V
A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE
Il me semble que la philosophie est un véritable
chant qui n’est pas celui de la voix, et qu’elle possède le même sens du mouvement
que la musique.
[Parece-me que a filosofia é um verdadeiro canto
que não é o da voz, e que ela tem o mesmo sentido de movimento que a música.]
Gilles
Deleuze
Até agora, comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais fundamentais,
a ciência e a religião, mostrando que, historicamente, ela tem se situado de algum
modo entre as duas. A tradição filosófica ocidental não é apenas um esforço antecipador
da ciência, pois ao longo de sua trajetória demonstrou conservar motivações
oriundas do pensamento religioso – não apenas pela amplitude especulativa de seus
objetivos teóricos e práticos, mas também pelo seu frequente apelo a princípios
explicativos que, como o Deus ou os Deuses, permanecem de algum modo para além
de nossa compreensão. Chegamos agora ao momento de comparar a filosofia com uma
terceira atividade cultural fundamental: a arte.
Com base na reconhecida proximidade entre filosofia
e arte, alguns filósofos adotaram a tese de que a filosofia é, em sua essência,
uma forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa posição, a filosofia:
Não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a realidade,
nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e horizontes da existência
humana até agora desconhecidos, mas como um prisma com o qual são criados fascinantes
e provocativos modelos conceituais e esculturas de pensamento.[1]
Há algo de verdadeiro que levou J. H. Gill a essa posição extrema, algo
que merece ser investigado. No que se segue, considerarei a interface entre filosofia
e arte, em uma tentativa de avaliar a importância dos aspectos estéticos da filosofia,
principalmente em sua história.
Quero sugerir que, em uma medida considerável,
a tradição filosófica ocidental pode ser vista como uma atividade derivada de
motivações artísticas, por trabalhar com um material cognitivo de modo algo similar
ao que a arte faz com um material intuitivo-emocional, o que torna a filosofia,
em certa medida, uma espécie de “arte da razão”. Para tornar essas ideias plausíveis
quero começar distinguindo dois tipos de similaridade entre filosofia e arte:
(a) similaridades externas,
ou seja, aquelas que são devidas à utilização de recursos estéticos em filosofia,
os quais não precisam estar sempre presentes.
(b) similaridades internas,
ou seja, similaridades de natureza entre as duas práticas culturais, as
quais estão sempre e inevitavelmente presentes.
1.
O SABOR ESTÉTICO
DE ALGUNS ESCRITOS
FILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS
Chamo as similaridades entre filosofia e arte de
externas quando o filósofo se vale de meios literários evidentes. Há diversas razões
para uma abordagem literária das questões filosóficas. Uma delas é que um discurso
literário permite transmitir insights de maneira mais eficaz e impactante,
mobilizando a atenção do interlocutor.
Contudo, a razão mais profunda parece ser
outra: com frequência filósofos se veem diante de uma disjunção exclusiva: ou avançam
por um caminho linear, sustentado por argumentos que, embora rigorosos, revelam-se
insuficientes ou falhos, ou optam por uma forma de expressão mais alusiva,
deliberadamente ambígua, cujos contornos vagos abrem espaço para múltiplas
interpretações, ainda que, em contrapartida, ofereçam menor densidade informativa.
Nesse
contexto, torna-se legítimo recorrer a um discurso metafórico no qual as
palavras e suas combinações evocam sentidos que transcendem seus significados
literais. Considere, por exemplo, os seguintes aforismos de Heráclito:
Só uma coisa é sábia:
conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo.
Tudo se faz por contraste;
da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).
A harmonia invisível
é mais forte do que a visível.
O que está em cima é
idêntico ao que está embaixo.
O que Heráclito busca, por meio desses aforismos, é expressar ideias
profundas por meio de formulações sintéticas e polissêmicas. Frases como essas
inspiraram filósofos posteriores, como Hegel, com a ideia de uma dialética histórica
ou de que a razão governa o mundo.
