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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

METAFILOSOFIA (5): arte e filosofia

                                                           V

 

A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE

 

Il me semble que la philosophie est un véritable chant qui n’est pas celui de la voix, et qu’elle possède le même sens du mouvement que la musique.

[Parece-me que a filosofia é um verdadeiro canto que não é o da voz, e que ela tem o mesmo sentido de movimento que a música.]

                                                   Gilles Deleuze

 

 

Até agora, comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais fundamentais, a ciência e a religião, mostrando que, historicamente, ela tem se situado de algum modo entre as duas. A tradição filosófica ocidental não é apenas um esforço antecipador da ciência, pois ao longo de sua trajetória demonstrou conservar motivações oriundas do pensamento religioso – não apenas pela amplitude especulativa de seus objetivos teóricos e práticos, mas também pelo seu frequente apelo a princípios explicativos que, como o Deus ou os Deuses, permanecem de algum modo para além de nossa compreensão. Chegamos agora ao momento de comparar a filosofia com uma terceira atividade cultural fundamental: a arte.

     Com base na reconhecida proximidade entre filosofia e arte, alguns filósofos adotaram a tese de que a filosofia é, em sua essência, uma forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa posição, a filosofia:

 

Não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a realidade, nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e horizontes da existência humana até agora desconhecidos, mas como um prisma com o qual são criados fascinantes e provocativos modelos conceituais e esculturas de pensamento.[1]

 

Há algo de verdadeiro que levou J. H. Gill a essa posição extrema, algo que merece ser investigado. No que se segue, considerarei a interface entre filosofia e arte, em uma tentativa de avaliar a importância dos aspectos estéticos da filosofia, principalmente em sua história.

    Quero sugerir que, em uma medida considerável, a tradição filosófica ocidental pode ser vista como uma atividade derivada de motivações artísticas, por trabalhar com um material cognitivo de modo algo similar ao que a arte faz com um material intuitivo-emocional, o que torna a filosofia, em certa medida, uma espécie de “arte da razão”. Para tornar essas ideias plausíveis quero começar distinguindo dois tipos de similaridade entre filosofia e arte:

 

 (a) similaridades externas, ou seja, aquelas que são devidas à utilização de recursos estéticos em filosofia, os quais não precisam estar sempre presentes.

 (b) similaridades internas, ou seja, similaridades de natureza entre as duas práticas culturais, as quais estão sempre e inevitavelmente presentes.

 

 

1.     O SABOR ESTÉTICO DE ALGUNS ESCRITOS

FILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS

   

Chamo as similaridades entre filosofia e arte de externas quando o filósofo se vale de meios literários evidentes. Há diversas razões para uma abordagem literária das questões filosóficas. Uma delas é que um discurso literário permite transmitir insights de maneira mais eficaz e impactante, mobilizando a atenção do interlocutor.

    Contudo, a razão mais profunda parece ser outra: com frequência filósofos se veem diante de uma disjunção exclusiva: ou avançam por um caminho linear, sustentado por argumentos que, embora rigorosos, revelam-se insuficientes ou falhos, ou optam por uma forma de expressão mais alusiva, deliberadamente ambígua, cujos contornos vagos abrem espaço para múltiplas interpretações, ainda que, em contrapartida, ofereçam menor densidade informativa.

   Nesse contexto, torna-se legítimo recorrer a um discurso metafórico no qual as palavras e suas combinações evocam sentidos que transcendem seus significados literais. Considere, por exemplo, os seguintes aforismos de Heráclito:

 

Só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo.

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).

A harmonia invisível é mais forte do que a visível.

O que está em cima é idêntico ao que está embaixo.

 

O que Heráclito busca, por meio desses aforismos, é expressar ideias profundas por meio de formulações sintéticas e polissêmicas. Frases como essas inspiraram filósofos posteriores, como Hegel, com a ideia de uma dialética histórica ou de que a razão governa o mundo.

    Outro exemplo são os símiles, mitos e alegorias usados por Platão ou, em outro registro, por um filósofo-artista como Nietzsche. Também o estilo pode ser um veículo de polissemia filosófica. Muitos dos problemas abordados por Wittgenstein foram aproximados por meio de metáforas como ‘semelhanças de família’, ‘alimentação unilateral’, ‘linguagem como uma grande cidade antiga’, sem mencionar conceitos centrais como cálculo, jogo, gramática e terapia. Um filósofo analítico como W. V. O. Quine soube explorar seu estilo refinado para conferir polissemia a certos artigos. Já o metafísico analítico Donald Williams possuía um estilo mesmerizante incomparável, que lhe permitia escapar de compromissos decorrentes de uma precisão excessivamente rígida. Cito esses exemplos sem sequer mencionar Walter Benjamin, estilista continental igualmente singular, cuja prosa densa e evocativa se constrói por meio de imagens, analogias e alusões que suscitam múltiplas interpretações. Esses casos ilustram como a linguagem pode ser decisiva e poderosa em filosofia, não como mero ornamento, mas como instrumento legítimo de expressão e de elaboração conceitual. Também a construção de vocabulário técnico, como a desenvolvida por Kant e Hegel, além de necessária, cumpre uma função estética: a complexidade terminológica e a densidade conceitual desses sistemas não apenas organizam o pensamento, mas produzem um efeito de elevação e solenidade que marcou profundamente a recepção de suas obras.

