mônadas (Leibniz); ideias (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em
si e o seu Eu transcendental (Kant); o Eu Puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel);
a Vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); o Ser (Heidegger);
o indizível (Wittgenstein).
O relacionamento entre filosofia e religião pode ser abordado, historicamente
e geneticamente, por meio da consideração de princípios ou entidades-princípio –
entes que geralmente atuam como fundamentos capazes de produzir, determinar ou sustentar
as coisas. É amplamente reconhecido que a filosofia ocidental emergiu do solo da
mitologia grega e da religião. Por volta de 600 a.C., a partir de Tales de Mileto,
os pensadores gregos se tornaram insatisfeitos com as explicações mitológicas dos
eventos da natureza e da vida humana, começando a substituí-las por explicações
filosóficas. Historiadores da filosofia já sugeriram que o contato com outras culturas,
com seus diferentes deuses e valores, poderia ter contribuído para enfraquecer
a crença dos gregos em suas explicações mitológicas.[3]
Alguns historiadores da filosofia sugerem que
o contato com outras culturas, com diferentes deuses e valores, pode ter contribuído
para o enfraquecimento da crença dos gregos em suas narrativas tradicionais. No
entanto, esse fator, por si só, não parece suficiente para explicar o surgimento
da especulação filosófica, uma vez que muitas culturas foram igualmente expostas
a influências externas, sem que desenvolvessem qualquer tipo de filosofia – algumas,
ainda, reagiram a tal exposição pelo revigoramento reativo de suas próprias crenças;
considere, por exemplo, a sobrevivência do judaísmo em seus dois mil anos de diáspora.
Uma explicação
mais plausível para o nascimento da filosofia ocidental foi a proposta por W. K.
C. Guthrie: a descoberta da ciência abstrata entre os gregos sugeriu à mente humana
o uso da generalização.[4]
Contudo, esse fator, por si só, não seria suficiente para produzir a emergência
do pensamento filosófico, posto que generalizações do senso comum sobre fenômenos
ordinários sempre existiram, como a de que o Sol nasce todos os dias ou,
digamos, a de que a soma de um objeto com outro é sempre igual a dois objetos.
Tais generalizações são tão evidentes que sempre foram sabidas, não exigindo reflexão
filosófica.
Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento
da especulação filosófica ocidental, incorporando a explicação aceita por Guthrie,
seria a seguinte: os gregos, muito em consequência de sua exposição a outras culturas,
desenvolveram avanços científicos em aritmética, geometria, física e astronomia.
Contudo, enquanto outros povos viam esses conhecimentos como meros instrumentos
para fins práticos, os gregos foram os primeiros a considerá-los em abstração dessas
finalidades, ou seja, como generalizações científicas.
Essa atitude os capacitou a reconhecer
as características intrínsecas desse tipo de generalização. Eles perceberam que
as generalizações científicas possuem um poder explicativo que vai além do que
é abertamente observável, como é o caso das generalizações de senso comum, alcançando
a natureza oculta dos fenômenos. Nesse contexto compreenderam que a forma científica
de explicação científica se fundamenta na existência de regularidades, tanto na
natureza empírica quanto nos elementos formais. Tais regularidades não apenas
se refletem nas generalizações, mas também permitem, quando empíricas, explicar
fatos e fazer previsões (como o haviam demonstrado as predições astronômicas)
e, quando matemáticas, justificar inferências (como nas provas dos teoremas), em
um procedimento análogo.
Ao assumir
a possibilidade de tais generalizações abstratas, sustentadas por inferências baseadas
em regularidades dadas, seguidas de explicações e previsões, os primeiros filósofos
gregos teriam alcançado aquilo que chamo de ideia de ciência, tanto empírica
quanto formal. Essa ideia envolvia procedimentos de inferência indutiva de leis
gerais, acompanhados de explicação e previsão, além de estruturas inferenciais silogísticas
que seriam posteriormente sistematizadas e formalizadas no Organon aristotélico.
Tratava-se de um novo tipo de explicação
dos fatos, radicalmente diferente daquela promovida pelo antropomorfismo religioso.
Diante disso, a questão que se impõe
é: não teria sido a descoberta da mera possibilidade de substituir explicações
religiosas por explicações baseadas em princípios ou leis, aplicáveis mesmo ao
que era inobservável ou oculto na natureza, a centelha que acendeu o fogo da especulação
filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-socráticos? A ideia subjacente,
creio eu, que emergiu na mente desses primeiros filósofos, que eram pessoas
cientificamente instruídas, foi simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser
explicado, não por apelo à vontade arbitrária dos deuses, mas por meio de regularidades
semelhantes àquelas reveladas pela ciência.
É evidente que nenhuma das questões poderia
ser abordada de forma verdadeiramente científica. Mas, ainda assim, elas se
prestavam à abordagem especulativa, por meio de conjecturas respaldadas naquilo
que denominei ideia de ciência, além de resultados que, embora não passíveis de
obter acordo consensual, eram intelectualmente estimulantes. A prática desse procedimento
especulativo oriunda de uma espécie de hedonismo intelectual no sentido mais elevado
e profundo da expressão, constituiu a característica mais marcante da filosofia
pré-socrática.
Dada a
influência do modelo científico, seja ele empírico ou formal, não é
surpreendente que, no nascimento da filosofia grega, o primeiro filósofo da
tradição ocidental, Tales de Mileto, fosse também astrônomo e matemático de
notável competência. Conta-se que previu o ano de um eclipse solar e desenvolveu
o teorema que leva seu nome. Sua hipótese de que a água seria o princípio, a arché
(ἀρχή), isto é, a causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira
tentativa de substituir explicações baseadas na vontade dos deuses por abordagens
mais próximas da explicação não antropomórfica provida pela ciência.
Certamente, uma tal explicação não poderia ser
formulada em termos extremamente científicos, pois lhe faltaria o tipo de acordo
consensual que vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem seus sucessores tinham
condições de alcançar uma compreensão científica de uma questão tão abrangente
quanto a dos constituintes e determinantes últimos da natureza, já que tais
consensos dependem da realização de observações sofisticadas, inconcebíveis na
época. Ainda assim, os pensadores pré-socráticos eram pelo menos capazes de especular
filosoficamente sobre tais questões, oferecendo vislumbres conjecturais acerca
da natureza das coisas. Suas sugestões, embora indeterminadas, incompletas, provavelmente
equivocadas, eram ainda assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar nosso
entendimento da realidade.
O que filósofos
como Tales e, com maior refinamento e profundidade, Heráclito e Parmênides, estavam
produzindo, eram ideias esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e
sugestivas, ou seja, formas embrionárias de teorias frequentemente
assumiam o papel de causas eficientes e sustentadoras do mundo que
experienciamos. Inicialmente, tratava-se de coisas sensíveis, como a água ou a
terra, mas logo essas entidades se tornaram mais evanescentes, como o ar
invisível de Anaxímenes, e, ao final, foram consistentemente substituídas por princípios
não acessíveis aos sentidos – como o ilimitado de Anaximandro, o número de
Pitágoras, a razão de Heráclito, o ser de Parmênides. Tais entidades foram inevitavelmente
substituídas por inúmeras outras hipóstases que permearam a história da filosofia.
