III
FILOSOFIA
COMO ANTECIPAÇÃO
CONJECTURAL DA CIÊNCIA
Where
there is philosophy, there will be Science.
[Onde a filosofia está, lá estará a
ciência]
Robert Nozick
Gostaria agora de dar início à busca descritivista dos critérios empregados
para identificar o discurso e o pensamento filosóficos. Minha sugestão é que, mesmo
que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação filosófica ou nada
de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo, ainda assim seremos capazes
de encontrar algo peculiar à filosofia se prestarmos atenção à sua forma.
1. O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL
DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA
Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço distintivo
da filosofia nos aspectos materiais de sua investigação, ele poderá sempre encontrar
um traço formal marcante e comum a toda indagação filosófica, qual seja, seu caráter
conjectural. A filosofia é, por essência, um empreendimento conjectural
ou especulativo, no sentido de que filósofos não são capazes de produzir
um acordo consensual suficiente sobre suas ideias, doutrinas e mesmo sobre seus
valores e concepções mais fundamentais. Não existe filosofia cujos resultados
sejam considerados definitivos e indiscutíveis, como ocorre em domínios
científicos, como a biologia molecular.
A razão dessa dificuldade não é difícil de ser
encontrada. Para alcançarmos um acordo consensual sobre os resultados de nossos
questionamentos, precisamos, ao menos, compartilhar certos pressupostos fundamentadores.
No entanto, a filosofia carece de um mínimo de compartilhamento de pressupostos
em quase todos os passos de sua investigação. Particularmente importante nesse
aspecto é a ausência de pressupostos compartilhados capazes de produzir acordo consensual
sobre:
(A) Assunções: quais são as evidências justificadoras, os data, aquilo que
fundamenta o campo de investigação, as questões e preocupações relevantes? (Filósofos
nunca concordam sobre quais são os pressupostos e as questões relevantes, e por
vezes sequer se elas fazem sentido.)
E também sobre a
(B)
Metodologia: o que deve ser considerado procedimento capaz
de produzir o efeito desejado; se o objetivo for buscar a verdade, quais
procedimentos, argumentativos ou não, são capazes de tornar plausíveis soluções
aventadas? (Filósofos nunca concordam quanto ao peso dos seus argumentos; argumentos
convincentes para uns podem parecer falaciosos ou irrelevantes para outros.)
Sem o compartilhamento de assunções dos tipos (A) e (B) (que não existe na
filosofia, embora existam na ciência), parece impossível esperar algo como um acordo
sobre resultados.
Pppppppppppppppp
Para ilustrar, retomemos a doutrina platônica das
ideias. Essa teoria foi sugerida como solução para o problema da generalidade, tendo
sido construída sob o pressuposto de que para algo ser objeto legítimo do conhecimento,
deve ser imutável. Ora, como o mundo sensível está em constante transformação, o
objeto próprio do conhecimento só pode ser aquilo que Platão denominou ideias
ou formas: entidades eternas e imutáveis, existindo fora do tempo e do
espaço, em um mundo puramente inteligível. Como consequência, torna-se possível,
por exemplo, predicar a beleza de uma grande diversidade de coisas visíveis, na
medida em que exemplificam a ideia abstrata do belo.
Contudo, a doutrina também acarreta dificuldades.
Uma delas é a seguinte: como pode uma única ideia abstrata relacionar-se com os
muitos indivíduos concretos a quem se aplica? Para resolver esse problema, Platão
apelou às metáforas da participação (μέθεξις) e da cópia (μίμησις), dificilmente
resgatáveis. Assim, pela metáfora da participação, ele foi forçado a defender que
muitas coisas podem participar de uma mesma ideia, sem, porém, dividi-la em
partes, o que parece inconsistente. A metáfora da cópia parece ter sucesso até notarmos
que não é concebível que uma ideia puramente abstrata possa ser copiada
pelas coisas do mundo sensível.
A
própria noção platônica de ideia enfrenta dificuldades. Críticos da doutrina
podem sentir-se tentados a considerar o conceito platônico de ideia intrinsecamente
incoerente, sobretudo por depender de metáforas irresgatáveis. São essas
objeções justificadas? É possível que sim. Atualmente há poucos platonistas, embora
existam. No entanto, para sermos justos, não há uma resposta definitiva. A situação
não é tão ruim, mas ela se torna desesperadora se exigirmos que o período
em que a doutrina filosófica foi desenvolvida seja parte da equação: no tempo
de Platão, não havia sequer a possibilidade de concluir que sua doutrina é implausível.
É compreensível que Aristóteles, que a rejeitava, tenha se perdido ao se defrontar
com o que chamou de substâncias não sensíveis e tenha caído em contradições
ao tentar refutar a existência dos universais em sua Metafísica.[1]
A incerteza é, de fato,
esperada, visto que a filosofia se dedica à construção de teorias fundamentadas
sobre bases incertas. Essa é uma conclusão falibilista um tanto deprimente, que
muitos filósofos tradicionais procuraram negar, mas que filósofos contemporâneos
já há um bom tempo aprenderam a aceitar como inevitável. De fato, não há exceção.
Mesmo a filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser
puramente descritiva, logo acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo
consensual: onde ele via um remédio, outros viam um placebo ou mesmo um veneno.
Essa
impossibilidade de acordo consensual também provê o mais marcante termo de contraste
entre filosofia e ciência. Diversamente da filosofia, em tudo o que chamamos de
‘ciências’, tanto empíricas quanto formais, há sempre um grau suficiente de
concordância prévia quanto a: (i) pressupostos gerais, que tornam possível a formulação
de problemas comuns e a seleção de dados relevantes, bem como (ii) suficiente acordo
prévio acerca de critérios e procedimentos de avaliação da verdade ou do valor
almejado a possibilitar soluções compartilhadas. Esses acordos prévios, por sua
vez, possibilitam a concordância ulterior acerca dos resultados, tanto no que diz
respeito à verificação ou refutação em ciências empíricas quanto no que concerne
à demonstração de teoremas em ciências formais. É justamente por terem sido
capazes de estabelecer tais pressupostos comuns que os cientistas, ao contrário
dos filósofos, conseguem alcançar acordos acerca dos resultados de suas investigações
e nutrir a expectativa de chegar a um desenvolvimento progressivo.
Atentar
para a natureza conjectural do esforço filosófico permite-nos esclarecer duas de
suas características formais: o caráter tipicamente argumentativo e aporético
de seu discurso, com poucas e questionáveis exceções. Filósofos estão sempre postulando
ou sugerindo princípios incertos e buscando validá-los por meio da demonstração
de suas implicações. Tal procedimento depende do caráter intrinsecamente
conjectural da indagação filosófica, posto que, pelo próprio fato de trabalharem
com conjecturas. Justamente por lidarem com conjecturas, os filósofos operam
por meio de uma constante comparação crítica entre as consequências argumentativas
das assunções que consideram corretas, somada à análise crítica dos argumentos
empregados para alcançá-las, em uma tarefa que parece não ter fim. É a natureza
conjectural que fundamenta a praxis distintivamente argumentativa, dialógica
e aporética da filosofia.
Poderia
a filosofia ser definida apenas por seu caráter conjectural e especulativo? Não
sem qualificações, posto que nem todas as conjecturas são filosóficas. Podemos,
por exemplo, formular hipóteses sobre as condições climáticas da Terra nos próximos
cinquenta anos, o que não configura uma investigação filosófica. Uma razão pela
qual essa conjectura não é filosófica é a ausência de um ponto teorético: ela
não passa de uma projeção plausível de eventos empíricos sujeitos a variações.
Contudo, ainda que baseada em
teorias, a projeção conjectural não é, por si só, o que filosoficamente as sustenta.
A conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática universal
inata presente em todos os seres humanos, embora tenha inspirado inúmeras pesquisas,
não pode ser facilmente demonstrada, mas não chega a ser filosófica. No
entanto, ela não chega a ser filosófica não só por seu caráter muito
específico, mas porque os caminhos de verificação experimental podem ser facilmente
reconhecidos e se encontram, aos poucos, sendo aproximados. Do mesmo modo, teorias
especulativas comuns à física contemporânea, como a teoria das cordas, embora testáveis
em princípio, estão longe de sê-lo na prática. Tais teorias conservam, diríamos,
um traço especulativo ou “filosófico”, mas são consideradas científicas na medida
em que os físicos não as consideram tão especulativas a ponto de parecer absurdo
imaginar um meio de fazê-las passar pelo tribunal da experiência. Vê-se,
portanto, que a diferença entre a especulação científica e filosófica, por depender
do grau de possibilidade de comprovação consensual, não precisa ser abrupta.
Como conclusão, parece que podemos qualificar como filosóficos todos os
esforços de investigação que, em sua época, são tidos como definitivamente conjecturais
– isto é, proposições que, no momento em que são formuladas, com relação aos seus
resultados, não dispõem de nenhum meio concebível de avaliação. Esse pode ser considerado
o critério mais geral para distinguir o que pertence ou não à filosofia. Ainda
assim, trata-se de um critério muito pouco elucidativo quanto à natureza da
filosofia em suas áreas centrais e historicamente mais relevantes.
UMA PROTOCIÊNCIA
Uma resposta mais profunda à pergunta: “Por que a filosofia é uma forma
conjectural de investigação?” poderia ser formulada a partir da aceitação da
tese de que, em muitos casos, ela pode ser considerada uma protociência,
ou seja, um empreendimento conjectural que antecipa o
empreendimento científico. Sob essa perspectiva, a persistente atualidade de muitas
formulações filosóficas residiria nas verdades científicas que nelas, de algum
modo, prefiguram.
Que boa
parte da filosofia tenha sido historicamente uma antecipação da ciência não
é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos, quando
todas as ciências empíricas básicas ainda estavam em vias de serem formadas, o
termo ‘filosofia’ (φιλοσοφία) era aplicado indistintamente a todo o domínio da
investigação humana. Somente muito mais tarde, com a emergência daquelas ciências,
a aplicação dessa palavra tornou-se gradualmente mais restrita, embora mantendo
um núcleo central resistente. Ao ceder parcelas de seus domínios à ciência, a tradição
filosófica tem se revelado como o berço, melhor dizendo, o útero (Kenny)
do qual as ciências básicas nasceram,[2]
ou ainda, seu “guardador de lugar”. Essa constatação do papel da filosofia como
antecipação da ciência foi sintetizada de maneira impressiva em uma bem conhecida
metáfora de J. L. Austin:
A filosofia
é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que, de tempos em tempos, perde
uma porção de si mesmo, que se torna ciência, um planeta frio e bem regulado, progredindo
constantemente em direção a um estado final distante. Isso aconteceu longo tempo
atrás, com o nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física; somente
no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra vez, lento e, naquele
tempo, quase imperceptível, no nascimento da ciência da lógica matemática, através
do trabalho conjunto de filósofos e matemáticos.[3]
Austin demonstrou essa tese na
prática ao dedicar os últimos dez anos de sua vida ao desenvolvimento de sua gramática
das relações comunicativas, a teoria dos atos de fala, que hoje é estudada mais
nos cursos de linguística do que nos de filosofia.[4]
Com efeito,
na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação especulativa elaborada
sobre um material de pensamento que, ao menos potencialmente, pode encontrar
lugar na ciência, temos uma razão mais profunda para compreender sua natureza
conjectural, argumentativa e aporética. Se a filosofia é aquilo que pode ser feito
antes que qualquer investigação científica se torne possível, torna-se mais compreensível
que as mais diversas hipóteses possam ser formuladas, que múltiplas linhas de
pensamento possam ser desenvolvidas em sua justificação, e que a disputa sobre
a hipótese correta e o argumento mais convincente perdure indefinidamente.