Outro exemplo
são os símiles, mitos e alegorias usados por Platão ou, em outro registro, por um
filósofo-artista como Nietzsche. Também o estilo pode ser um veículo de
polissemia filosófica. Muitos dos problemas abordados por Wittgenstein foram
aproximados por meio de metáforas como ‘semelhanças de família’, ‘alimentação
unilateral’, ‘linguagem como uma grande cidade antiga’, sem mencionar conceitos
centrais como cálculo, jogo, gramática e terapia. Um filósofo analítico como W.
V. O. Quine soube explorar seu estilo refinado para conferir polissemia a
certos artigos. Já o metafísico analítico Donald Williams possuía um estilo mesmerizante
incomparável, que lhe permitia escapar de compromissos decorrentes de uma
precisão excessivamente rígida. Cito esses exemplos sem sequer mencionar Walter
Benjamin, estilista continental igualmente singular, cuja prosa densa e
evocativa se constrói por meio de imagens, analogias e alusões que suscitam múltiplas
interpretações. Esses casos ilustram como a linguagem pode ser decisiva e poderosa
em filosofia, não como mero ornamento, mas como instrumento legítimo de
expressão e de elaboração conceitual. Também a construção de vocabulário
técnico, como a desenvolvida por Kant e Hegel, além de necessária, cumpre uma
função estética: a complexidade terminológica e a densidade conceitual desses
sistemas não apenas organizam o pensamento, mas produzem um efeito de elevação
e solenidade que marcou profundamente a recepção de suas obras.
Mas não é só isso. A própria estrutura do discurso
filosófico pode exercer uma função estética. Um exemplo é a enumeração das
proposições no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, que, ao
refletir a hierarquia lógico-conceitual, contribui para a experiência estética
do texto. Outro exemplo é o tratamento axiomático que Spinoza confere à sua
filosofia na Ética. Embora essa escolha formal pretenda ilustrar o ideal
racionalista levado ao extremo, ela pode ser vista, em última instância, como
um adorno dispensável — um artifício que, em vez de esclarecer, tende a
dificultar a compreensão e pouco acrescenta à demonstração.
Esses variados recursos estéticos
são arte: arte na filosofia, à qual pertencem como veículos. Mas nem
por isso devem ser confundidos com a filosofia em si. O uso desses recursos literários
na filosofia parece externo ao empreendimento filosófico propriamente dito.
Para compreender por que o uso de recursos
artísticos externos não faz da filosofia uma forma de arte, basta considerar
que mesmo uma alegoria complexa como o mito da caverna em Platão pode ser interpretada
literalmente, sem que a descaracterize como filosofia. Podemos também recorrer,
por comparação, ao caso da religião. Esta frequentemente se valeu de recursos artísticos
externos para cumprir funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas de
narrativas mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia
e os Upanishads, textos literários de maior ou menor qualidade
estética. J. L. Borges observou que os judeus reuniram toda a sua literatura em
um único livro: a Bíblia. No entanto, ninguém concluiria daí que a Teogonia
ou a Bíblia devem ser classificadas como obras de ficção, ou que a religião
possa ser reduzida a uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode
concebivelmente existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de
ser diferente com a filosofia?
Além disso, é preciso observar
que há filósofos que prescindiram dos adornos estéticos mencionados
anteriormente. Exemplos notáveis são Aristóteles e Tomás de Aquino, apenas para
citar os mais importantes, nos quais é difícil identificar qualquer elemento estético
proeminente. A Metafísica de Aristóteles, talvez a mais influente obra
de toda a história da filosofia, foi descrita por um intérprete como uma “mixórdia”:
uma barafunda especulativa, confusa e, ao mesmo tempo, fascinante.
2.
SIMILARIDADES
INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE
Não obstante, é possível considerar que também existem similaridades internas,
que defino como similaridade de natureza entre a filosofia e a arte. Tal hipótese
se sustentaria se fosse possível encontrar, na filosofia, elementos estéticos
indispensáveis. É essa ideia que buscarei defender no que se segue.