Irei aprofundar a análise desses princípios, mas, antes, é necessário
considerar algumas ideias de Auguste Comte, que podem nos oferecer uma
orientação valiosa.
2.
A LEI COMTIANA
DOS TRÊS ESTÁGIOS
A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como substituto
das explicações da mitologia e da religião traz à memória a assim chamada “lei
dos três estágios”, formulada por Auguste Comte como uma ordenação da longa
jornada da mente humana, que passa da superstição à ciência.[5]
Pretendo recorrer a essa lei adiante. No
entanto, como creio que a lei de Comte é de considerável relevância, propondo reconstruí-la
em alguns de seus aspectos, respondendo na próxima seção, às objeções mais influentes
contra ela levantadas.[6]
A lei
dos três estágios pode ser entendida em três planos distintos:
(a) o desenvolvimento da cultura humana em suas diversas ramificações;
(b) o desenvolvimento da mente individual;
(c) o nível do desenvolvimento da sociedade humana como um todo.
No nível mais abrangente, como uma lei geral que rege o desenvolvimento da
cultura humana, a lei dos três estágios torna-se particularmente importante. Segundo
Comte, em conexão com a emergência das ciências básicas (cap. III), a cultura humana
atravessa três fases sucessivas: o estágio religioso ou fictivo, o
estágio metafísico ou abstrato e, por fim, o estágio científico
ou positivo. Eis um esquema orientador:
Subestágios:
Estágios: (i)
animista
(1) ![]()
religioso ou fictivo (ii) politeista
Níveis:
(iii) monoteista
![]()
a) cultural
(2) metafísico ou absoluto
(3)
científico ou positivo
Lei dos
três
b) individual
(1), (2) e (3)
estágios
c) social
(1), (2) e (3)
O estágio religioso ou fictivo é o ponto de partida necessário da evolução
cultural humana. Ele é dominado pelo antropomorfismo: a mente humana projeta
suas próprias características sobre o mundo externo na tentativa de explicar as
anomalias da natureza. Fenômenos naturais, sobretudo os desviantes, são explicados
como manifestações da vontade de seres dotados de poderes sobrenaturais: os deuses
ou o Deus. O conhecimento acerca dessas sobrenaturais supostamente adquirido nesse
estágio é tido como absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente ilusório,
não sendo produto da razão, mas tão somente da imaginação.
O estágio
religioso se desdobra-se em três subestágios subsequentes, cada um passando a um
nível de abstração mais alto. No primeiro, o subestágio animista, objetos
físicos como árvores, animais e corpos celestes são vagamente concebidos como dotados
de vida, paixões, vontade e entendimento. No segundo, o subestágio politeísta,
tais objetos são substituídos por deuses, seres vivos semelhantes aos humanos, porém
imortais e sobrenaturais, normalmente invisíveis, que costumam intervir arbitrariamente
no curso da natureza, inclusive na vida humana (os gregos viam os homens como o
brinquedo dos deuses). Por fim, no subestágio monoteísta, as divindades do
politeísmo são condensadas de modo a formar um único Omni-Deus, característico
da tradição judaico-cristã.
Comte viu esse movimento como um progresso cultural
da mente dentro da ordem teológica, tendendo a uma abstração unificadora das causas
explicativas dos fenômenos. Nesse
estágio a mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão. (No
plano individual, o estágio religioso corresponde à infância; nele somos como
crianças que acreditam na existência de um mundo mágico, ainda incapazes de distinguir
plenamente o real do imaginário.)
O segundo estágio, chamado de metafísico (que
considero extensível à tradição filosófica em geral), é, para Comte, apenas transicional.
Ainda assim, representa um avanço notável, pois os princípios explicativos
deixam de ser atribuídos a divindades sobrenaturais e passam a ser buscados na própria
natureza. No entanto, embora esses princípios costumem ser dados como pertencentes
à ordem natural, eles se apresentam de maneira oculta. Eles são chamados de
poderes naturais, propriedades essenciais ou entidades abstratas.
Exemplos de tais princípios eram, para Comte,
o flogisto, que antecedeu a química moderna, e o éter, nos estágios iniciais da
física. Tais conceitos, segundo ele, possuem um caráter essencialmente equívoco.
Eles deveriam fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos,
ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas falham nesse
propósito. Por outro lado, não podem ser concebidos como agentes pessoais sem que
se recaia no estágio teológico. São, portanto o que Comte, muito convenientemente,
chamou de abstrações personificadas (abstractions personnifiées),
expressão que revela a tensão interna desses conceitos.
Mais adiante, testaremos essa ideia, aplicando-a
de forma mais ampla às entidades-princípios evocadas pelos filósofos. (O estágio
metafísico, no plano individual, corresponde à adolescência, quando construímos
ideações as mais diversas, geralmente críticas, sem suficiente apoio na realidade.)
Comte tinha uma visão bastante crítica sobre
o valor dos dois primeiros estágios, o teológico e o metafísico, em termos de conhecimento
do mundo real. Para ele, ambos são basicamente dependentes da imaginação,
e nem as explicações nem as previsões que deles derivam, podem ser consideradas
genuínas. Sua utilidade deriva sobretudo dos efeitos sociopsicológicos que produzem,
pois contribuem para a estruturação da sociedade e do pensamento, além de nos
encorajarem a enfrentar dificuldades e atenuar a ansiedade diante do que escapa
ao nosso controle.
Afora isso, há uma consequência prática de imensa
importância a longo prazo: é apenas por meio dessas construções conceituais ilusórias
que o caminho para o estágio científico é preparado.[7]
A mente humana, pensava Comte, não pode investigar sem ser guiada por alguma teoria.
Os estágios teológico e metafísico fornecem teorias que, embora equivocadas, permitem
à razão iniciar a investigação e, movida pela ilusão de conhecimento,
perseverar na observação cumulativa dos fatos, o que ao final acaba por conduzir
à ciência.
O exemplo mais expressivo desse
procedimento foi a transição da astrologia para a astronomia: a longa,
persistente e sistemática observação dos corpos celestes, motivada pelo desejo
de prever o destino humano, levou ao desenvolvimento de mensurações matemáticas
que, por sua vez, criaram as condições para o surgimento da astronomia como ciência.
Para Comte, o estágio metafísico é uma fase intermediária
e provisória, não passando de uma laboriosa preparação para a emergência do estágio
positivo. É somente neste último que a ciência se consolida como a única forma adequada
de investigação, enquanto as antigas questões teológicas e metafísicas são abandonadas
e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis.
No estágio
positivo ou científico, o conhecimento deixa de buscar verdades absolutas e
passa a ser entendido como relativo, reconhecendo a falibilidade inerente a toda
investigação humana.[8] A pretensão
de explicar o mundo como um todo é reconhecida como uma ilusão. Só podemos
compreender seus constituintes fundamentais, tarefa que cabe às ciências básicas.