Como até
mesmo Wittgenstein (inesperadamente) observou: “Pode-se também chamar de ‘filosofia’
o que é possível antes de todas as descobertas e invenções.”[5]
Esse estado de coisas só se encerra quando
o caminho da investigação científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando
os estudiosos alcançam um grau suficiente de consenso sobre os pressupostos fundamentais
que sustentam um determinado campo de pesquisa. Esse consenso estabelece uma delimitação
clara sobre o que são os dados relevantes, quais questões devem ser admitidas e
quais procedimentos são válidos para aferir suas respostas.
Quando
esse acordo prévio é suficientemente amplo para permitir a produção concebível
de resultados consensuais, os estudiosos deixam de chamar seu objeto de
pesquisa de “filosófico” e simplesmente o redefinem como objeto da ciência.
(Daí o dito popular segundo o qual a tragédia do filósofo é que, sempre que ele
alcança uma verdade definitiva, a perde para o cientista.)
3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA
Antes de discutirmos em detalhes as possibilidades de derivação da ciência
a partir da filosofia, é aconselhável dizer algo sobre a classificação e a emergência
das ciências mais fundamentais.
As ciências
são certamente de duas espécies: formais e empíricas. Essas duas espécies
sempre mantiveram, em alguma medida, uma relação de interdependência ao longo
de seus desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais são a lógica e a matemática,
cujos princípios remontam à Antiguidade. A aritmética elementar e a geometria
se desvincularam da filosofia já entre os gregos, quando seus respectivos
objetos – o número, no caso da aritmética, e o ponto e as formas geométricas,
no caso da geometria – passaram a ser considerados de maneira independente dos problemas
práticos que originalmente deveriam resolver. Uma forma muito limitada da lógica
também surgiu precocemente com a silogística aristotélica.
Poderíamos
falar, sem dúvida, de uma protológica e de uma protomatemática filosóficas. O
poema de Parmênides, por exemplo, oferece uma formulação metafísica implícita das
leis lógicas da identidade, da não-contradição e até mesmo do terceiro excluído,
ao afirmar que o ser é e que o não-ser não pode ser. Platão, por sua vez, já dispunha
de uma teoria rudimentar da predicação. Os filósofos pitagóricos, impressionados
pelas realizações da matemática abstrata, acreditavam que os números fossem a arché
(ἀρχή), o princípio causal sustentador de toda a realidade, tomando, à sua
maneira, o formal pelo empírico. Contudo, a verdadeira questão, ainda hoje
filosófica, acerca da natureza ontológica dos números, permanecia, naquela
época, ainda envolta na mais completa escuridão.
Retomando
a discussão sobre as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão corrigida e atualizada
da velha classificação das ciências empíricas básicas proposta por Auguste
Comte. Essa classificação ainda se mostra bastante razoável se for adequadamente
reinterpretada, pois é capaz de nos proporcionar um rationale para a
compreensão da ordem de aparecimento dessas ciências como o tronco
historicamente demonstrado da árvore do conhecimento, a qual, em seus galhos,
se torna muitíssimo variegada.
O princípio classificatório divisado
por Comte estabelece que as ciências básicas se organizam segundo uma dupla
ordem:
(a) Da maior para a menor generalidade no escopo
dos fenômenos investigados.
(b) Da menor à maior complexidade desses fenômenos,
sendo que a exatidão de uma ciência é inversamente proporcional à complexidade
dos objetos que ela estuda.
Ao modificar e atualizar a classificação original, podemos distinguir
cinco ciências empíricas básicas: física, química, biologia, psicologia
e sociologia.[6] O
seguinte esquema sumariza essa classificação:
PARTICULARIDADE COMPLEXIDADE
5. sociologia
ciências
4. psicologia
humanas
(a) (b)
3.
biologia ciências
2. química
naturais
1.
física
(ciências
formais: lógica e matemática)
GENERALIDADE SIMPLICIDADE
De (1) a (5) temos as ciências empíricas básicas, organizadas em uma
hierarquia em que cada uma pressupõe a anterior. A física, dependente do desenvolvimento
das matemáticas, ocupa a base dessa estrutura. Ela é justamente considerada a ciência
fundamental, pois abrange, em seu escopo, toda a realidade empírica, sem exceção:
átomos, partículas subatômicas e forças elementares permeiam o universo
inteiro. Em seus princípios é também a mais simples, o que justifica seu mais
extenso âmbito de aplicação. A química, por sua vez, tem um escopo mais restrito,
voltado aos fenômenos resultantes da combinação de elementos atômicos. Ela se
divide em duas grandes áreas: a química inorgânica, voltada a compostos não baseados
em carbono, e a química orgânica, constituída por compostos de carbono,
geralmente muito mais complexos. Com um escopo ainda mais restrito, a biologia
dedica-se ao estudo dos seres vivos, vegetais e animais, cuja constituição é bioquímica.
A psicologia restringe-se a uma pequena parcela dos seres vivos: aqueles que
possuem fenômenos mentais dos quais emerge a consciência. Finalmente, a sociologia
ou física social possui escopo ainda mais limitado, voltando-se exclusivamente
ao estudo das sociedades humanas em suas formas estática e dinâmica.
A progressiva perda de generalidade dos fenômenos
investigados corresponde a um aumento na complexidade dos princípios
envolvidos. Isso ocorre porque os fenômenos mais complexos só podem emergir em
contextos mais específicos e delimitados, como os das ciências superiores.
Cabe ainda destacar que as
ciências humanas e sociais se distinguem das ciências naturais por incorporarem
um elemento interpretativo: para compreendermos os fenômenos psicológicos e
sociais, é necessário recorrermos a nossas próprias mentes como espelhos do que
desejamos compreender.
As relações entre generalidade e complexidade também
ajudam a compreender a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências básicas,
bem como a própria sequência de seu desenvolvimento histórico. De fato, para aprender
física, não é, em princípio, necessário qualquer conhecimento prévio de química.
Já a química, por sua vez, pressupõe algum entendimento de seus fundamentos físicos.
Também, para entender melhor a vida, precisaremos conhecer a química orgânica,
pois é por meio dela que se estruturam os pilares da genética e da biologia
molecular. Também o aprendizado de psicologia pressupõe algum entendimento de biologia.
Por fim, a compreensão da sociologia requer algum conhecimento de psicologia,
devido ao seu caráter interpretativo, e tende, em alguma medida, a pressupor
todas as ciências anteriores.
Essas pressuposições nos
ajudam a compreender por que o desenvolvimento das ciências básicas, de menor
escopo e maior complexidade, depende, de modo geral, do progresso das ciências mais
gerais e mais simples. Essa dependência não se limita aos fundamentos teóricos,
mas também abrange os avanços tecnológicos e instrumentais das ciências mais gerais.
Como poderia, por exemplo, a biologia desenvolver-se sem a invenção do microscópio,
cuja construção depende dos princípios da óptica, que, por sua vez, derivam diretamente
da física? Assim, o progresso das ciências superiores está condicionado não
apenas ao conhecimento acumulado nas ciências anteriores, mas também às suas
aplicações práticas, que viabilizam novas formas de investigação e compreensão.
Essas considerações ajudam a entender a ordem do nascimento das ciências
básicas. A primeira delas a emergir foi a física, no Renascimento. Embora já houvesse
rudimentos dessa ciência na antiguidade – como a descoberta da densidade específica
por Arquimedes – foi somente após Galileu que a física experimental se
consolidou como um corpo unificado de ideias científicas. A química, por sua
vez, só emergiu como ciência entre os séculos XVIII e XIX. A psicologia desenvolveu-se
gradualmente como psicologia experimental a partir da virada do século XX, embora
sua legitimidade como ciência ainda seja debatida, especialmente sob a
perspectiva da “psicologia profunda”, como pretendia a psicanálise freudiana. A
sociologia só se estruturou como um corpo teórico complexo, com pretensões
científicas, a partir das contribuições de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim.
Tanto a psicologia quanto a sociologia se desvincularam da filosofia apenas
parcialmente, em um processo gradual, escalonado e conflituoso.
Essas dependências ajudam a explicar por que o processo de afirmação da
psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito mais lento, laborioso e
escalonado. Observamos um salto, uma verdadeira ruptura epistêmica entre ciência
e o que se fazia antes de seu surgimento[7],
com o nascimento da física como um corpo de conhecimento científico com Galileu
e Newton nos séculos XVII; com o nascimento da química com Lavoisier, Cavendish
e outros no final do século XVIII, e mesmo com a muito mais escalonada organização
da biologia como um corpo de conhecimento científico ao longo do século XIX, por
cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin.
Essas rupturas ocorreram quando,
além do acúmulo do conhecimento, foram encontrados métodos apropriados de investigação,
capazes de gerar consenso quanto ao poder preditivo e explicativo das teorias que
formaram um corpo unificado. No entanto, quanto mais complexos e dependentes se
tornam os domínios de investigação, menores são as chances de saltos ou rupturas
abruptas. É o que encontramos nos domínios mais complexos da psicologia e da ciência
social, onde não há uma ruptura epistêmica claramente identificável.
Uma das razões para isso deve encontrar-se no
caráter irredutivelmente interpretativo desses campos, que depende de um exame reflexivo
constante, que desempenha papel central nas ciências humanas e sociais. Esse elemento
interpretativo envolve aspectos não acessíveis à observação interpessoal direta
e, por isso, não pode ser tão facilmente tratado de forma objetiva – embora também
não deva ser considerado, como alguns pretenderam, desesperadamente subjetivo.[8]
Uma outra razão para a constituição
mais gradual das ciências humanas tem mais a ver com a hierarquia das ciências.
Trata-se de uma complexidade e diversidade muito maiores dos fenômenos a serem
investigados, nos quais as variáveis intervenientes tendem a crescer
exponencialmente. Soma-se a isso o fato de que os procedimentos avaliativos nesses
campos exigem um conhecimento de base muito mais amplo, frequentemente fornecido
pelas ciências mais básicas e por suas aplicações.
Em síntese, as ciências humanas,
para se desenvolverem plenamente, dependem tanto da maturação das ciências
básicas quanto do avanço das possibilidades de aplicação técnica dessas últimas.
Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais científica a psicologia poderá apresentar-se
no futuro, à medida que ela for integrada a bases neurocientíficas mais
desenvolvidas.
Há uma razão pela qual as
ciências consideradas no esquema derivado de Comte merecem ser chamadas de
“básicas”. As demais ciências empíricas disponíveis são, em geral, subdivisões
especializadas dessas ciências fundamentais — como a linguística e a economia,
que se inserem no campo das ciências sociais — ou resultam da combinação de
seus princípios, aplicados localmente a regiões ou objetos específicos. Exemplos
deste segundo tipo incluem a História, que recorre, entre outros, à psicologia
e à sociologia para compreender as transformações temporais nas sociedades humanas;
a Etnologia, que aplica conceitos psicológicos e sociológicos ao estudo de
grupos étnicos culturalmente distintos; a Geologia, que utiliza fundamentos da
física e da química para investigar a estrutura e a dinâmica da Terra; a Neurofisiologia,
que se vale da bioquímica e da biofísica para explorar o funcionamento
cerebral. Há também ciências “abertas”, cuja evolução depende de acontecimentos
futuros, como a própria história e a economia. Embora a economia política tenha
produzido escolas com contribuições significativas desde sua fundação por Adam
Smith, ela permanece marcada pela incerteza, dada a complexidade e a constante
mutabilidade de seu objeto de estudo. Outras ciências se destacam pela natureza
intrinsecamente complexa, como a neurociência, que investiga o cérebro a partir
de múltiplas disciplinas. O número de subdivisões e combinações locais parece
virtualmente ilimitado. No entanto, nosso objetivo aqui não é propor uma
classificação exaustiva e precisa das ciências, mas sim delinear um esboço
conceitual mínimo que nos permita investigar as relações entre filosofia e
ciência.
É importante destacar que a emergência das
ciências básicas sempre substituiu a especulação puramente filosófica nos
domínios a que se referem. A consolidação da física como ciência experimental,
por exemplo, pôs fim ao reino da física aristotélica especulativa, ao menos naquilo
que não se confundia com sua metafísica, que ainda hoje não foi superada por
nenhuma ciência. Um destino semelhante teve a doutrina dos quatro elementos,
proposta por Empédocles no século V a.C. e adotada por Aristóteles. Ela prevaleceu
no pensamento ocidental por mais de dois mil anos, só tendo sido seriamente questionada
no século XVII por Robert Boyle. O mesmo ocorreu com o vitalismo, a doutrina segundo
a qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais, distintos
das forças físicas, após o desenvolvimento da genética molecular. Note-se que uma
reformulação filosófica do vitalismo foi defendida, ainda no século XX, por
Henri Bergson, por meio de sua teoria do élan vital.
Neste e
nos capítulos seguintes, adotarei a classificação comteana modificada das ciências
básicas, por considerá-la, em linhas gerais, ainda válida. É preciso lembrar
que meu propósito aqui é apenas estabelecer um alicerce mínimo que ajude a compreender
a relação entre filosofia e ciência.
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4.
ALGUNS EXEMPLOS
DE INSIGHTS
FILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS
Nesta seção, examinarei alguns exemplos em que ideias filosóficas
anteciparam conceitos posteriormente desenvolvidos pela ciência, nos campos da
matemática, da física, da química, da biologia e da psicologia.
Esses exemplos podem nos confundir, como veremos
mais adiante, pois se referem apenas a antecipações do tronco de ciências básicas
bem conhecidas. Não abrangem as ciências derivadas, menos conhecidas, ou mesmo às
ainda desconhecidas, que poderão ser muito diversas. Isso pode levar à falsa
impressão de que as nossas indagações filosóficas atuais deveriam se relacionar
às ciências futuras do mesmo modo que porções da filosofia de um passado mais ou
menos remoto têm sido relacionadas às nossas ciências empíricas básicas. Essa é
uma sugestão que pode ser responsável pela insistência em um cientificismo ou positivismo
teimoso, muito presente, que tende a reduzir tudo às ciências mais bem fundadas
como a física, e que é obstrutivo do próprio desenvolvimento da ciência. (Para essa
tendência o próprio Comte tinha termos como ‘usurpação’, ‘hipertrofia’ e ‘anexação’.)
Se formos precavidos ao considerar esse ponto, os exemplos que se seguirão não deixarão
de ser instrutivos.
Meus primeiros
exemplos dizem respeito à lógica e à matemática. Como vimos no capítulo
anterior, Parmênides, com sua doutrina segundo a qual “o ser necessariamente é,
enquanto o não-ser não pode ser”[9]
estaria antecipando as três chamadas “leis do pensamento”, a saber: (i) o princípio
da identidade, segundo o qual “o ser é”, formalmente “A = A, ou “A → A”, já considerado
por Platão; (ii) o princípio da não-contradição, que na formulação de Aristóteles
afirma que “é impossível que a mesma coisa ao mesmo tempo pertença e não
pertença a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto”[10],
representado formalmente como “~(A & ~A)”; e (iii) o princípio do terço excluído,
segundo o qual “se uma coisa pertence a uma mesma coisa ela não pode ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto não pertencer a ela”, formalmente: “~A v ~A”.[11]
Vejamos agora um exemplo de antecipação
da matemática. Ele pode ser encontrado na resposta de Aristóteles ao famoso paradoxo
do movimento de Zenão de Eleia, segundo o qual Aquiles não é capaz de alcançar uma
tartaruga em uma corrida, caso esta tivesse uma vantagem inicial. Isto porque
sempre que Aquiles atingisse o ponto onde a tartaruga estivera, ela já teria
avançado um pouco mais.
Aristóteles respondeu
observando que o tempo necessário para Aquiles percorrer cada intervalo espacial
é inversamente proporcional ao tamanho desse intervalo. Como esses intervalos
se tornam progressivamente menores, o tempo necessário para atravessá-los
também diminui indefinidamente. Assim, embora haja infinitos pontos a serem
alcançados, o tempo total para alcançá-los é finito, de modo que Aquiles logo
ultrapassa a tartaruga.[12]
Essa resposta antecipa de forma notável a noção de limite, que seria
formalizada muitos séculos depois no desenvolvimento do cálculo infinitesimal por
Leibniz e Newton.
Considerando agora exemplos empíricos,
temos a ideia defendida por Anaximandro (647-
Karl Popper sustentou que essa foi uma das ideias
mais ousadas de toda a história do pensamento humano, pois tornou possíveis as teorias
de Aristarco, de Copérnico e outros. Afinal, conceber a
Terra como livremente disposta no meio do espaço, e afirmar que “ela permanece
sem movimento por causa da equidistância e do equilíbrio” é, em alguma medida,
antecipar a ideia de forças gravitacionais, imateriais e invisíveis, que seriam
formalizadas por Newton muitos séculos depois.[14]
Embora antecipadora da física, a hipótese de Anaximandro
não poderia ser considerada científica, já que, na época em que foi formulada,
não havia qualquer procedimento de avaliação
da verdade que pudesse conduzir a um consenso. Por contraste, as ideias de Copérnico
e Newton foram capazes de serem submetidas a testes e validações, obtendo
consenso com precisão matemática quanto à sua verdade, uma condição de cientificidade
que já era possível em suas respectivas épocas.
Um exemplo por demais conhecido de antecipação
é também a teoria atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual
pedaços visíveis de matéria são agregados de átomos invisíveis e fisicamente indivisíveis
que possuem inúmeras formas distintivas. Essa teoria é uma antecipação especulativa
do que poderíamos chamar de estrutura conceitual de uma teoria atômica da
matéria, ainda que não de seu conteúdo específico. Também a teoria dos quatro
elementos, terra, água, ar e fogo, proposta pela primeira vez por Empédocles,
antecipava muito ilusoriamente em termos de estrutura conceitual a tabela periódica
de Mendeleev, com a sua ordenação de elementos químicos fundamentais.
No campo da cosmologia, os
pré-socráticos ofereceram antecipações tanto da teoria contemporânea do Big-Bang
quanto da hipótese do universo pulsátil. A antecipação da teoria do Big Bang
teria sido sugerida, segundo Sir Anthony Kenny, por Anaxágoras. Contento-me
aqui em apresentar uma tradução fiel da exposição feita por Kenny:
Todas as coisas estavam juntas, infinitas em número, infinitas em pequenez;
pois o pequeno também era infinito. Como todas as coisas estavam juntas, nenhuma
era reconhecível em razão de sua pequenez.” (...) Essa pedrinha primeva começou
a girar, jogando para fora o éter e o ar circundantes, formando dessa maneira as
estrelas e o sol e a lua... Mas a separação nunca foi completa, permanecendo,
ainda hoje, em cada coisa uma porção de tudo o mais. (...) A expansão do universo
continua até hoje e continuará no futuro. Talvez tenha gerado outros mundos,
além do nosso, com animais, pessoas, cidades e produtos da terra, exatamente
como acontece conosco, e também com sol e lua, exatamente como em nosso caso.[15]
Anaxágoras (~450 a.C.) não só foi o primeiro a
sugerir uma teoria do Big-Bang, mas até mesmo o primeiro a propor a
existência de outros planetas no universo, habitados por civilizações tão desenvolvidas
quanto a nossa!
Quanto à teoria do universo pulsátil, ela foi antecipada por Empédocles
(~450 a.C.), que concebia o universo como movido por duas forças alternantes: o
amor (Φιλία) e a discórdia (Νεῖκος). Quando o amor prevalece, o
universo se funde em uma unidade; quando domina a força da discórdia, o universo
se fragmenta em uma multiplicidade, num eterno ciclo de união e separação.
Quanto à versão contemporânea do universo pulsátil
ou oscilante, sua possibilidade foi matematicamente sugerida por Richard Tolman.
Segundo essa hipótese, depois da expansão causada pelo Big-Bang haveria
um ponto em que a gravidade venceria a força expansiva, levando o universo a se
contrair em um colapso conhecido como Big-Crunch. A partir daí, o
processo se reiniciaria ciclicamente até que, com o aumento constante e
inevitável da entropia, ele chegasse à sua morte final.[16]
Outro exemplo notável de antecipação
da ciência é a primeira hipótese em direção ao evolucionismo biológico, sugerida
por Anaximandro. Ele afirmava que a vida teve origem na água, que criaturas
vivas podem ser espontaneamente geradas da umidade e que os seres humanos
evoluíram de espécies inferiores, posto que, nos primeiros anos, teriam morrido
se fossem tão indefesos como são hoje ao nascer.[17] É verdade
que as ideias de Anaximandro (sec. VI a.C.), quando tomadas em um sentido estrito,
estavam equivocadas, pois ele acreditava em geração espontânea e que os seres
humanos tivessem sido inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo
completamente formados, em vez de se desenvolverem gradualmente.