     Mas não é só isso. A própria estrutura do discurso filosófico pode exercer uma função estética. Um exemplo é a enumeração das proposições no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, que, ao refletir a hierarquia lógico-conceitual, contribui para a experiência estética do texto. Outro exemplo é o tratamento axiomático que Spinoza confere à sua filosofia na Ética. Embora essa escolha formal pretenda ilustrar o ideal racionalista levado ao extremo, ela pode ser vista, em última instância, como um adorno dispensável — um artifício que, em vez de esclarecer, tende a dificultar a compreensão e pouco acrescenta à demonstração.

    Esses variados recursos estéticos são arte: arte na filosofia, à qual pertencem como veículos. Mas nem por isso devem ser confundidos com a filosofia em si. O uso desses recursos literários na filosofia parece externo ao empreendimento filosófico propriamente dito.

     Para compreender por que o uso de recursos artísticos externos não faz da filosofia uma forma de arte, basta considerar que mesmo uma alegoria complexa como o mito da caverna em Platão pode ser interpretada literalmente, sem que a descaracterize como filosofia. Podemos também recorrer, por comparação, ao caso da religião. Esta frequentemente se valeu de recursos artísticos externos para cumprir funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas de narrativas mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia e os Upanishads, textos literários de maior ou menor qualidade estética. J. L. Borges observou que os judeus reuniram toda a sua literatura em um único livro: a Bíblia. No entanto, ninguém concluiria daí que a Teogonia ou a Bíblia devem ser classificadas como obras de ficção, ou que a religião possa ser reduzida a uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode concebivelmente existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de ser diferente com a filosofia?

   Além disso, é preciso observar que há filósofos que prescindiram dos adornos estéticos mencionados anteriormente. Exemplos notáveis são Aristóteles e Tomás de Aquino, apenas para citar os mais importantes, nos quais é difícil identificar qualquer elemento estético proeminente. A Metafísica de Aristóteles, talvez a mais influente obra de toda a história da filosofia, foi descrita por um intérprete como uma “mixórdia”: uma barafunda especulativa, confusa e, ao mesmo tempo, fascinante.  

 

 

2.     SIMILARIDADES INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE

 

Não obstante, é possível considerar que também existem similaridades internas, que defino como similaridade de natureza entre a filosofia e a arte. Tal hipótese se sustentaria se fosse possível encontrar, na filosofia, elementos estéticos indispensáveis. É essa ideia que buscarei defender no que se segue.

     Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a finalidade de ambas se encontra nelas mesmas. Como Kant notoriamente observou, o belo produz um prazer desinteressado, assim como a arte em geral. Em menor medida, a filosofia também pode ser apreciada por si mesma. Um excepcionalista como Heidegger, por exemplo, acreditava que a filosofia é nobre demais para ser de utilidade prática.

   No entanto, a relevância dessa similaridade não deve ser superestimada. Diversamente do caso da arte, pela influência mesma de suas outras dimensões, a filosofia mantém uma relação mais direta com finalidades práticas: as concepções filosóficas que adotamos, sobretudo aquelas que rejeitamos, influenciam, ainda que indiretamente, nossos modos de julgar e agir. Esse aspecto normativo foi tematizado de diversas maneiras ao longo da tradição filosófica. Ainda assim, o prazer desinteressado pode ser considerado um elemento estético intrínseco à tradição filosófica.

    Um segundo elemento em comum entre filosofia e arte diz respeito ao que podemos chamar de função integradora da arte. Esta visa à integração de nossa vida sensível e emocional, permitindo-nos harmonizar nossos sentimentos e ampliar, enriquecer e refinar nossa experiência emocional. Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também exerce uma função integradora, não da vida sensível e emocional, mas do que já foi chamado de “vida do pensamento”.

    Parece que a filosofia realiza, com o material abstrato dos conceitos, algo similar ao que a arte é capaz de fazer por meio do material sensível da intuição. A arte, segundo consta, é a expressão particular e sensível do universal. Seria a filosofia a expressão inteligível do universal? Na produção e fruição da arte, a imaginação sensível se põe em ação. Já no caso da filosofia, parece que é uma espécie de “imaginação”, melhor dizendo, “criação intelectual”, que se põe em ação. Nesse sentido, a filosofia poderia ser chamada de uma arte da razão, em contraste com a costumeira arte dos estados sensório-emocionais.