Afinal, como aplicar conceitos que objetivam classificar os constituintes do mundo
ao mundo como um todo? Além disso, os fenômenos deixam de ser explicados pela imaginação
e passam a ser compreendidos essencialmente pela razão. Esta, por sua vez,
abandona a busca por causas essenciais ocultas, concentrando-se na descoberta
de leis, ou seja: regularidades verificáveis entre os fenômenos. O
conhecimento dessas regularidades permite explicar de forma realista as associações
entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando, assim, a realização
de predições. Esse poder de prever conduz a um domínio efetivo – e não meramente
imaginário – sobre a natureza. A explicação pelo “porquê” é aqui substituída pela
explicação pelo “como”. (No plano individual, o estágio positivo corresponde à maturidade
do ser humano adulto, que entende as coisas como realmente são e pouco se deixa
influenciar pela imaginação.)
Também é
importante lembrar que a transição do estágio metafísico para o estágio científico
ocorreu em tempos diferentes em cada ciências básica (cap. III), o que significa
de forma distinta e por caminhos diversos. Isso resultou em uma progressão escalonada,
o que nos leva a reconhecer que grande parte de nosso saber ainda permanece, em
muitos aspectos, em um estágio “metafísico”, a despeito do otimismo de Comte.
Para Comte, a lei dos três estágios também
se manifesta no desenvolvimento da mente individual, o que revela sua raiz biológica.
Como ele observou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em parte
vivemos (ou vivíamos) em um mundo imaginário povoado por seres míticos como fadas
e bruxas... Na adolescência, tornamo-nos metafísicos quando, ainda sem pleno
domínio dos fatos, acreditamo-nos capazes de explicar a razão[9], elaboramos
explicações as mais infundadas e acreditamos nelas com convicção. Por fim, quando
nos tornamos adultos (na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos,
segundo ele, “físicos”, aceitando apenas o conhecimento positivo, firmado e confirmado
por meios científicos.
Finalmente, a lei dos três estágios também se
manifesta ao nível da organização social e de suas práticas. Contudo, essa manifestação
depende da efetiva consolidação dos estágios no domínio da cultura. Ora, considerando
que as ciências básicas foram inevitavelmente constituídas em tempos diversos (posto
que o desenvolvimento de uma ciência mais complexa e menos ampla pressupõe, em grande
medida, o avanço de outra mais simples, porém mais ampla e inclusiva) e que o
progresso técnico necessário à mudança social costuma ser consequência do
desenvolvimento teórico da ciência, é razoável supor que o impacto social da formação
das ciências básicas na “positivação” da organização econômica e social seja antes
um fenômeno tardio.
Comte sugeriu que, no plano da organização social,
o estágio teológico durou até o fim da Idade Média, caracterizando-se por uma
sociedade autoritária e militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas.
Após a Reforma Protestante, as ideias metafísicas passaram a orientar a sociedade,
instaurando o império das leis e dos direitos abstratos. Somente após a Revolução
Francesa e com o advento da Revolução Industrial, em um período em que todas as
ciências básicas alcançaram a sua “positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la,
tornou-se possível a afirmação do estágio positivo ou científico no nível da
organização social. Esse novo período seria marcado pela emergência de uma sociedade
pacífica, na qual a vida econômica dos indivíduos passa a ocupar o centro das atenções.
Nessa sociedade, a ciência é destinada a assumir um papel determinante, devendo
conduzir a uma estrutura social organizada e regulada por uma elite de cientistas,
encarregada de aplicar o conhecimento positivo à administração da vida
coletiva.
3. UMA
BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE
A lei dos três estágios foi sempre
alvo de críticas. Algumas delas, como a acusação de rigidez e dogmatismo, além
do descrédito excessivo às formas não-positivas de pensamento, sem falar em distorções
como o otimismo exagerado e o reducionismo característicos do positivismo, parecem-me
bastante justificadas. Mas nada disso invalida, em termos gerais, a genialidade
da visão. Rejeitá-la in totum seria jogar fora o bebê junto a água da
bacia. Outras objeções parecem-me injustas e pretendo respondê-las.
A primeira objeção, levantada por Jürgen Habermas,
sustenta que a lei dos três estágios é ela mesma metafísica, uma vez que teria
sido formulada a priori, sem respaldo em fatos observacionais.[10] Isso
pode ser demonstrado falso. Comte afirmou explicitamente, e demonstrou em seus
escritos, que sua lei resulta de um exame atento dos fatos relativos à evolução
da cultura humana e à emergência das ciências básicas, articulado à reflexões consistentes
sobre a natureza humana.
Também
de fácil resposta é a objeção complementar de que a própria lei não pode ser adequadamente
inferida, posto que se baseia em uma única instância histórica, ela mesma
inacabada – a da nossa civilização. A lei dos três estágios pode ser justificada
como resultado de uma inferência indutiva, mais especificamente, a inferência
à melhor explicação (IBE). Trata-se da única abordagem capaz de reunir sob
um mesmo arcabouço interpretativo uma miríade de fatos socioculturais em sua progressão
histórica. Com efeito, é precisamente porque essa lei confere alguma coerência à
progressão histórica da cultura humana e porque tal coerência é corroborada
pela nossa compreensão dessa trajetória, que ela tende a se imprimir em nossas mentes
como uma explicação inicialmente plausível e natural. Ademais, porque a lei pode
ser gradualmente confirmada, refutada ou, mais provavelmente, corrigida e
aperfeiçoada por uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais,
tanto passados quanto futuros, ela pode tornar-se, no final, não menos passível
de validação empírica do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.
Uma segunda objeção é que, quando aplicada à
explicação dos três estágios em um nível social, a lei de Comte não é capaz de dar
conta da ordem de emergência das ciências. Afinal, a matemática já havia emergido
entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham emergido
quando a sociedade ainda se encontrava no estágio metafísico.
Assim
como a primeira objeção, Comte também respondeu explicitamente a essa crítica. Segundo
ele, cada ciência básica só pode nascer após os estágios metafísico e teológico
terem se completado em seus respectivos domínios. Contudo, dado que há uma ordem
de pressuposição entre essas ciências, elas não podem alcançar suas positivações
simultaneamente. Como consequência, é de se esperar que, no plano social, os
estágios acabem se consolidando apenas no final, como resultado da soma das
transformações parciais ocorridas em diferentes áreas do saber, o que também
deve implicar transformações decorrentes da aplicação dessas ciências.
Essa ideia pode ser ilustrada por meio de
uma analogia: uma criança pode antecipar alguns traços da mente do adulto, assim
como o adulto pode preservar aspectos da adolescência e mesmo da própria
infância, sem que isso nos leve a confundir suas identidades. (Infelizmente, Comte
foi exageradamente otimista quanto ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem
uns aos outros, e o estágio científico da sociedade ainda hoje encontra-se longe
de se consolidar.)
Uma terceira
e mais objeção reside no uso que Comte fez da palavra ‘lei’, que para muitos é
abusivo e enganoso. A singularidade dos eventos analisados, aliada à vaguidade e
à incerteza dos processos envolvidos, não nos autoriza a usar essa venerável palavra;
como observou Karl Popper, talvez o melhor que possamos fazer é falar de tendências
(trends) sócio-culturais.[11]
A resposta a essa objeção consiste em lembrar as
palavras de Aristóteles ao considerar a investigação ética: “É próprio do homem
instruído buscar a precisão em cada classe de coisas apenas na medida em que a
natureza do assunto o permite.”[12] Em
outras palavras, cada espécie de conhecimento requer uma forma de precisão
condizente com sua natureza. No domínio da história sociocultural humana, o que
chamamos de “lei” deve assumir um caráter tendencial, a menos que sejamos tomados
por um cacoete precisionista que nos leve a exigir dos grandes movimentos socioculturais
o mesmo grau de precisão das ciências duras.