Uma primeira
similaridade interna entre filosofia e arte é que a finalidade de ambas se encontra
nelas mesmas. Como Kant notoriamente observou, o belo produz um prazer desinteressado,
assim como a arte em geral. Em menor medida, a filosofia também pode ser apreciada
por si mesma. Um excepcionalista como Heidegger, por exemplo, acreditava que a filosofia
é nobre demais para ser de utilidade prática.
No entanto, a relevância dessa
similaridade não deve ser superestimada. Diversamente do caso da arte, pela
influência mesma de suas outras dimensões, a filosofia mantém uma relação mais
direta com finalidades práticas: as concepções filosóficas que adotamos, sobretudo
aquelas que rejeitamos, influenciam, ainda que indiretamente, nossos modos de julgar
e agir. Esse aspecto normativo foi tematizado de diversas maneiras ao longo da
tradição filosófica. Ainda assim, o prazer desinteressado pode ser considerado
um elemento estético intrínseco à tradição filosófica.
Um segundo elemento em comum entre
filosofia e arte diz respeito ao que podemos chamar de função integradora da
arte. Esta visa à integração de nossa vida sensível e emocional, permitindo-nos
harmonizar nossos sentimentos e ampliar, enriquecer e refinar nossa experiência
emocional. Algo análogo pode ser dito da filosofia. Ela também exerce uma função
integradora, não da vida sensível e emocional, mas do que já foi chamado de “vida
do pensamento”.
Parece que a filosofia realiza, com o material
abstrato dos conceitos, algo similar ao que a arte é capaz de fazer por meio do
material sensível da intuição. A arte, segundo consta, é a expressão particular
e sensível do universal. Seria a filosofia a expressão inteligível do universal?
Na produção e fruição da arte, a imaginação sensível se põe em ação. Já no caso
da filosofia, parece que é uma espécie de “imaginação”, melhor dizendo, “criação
intelectual”, que se põe em ação. Nesse sentido, a filosofia poderia ser chamada
de uma arte da razão, em contraste com a costumeira arte dos estados
sensório-emocionais.
A extensão dessas considerações
deve ser devidamente restringida. Também a religião possui uma função
integradora, relacionada à nossa visão do mundo e ao nosso lugar nele. E nem por
isso ela se torna uma arte da espiritualidade. E quanto à ciência? Também ela possui
uma função integradora no que concerne ao nosso conhecimento do mundo.
À função integradora do intelecto junta-se
outra similaridade interna entre a filosofia e a arte: a da criação intelectual.
Como a arte, a filosofia é, em boa medida, um trabalho da imaginação, melhor
dizendo, de criação conceptual. Trata-se aqui de uma resposta ao que os gregos
chamavam de thauma (θαῦμα), que
significava espanto, surpresa, admiração, maravilhamento, perplexidade diante
do mundo, que se encontra, segundo Aristóteles na origem do pensamento
filosófico. Vemos aqui, mais uma vez, a filosofia funcionando como uma “arte da
razão”, esforçando-se para mostrar as mais inesperadas possibilidades de reorganização
de nosso universo intelectual. Isso pode ser bem notado em sistemas metafísicos
transcendentais, como a construção teomórfica do mundo em Plotino ou no progresso
dialético do absoluto em Hegel. Tais sistemas não mostram como o mundo efetivamente
é (a despeito da intenção desses filósofos), mas como o mundo poderia
ser ou, possivelmente (mas muito improvavelmente), é. Esse é um ponto
interessante, mas, outra vez, não mostra que a filosofia é arte. Ele mostra que
a filosofia é uma atividade criativa, mais do que a ciência e
menos do que a arte.
A criação em arte não é dirigida
somente à produção da costumeira beleza e harmonia, mas também a um inesperado
contraste – o que Walter Benjamin, em sua leitura de Charles Baudelaire, chamou
de choque (Schockerlebnis) – capaz de sugerir a cada um de nós uma
reorganização dos valores emocionais que associamos, de forma não crítica, à
realidade. A criação filosófica, por sua vez, também é capaz de produzir tais
contrastes por meio do material cognitivo de conceitos abstratos com que trabalha.