Empédocles, contudo, foi além. Ele acreditava
que os seres vivos nasceram da combinação dos elementos, especificamente duas
partes de água, duas de terra e quatro de fogo. Com isso foram formadas partes
de animais. Algumas monstruosidades surgiram, como bois com cabeças humanas e
vice-versa, além de criaturas andrógenas, frágeis e estéreis. Somente os mais aptos
sobreviveram, dando origem aos presentes animais e seres humanos. Charles
Darwin saudou Empédocles como a primeira pessoa a antever a evolução natural.[18]
Alguém poderia aqui objetar que
sentenças como “A terra está suspensa no espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se
a partir de formas inferiores de vida”, que podem ser extraídas da obra de
filósofos pré-socráticos, são hoje verdades científicas. Teriam sido, então,
verdades filosóficas que se tornaram científicas? Em certo sentido, sim. As ideias
que essas sentenças expressam passaram a ser consideradas científicas para nós.
Não obstante, isso não implica que elas não fossem filosóficas para outros homens
em outros tempos, pois só se tornam obviedades quando vinculadas ao contexto atual
de sua enunciação, ou seja, para nós.
Justamente porque estamos examinando
ideias de pensadores do passado, é essencial considerá-las no contexto em que
surgiram. No interior deles, dada a ausência de reforços evidenciais, elas só poderiam
ser endereçadas de forma especulativa. Assim, o predicado ‘...é filosófico’ só
adquire um sentido apropriado quando relacionado ao contexto histórico em que a
ideação filosófica nasceu. Como situamos essas sentenças no contexto da obra de
filósofos pré-socráticos, quando praticamente não havia suporte evidencial,
somos levados a considerá-las especulações filosóficas. Do contrário,
estaríamos obrigados a tratá-las como generalizações científicas, o que seria
anacrônico.
O último exemplo é relacionado à psicologia –
um campo de investigação que ainda não se encontra ainda consolidado como ciência.
Trata-se aqui da doutrina platônica da tripartição da alma ou psiquê (ψυχή).[19]
De acordo com essa doutrina, a alma é formada por três partes distintas:
(1)
A primeira
parte é a mais primitiva, formada por seus apetites corporais, desejos e necessidades.
(2)
A segunda parte é a do elemento animoso, formada
por impulsos emocionais tais como coragem, raiva, ambição, orgulho, amizade,
honra, lealdade, etc.
(3)
A terceira parte da alma é formada pela razão,
que atua como um princípio inibitório que comanda os outros.
No diálogo Fedro, Platão comparou a razão com o condutor de uma
biga alada à qual está atrelado um par de cavalos, um deles, bom, que representa
o elemento animoso e que se esforça para se alçar ao reino das ideias; o outro
mau, simbolizando os apetites inferiores e tenta trazer a biga de volta ao
mundo terreno, dando muito trabalho ao seu condutor.[20]
Ora,
a doutrina platônica da tripartição da alma acabou por ser, em boa medida, corroborada
pela neurociência. Segundo o renomado neurofisiologista Paul McLean, autor da
teoria do cérebro triúno, nosso cérebro é composto por três computadores interrelacionados
e evolucionariamente originados: o arquiencéfalo, o mesencéfalo e
o neoencéfalo. O arquiencéfalo (cérebro reptiliano) corresponde ao bulbo
raquidiano e aos gânglios basais. É responsável pelas disposições instintivas
do organismo, como a respiração, os batimentos cardíacos, a fome e o desejo sexual...
O mesencéfalo abriga o que ele chamou de sistema límbico, responsável pela
memória emocional, pelo humor e pelas motivações. Há, por fim, o neoencéfalo, que
constitui o córtex cerebral, que ocupa no ser humano cerca de 78% da massa encefálica
e que é responsável pelo pensamento racional, pela linguagem, pela tomada de
decisões e consciência.
A teoria do cérebro triúno guarda notável
semelhança com a concepção platônica da alma, composta por desejo
(arquiencéfalo), emoção (mesencéfalo) e razão (neoencéfalo).[21]
Sob a
perspectiva da psicologia, a teoria platônica da tripartição da mente também pode
ser considerada precursora da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund
Freud.[22]
Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias:
1)
o Id (Es),
inteiramente inconsciente, representa os impulsos instintivos e as pulsões
básicas.
2)
o Superego
(über-Ich), geralmente inconsciente, corresponde à figura
paterna introjetada, atuando como instância moral e exigindo a realização de ideais.
3)
o Ego (Ich), em grande
parte inconsciente, está diretamente ligado à percepção, à vontade consciente e
ao controle motor.
A dinâmica entre essas instâncias, segundo Freud, se deve ao Ego, que
busca equilibrar as exigências do Superego com os impulsos do Id.
As teorias de Platão e de Freud
guardam apenas correspondências parciais. O Id freudiano corresponde, em
grande medida, aos apetites corporais descritos por Platão, mas também abarca
elementos volitivos, como a raiva, que o filósofo atribuiu ao elemento animoso
da alma. O Superego, por sua vez, guarda certa semelhança com o próprio
elemento animoso, o bom cavalo da alegoria da biga alada. Já o Ego parece corresponder
ao princípio racional platônico, ao condutor da carruagem, encarregado de equilibrar
as demandas opostas do Id e do Superego. Freud consideraria Platão
um escapista que, inconscientemente, ignorava a dimensão hedonista do psiquismo
humano. Como ele declarou em uma entrevista, a vida do homem comum se resume a
dois grandes motores: “sexo e dinheiro”.
Ao
confrontarmos essas teorias, deparamo-nos com uma dificuldade semelhante àquela
enfrentada ao comparar teorias filosóficas. A psicanálise freudiana, por
exemplo, não satisfaz plenamente os critérios da investigação científica — sobretudo
se esta exigir consenso entre especialistas quanto aos seus resultados. De
fato, seus praticantes, por mais qualificados que fossem, jamais alcançaram tal
acordo, o que contribuiu para a fragmentação da psicanálise em diversas escolas
concorrentes, cada uma guiada por seus próprios “mentores intelectuais”. Ainda
assim, enquanto a proposta de Platão se baseava essencialmente em sua
experiência pessoal e em observações gerais sobre o comportamento humano, a
teoria freudiana derivou suas conclusões de um método sistemático de
associações livres, aplicado a inúmeros pacientes. Além disso, introduziu um
novo elemento teórico — o inconsciente — e foi desenvolvida de forma menos
metafórica e significativamente mais detalhada. A teoria estrutural da mente, nesse
contexto, busca oferecer uma compreensão mais abrangente — e parece, de fato,
fazê-lo. Embora incerta e passível de questionamentos, ela propõe um quadro
conceitual mais adequado para a avaliação, ao menos com base nas categorias da
psicologia contemporânea.
Seria
possível identificar, ao longo deste percurso, uma evolução evidente?
Infelizmente, não. Nem tudo o que Platão escreveu sobre a tripartição da alma
foi assimilado pela psicanálise — e ainda menos pela teoria do cérebro triúno.
Tome-se, por exemplo, a associação que Platão estabelece entre as três partes
da alma e as quatro virtudes cardinais da Hélade: à parte racional corresponde
a sabedoria; à parte volitiva, a coragem; à parte apetitiva,
quando submetida ao controle da vontade, a temperança. Por fim, é da
harmonia entre essas três dimensões da alma, integradas em um todo, que emerge
a virtude da justiça. Nada disso pode ser encontrado em Freud.
Quero concluir esta seção distinguindo
entre boas e más antecipações. A maioria dos exemplos considerados
pode ser vista como boas antecipações: as ideias de Anaximandro sobre a forma e
localização da Terra, a ideia de Empédocles sobre a seleção biológica… mostram de
um modo obviamente muito rudimentar a direção a ser seguida pela ciência. E a teoria
platônica da tripartição da alma antecipa a estrutura de teorias científicas ou
próximas da ciência.
Contudo, há esforços especulativos que podem ser
vistos como más antecipações no sentido de terem apontado para caminhos
equivocados. A teoria dos quatro elementos, proposta por Empédocles, foi um
exemplo claro. Foram necessários mais de dois mil anos até que Robert Boyle, no
século XVII, demonstrasse sua inconsistência. Outro caso notório foi, no século
XVIII, a hipótese do flogisto, que postulava a existência de um elemento liberado
pelo fogo e responsável por ele. Essa ideia era completamente equivocada e
retardou o desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo mais
emblemático de má antecipação, contudo, foi o da física apriorista de
Aristóteles (ou seja, o pouco de sua física que não era metafísica). Aceita pela
Igreja como dogma, ela retardou significativamente o desenvolvimento da física
experimental ao longo da Idade Média, até que os experimentos de Galileu a tornaram
insustentável.
5.
FISSÃO
Antony Kenny, ao refletir sobre o modo como o pensamento filosófico dá
lugar à ciência, observou que esse processo ocorre por meio de uma espécie de
parturição, que ele denominou “fissão”[23].
Para ilustrar esse conceito, Kenny recorreu a um exemplo relacionado a um dos
problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão das ideias inatas.
Inicialmente, o problema era formulado da seguinte maneira: quais de
nossas ideias são inatas e quais são adquiridas? Após Kant, essa questão —
originalmente confusa — dividiu-se em duas outras: de um lado, a investigação
sobre os papéis da herança e do ambiente na formação de nossas ideias; de
outro, a indagação sobre quanto de nosso conhecimento pode ser considerado
realmente a priori. Segundo Kenny, a primeira questão foi transferida para o
domínio da psicologia, enquanto a segunda, voltada à justificação do
conhecimento, permaneceu no campo filosófico. Posteriormente, a questão
remanescente sobre o conhecimento a priori sofreu nova divisão, gerando tanto
problemas filosóficos quanto não filosóficos. Entre os desdobramentos, surgiu a
distinção entre proposições analíticas e sintéticas. Para Kenny, a noção de
analiticidade encontrou uma formulação precisa nos trabalhos de Frege e
Russell, por meio da lógica matemática. Já a pergunta “A aritmética é
analítica?” recebeu uma resposta matemática rigorosa com o teorema da
incompletude de Kurt Gödel. Apesar desses avanços, questões residuais sobre a
natureza e a justificação da verdade matemática permaneceram em aberto,
constituindo os últimos focos de disputa filosófica. O seguinte esquema resume
essa versão do processo segundo Kenny:
problema
filosófico das
idéias inatas
fissão
questão psicológica sobre o problema filosófico de se saber o
papel da hereditariedade e quanto
de nosso conhecimento é
do meio ambiente na consti- a priori
tuição
de nossas idéias
fissão
questões
lógico-matemá- questões filosóficas rema-
ticas
sobre a definição e nescentes sobre
a natureza
extensão da aprioridade e extensão do conhecimen-
em matemática to a
priori em geral
Não importa se você está de pleno acordo com o exemplo. O que importa é
que o modelo de desenvolvimento aqui sugerido faz sentido. Ele é aquele em que os
amplos e confusos problemas filosóficos iniciais acabam por se dividir em
partes. Umas se condensam em questões científicas, passíveis de respostas consensuais,
enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo tende a repetir-se
com as questões filosóficas remanescentes, talvez até seu desaparecimento completo.