É certo que Comte não descobriu leis no
sentido das ciências naturais, mas sim tendências, válidas em termos vagos e probabilísticos.
Daí que sua contribuição foi a identificação de uma regra natural tendencial,
perfeitamente aceitável como lei dentro das condições de vaguidade que
caracterizam a ciência social. A forma própria de uma lei socio-histórico-cultural
precisa, inevitavelmente, ser a de uma tendência genérica.
Não é
razoável esperar que uma lei dessa natureza possua a mesma precisão e ausência
de exceções das leis das ciências naturais. Seu enunciado não pode oferecer
mais do que uma probabilização de certos resultados, dado o número imenso de variáveis
que podem intervir no processo. O mesmo vale para grandes insights sociológicos,
como o do desencantamento do mundo proposto por Max Weber: sua abrangência em
um terreno complexo o torna tão vago quanto deve ser. Pensar que a vaguidade
compromete o status científico de uma lei social não passa de preconceito.
O que mais
distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é a universalidade e a precisão
– afinal, nenhuma lei estatística satisfaria tal critério –, mas sim a nossa assunção
de que a generalização expressa em seu enunciado é de natureza não-acidental.
O suposto caráter não-acidental da regularidade afirmada pela generalização
pode ser admitido como a única característica comum a qualquer tipo de lei. A ciência,
nesse sentido, precisa de um termo para cobrir todos os tipos de generalização
que presumimos não resultarem do acaso, e a palavra ‘lei’ mostra-se a mais
adequada para desempenhar essa função.
Sob esse ponto de vista, a lei dos três estágios
passa a atender à condição de lei com pretensão científica. Parece razoável, por
exemplo, predizer que em um outro mundo possível habitado por seres humanos biologicamente
idênticos a nós e submetidos a circunstâncias similares, no processo de se tornar
uma sociedade em pleno desenvolvimento científico e tecnológico, seguiria uma ordem
similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos e formas de conhecimento em
vez de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio científico. Assim, devemos
admitir que estamos tratando de uma lei no sentido liberal: uma tendência sociocultural
necessária. Da mesma forma, é plausível admitir que certas civilizações, em
certo estágio e sob determinadas condições, se ponham a construir pirâmides.[13]
Concluímos,
portanto, que sob uma interpretação suficientemente tolerante e flexível, a ideia
de que o progresso civilizatório humano tende a seguir os três estágios acima descritos
permanece plenamente defensável. Nosso próximo passo será considerar a filosofia
tradicional munidos das ideias recém-adquiridas, de modo a explorar suas possibilidades.
4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIA
ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA
Se substituirmos o que Comte
chamava de metafísica pela palavra ‘filosofia’, muito mais adequada, o que inevitavelmente
associamos a um empreendimento puramente conjectural, podemos sumarizar a visão
do lugar da filosofia entre religião e ciência por meio do seguinte esquema:
![]()
RELIGIÃO FILOSOFIA CIÊNCIA
(explicação (explicação
(explicação
por deuses)
por princípios) por leis)
A despeito do evidente apelo metafilosófico dessa ideia, Comte não a aplicou
de forma abrangente aos domínios centrais da filosofia, seguramente devido a um
conhecimento deficiente dessa história.[14]
Seus exemplos de princípios metafísicos pertencentes à pré-história das ciências
positivas, tais como o flogisto, antes da química, e o éter, na física nascente,
são corretos. Mas, em princípio, os exemplos poderiam ter sido facilmente estendidos
a pensadores tão remotos quanto os pré-socráticos.[15]
Para colocar
a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três estágios a serviço de uma
análise dos princípios metafísicos, o primeiro passo é explicitar as propriedades
mais distintivas das entidades mentais que a religião reivindica como sobrenaturais
ou divinas. Essas propriedades, que denomino teomórficas, serão aqui reduzidas
a quatro:
(i)
Transcendência física: Entidades mentais constituídas
por uma substância essencialmente distinta da matéria física comum, e dotadas
de superioridade extrema. (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma substância pensante
infinita);
(ii)
Hipermentalidade: Os poderes mentais dessas entidades são alterados
e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes
etc.);
(iii)
Hiperfisicalidade: Os poderes físicos dessas entidades encontram-se
alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino
humano, contradizer leis naturais ou realizar feitos impossíveis à matéria
ordinária.);
(iv)
Idiossincrasia
mental-corporal: As entidades geralmente
mentais ou não se associam necessariamente aos corpos físicos ou, quando eventualmente
associadas a eles, não o são necessariamente, nem dos modos usualmente conhecidos
por nós (elas podem não ter corpo físico algum, habitar seres não-vivos, transitar
livremente entre corpos ou habitar muitos deles simultaneamente.)
Típico das propriedades teomórficas é que elas não são acessíveis a nossa
experiência ordinária, seja física ou mental. Ainda assim, à exceção da transcendência
física, parece possível concebê-las secundariamente, por meio da ampliação e
modificação de conceitos derivados de nossa experiência comum.
Essas propriedades podem ser compreendidas
como condições de identificação, que nos permitem descrever e, eventualmente,
reconhecer o sobrenatural e o divino. Importante notar que nem todas precisam estar
presentes simultaneamente.
Filósofos atomistas materialistas se viam em
papos de aranha quando se tratava de explicar os deuses ou o Deus, pois para
eles tal explicação teria de ser física. Para Demócrito, possivelmente um ateísta
precoce que floresceu por volta de 400 a.C., os deuses eram eidola (εἴδωλα):
átomos extremamente finos e leves, capazes de penetrar em nossas mentes e produzir
delírios e êxtases religiosos. Para ele a vida não existiria após a morte, pois
os átomos sutis de nossas mentes se dispersariam. Para Epicuro, um atomista menos
afoito, que viveu durante o difícil período helenista, a vida também não
existia após a morte, mas os deuses existiam, formados de átomos sutis, vivendo
eternamente em estado de perfeição e serenidade, sem qualquer interesse pelos
assuntos humanos. Seus deuses, ao menos, satisfaziam a condição de hiperfisicalidade.
E para Hobbes, um materialista mecanicista moderno que foi educado por um pastor
calvinista, Deus seria o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo.
Para ele, se Deus age sobre o mundo, ele também deve ser feito de
matéria, o que exclui a propriedade de transcendência física.[16]
Por outro lado, filósofos
dualistas, de Platão a Descartes, tinham nesse aspecto uma liberdade conceitual
muito maior: ao admitir a transcendência física, podiam aceitar com mais
naturalidade todas as demais propriedades teomórficas.
Se, seguindo Comte, desejamos conceber as entidades-princípio
metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a regularidade
das leis científicas, então, devemos entendê-las como consistindo de algo situado
entre:
A. O que é teomórfico – isto é, aquilo que possui
uma ou mais das quatro propriedades teomórficas anteriormente descritas.