Isso é o que Hume fez por meio de seus argumentos céticos quanto à indução, ao
mundo externo e ao próprio sujeito. Não só os céticos, mas também os sofistas,
aderiam ao artifício do choque filosófico.
Nossa conclusão é que o
elemento estético, amplamente desenvolvido, é parte necessária do empreendimento
filosófico.
3. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS
Embora não se possa negar que a boa arte tenha a ver com a verdade, a
relação é indireta. Ela é capaz de ampliar nossa consciência, tornando-nos mais
abertos à compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. (Hitler dizia
apreciar Wagner, mas jamais suportaria Bertolt Brecht.)
A filosofia, contudo, mantém uma relação mais
direta com a verdade: ela tem a ver com a busca da verdade. Mesmo os filósofos
da variedade cética procuravam estabelecer a verdade de suas refutações. E os sofistas,
como os pós-modernos, pelo menos acreditavam no direito de burlar a verdade.
Embora o elemento veritativo presente na
filosofia não produza um efeito linearmente progressivo e acumulativo de conhecimento
nos mesmos moldes da ciência, ele é, como já observamos (cap. III), capaz de
preencher, de forma cada vez mais estreita, um espectro de possibilidades de verdade.
Com efeito, como já sugerimos, se a filosofia costuma ocupar os lugares epistêmicos
deixados em aberto por domínios científicos ainda desconhecidos, é plausível
supor que as ramificações das alternativas especulativas em um dado domínio da filosofia
tenham um limite, o que pode não acontecer com a com a arte.
Não obstante, tanto a filosofia quanto a
religião permanecem próximas da arte, em contraste com a ciência. Como explicar?
A teoria psicanalítica pode aqui auxiliar-nos. Segundo ela, a arte, a religião
e a filosofia, assim como o pensamento que produz os sonhos, o trabalho da imaginação
neurótica e seus sintomas, têm em comum o fato de serem produtos do que Freud chamava
de processo primário (primäre Vorgang) do pensamento, uma
forma de pensamento baseada no princípio do prazer, mais do que no princípio da
realidade.[2]
No processo primário, as emoções ou cargas (Besetzungen)
afetivas deixam de estar firmemente ligadas às suas representações originais. Com
isso, as cargas ligadas a representações inconscientes e pré-conscientes tornam-se
passíveis de serem cedidas a outras representações, de um ou de outro modo associadas
às primeiras, o que faz com que essas outras representações se tornem conscientes,
produzindo prazer pela diminuição dos níveis de tensão endopsíquica.
É importante notar que os mecanismos pelos quais
as cargas de representações não-conscientes são cedidas a representações capazes
de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento (Verchiebung),
pelo qual a carga de uma representação reprimida R é cedida a uma representação
não reprimida R1, a qual
por força disso é capaz de burlar a censura e se tornar consciente, e a condensação
(Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações R, R1, R2… são cedidas a uma representação R, que se torna consciente por ter concentrado
essas energias.
Como consequência desse processo, as representações
que emergem na consciência são combinadas aqui de forma muito mais flexível do
que no processo secundário (sekundäre Vorgang), característico de
nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio da realidade e no
qual as cargas são fixamente ligadas a suas respectivas representações. Isso explica
as combinações improváveis de representações que compõem nossos sonhos. Mas isso
também explica, em alguma medida, a sugestividade semântica presente na arte e na
filosofia, uma vez que são produtos do processo primário, que envolve condensação
e/ou deslocamento tanto em sua produção quanto em sua compreensão e fruição.[3]
Podemos agora compreender em que
medida a filosofia é – e não é – produto do processo primário. Ela emerge desse
processo à medida que se aproxima da religião e da arte, mas se configura como
resultado de um processo secundário, ao se alinhar à ciência.