Quando consideramos esse processo, o ponto mais
importante a ressaltar é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz
mudanças que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação
filosófica. Como o exemplo ilustra, após a fissão, a parte do problema que permanece
filosófica precisa ser reformulada, o que deve gerar novas conjecturas. Mas as
mudanças não permanecem circunscritas. Outros problemas relacionados, que pertencem
ao mesmo domínio de investigação filosófica, podem precisar ser acomodados ao
novo cenário, junto às suas respostas especulativas. Esse ajuste ocorre por meio
de uma reformulação mais ou menos profunda dos problemas e de suas respostas,
bem como por uma relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente
aos outros problemas e respostas no interior da filosofia.
Esse
último ponto pode ser elucidado por meio de um exemplo: a reformulação kantiana
do problema filosófico remanescente das ideias inatas, expressa em sua doutrina
sobre o conhecimento e os conceitos a priori, acabou por produzir reformulações
subsequentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus.
Ao menos em sua filosofia teórica, Kant deixou de conceber esses conceitos como
designando objetos reais, passando a trata-los como ideias da razão: conceitos
a priori diretivos que poderíamos parafrasear como sendo do tipo “como
se” (‘als ob’, na metáfora de Hans Veihinger). Tais ideias, geradas pela
própria estrutura da razão, não têm por função representar objetos, mas somente
orientar nossos processos inferenciais “como se” tais objetos pudessem ser
designados.
Assim, devemos proceder intelectualmente como
se o mundo externo fosse uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar
perseguindo nosso conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se
houvesse um objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir
um entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder como
se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa e interna
– a ser entendida como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar nosso
conhecimento da totalidade natural.
Como consequência dessa reformulação dos conceitos
de natureza, alma e Deus como ideias a priori diretivas, seguiu-se
uma relocação de seus lugares dentro do sistema conceitual da filosofia teórica.
Nesse novo contexto, o conceito de Deus, por exemplo, já não precisava nem podia
mais ser visto como sendo o de uma entidade existente, a realizar as mesmas funções
que, digamos, o todo-poderoso Deus veraz tinha na filosofia “pré-crítica” de Descartes
ou o papel que Kant fez voltar a ter em sua Crítica da razão prática como
instância real justificadora da moralidade.[24]
6.
O NÚCLEO
RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS
RESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES
Como resultado dos processos descritos, a filosofia tradicional tem se
contraído em um conjunto resiliente de questionamentos. Esses questionamentos certamente
incluem os das filosofias das ciências básicas, investigações de segunda ordem
que tomam essas ciências como seus objetos. Como essas filosofias dependem do desenvolvimento
dessas ciências, elas tendem a se desenvolver posteriormente a elas. Consequentemente,
não é desarrazoado supor que, com o tempo, essas filosofias venham a alcançar um
consenso como metaciência.
Contudo,
o centro de gravidade histórico dos questionamentos filosóficos, aquele cujo “status
epistêmico” mais nos cabe investigar, reside nas disciplinas tradicionais mais
centrais, importantes e difíceis da filosofia, a saber: a metafísica, a epistemologia
e a ética. Esses domínios centrais têm, até o momento, resistido à
conversão em ciência, sendo importante perceber a sua peculiaridade. Eles não estão
no mesmo nível teórico das ciências básicas, tampouco das filosofias das ciências.
O que mais chama a atenção em disciplinas
como a metafísica e a epistemologia é sua extraordinária abrangência. No
caso da metafísica, são abordados problemas últimos, como os de propriedades, substância,
existência, número, causalidade, espaço e tempo, identidade… que dizem respeito
ao mundo de modo mais geral, envolvendo objetos da experiência tanto externos quanto
internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências básicas.
Afinal, os objetos da física, da química, da biologia, da psicologia, da sociologia,
entre outros, também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo, seguem leis
causais, são ditos existentes, são enumeráveis, etc., o que torna esses
problemas objetos da metafísica.
No caso da epistemologia, a abrangência também
é notável, pois suas questões não dizem respeito a essa ou aquela forma específica
de conhecimento, como ocorre com as filosofias das ciências, mas ao conhecimento
em geral, incluindo o senso comum que chamo de humilde[25],
por exemplo, meu conhecimento de que agora estou sentado e que é noite.
Considerando a dificuldade e a relevância
desses domínios de investigação, a questão sobre qual é a natureza da filosofia
poderia, nesse ponto, ser substituída por outra não menos importante: qual é a
natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?
A questão mais séria relativa à ideia de
filosofia como antecipação da ciência não diz respeito ao fato indiscutível de
a ciência ter se estabelecido a partir da filosofia, mas à extensão dessa
derivação. É possível que o conjunto remanescente de questionamentos filosóficos,
ou ao menos parte dele, pertença essencialmente à filosofia, resistindo a sua transformação
Filósofos divergem acerca disso.
Alguns, como Keith Lehrer, propuseram a hipótese progressista de que a
filosofia é “apenas o nome coletivo do pote de problemas ainda intocado pela ciência”.[26]
Para ele, o fato de que algumas questões filosóficas aguardarem há mais de dois
milênios uma resposta consensual não implica que essa resposta jamais será
encontrada.
Outros, porém, mantêm-se mais reservados. Antony
Kenny, por exemplo, defendeu, em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás
de Aquino, uma hipótese conservadora: mesmo que a filosofia tenha, em seu
passado, entregue à ciência partes de si mesma, essas partes não seriam genuinamente
filosóficas. Só os problemas filosóficos remanescentes e centrais são genuinamente
filosóficos. Para Kenny esses incluem a epistemologia, a metafísica, a ética e a
teoria do significado. Esses problemas permanecerão filosóficos para sempre.[27]
Tentando justificar essa afirmação,
Kenny, influenciado pela ideia wittgensteiniana de representação panorâmica,
sugeriu que a filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso
conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos
de maneira a nos prover de uma sinopse, ou seja, de uma visão de nosso
próprio conhecimento em sua totalidade. Essa finalidade confere à filosofia uma
espécie de abrangência que não se encontra em nenhuma ciência particular.
Essa abrangência, argumentou Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em
Aquino permanece de muitos modos relevante:
A filosofia é tão omnibrangente
em seu objeto de investigação, tão ampla em seu campo de operação, que a elaboração
de uma sinopse filosófica sistemática do conhecimento humano é tão difícil que só
um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente completamente
excepcional pode ver as consequências mesmo dos mais simples argumentos e conclusões
filosóficas.[28]
A abrangência
exige aqui a figura do “gênio” filosófico, algo difícil de classificar e propício
à mistificação. Trata-se, ao que parece, do uso reflexivo e continuado de um
talento que une rigor lógico a uma sensibilidade quase artística, mais
relacionado à integração das faculdades do que com alguma habilidade isolada, dado
que a filosofia não possui uma área específica. Os resultados desse tipo de
pensamento dependem sobretudo de um trabalho prolongado e ruminante, geralmente
inconsciente, que é o de selecionar, de forma crítica, entre muitas ideias
ruins, aquelas poucas que são boas, em sua articulação com domínios mais amplos
do saber. Trata-se de um processo longo, independente e geralmente
inconsciente. Nietzsche explicou a inspiração do gênio como resultado de um
acúmulo inconsciente de ideias que de repente encontram um meio de se
associarem entre si, como se as comportas de uma represa de pensamentos fossem
abertas.[29] Foi isso
o que aconteceu com Einstein em uma tarde de 1905 quando, em uma conversa com
um amigo, ele percebeu que o tempo não precisa ser absolutamente definido.[30]
Obviamente, condições externas minimamente propícias precisam estar presentes
para que essas coisas aconteçam. E Einstein não fez nenhuma grande descoberta
nos últimos quarenta anos de sua vida.
No
que se segue, irei argumentar a favor da primeira e mais progressista hipótese,
embora não da maneira como você possa estar supondo.
7.
NOSSA
IDÉIA GERAL DE CIÊNCIA
Meu argumento, sugerindo que talvez todas as questões filosóficas mais centrais,
no final, sejam absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não tentarei
demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja possível. Mas pretendo
mostrar que a tese progressista, de que muitas problemáticas centrais da filosofia
podem acabar sendo absorvidas pela ciência, pode ser demonstrada plausível, na
medida em que as razões aduzidas por filósofos pra rejeitá-la podem ser removidas.
Há duas razões profundas pelas quais
muitos filósofos vieram a rejeitar a ideia de que as áreas centrais da filosofia
são antecipadoras da ciência.[31]
A primeira é que, ao pensarem em ciência, eles têm em mente sobretudo as já bem
estabelecidas ciências experimentais da natureza. Consideram, nesse contexto,
não apenas as limitações metodológicas de ciências como a física, mas também seu
caráter empírico mais direto. Aceitar a tese progressista sobre a natureza da filosofia
parece comprometer-nos com uma concepção empobrecedora e redutiva do núcleo dos
problemas filosóficos remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia
muito de sua abrangência e relevância, ao nivelar seus problemas com os das ciências
naturais. Concordar com a hipótese progressista parece, então, deixar-nos sem
nada, exceto alguma forma pedestre de cientismo, intrinsecamente estreito e
inimigo da abrangência e da abstração às quais mais pertence o genuíno filosofar.
A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista reside na adoção
implícita de concepções da natureza da ciência que marcaram profundamente o século
XX, como o positivismo lógico e as reações subsequentes à sua influência. Filósofos
da ciência só foram capazes de construir teorias interessantes e detalhadas na
medida em que tomavam como referência as ciências mais desenvolvidas. No entanto,
como nem todos os domínios científicos se encontram em estágios avançados, e
alguns sequer emergiram, tornou-se comum que esses filósofos elegessem as
ciências naturais, especialmente a física, como os modelos exemplares.