B. O que é natural – isto é, aquilo que possui propriedades físicas,
psicológicas, ou mesmo formais (como as dos objetos matemáticos), ordinariamente
reconhecidas pelo senso comum e, possivelmente, também pela ciência. Afinal, a ciência
também pode ser entendida como uma extensão do senso comum, conquanto esse seja
do tipo que chamei de humilde (mooreano).
Feita essa admissão, encontramo-nos preparados para distinguir alguns tipos
básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é
(a)
+A+B: entidade-princípio
metafísica híbrida (ou inflacionada). A formulação de um conceito
metafísico que visa designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente,
mesmo que de forma elusiva, das duas ordens de propriedades, teomórficas
e naturais. Por um lado, envolve propriedades teomórficas, constitutivas do sobrenatural;
por outro, incorpora propriedades naturais, físicas, mentais ou formais –
acessíveis à experiência ordinária, seja pelo senso comum ou pela ciência (a qual,
por sua vez, pode nos fornecer acesso a leis científicas). É nesse contexto que
emergem as verdadeiras “abstrações personalizadas”.
O Deus sive Natura de Spinoza pode servir como exemplo de entidade-princípio
metafísica híbrida. Para esse filósofo, o que existe é Deus, ou substância, que
é, simultaneamente, natureza. Enquanto natureza, essa substância é acessível a nós
por meio de seus atributos essenciais: extensão (ou experiência do físico) e pensamento
(ou experiência do mental), o que lhe confere, aparentemente, um status de
entidade-princípio natural [+B]. Todavia, essa concepção não é tão isenta de antropomorfismo
como parece. Como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um correspondente
modo mental, isso implica que todas as coisas físicas (como um círculo, uma cadeira
e uma vassoura) também são mentais, possuindo, pois, algum grau de sensiência. Isso
demonstra que a natureza spinoziana abriga uma certa idiossincrasia mente-corpo.
Mais além, a natureza como “Deus” é hipostasiada como sendo capaz de amar-se a
si mesma com amor infinito[17],
o que significa que o Deus de Spinoza também possui algum tipo de propriedade teomórfica
de hipermentalidade [+A], ainda que não seja transcendente. O resultado é,
portanto, uma entidade-princípio do tipo [+A++B].
Outro exemplo de um primeiro princípio híbrido,
rico e multicolorido, é a Natureza em Scotus Eriúgena. Para esse filósofo,
a natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não
é criada. É Deus, o ser perfeitíssimo e incognoscível, origem de todas as
coisas. A segunda é a natureza criada que cria. São arquétipos da sabedoria
divina, as formas eternas que atuam como causas eficientes de todas as coisas. A
terceira é a natureza como o mundo que é criado e não cria. Ela
corresponde ao mundo sensível, ou seja, a tudo o que é gerado no espaço e no tempo.
Embora não possua poder criador, manifesta Deus por teofania. Finalmente, chegamos
à natureza que não é criada nem cria. Ela é Deus como o termo final da
criação, quando a natureza se reintegra à sua fonte.
Considerando o conceito de natureza
em Scotus Eriúgena, percebemos que, por um lado, ela se identifica com o Deus pessoal
cristão, com as formas platônicas e com a união de tudo a Deus no fim dos
tempos [++A]. Mas a natureza criada que não cria é o mundo sensível [+B]. O
resultado parece ser do tipo [++A+B], já que Deus não deixa de ser transcendente.
Se admitirmos uma unidade no conceito de natureza, o hibridismo exuberante de Eriúgena
torna-se tão flagrante que parece encerrar uma inconsistência – uma tensão
conceitual insuperável que sempre impressionou os críticos.
Outra entidade-princípio mista, que, de
algum modo, nos recorda a natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist)
em Hegel, que é hipermental (posto que é a origem de toda a realidade) [+A], possuindo
idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) [+A]. Em
contrapartida, ele deve desdobrar-se a si mesmo em um processo que adiciona teses,
antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais [+B], constituindo a
natureza como espírito adormecido [+B], que, através de nós, chega a apresentar-se
como constituinte do espírito absoluto. Mas como o espírito hegeliano não é
transcendente, eu o classificaria como [+A++B]. O idealismo absoluto não é tão
religioso quanto possa parecer.
Outro exemplo de entidades-princípio com algum
elemento híbrido, ainda que essencialmente mentais, seria o mundo das mônadas
de Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é composto por um número
infinito de pontos mentais, chamados mônadas. De um lado, cada mônada contém suas
próprias leis impessoais, relacionando-se a todas as outras mônadas através de aparências
espaço-temporais entendidas como phanomena bene fundata capazes de refletir
a estrutura real do universo [+B?]. De outro lado, cada mônada é uma força viva,
possuindo algum grau de percepção e consciência, que se estende perspectivamente
e em maior ou menor medida, a todo o universo das mônadas. Consequentemente, mônadas
também possuem traços teomórficos, como idiossincrasia físico-mental (já que os
objetos materiais são apenas aparências fenomenais de agregados de mônadas) e hipermentalidade
(porque mônadas são sempre mentais, oniscientes e, em si mesmas,
transcendentes, mesmo quando não possuem consciência alguma disso, como no caso
das mônadas nuas) [+++A]. O resultado parece ser [+++A+B?]
Por
fim, é preciso observar que o elemento B não precisa pertencer ao exclusivamente
ao mundo físico ou mental, podendo também ser de natureza formal (embora um filósofo
naturalista possa defender que o elemento formal também é, de algum modo, redutível
ao empírico). Um exemplo emblemático é o do número concebido como entidade-princípio
inflacionada na filosofia de Pitágoras. Para os pitagóricos, assim como para nós,
o número é uma entidade natural, cujas propriedades são ordinariamente acessíveis
(+B). No entanto, o número é também imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos:
dele derivam o bem e o mal, o masculino e o feminino, entre outras polaridades
fundamentais.
Como vimos, a quantidade relativa de +A e +B pode
variar e muito irá depender da interpretação. O Deus sive Natura
spinoziano é quase naturalista [+A++B], enquanto as mônadas distinguem-se através
de suas propriedades teomórficas [+++A+B]. A natureza enriquecida de Scotus Eriugena
parece situar-se próxima ao meio (++A+B), o mesmo se dando com o misticismo pitagórico,
pois se a ele adicionarmos a metempsicose, o resultado parece ser (++A+B),
dependendo da interpretação.
A maioria dos princípios-entidades
da metafísica especulativa é, aliás, de um tipo inflacionado, ao aludir
simultaneamente a propriedades teomórficas e naturais.
O próximo
tipo de princípio metafísico tem a forma
(b)
–A–B: entidades-princípio
elusivas (ou deflacionadas). A formação de um conceito metafísico destinado a
designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como desprovida de
qualquer dependência semântica em relação a propriedades teomórficas ou naturais
(físicas, mentais ou talvez formais), tal como elas são ordinariamente experienciadas
e reconhecidas pelo senso comum e pela ciência.
Como consequência dessa estratégia explicativa,
o princípio-entidade torna-se, enquanto tal, incognoscível. De fato, ou a
palavra-conceito empregada para nomeá-lo é completamente destituída de sentido,
ou (como normalmente é o caso) algum sentido lhe é atribuído externamente, por
meio do contexto, ou de maneira equívoca, a partir de uma eliminação
inconsistente de referências originárias.
Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio
metafísica elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, concebido como totalmente
inalcançável pelos nossos poderes cognitivos, situado além do pensamento e da linguagem.
Contudo, o Uno pode ser aproximado pela sua negação – pelo que ele não é
–, já que não corresponde a nada que possa ser conhecido, exceto pela ordem e
beleza do mundo, que apontam para algo superior, e pela rara experiência mística
de união do ser com a sua origem.
O exemplo mais notório de entidade-princípio elusiva,
porém, é o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências
fenomenais. Entre seus habitantes mais ilustres estão a coisa em si,
refletida no polo externo de nosso aparato cognitivo, e o Eu transcendental,
refletido no polo interno do mesmo.
Na primeira metade do século XX, surgiram
outros exemplos de princípios elusivos, como o conceito wittgensteiniano do indizível
(das Unaussprechlichen), que aponta para aquilo que não pode ser
dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito heideggeriano de Ser,
entendido como aquilo que fundamenta os entes enquanto existentes (das, was
allem Seienden zugrunde liegt), somente aproximável pelos meios metafóricos
da linguagem literária.
O princípio do tipo deflacionário possui a
vantagem de não correr o risco de ser demonstrado como internamente inconsistente.
Mas o preço dessa segurança é alto: ele deixa de ser propriamente um conceito.
Essa vacuidade semântica pode, eventualmente, contaminar o restante do discurso
filosófico com vacuidade retórica, como, em boa medida, a obra de Heidegger
acaba por demonstrar.
Há modos
pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem ser combinadas no
processo de constituição de conceitos metafísicos. Considere o caso do conceito
de Vontade (der Wille) em Schopenhauer. Em princípio, ele
equivale à coisa em si, que Kant estabeleceu como um X incognoscível que
sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o suposto designatum
de seu conceito só poderia assumir a forma [–A–B]. Mas só isso não basta para satisfazer
as intenções filosóficas de Schopenhauer.
Segundo ele, pela experiência do corpo percebemos
que, por trás das aparências sensíveis, o que realmente existe é a Vontade: uma
pulsão cega que se manifesta a si mesma como força cega e destrutiva, mais diretamente
objetivada em nossa experiência interna da vontade de viver. Essa
vontade, por sua vez, é entendida como capaz de se expressar na totalidade do
mundo, tanto no orgânico quanto no inorgânico.
A estratégia de Schopenhauer torna possível que
a coisa em si, inicialmente inofensiva, se manifeste como uma perversa vontade cósmica
que permeia toda a natureza e constitui, para ele, a verdadeira fonte do interminável
sofrimento humano. Assim, aquilo que de início era para ser concebido como da forma
[–A–B], adquire propriedades que o transformam em um princípio dotado de caráter
de uma lei natural universal (+B), ao mesmo tempo que, em sua manifestação como
uma vontade de viver, incorpora traços teomórficos, isto é, idiossincrasia mente-corpo
e algum tipo de hipermentalidade [+A].
Isso ocorre mesmo quando Schopenhauer recorre
ao velho expediente filosófico de negar o que já fez depois de já tê-lo feito. Por
essa razão, seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma
composição conceitual da forma [+A(–A–B)+B] (sendo os parênteses utilizados
para delimitar o núcleo originário do processo de constituição conceitual).
Buscando
alternativas entre +A+B e –A–B, entre princípios híbridos e elusivos, ainda encontramos
mais duas possibilidades conceituais fundamentais:
(c)
+A–B: entidade-princípio
teológica. A constituição de um conceito destinado a designar um princípio
desse tipo depende semanticamente de propriedades teomórficas não acompanhadas
de propriedades naturais.
Essa combinação parece imprópria para a filosofia, posto que nos conduz diretamente
de volta ao domínio da religião: entidades-princípios que são fisicamente transcendentes
e/ou hipermentais e/ou dotadas de uma idiossincrasia mente-corpo, sem qualquer
apelo a explicações naturalistas, correspondem precisamente a entidades
espirituais, como deuses, tótens e afins.
Mas não seria um imaterialista como o bispo
Berkeley, um defensor filosófico dessa combinação? Afinal, para ele tudo o que
existe são espíritos e suas ideias? Creio
que não. Em sua concepção, ideias suficientemente intensas e permanentes não se
distinguem da natureza perceptível que nos cerca, o que, segundo ele, é
confirmado pelo senso comum. Nessa interpretação, tais ideias seriam do tipo [+B][18],
que, em conjunto com as ideias divinas e outras, formariam o tipo [+A+B].
Mas há ainda uma última alternativa, que consiste
simplesmente na recusa do elemento teomórfico:
(d)
–A+B: entidade-princípio
naturalista. A constituição de um conceito filosófico destinado a designar
um princípio desse tipo depende semanticamente de propriedades naturais
reconhecidas pelo senso comum e, eventualmente, pela ciência, sejam elas físicas,
mentais ou formais.
A distinção entre um princípio naturalista e uma lei científica reside apenas
em seu caráter filosófico-especulativo. Essa diferença repousa na ausência de um
consenso possível quanto aos valores de verdade dos resultados, frequentemente vagos
e impalpáveis, dos princípios filosóficos naturalistas.
A especulação pré-socrática é rica
em exemplos desse tipo, como a tese de Anaximandro, segundo a qual a Terra está
suspensa no vazio, e a de Empédocles, que propôs que os seres humanos evoluíram
dos animais, já discutidas no capítulo III.
O exemplo mais famoso de princípio natural é a
teoria atomista de filósofos materialistas Leucipo e Demócrito, segundo a qual
as coisas concretas são constituídas de porções de matéria eternas e invisíveis.
Para Demócrito, os átomos possuem formas distintas, responsáveis por diferentes
propriedades da matéria, entre outras configurações. Embora os átomos possam ser
“teoricamente” divisíveis, já que possuem formas, tamanhos e pesos, eles permanecem
fisicamente indivisíveis.[19]
Certamente, dado que a hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa
experiência ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos
teomórficos, o conceito filosófico de átomo entre os gregos, à semelhança de
seu equivalente científico moderno, pertence ao tipo [–A+B].
Princípios naturalistas são aqueles
que mais prontamente revelam seu caráter protocientífico, uma vez que ocorrem com
mais frequência nas antecipações mais remotas das ciências naturais hoje bem
desenvolvidas. No caso do atomismo, seu modelo de desenvolvimento segue o mesmo
padrão discutido nos exemplos do capítulo III: o atomista antigo não podia identificar
as propriedades de seus átomos, mensurá-las, ou observar os seus traços de modo
a obter consenso sobre seus resultados, como fazem os físicos contemporâneos
com as partículas elementares. Ainda assim, podiam especular sobre sua existência,
formulando teorias que assumiam a estrutura comum às teorias atômicas. Afinal, a
ideia de que a matéria não é divisível de forma contínua, mas composta por
unidades discretas, é compartilhada tanto pelas concepções atomistas da Antiguidade
quanto pelas teorias modernas.
Parece que, quanto mais remotamente distante de
sua realização científica está a ideia que o filósofo busca alcançar, mais teomórfica
tende a ser a explicação. No entanto, os atomistas gregos demonstraram que há exceções.