   A extensão dessas considerações deve ser devidamente restringida. Também a religião possui uma função integradora, relacionada à nossa visão do mundo e ao nosso lugar nele. E nem por isso ela se torna uma arte da espiritualidade. E quanto à ciência? Também ela possui uma função integradora no que concerne ao nosso conhecimento do mundo.   

     À função integradora do intelecto junta-se outra similaridade interna entre a filosofia e a arte: a da criação intelectual. Como a arte, a filosofia é, em boa medida, um trabalho da imaginação, melhor dizendo, de criação conceptual. Trata-se aqui de uma resposta ao que os gregos chamavam de thauma (θαῦμα), que significava espanto, surpresa, admiração, maravilhamento, perplexidade diante do mundo, que se encontra, segundo Aristóteles na origem do pensamento filosófico. Vemos aqui, mais uma vez, a filosofia funcionando como uma “arte da razão”, esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de reorganização de nosso universo intelectual. Isso pode ser bem notado em sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teomórfica do mundo em Plotino ou no progresso dialético do absoluto em Hegel. Tais sistemas não mostram como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção desses filósofos), mas como o mundo poderia ser ou, possivelmente (mas muito improvavelmente), é. Esse é um ponto interessante, mas, outra vez, não mostra que a filosofia é arte. Ele mostra que a filosofia é uma atividade criativa, mais do que a ciência e menos do que a arte.

   A criação em arte não é dirigida somente à produção da costumeira beleza e harmonia, mas também a um inesperado contraste – o que Walter Benjamin, em sua leitura de Charles Baudelaire, chamou de choque (Schockerlebnis) – capaz de sugerir a cada um de nós uma reorganização dos valores emocionais que associamos, de forma não crítica, à realidade. A criação filosófica, por sua vez, também é capaz de produzir tais contrastes por meio do material cognitivo de conceitos abstratos com que trabalha. Isso é o que Hume fez por meio de seus argumentos céticos quanto à indução, ao mundo externo e ao próprio sujeito. Não só os céticos, mas também os sofistas, aderiam ao artifício do choque filosófico.

   Nossa conclusão é que o elemento estético, amplamente desenvolvido, é parte necessária do empreendimento filosófico.

 

3.     CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS

Embora não se possa negar que a boa arte tenha a ver com a verdade, a relação é indireta. Ela é capaz de ampliar nossa consciência, tornando-nos mais abertos à compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. (Hitler dizia apreciar Wagner, mas jamais suportaria Bertolt Brecht.)

   A filosofia, contudo, mantém uma relação mais direta com a verdade: ela tem a ver com a busca da verdade. Mesmo os filósofos da variedade cética procuravam estabelecer a verdade de suas refutações. E os sofistas, como os pós-modernos, pelo menos acreditavam no direito de burlar a verdade.

   Embora o elemento veritativo presente na filosofia não produza um efeito linearmente progressivo e acumulativo de conhecimento nos mesmos moldes da ciência, ele é, como já observamos (cap. III), capaz de preencher, de forma cada vez mais estreita, um espectro de possibilidades de verdade. Com efeito, como já sugerimos, se a filosofia costuma ocupar os lugares epistêmicos deixados em aberto por domínios científicos ainda desconhecidos, é plausível supor que as ramificações das alternativas especulativas em um dado domínio da filosofia tenham um limite, o que pode não acontecer com a com a arte.

     Não obstante, tanto a filosofia quanto a religião permanecem próximas da arte, em contraste com a ciência. Como explicar? A teoria psicanalítica pode aqui auxiliar-nos. Segundo ela, a arte, a religião e a filosofia, assim como o pensamento que produz os sonhos, o trabalho da imaginação neurótica e seus sintomas, têm em comum o fato de serem produtos do que Freud chamava de processo primário (primäre Vorgang) do pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio do prazer, mais do que no princípio da realidade.[2]

    No processo primário, as emoções ou cargas (Besetzungen) afetivas deixam de estar firmemente ligadas às suas representações originais. Com isso, as cargas ligadas a representações inconscientes e pré-conscientes tornam-se passíveis de serem cedidas a outras representações, de um ou de outro modo associadas às primeiras, o que faz com que essas outras representações se tornem conscientes, produzindo prazer pela diminuição dos níveis de tensão endopsíquica.

    É importante notar que os mecanismos pelos quais as cargas de representações não-conscientes são cedidas a representações capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento (Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação reprimida R é cedida a uma representação não reprimida R1, a qual por força disso é capaz de burlar a censura e se tornar consciente, e a condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que se torna consciente por ter concentrado essas energias.