Esse procedimento pode ser frutífero quando
aplicado a essas ciências consolidadas, consideradas em si mesmas. Não obstante,
quando os resultados são interpretados como representativos da ciência em geral,
ou como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à ciência,
válido para todos os futuros candidatos, a consequência é uma concepção estreita
e limitadora dos limites da ciência. Isso se evidencia até mesmo em domínios de
uma ciência natural básica como a biologia, como o evidencia o critério popperiano
de cientificidade, baseado na falseabilidade de nossas teorias através de experimentos
decisivos. Esse critério pode se aplicar de forma razoável à física, sua ciência
modelo, como no exemplo da medição da deflexão da luz das estrelas pela curvatura
do espaço-tempo encontrada em casos de eclipse solar, um experimento crucial
para provar a teoria da relatividade generalizada, um exemplo muito lembrado
por Popper. No entanto, quando aplicado a outras áreas da ciência, esse mesmo critério se demonstra demasiado
exclusivo. Ele não se aplica a teorias psicológicas e socio-históricas, incluindo
até mesmo a teoria da evolução – uma teoria biológica cuja cientificidade ninguém
hoje ousaria negar. Afinal, que tipo de experimento seria capaz de falsificar
uma teoria que explica uma míriade de processos que se estendem por um período
de muitos milhões de anos no passado? E mesmo que se consiga testá-la indiretamente,
o insucesso em passar em semelhante teste dificilmente seria interpretado como
uma refutação decisiva.[32]
Por razões como essas penso que Popper estava certo
quando pretendeu que a sua metodologia não era descritiva do que pessoas (incluindo
os cientistas) reconhecem como pertencente à ciência, mas antes uma proposta:
uma sugestão racionalmente fundada, embora, ao que tudo indica, demasiado estreita
e artificial, sobre o tipo de investigação que merece ser chamada de ciência.[33]
A consequência da adoção de semelhante
modelo de cientificidade pelo filósofo é que ele já não pode mais admitir que a
filosofia funcione antecipação da ciência. Afinal, é evidente que os núcleos
centrais da investigação filosófica, por sua própria natureza, jamais se tornarão
capazes de acomodar as exigências impostas por modelos desta espécie.
Contudo,
penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir uma generalização da hipótese
progressista, não se aplicam ao nosso caso. Pois ao sustentar que a filosofia desempenha
uma função antecipadora da ciência, não somos obrigados a restringir o uso da
palavra “ciência” a algo semelhante às ciências particulares já estabelecidas. Tampouco
somos compelidos a aceitar o que os herdeiros do positivismo lógico nos
cantaram sobre como a ciência deveria ser.
Na verdade, o que mais naturalmente nos vem à
mente quando contrastamos filosofia com ciência parece residir na oposição
entre o pensamento conjectural – próprio da filosofia, no qual não há possibilidade
de acordo sobre os resultados – e um empreendimento não-conjectural –
característico da ciência, onde é possível alcançar acordo sobre a verdade ou
falsidade dos resultados, permitindo assim o progresso. Ademais, a ideia da
ciência como um empreendimento não-conjectural produtor da verdade concorda
muito bem com o que nós – cientistas e pessoas cultas, naturalmente, queremos
dizer com a palavra ‘ciência’.
De fato, ao julgar se uma teoria pertence ou
não ao domínio da ciência, não perguntamos em primeiro lugar se ela pode ser
submetida à confirmação ou desconfirmação empírica (embora esse aspecto, como
veremos, também tenha sua relevância). O que primeiramente perguntamos é se
a comunidade científica é capaz, em princípio, de alcançar um acordo interpessoal
sobre a verdade ou falsidade de seus resultados, mesmo que tal acordo possa
muitas vezes, mas não necessariamente, resultar de alguma forma de verificação
(ou resistência à falsificação) diretamente empírica. A possibilidade de obter
resultados consensuais entre os cientistas é um critério mais geral e decisivo,
em contraste com os métodos por meio dos quais tais acordos podem ser efetivamente
alcançados.
A
ideia de que o empreendimento científico possa ser definido a partir de sua capacidade
de gerar consenso me pareceu por demais plausível para ter passado despercebida.
Afinal, ideias originais em filosofia geralmente ou são falsas ou já foram
alguma vez pensadas. Assim, consultando a literatura acabei por encontrar a defesa
de um ponto de vista similar da parte de um físico e sociólogo da ciência, John
Ziman. Já na década de 1960, Ziman destacou a centralidade dessa ideia ao sustentar
que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos, repousa “no reconhecimento
de que o conhecimento científico deve ser público e consensualizável”.[34]
Como ele escreveu:
O objetivo da ciência não é apenas adquirir informação, nem enunciar postulados
indiscutíveis; sua meta é alcançar um consenso de opinião racional que
abranja o mais vasto campo possível...[35]
Essa ideia pode ser compreendida como o critério identificador mais
geral do que é ciência, qual seja, o conhecimento público consensualizável.
Um tipo de conhecimento público que é, ao menos em princípio, passível de obter
consenso quanto aos seus resultados entre os pares, o que não acontece realmente
com a pseudociência nem com a filosofia.
Uma vantagem de se admitir tal
critério seria a de que ela nos liberta do compromisso estrito com modelos
específicos de cientificidade diretamente derivados de alguma ciência básica bem
consolidada ou de qualquer ciência já existente. Ao adotar um conceito aberto da
natureza da ciência como contraponto à conjectura filosófica, evitamos o risco
de interpretá-la sob a ótica de um cientismo positivista.
No que se segue, aprofundarei a
concepção geral da ciência esboçada de forma preliminar por Ziman. Diversamente
de filósofos como Karl Popper, Imre Lakatos e outros, que se dedicaram ao problema
da demarcação entre ciência e não-ciência, não apresentarei uma proposta
normativa: minha abordagem será inteiramente descritivista. Pretendo
resgatar a generalidade do sentido técnico, acadêmico e culto da palavra
‘ciência’, ao tornar explícitos os principais critérios por meio dos quais indivíduos
cientificamente educados a reconhecem. Trata-se, portanto, de um procedimento
paralelo ao adotado pelo descritivista na metafilosofia (cap. I).
Com efeito, se o enfoque descritivista nos leva
à ideia de que a filosofia é uma protociência no sentido de não ser capaz de gerar
consenso, então, por questão de paridade, a “ciência” da qual a filosofia seria
“proto-” deve ser igualmente tratada dentro de uma abordagem descritivista.
Essa abordagem está em consonância com a premissa de que a filosofia, por oposição,
constitui uma investigação que é incapaz de, em princípio, alcançar consenso
autêntico quanto aos resultados no tempo em que são produzidos.
De fato, não só os domínios centrais
da filosofia, como a metafísica, a epistemologia e a ética, têm historicamente se
mostrado muito aquém da possibilidade de consenso. Também áreas periféricas,
como, digamos, a filosofia da medicina, a filosofia da computação, do cinema, do
esporte. Essas, aliás, são chamadas de filosóficas precisamente pela ausência
de acordos consensuais entre suas diferentes facções.
O que se deixa sugerir é que uma explicação descritivista
da ciência constitui o modo mais coerente de imaginar o contraste entre filosofia
e ciência sob uma abordagem metafilosófica que seja ela própria descritivista.
Somente após termos explorado essa maneira de conceber a ciência com maior
profundidade é que poderemos avaliar se a concepção da filosofia como
antecipação da ciência possui algo de restritivo.
8. POR UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVA
DE CIÊNCIA
Meu objetivo aqui não será desenvolver uma completa caracterização descritivista
da ciência, baseada na análise dos critérios de demarcação realmente usados pelos
cientistas, mas sim tornar acessíveis seus fundamentos. A intenção é explícitar
– no propósito de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da natureza da
ciência que podemos chamar de consensual-objetivista-progressivista. Segundo
essa concepção, o princípio unificador de toda a ciência é que ela consiste em uma
investigação avaliadora de verdades objetivas, possibilitando o progresso através
da obtenção de acordos consensuais autênticos entre os membros da comunidade científica
sobre os resultados dessas avaliações. Para explicar essa ideia em
profundidade e explorar suas implicações, podemos identificar três condições de
cientificidade, a saber:
(i)
PROGRESSIVIDADE,
(ii)
CONSENSUALIZABILIDADE,
e
(iii)
OBJETIVIDADE,
de modo que, como veremos, a condição (i) pressupõe (ii), que pressupõe (iii).
Essas condições são tão abrangentes que podem ser consideradas aplicáveis a todas
as ciências, tanto empíricas quanto formais.
Quanto à condição (i), de progressividade, ela
estabelece que em seu período de desenvolvimento uma ciência deva se comportar como
um empreendimento progressivo. Isso significa que suas teorias, uma vez
propostas, devam se demonstrar capazes de serem refinadas ou substituídas por
outras de maior poder explicativo, ou mesmo reforçadas por novas ideias e teorias
que, de algum modo, incrementem o poder explicativo
do conjunto. Ademais, essa condição implica que, no processo de sua constituição,
uma ciência deve ser acumuladora de conhecimento, no sentido
de permitir à comunidade de ideias reconhecer a verdade de um número crescente
de proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como:
C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz
de se revelar potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento.
A condição aplica-se primordialmente à totalidade da ciência, concebida
como um conjunto estruturado e interconectado de ciências particulares –
teóricas ou aplicadas, empíricas (naturais e humanas) ou formais (lógicas e matemáticas)
– as quais são formadas por subáreas e feixes de teorias mais ou menos inter-relacionadas.
A condição
(ii) é central. Trata-se da consensualizabilidade possível percebida por
Ziman. É preciso notar que a condição C1 pressupõe a satisfação de C2. Esta, por sua vez, é prevalente e se aplica primariamente a teorias, a
hipóteses e sistemas de hipóteses que aspiram à cientificidade por serem ao
menos em princípio, susceptíveis de comprovação consensual. De modo
derivado, essa condição também se aplica aos corpos individualizáveis de conhecimento
científico. A condição de consensualizabilidade pode ser aqui enunciada da
seguinte forma:
C2: A ciência é um empreendimento epistêmico por
meio do qual, ao menos em princípio, é possível chegar a um acordo consensual legítimo
sobre a verdade ou falsidade de suas teorias; um acordo a ser racionalmente alcançado
pela comunidade crítica de ideias que as propõe.
Para um entendimento adequado da condição S2, é necessária uma análise apropriada do conceito de comunidade crítica
de ideias por ela introduzido. Esse conceito nos permite estabelecer quem
está legitimamente intitulado a avaliar ideias supostamente científicas e de
que modo essa avaliação é possível. Há razões para a introdução desse conceito,
uma vez que a ciência é inevitavelmente um empreendimento corporativo e a pesquisa
científica uma atividade social.
Se há pessoas que não acreditam que a teoria da
evolução natural tem recebido confirmação suficiente, isso não invalida a crença
de que pode haver um acordo científico sobre a verdade dessa teoria, dado que
esse acordo efetivamente existe. Da mesma forma, se um governo totalitário decide
rotular de ciência alguma ideologia espúria, impondo um consenso obrigatório na
comunidade científica (como ocorreu na União Soviética com a genética de
Lysenko), não concluiremos disso que essa ideologia seja, de fato, científica. Tampouco
acreditamos que uma comunidade de ideias que fundamenta suas verdades na autoridade
de escrituras sagradas ou nas visões de adivinhos esteja operando como uma comunidade
científica. Ainda que haja entre seus membros um acordo, este será visto como aleatório
e não racionalmente fundamentado.