O materialismo, como vimos, não exclui a possibilidade da existência de deuses
materiais. Materialismo e o atomismo não contradizem
necessariamente o teísmo, mas a tensão entre essas posições torna-se evidente
quando consideramos que a matéria é geralmente definida como aquilo que possui
massa e ocupa espaço, o que deixa a transcendência inexplicada. Um Deus invisível
e onipresente é, nesse contexto, muito difícil de conciliar com o materialismo.
Outro exemplo de princípio naturalista é o ser
de Parmênides, uma vez que é destituído de características teomórficas. Para Parmênides,
o “caminho da verdade” é o caminho daquilo que é. Substantivando esse aquilo
que é como o ser (τὸ ὄν), ele lhe atribui os predicados de unidade, unicidade,
eternidade, imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade, redondidade e limitação,
tratando-o como pertencente à physis (φύσις), embora acessível somente
ao pensamento, e não aos sentidos. Além disso, como pensar o não ser é, para
ele, absolutamente impossível, o ser torna-se o único objeto do pensamento, “pois
o mesmo que pensar é ser” (τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι).
A ideia de Parmênides de hipostasiar a palavra
‘Ser’ foi um gesto conceitual genial, a arché definitiva, pois ela
poderia ocupar o lugar de todas as demais. O ser passaria, desde então, a
ocupar o lugar de uma “metáfora universal”, capaz de substituir qualquer coisa que
o filósofo desejasse insinuar, mas para o que ainda não dispunha de palavras adequadas.
A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade
semântica não-determinadora, que parece inevitável ao discurso filosófico:
a vaguidade e a incompletude do argumento, somadas à suspeita de inconsistência
entre as diferentes propriedades atribuídas ao ser, abrem espaço para um número
indefinido de chaves interpretativas, nenhuma delas inteiramente satisfatória.
Quanto ao que Parmênides queria expressar com
o conceito de ser, meu palpite interpretativo, embora insólito, é que o ser parmenideano
poderia ser mais bem compreendido se fosse identificado com o que hoje chamaríamos
de a totalidade dos pensamentos (proposições) concebíveis, tanto verdadeiros
quanto falsos. Essa interpretação
inóspita que logo tentarei explicar, satisfaz o princípio de caridade ao salvar
a maioria das afirmações de Parmênides sobre o ser.
Consideremos, em primeiro lugar, a totalidade dos
pensamentos concebíveis, verdadeiros e falsos. Mesmo os pensamentos formais pertencem
ao mundo natural, no sentido de não apresentarem características teomórficas [+B]
(suspeito que possam ser reduzidos a algo mental e, em última análise, físico, como
tropos de pensamento numéricos ou quaisquer tropos que lhes sejam
equinumerosos). Essa totalidade de proposições é, certamente, tudo o que pode ser
pensado, isto é, “o que é para ser pensado”.
Como Frege nos mostrou[20],
esse conjunto total de pensamentos é também eterno (ou atemporal), imutável, imperceptível
e, em certo sentido, indivisível e homogêneo – em contraste com o mundo acessível
aos sentidos. Mas então, o que resta como tentativa de enunciar o impossível não-ser
(μὴ εἶναι)? Ora, apenas as sentenças que não podem ser pensadas, as sentenças
sem sentido (como “Se o silêncio grita, então o eco é um sussurro de realidade
líquida”) e as contraditórias (como “Certos quadrados são redondos”). Essa
distinção permite justificar o famoso dictum de Parmênides: “não se pode
pensar o que não é.” Por fim, segundo essa interpretação, o “caminho da verdade”
admite que pensamentos falsos possam ser pensados – o que torna o ser parmenideano
imune à objeção platônica de que Parmênides não poderia dizer o falso.[21]
Supondo que essa paráfrase seja correta, o ser
de Parmênides pode ser concebido como uma antecipação não-transcendentalista daquilo
que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um mundo de ideias; dos estoicos
com a sua doutrina do lekton (a matéria
incorpórea do veiculada por signos linguísticos); de C. S. Peirce com a sua categoria
de terceiridade; e de Gottlob Frege com o seu reino de pensamentos atemporais e
imutáveis (os sentidos das frases assertivas).
Se essa leitura for válida
(provavelmente não menos do que outras), temos um exemplo notável de antecipação
especulativa de temas que filósofos posteriores tentaram desenvolver de forma mais
sofisticada, ainda que com margem de sucesso muito limitada. Mesmo que todas essas
doutrinas diferenciem-se entre si, não estamos autorizados a descartar a hipótese
de existirem intuições relevantes que, no desfecho final da investigação, nos
permitam alcançar, talvez de modo bastante inesperado, um acordo consensual
suficiente.
Exemplos
do tipo [–A+B] são particularmente interessantes, pois podem, em certos casos,
ser evidenciados como especulações antecipadoras da ciência, sem ocultar intenção
teomórfica deceptiva. Trata-se de construções conceituais voltadas exclusivamente
à satisfação de nossa curiosidade especulativa sobre questões que ultrapassam nossas
presentes possibilidades de avaliação consensual. Esses casos sugerem que a posição
depreciativa de Comte, segundo a qual a indagação metafísica mero produto da imaginação,
sem qualquer consequência além de preservar, por meio de esperança e ilusão, a disposição
para a investigação, era demasiado pessimista.
Vale notar, por fim, que a estratégia
naturalista também pode ser combinada com outras ao longo do processo argumentativo
de estabelecimento de um princípio filosófico e da sua correspondente constituição
conceitual. Esse parece ser o caso do conceito platônico de ideia ou forma. Para
tornar esse conceito concebível, Platão precisou recorrer a analogias tomadas da
experiência ordinária, começando com um uso inovador da palavra ‘ideia’ (ἰδέα),
que no grego antigo significava forma, aparência, aspecto, sendo proveniente de
ἰδεῖν, que significa ver (algo bastante distinto do conceito psicológico
contemporâneo de ideia).
Esse recurso poderia sugerir
uma adição naturalista [+B], mas a assunção platônica de que o mundo das ideias
é completamente independente do mundo visível ou sensível [+A] inviabiliza essa
possibilidade. Além disso, as ideias platônicas não apresentam as características
teomórficas de hipermentalidade e hiperfisicalidade. Contudo, elas ainda assim
possuem características de transcendentalidade: embora não mentais, situam-se
além do mundo sensível. Há também um equivalente à idiossincrasia que, se não é
mental-corporal, é ao menos transcendental-corporal. É que elas são também entendidas
como causas do mundo sensível, que só possui realidade por participar
(μέθεξις) dessas ideias ou por imitá-las (μίμησις). Há, portanto, um elemento
teomórfico na doutrina das ideias, o que nos permite crer que elas possam ser melhor
concebidas como princípios do tipo [+A – B].
5. CONCLUSÕES
O reconhecimento dessas possibilidades revela, especialmente no caso examinado
do ser de Parmênides, que vaguidade e obscuridade podem ser justificáveis em filosofia,
sobretudo no caso demasiado frequente em que um filósofo está tentando dizer algo
que ultrapassa os recursos conceituais disponíveis. Pensadores como Parmênides,
Heráclito, Kant, Hegel, Wittgenstein, entre outros, enfrentaram esse desafio. Como
H. H. Price observou, em uma passagem bastante sugestiva:
Podem muito
bem existir algumas coisas que na terminologia avaliável em certo tempo, só possam
ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora ou (o que é ainda mais perturbador) em
um oxímoro ou em um paradoxo, isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas
existentes e que, em seu sentido literal, é absurda. O homem que as diz pode, é
claro, estar confundido. Mas é possível que esteja dizendo alguma coisa importante.