Para ilustrar, considere a imagem do Angelus
Novus, interpretada por Walter Benjamin: horrorizado, o anjo é impelido por uma
tempestade rumo ao futuro; com a face voltada para o passado, ele observa,
impotente, a história como uma sequência de ruínas. Aqui está um exemplo de
filosofia aproximada à arte, do processo primário pelo qual a imagem é uma
condensação vívida do que sabemos sobre o passado humano, brutalmente incivilizado
e destrutivo. Considere agora, como contraste, o “cogito ergo sum” de
Descartes. Ele tem mais a ver com o processo secundário, pois revela uma
aproximação à verdade científica consensual. Afinal, é impossível para mim pensar
que eu não estou pensando enquanto penso. Essa descoberta é importante por se
tratar de um candidato sério a uma proposição necessária a posteriori –
uma verdade cuja evidência se revela na própria experiência do pensamento.
Antes de concluir, gostaria de retornar
à questão das similaridades internas entre arte e filosofia, chamando a atenção
para o recurso às metáforas que denominamos entidades-princípios. Elas
devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando concebidas em termos naturais.
O recurso
a Deus, por elas substituído, resultava do processo primário, operando no
domínio da mística, e não da arte. Mas a arché dos pré-socráticos já contava
com um elemento estético, pois sua função maior era, sem dúvida, a de proporcionar
um prazer intelectual desinteressado. O mesmo pode ser dito do ser de
Parmênides, das ideias de Platão, da substância imaterial de Aristóteles, do
Uno de Plotino, da substância pensante de Descartes, da coisa-em-si kantiana, do
absoluto de Hegel, da essência fenomenológica de Husserl, do Ser de Heidegger, do
indizível do primeiro Wittgenstein e, mesmo (não se enganem), do pensamento de Gottlob
Frege.
Esses
conceitos podem ser considerados metafóricos, no sentido de ocuparem o lugar
daquilo que o filósofo não teve meios de expressar de outra forma. Como
metáforas operam por deslocamento (Verschiebung) ou condensação (Verdichtung)
dos sentidos originais de certas palavras de uso comum, transferindo-os para
outros significados filosoficamente mais densos e interessantes. A filosofia tradicional,
nesse sentido, não se sustenta sem componentes metafóricos fundamentadores, construídos
através do processo primário.
Um problema surge quando nos perguntamos se
esse elemento metafórico das entidades-princípios, interno à filosofia, não exerce,
na verdade, a função de conferir-lhe atributos como abrangência, profundidade
e elevação. Se a resposta for afirmativa, o elemento metafórico interno (e
até mesmo o externo), passa a se confundir com aquilo que orienta a filosofia
para o vértice místico-religioso do triângulo metafilosófico, dado que, como
vimos, são essas as características que mais o definem (cap. IV). Nesse caso, parece
que a função estética que nos parecia essencial e autônoma, já não se deixa
mais distinguir tão claramente de uma derivação da função místico-religiosa. O
problema só desaparece quando percebemos que tanto a arte quanto a religião compartilham
uma raiz comum enquanto produções do processo primário. Essa raiz comum,
contudo, não apaga suas diferenças constitutivas.
É
nesse ponto que, casualmente, nos deparamos com o que pode ser o fundamento da
sugestão profunda de Hegel, segundo a qual a arte, como expressão sensível do
absoluto (tese), e a religião, como representação simbólica do absoluto
(antítese), são expressões antitéticas que só se deixam superar pela expressão
conceitual e racional do absoluto oferecida pela filosofia (síntese).[4] A sugestão hegeliana se deixa desmistificar quando reconhecemos
que a filosofia também pertence ao processo primário, tendo como origem efeito
de sua aproximação dos vértices culturais opostos da religião e da arte no
triângulo metafilosófico – ambos igualmente determinados pelo processo primário.
[1] “Philosophy as Art”,
Metaphilosophy 14, n. 2, 1983, p. 141. Ver também Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que
[2] Ver Sigmund Freud, Traumdeutung, chap. VII.
[3] Note-se que o processo primário
não é suficiente para caracterizar a arte. Se assim fosse estaríamos dispostos a
admitir que sonhos são manifestações artísticas apenas pelo fato de que seus conteúdos
manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento
e condensação.
[4] G. W. F. Hegel, Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften im Grundrisse, vol. III, parte III, Der absolute Geist,
Sec. 556-577.

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