O conceito
de comunidade crítica de ideias é fundamental para justificar tais conclusões, pois,
sem essa possibilidade, a condição de consensualizabilidade do empreendimento
científico estaria inevitavelmente comprometida. A exigência de que o consenso seja
estabelecido por uma comunidade crítica de ideias deve servir para assegurar
a legitimidade ou autenticidade do consenso, uma vez que consensos espúrios
também são possíveis fora do âmbito científico, por exemplo, entre astrólogos ávidos
por aprovação. Tais condições foram aproximadas por sociólogos da ciência, como
R. K. Merton, e, principalmente, pelo filósofo Jürgen Habermas.
Para
Merton[36] a ciência
não existe sem colaboração social. Por isso, ela deve atender a quatro
princípios fundamentais que compõem seu ethos. A ciência deve ser: (1) universalista
no sentido de ser apanágio de todos os que possam contribuir para o seu desenvolvimento:
“raça, nacionalidade, religião, classe e qualidades pessoais são irrelevantes”.
Objetividade exclui qualquer forma de particularismo.”[37] A ciência deve ser (2) comunista, no sentido
de ser propriedade comum da sociedade, seus resultados não devendo ficar
restritos a indivíduos ou grupos. Ela deve ser (3) desinteressada no sentido
de ser buscada por pessoas que queiram contribuir para o bem comum e não para
ganhos pessoais, além de haver (4) ceticismo organizado no sentido de que
todas as alegações científicas devem ser criticamente examinadas de maneira neutra,
sob o preço de limitar o escopo da atividade científica. As condições, estabelecidas
por Merton com o objetivo de inventariar o ethos social da ciência, não
deixam com isso de contribuir, como veremos, para justificar a legitimidade do
consenso científico.
Uma teoria
que visa explicitamente conferir legitimidade ao consenso foi a proposta por
Jürgen Habermas, por meio de sua teoria consensual da verdade.[38] Sua sugestão
foi a de que a decisão sobre o que conta como verdade deve repousar em uma discussão
(Diskurs) conduzida sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale
Sprachsituation), que adiciono às anteriores, sem me importar com redundâncias:
(5) Acesso irrestrito ao discurso: Todos
os participantes devem ter o direito de participar do diálogo. Ninguém pode ser
excluído arbitrariamente.
(6) Igualdade de oportunidades de expressão:
Todos devem ter a mesma chance de apresentar afirmações, fazer perguntas, levantar
objeções e expressar necessidades ou desejos.
(7) Liberdade de expressão: os participantes
devem poder se manifestar sem coerção externa, ou seja, sem receio de punições,
manipulações, pressões sociais ou artifícios retóricos.
(8) Veracidade: os interlocutores devem
ser sinceros em suas intenções, guiados por propósitos veritativos (isto é, que
ambicionam o verdade). Mentiras ou manipulações comprometem a validade do discurso.
(9) Compreensibilidade: a linguagem utilizada
deve ser clara e compreensível para todos os envolvidos.
(10) Justificabilidade racional: as afirmações
feitas devem poder ser justificadas racionalmente, permanecendo sempre abertas
à crítica.
Em
síntese, o que deve prevalecer é a “força sem esforço do melhor argumento” e não
o argumento de autoridade. Embora esse conjunto de condições possa não ser
suficiente para garantir a verdade, ele é necessário: a verdade só pode
resultar de um consenso obtido por meio de um discurso livre de coerções, no
qual os participantes buscam o entendimento mútuo com base na força do melhor argumento,
e não por imposição de poder.
A teoria de Habermas não foi concebida para testar
os requisitos da ciência, mas para avaliar a pretensão de verdade em geral. No
entanto, ao nos restringirmos ao âmbito científico, podemos ainda destacar uma
condição (11) de competência: todos os participantes devem ter suficiente
competência na área que se propõe a discutir.
O que chamei de comunidade crítica de ideias
nada mais é do que uma sociedade de ideias que satisfaz todas essas condições
em grau suficiente. Digo “em grau suficiente” porque, quando considerarmos a
prática concreta da ciência, observamos que ela sempre falha em satisfazê-las integralmente.
Ainda assim, se essas condições não forem satisfeitas em um grau suficiente, é
certo que a ciência, enquanto empreendimento corporativo, se tornará profundamente
falha, quando não impossível.
Nossa questão é: seriam essas onze condições (todas
elas bastante razoáveis), suficientes para garantir a legitimidade do
consenso científico? Considere a pseudociência dialética praticada por Trofim Lysenko
na Rússia de Stalin. Lysenko era um charlatão que rejeitava a genética clássica
e que defendia a aquisição de herança genética pelas plantas, além de métodos inúteis,
como o de tratar as sementes com frio para forçar o crescimento. Stalin acreditava
cegamente em Lysenko, e seu governo perseguia os que ousassem discordar. Os resultados
foram fracassos sempre justificados por fatores estranhos à sua pseudociência.
Nós diríamos que na Rússia de Stalin não existiam
as condições para um consenso autêntico, pois estavam ausentes as condições (5)
de acesso irrestrito ao discurso, (6) de igualdade de oportunidade de expressão,
(7) de liberdade de expressão (principalmente) e (8) de veracidade, conforme
propostas por Habermas. Também as condições mais gerais de Merton não foram, em
parte, satisfeitas. Faltava a satisfação das condições (2) de universalismo, (3)
de desinteresse e (4) de criticismo organizado. E mesmo a condição (11), de suficiente
competência de parte dos participantes, não era, obviamente, satisfeita, como consequência
da não-satisfação das demais condições.
Algo muito semelhante pode ser dito da ciência
ariana do totalitarismo nazifascista, que rejeitava as contribuições feitas por
cientistas judeus.
Que
dizer, por comparação, de práticas como a leitura de cartas e a astrologia? Também
elas dificilmente satisfazem a várias das condições acima. É praticamente impossível
que satisfaçam a condição (4) de criticismo organizado e a condição (10) de abertura
à crítica. Isso é fácil de demonstrar. Do ponto de vista da física, a astrologia
é absurda. Carl Sagan notou que a força da gravidade da barriga do obstetra sobre
o bebê no momento do parto é maior do que a força da gravidade da Lua nesse
mesmo instante. No plano metodológico, Carl Popper destacou um artifício
recorrente na astrologia: o recurso à vaguidade. Se as previsões forem
suficientemente vagas, mesmo que pareçam falhar, tornam-se passíveis de reinterpretação
pelo astrólogo, o que as torna irrefutáveis.[39]
James
Randi, o mágico profissional que se propôs a desmascarar as fraudes da pseudociência
e que ofereceu o prêmio de um milhão de dólares a quem provasse a existência de
forças ocultas paranormais e coisas do gênero, nunca conseguiu conceder o prêmio
a nenhum dos candidatos Segundo Randi, embora algumas pessoas fossem realmente charlatões,
a maioria delas acreditava honestamente em seus poderes paranormais. Em um experimento
conhecido, a astrologia Randi apresentou a uma classe de alunos uma folha de
papel para cada um, no qual, com base no dia e na hora de seu nascimento, fazia
previsões astrológicas. A grande maioria dos alunos considerou as previsões acertadas.
Mas logo após, ele pediu que trocassem as folhas com as dos colegas e, – surpresa:
todas as previsões eram as mesmas.[40] A
experiência não só revela a inutilidade da astrologia, mas também a força do autoengano
na mente humana.
Parece
que, juntando as condições até agora consideradas, tanto as de Merton quanto as
de Habermas, somos capazes de estabelecer uma distinção sólida entre consenso
legítimo e ilegítimo. Resumindo as condições mais importantes, uma comunidade
crítica de ideias deve satisfazer minimamente as seguintes exigências:
(a)
Competência: os participantes devem ser igualmente bem treinados
e informados sobre os temas que propõem avaliar (os cientistas).
(b)
Veracidade: eles devem estar comprometidos na busca pela
verdade e dispostos a submeter suas ideias a um escrutínio crítico racional e imparcial.
(c)
Transparência: eles devem ter pleno acesso à informação, iguais
chances de avaliar ideias e direitos equivalentes de intercâmbio intelectual.
(d)
Liberdade: eles não podem estar sujeitos a qualquer forma
de coerção em seus procedimentos de avaliação e conclusões, exceto pela pressão
legítima imposta pelas melhores evidências disponíveis.
Os dois primeiros critérios dizem
respeito às características individuais dos membros de uma comunidade crítica de
ideias, enquanto os dois últimos referem-se às propriedades da própria comunidade
de ideias em relação aos seus integrantes.
Como já foi notado, é importante enfatizar que
esses critérios formam uma constelação ideal que nunca chega a ser completamente
satisfeita por nenhuma comunidade científica. Contudo, eles devem ser preenchidos
ao menos em uma medida suficiente, posto que nenhuma comunidade científica pode
alcançar confiabilidade sem que eles sejam minimamente satisfeitos.
De fato, ao aceitarmos uma descoberta científica
como verdadeira (por exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor
que tais critérios estão sendo suficientemente satisfeitos: que os cientistas
são honestos, que não estão sendo pressionados a manipular dados, entre outros
aspectos. Daí a importância da replicação experimental por outros laboratórios.
Foi o que ocorreu no caso da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso
a partir de uma célula adulta. Inicialmente, outros laboratórios não conseguiam
repetir o difícil experimento de clonagem. Foram necessários dois anos até que o
problema fosse resolvido.
Além disso, o cientista envolvido em pesquisa
deve conduzir seu trabalho sob a constante suposição de que, em algum momento, seus
resultados serão avaliados por uma comunidade crítica de ideias, capaz de
aplicar critérios que assegurem sua legitimidade consensual. Essa suposição
deve orientar uma avaliação pessoal contínua do que está sendo produzido, mesmo
que tal avaliação não se concretize, como aconteceu com Gregory Mendel, ou que
talvez nunca se concretize. Assim concebida, a condição C2 – de acordo consensual legítimo quanto aos resultados – torna-se a exigência
central para que possamos aceitar uma teoria como pertencente ao domínio da ciência.
Stop=================
O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias
dentro de uma comunidade crítica de ideias requer ainda uma terceira condição
de cientificidade, uma que irá trazer alegria aos filósofos da ciência mais
tradicionais. Como já notei, o acordo consensual sobre a verdade entre os membros
de uma comunidade de ideias só é possível se houver um acordo prévio acerca de assunções
que envolvem os critérios e métodos de avaliação da verdade. Dessa forma, a possibilidade
de satisfação da condição C2 pressupõe
a satisfação de C3, uma exigência
material que a comunidade crítica deve atender para ser considerada científica.
Trata-se da condição de objetividade, que pode ser formulada da seguinte
maneira:
C3: A comunidade crítica de ideias responsável pela
investigação científica deve se encontrar fundamentada em um acordo consensual prévio
sobre o que conta como pressupostos fundamentadores e metodologias
que servem à avaliação interpessoal das teorias nela desenvolvidas. O alcance de
um consenso legítimo sobre esses pressupostos confere objetividade ao discurso
científico.