Nesse caso, seus sucessores podem ser capazes de adivinhar o que ele está tentando
sugerir. As regras terminológicas podem ao final mudar. E a metáfora selvagem ou
o paradoxo ultrajante de hoje podem tornar-se a platitude de depois de amanhã.[22]
Embora eu não creia que filósofos possam pensar algo preciso ou
adequado que eles não possam também expressar em uma linguagem suficientemente
precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o bastante), parece evidente
que filósofos frequentemente têm intuições relevantes, embora imprecisas e conceptualmente
insuficientes, que eles só conseguem formular em termos que igualmente imperfeitos.
A moral dessas considerações é que, por mais contraditórias, mal concebidas, e
mesmo inacreditáveis que sejam as estratégias construídas a partir de princípios-entidade
inflacionários e deflacionários, elas podem estar apontando para algo
importante ainda oculto sob o véu de nossa ignorância. Ideias filosóficas
sugestivas, mesmo que incorretas, são como sinais na estrada, capazes de nos indicar
uma direção.
Finalmente, uma última palavra sobre a questão
da abrangência. Vimos que a abrangência encontrada na filosofia – aquela que
carrega consigo a densidade própria do que é profundo – deriva de uma motivação
que também é central à religião: o desejo de encontrar uma explicação integrada
do mundo como um todo, bem como do lugar e das perspectivas que o ser humano
pode nele ocupar.
Contudo, essa aspiração não deve ser vista como
uma herança infeliz de uma busca impossível. Em filosofia, como Kant demonstrou
com sua doutrina das ideias da razão, essa aspiração exerce uma função diretiva
indispensável. Além disso, ao considerarmos que as questões centrais da filosofia
contemporânea estão em alguma medida inter-relacionadas, torna-se plausível pensar
que a abrangência, quando preservada dentro dos limites adequados (tão difíceis
de serem encontrados), constitui uma aspiração legítima.
Mesmo quando entendida como um esforço
antecipador da ciência, essa busca por uma totalidade permanece justificada,
pois a própria ciência, em sua vocação explicativa, também reivindica direito à
abrangência.
[1] “O verdadeiro pai da história econômica moderna
e, aliás, da sociologia moderna, na medida em que um só homem possa reivindicar
esse título, é Karl Marx”. Isaiah Berlin: Karl Marx, p. 151.
[2] Nicholas Rescher: Philosophical Dialetics, p. 11.
[3] Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy,
vol. I, p. 14.
[4] Guthrie, W. K. C.,
A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 ss.
[5] Uma lei
dos três estágios foi primeiramente sugerida por A. Turgot
[6] O desenvolvimento da assim chamada lei dos três estágios
por Comte tem sido frequentemente mal-entendido. A sua plausibilidade é defendida
por W. Schmaus em, “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law.”
[7] Sem querer, Richard Rorty capturou, perversamente, algo
dessa função ao sugerir que o objetivo da filosofia é “manter a conversação fluindo”
(keep the conversation going) em uma espécie de gênero cultural sem objetivo
cognitivo, como se fôssemos um bando de papagaios satisfeitos por podermos gritar,
trinar e cacarejar em conjunto. E, de certo modo, ele estava certo: muito do que,
academicamente, se chama ‘filosofia’ não vai muito além disso. Essa é a principal
razão da influência de Rorty: ele baixa o nível, tornando a coisa mais fácil e
democrática. Cf. Seu Philosophy and the Mirror of Nature, pp. 264,
377.
[8] Karl Popper observou que não poderíamos reconhecer a
verdade absoluta, caso a encontrássemos, uma vez que tudo o que conhecemos pode,
em princípio, falseável. Ver Objective
Knowledge: An Evolutionary Approach, cap. 2.
[9] Segundo Jean Piaget, o raciocínio hipotético-dedutivo
com o uso da lógica predicativa e proposicional vinha a ocorrer tipicamente na fase
das operações formais a partir dos 11 ou 12 anos de idade, embora fatores educacionais
possam hoje apressar esse desenvolvimento.
[10] J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.
[11] Ver K. R. Popper, The Poverty of Historicism,
cap. IV.
[12] Ética a Nicômaco, livo 1, cap. 3, 1094b.
[13] A lei sócio-antropológica poderia ser nesse último caso
assim enunciada: “Sociedades que atingem certo grau de complexidade econômica, política
e simbólica, tendem a construir grandes monumentos piramidais como expressão de
poder, religiosidade e ordem cósmica.”
[14] A história da filosofia
era muito menos compreendida no século XIX do que é hoje, dado que não existia uma
literatura crítica, nem traduções confiáveis, nem parâmetros de rigor interpretativo
a serem seguidos.
[15] A filosofia dos pré-socráticos, que poderia exemplificar
perfeitamente o alcance das ideias de Comte sobre a natureza do que ele chama
de metafísica, não poderia ser diretamente considerada por ele. No tempo em que
ele viveu, somente os especialistas conheceram os fragmentos perdidos, dispersos
em citações antigas. Só com a colossal obra de Hermann Diels, Die Fragmente der
Vorsokratiker, publicada em 1922, na qual as citações dos textos perdidos foram
reunidas e enumeradas, a comunidade filosófica conseguiu ter acesso a eles. É
provável que hoje saibamos mais sobre os pré-socráticos do que Aristóteles.
[16] Thomas Hobbes, Leviatã, Parte IV, capítulo
25 e capítulo XXXIV.
[17] Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, livro V, prop. 35.
[18] Note-se que para Berkeley esse não é só percipi,
mas também percipi possi. Como ele escreveu, minha escrivaninha existe
porque posso a qualquer momento percebê-la.
[19] Embora
Demócrito nunca tenha dito isso, a conclusão é difícil de ser evitada, dadas as
propriedades especiais internas que ele atribui aos átomos (para uma discussão,
ver W. K. C. Gutthrie, A History of Greek Philosophy, vol. II, p. 396).
[20] Gottlob Frege, “Der Gedanke”.
[21] Uma objeção cabível seria a de
que conteúdos proposicionais não seriam naturais, pois não são nem físicos nem
psicológicos. Essa objeção seria justificada em uma interpretação platonista natureza
desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma interpretação nominalista.
Se o conteúdo proposicional for analisado, digamos, como uma representação mental
(um tropo) ou qualquer outra qualitativamente similar a ela, então ele pode ser
entendido em termos fisicalistas.
[22] “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.),
Clarity is not Enough, p. 40.
[23] “Philosophy as Art”,
Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que
[24] Ver Sigmund Freud, Traumdeutung, chap. VII.
[25] Note-se que o processo primário
não é suficiente para caracterizar a arte. Se assim fosse estaríamos dispostos a
admitir que sonhos são manifestações artísticas apenas pelo fato de que seus conteúdos
manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento
e condensação.
[26] G. W. F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften im Grundrisse, vol. III, parte III, Der absolute Geist,
Sec. 556-577.

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