   Como consequência desse processo, as representações que emergem na consciência são combinadas aqui de forma muito mais flexível do que no processo secundário (sekundäre Vorgang), característico de nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio da realidade e no qual as cargas são fixamente ligadas a suas respectivas representações. Isso explica as combinações improváveis de representações que compõem nossos sonhos. Mas isso também explica, em alguma medida, a sugestividade semântica presente na arte e na filosofia, uma vez que são produtos do processo primário, que envolve condensação e/ou deslocamento tanto em sua produção quanto em sua compreensão e fruição.[3]

     Podemos agora compreender em que medida a filosofia é – e não é – produto do processo primário. Ela emerge desse processo à medida que se aproxima da religião e da arte, mas se configura como resultado de um processo secundário, ao se alinhar à ciência.

    Para ilustrar, considere a imagem do Angelus Novus, interpretada por Walter Benjamin:  horrorizado, o anjo é impelido por uma tempestade rumo ao futuro; com a face voltada para o passado, ele observa, impotente, a história como uma sequência de ruínas. Aqui está um exemplo de filosofia aproximada à arte, do processo primário pelo qual a imagem é uma condensação vívida do que sabemos sobre o passado humano, brutalmente incivilizado e destrutivo. Considere agora, como contraste, o “cogito ergo sum” de Descartes. Ele tem mais a ver com o processo secundário, pois revela uma aproximação à verdade científica consensual. Afinal, é impossível para mim pensar que eu não estou pensando enquanto penso. Essa descoberta é importante por se tratar de um candidato sério a uma proposição necessária a posteriori – uma verdade cuja evidência se revela na própria experiência do pensamento.

     Antes de concluir, gostaria de retornar à questão das similaridades internas entre arte e filosofia, chamando a atenção para o recurso às metáforas que denominamos entidades-princípios. Elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando concebidas em termos naturais. O recurso a Deus, por elas substituído, resultava do processo primário, operando no domínio da mística, e não da arte. Mas a arché dos pré-socráticos já contava com um elemento estético, pois sua função maior era, sem dúvida, a de proporcionar um prazer intelectual desinteressado. O mesmo pode ser dito do ser de Parmênides, das ideias de Platão, da substância imaterial de Aristóteles, do Uno de Plotino, da substância pensante de Descartes, da coisa-em-si kantiana, do absoluto de Hegel, da essência fenomenológica de Husserl, do Ser de Heidegger, do indizível do primeiro Wittgenstein e, mesmo (não se enganem), do pensamento de Gottlob Frege.

     Esses conceitos podem ser considerados metafóricos, no sentido de ocuparem o lugar daquilo que o filósofo não teve meios de expressar de outra forma. Como metáforas operam por deslocamento (Verschiebung) ou condensação (Verdichtung) dos sentidos originais de certas palavras de uso comum, transferindo-os para outros significados filosoficamente mais densos e interessantes. A filosofia tradicional, nesse sentido, não se sustenta sem componentes metafóricos fundamentadores, construídos através do processo primário.

   Um problema surge quando nos perguntamos se esse elemento metafórico das entidades-princípios, interno à filosofia, não exerce, na verdade, a função de conferir-lhe atributos como abrangência, profundidade e elevação. Se a resposta for afirmativa, o elemento metafórico interno (e até mesmo o externo), passa a se confundir com aquilo que orienta a filosofia para o vértice místico-religioso do triângulo metafilosófico, dado que, como vimos, são essas as características que mais o definem (cap. IV). Nesse caso, parece que a função estética que nos parecia essencial e autônoma, já não se deixa mais distinguir tão claramente de uma derivação da função místico-religiosa. O problema só desaparece quando percebemos que tanto a arte quanto a religião compartilham uma raiz comum enquanto produções do processo primário. Essa raiz comum, contudo, não apaga suas diferenças constitutivas.

    É nesse ponto que, casualmente, nos deparamos com o que pode ser o fundamento da sugestão profunda de Hegel, segundo a qual a arte, como expressão sensível do absoluto (tese), e a religião, como representação simbólica do absoluto (antítese), são expressões antitéticas que só se deixam superar pela expressão conceitual e racional do absoluto oferecida pela filosofia (síntese).[4] A sugestão hegeliana se deixa desmistificar quando reconhecemos que a filosofia também pertence ao processo primário, tendo como origem efeito de sua aproximação dos vértices culturais opostos da religião e da arte no triângulo metafilosófico – ambos igualmente determinados pelo processo primário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “Philosophy as Art”, Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J. H. Gill tentou confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos, mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta.

[2] Ver Sigmund Freud, Traumdeutung, chap. VII.

 

[3] Note-se que o processo primário não é suficiente para caracterizar a arte. Se assim fosse estaríamos dispostos a admitir que sonhos são manifestações artísticas apenas pelo fato de que seus conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento e condensação.

 

[4] G. W. F. Hegel,  Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, vol. III, parte III, Der absolute Geist, Sec. 556-577.

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