O acordo sobre a verdade ou falsidade
de teorias exige, portanto, um acordo consensual prévio acerca dos pressupostos
fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem ambicionar
um esclarecimento exaustivo e entendendo por domínio epistêmico o conjunto
daquilo que pode ser tomado como objeto em uma área do conhecimento científico,
proponho a seguinte lista dos pressupostos
fundamentadores da objetividade:
(i)
Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados
elementares (empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual
a teoria pertence;
(ii)
Pressupostos sobre o que pode ser reconhecido como questões
adequadamente formuladas dentro desse domínio (a teoria deve responder a questões
significativas, relevantes etc.);
(iii)
Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria
adequadamente construída no domínio epistêmico (tanto em sua consistência
interna quanto em sua coerência com o sistema de crenças que o constitui);
(iv)
Pressupostos
sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria
em seu domínio epistêmico (o que implica algum tipo de correspondência com
os fenômenos que a teoria se propõe a explicar).
Esses pressupostos devem ser concebidos
como abrangendo um espectro de amplitude máxima. A admissão desses fundamentos de
objetividade permite estabelecer uma ponte entre duas concepções de ciência:
por um lado, a ciência como passível de conhecimento passível de consenso
público, obtido por uma comunidade crítica de ideias: por outro, a concepção tradicional
do método científico nas ciências empíricas, entendido como indutivo-dedutivo ou
hipotético-dedutivo.
Essa
conexão se revela na coincidência entre as condições da aplicação desses métodos
científicos e os pressupostos de objetividade nas ciências empíricas. Vejamos:
o pressuposto (i) está associado à questão da generalidade, ao poder explicativo
das teorias científicas; o pressuposto (ii), à questão da simplicidade e da clareza
das questões formuladas; o pressuposto (iii), à coerência, ao entrincheiramento
e à cooperação explicativa; já o pressuposto (iv), à justificação, à
explicação, à testabilidade e à capacidade de predição das teorias científicas.
São tais associações inevitáveis? Poderia
haver um acordo consensual legítimo, sem que as condições de objetividade estivessem
sendo satisfeitas, digamos, pela comunidade supostamente crítica dos astrólogos,
dos videntes de bolas de cristal e dos leitores das folhas de chá? Penso que
não. É indispensável que os pressupostos fundamentadores constitutivos da condição
de objetividade sejam satisfeitos para que qualquer consenso seja considerado legítimo.
É necessário, por exemplo, que a teoria tenha capacidade de previsão confirmada,
o que está abrangido pela condição (iv).
Mas, dirá o cético: o que garante que tenha
de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece ser problemática, pois
o cético espera uma solução a priori – uma garantia lógica ou necessária
– que, de fato, não existe. Trata-se aqui de uma questão empírica e
experiencial. Sabemos, por experiência, que o consenso legítimo só se estabelece
quando as condições de objetividade são satisfeitas.
A necessidade de se admitir condições de objetividade
é uma verdade experiencial incontornável, que comunidades críticas de ideias têm
sido forçadas a aprender para sua própria constituição. Os seres humanos simplesmente
verificaram, talvez a contragosto, que o consenso legítimo só pode ser atingido
quando tais condições são satisfeitas. O fato de que a aceitação das condições
de objetividade não decorre de uma exigência a priori explica a tentação
que sentimos de prescindir do esforço que ela demanda. Uma definição de ciência que não reconheça
essas condições experienciais de objetividade – que variarão para cada domínio
da ciência –, da astrofísica à história social, estará fadada ao relativismo.
O que acabo de apresentar pode ser denominado
uma definição progressivista-consensualista-objetivista do empreendimento
científico em geral. Assim compreendidas,
as condições de progressividade, de consensualidade e objetividade constituem um
critério descritivista suficientemente confiável para a demarcação entre ciência
(seja formal ou empírica) e não-ciência, e aquilo que não pode ser considerado
científico, independentemente de sua natureza. Diante disso, passemos agora a
examinar o que ocorre quando comparamos essa completa definição geral de ciência
com nossa caracterização do empreendimento filosófico.
9.
POR QUE CONCEBER
A FILOSOFIA COMO UM
EMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?
O ponto
a ser destacado é que a concepção consensualista de ciência recém-exposta coloca
esta última em contraste direto com a filosofia. Diversamente da ciência, a
filosofia não é progressivista, consensualista nem objetivista. Ainda assim, ambas
compartilham uma característica comum: a existência de uma comunidade crítica
de ideias, ainda que isso demande qualificações.
Tanto
em filosofia quanto em ciência, uma certa comunidade crítica de ideias deve ser
pressuposta, mesmo que, por vezes, de modo contrafactual. Um filósofo como Nietzsche
escreveu por dez anos em isolamento, tendo em mente, de modo contrafactual, uma
futura comunidade de ideias capaz de avaliar o que ele escrevia.
Uma das condições é que os filósofos tenham competência
em suas atividades. Como essa competência não é a mesma que a dos cientistas, algumas
considerações precisam ser feitas acerca dela. Uma de suas condições pode ser a
familiaridade com o desenvolvimento da ciência, ao menos em seus princípios, em
conexão com a área da filosofia investigada. Não se pode admitir filosofia que
contrarie verdades científicas bem estabelecidas. Afora isso, a competência filosófica
reside no domínio de uma tradição de discussão crítica. Esse domínio pode ser
restrito: Hume, por exemplo, praticamente se encontrava restrito à tradição
inglesa, na qual se inseria, pois pouco sabia da tradição grega. Wittgenstein
conhecia apenas o que aprendeu com Russell e o que ouviu em Viena e Cambridge,
reagindo criticamente. O ideal, porém, é que o domínio da tradição seja o mais
amplo possível, ao menos no que importa ao domínio ou subdomínio considerado, como
ocorreu com Kant e Aristóteles.[41]
Uma
característica da comunidade crítica de ideias na filosofia acadêmica é que,
mesmo não sendo capaz de acessar diretamente a verdade científica, é pelo menos
capaz de identificar aquilo que a tradição tornou improvável ou claramente falso,
pois, a longo prazo, a exclusão das ideias implausíveis é uma das poucas coisas
de que a comunidade filosófica pode se vangloriar. Além disso, filósofos supostamente
buscam a verdade e se dispõem (mesmo que aos resmungos) a submeter suas teorias
filosóficas ao livre escrutínio crítico de outros pensadores igualmente
competentes, de modo a satisfazer as condições (a)-(d) constitutivas de uma
comunidade crítica de ideias.
Como já se percebeu, a comunidade crítica de
ideias pode, em ciência, e certamente também em filosofia, sofrer limitações,
distorções e patologias. Um exemplo clássico em filosofia foi o da coação religiosa
na filosofia medieval: a condição (d) de liberdade não era satisfeita em tudo o
que, de algum modo, pudesse conflitar com os dogmas religiosos. Atualmente, a filosofia
anglófona enfrenta certas limitações, como o escolasticismo, o
cientificismo, a fragmentação e a hiperespecialização. Aspectos denunciados
por Susan Haack como sintomas de uma comunidade acadêmica disfuncional.
O cientificismo pode se manifestar tanto como
um formalismo vazio[42]
quanto como um empirismo objetivista, como no caso do behaviorismo dos sentimentos.[43]
Ele está intimamente ligado à fragmentação e à hiperespecialização em filosofia,
pois, para mimetizar filosoficamente um domínio científico, precisamos hipostasiá-lo,
excluindo tudo aquilo que possa colocá-lo em questão. Em um mundo no qual o
conhecimento se avoluma muito além de nossa capacidade de assimilação, especializar-se
torna-se uma matéria de sobrevivência intelectual – dividir para conquistar, e
nisso o redutivismo torna-se a palavra de ordem. Contudo, essa disfuncionalidade
arrisca-se a turvar as condições de consenso legítimo de (a) a (d), que são as
mais apropriadas para a prática filosófica.[44]
Importa
notar que mesmo constituindo uma comunidade crítica de ideias, entendida como uma
comunidade fundada em uma tradição de conhecedores da matéria e das áreas adjacentes,
as reflexões dos filósofos não têm sido capazes de satisfazer nenhuma das três
condições de cientificidade aqui consideradas: faltam progresso linear,
consenso e objetividade. Isso nos permite caracterizar a filosofia de modo puramente
negativo, como um empreendimento veritativo realizado sob o suposto de uma comunidade
crítica de ideias na qual tais condições não chegam a ser satisfeitas. As condições
negativas incluem, primeiro:
NC1: A filosofia
falha em satisfazer a condição de progressividade,
pois
não é um empreendimento progressivo capaz de acumular
conhecimento de
maneira linear.
Timothy Williamson defendeu,
com razão, uma visão incremental da filosofia, segundo a qual ela progride
por meio do aumento do rigor argumentativo, do refinamento gradual e da acumulação
de insights.[45] Não há dúvida
acerca disso; há, inclusive, pequenos progressos substanciais, na medida em que
ideias outrora consideradas plausíveis se tornam hoje pouco palatáveis ou
arcaicas. O Timeu, obra teológico-especulativa escrita na velhice de
Platão, foi a mais influente na Antiguidade e na Idade Média. Após a Renascença,
porém, a República passou a ser redescoberta como o diálogo mais
importante, devido à argumentação racional e dialética relativa às ideias
centrais do sistema.
Esse movimento de avanço não é, de modo
algum, linear, como ocorre, por exemplo, na biologia. Ele é quase imperceptível,
composto por progressos e retrocessos parciais. Trata-se de um arrastado acúmulo
de hipóteses – algumas pontualmente corretas – sem que saibamos ao certo quais estão
de fato certas ou em que medida. O melhor que a filosofia tem conseguido é, em
geral, afastar hipóteses demasiado implausíveis... Como certa vez notou Bertrand
Russell, filósofos são como os “Pais Peregrinos”, que iam sempre mais para o Oeste,
fugindo da civilização, aqui entendida como a ciência, que ao despontar põe fim
ao labor filosófico ao submeter a imaginação à razão. Diversamente do cientista,
o filósofo busca preservar para si um espaço para o exercício livre da imaginação.
Em
filosofia o que se acumula é um conteúdo hipotético no sentido de que nossas
conjecturas filosóficas podem ser tornadas mais complexas, aumentando em número
e mesmo em plausibilidade. Ela acumula um número sempre maior de verdades possíveis,
as quais tendem a tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas em seus
diferentes domínios sempre mais estreitas.
O
caráter acumulativo de hipóteses, mas não necessariamente de conhecimento, comum
à filosofia, é facilmente perceptível quando comparamos diferentes teorias filosóficas
do passado. Considere, por exemplo, os sistemas de Kant e Hegel. Kant foi um idealista
transcendental e um realista empírico, com preocupações essencialmente epistemológicas
sobre nossa estrutura cognitiva e de seus limites. Hegel, por sua vez, foi um
idealista absoluto, interessado numa filosofia do processo, ventrada na
evolução histórica da humanidade e da cultura moral, estética e religiosa. Cada
sistema parece iluminar diferentes esferas especulativas; cada um parece conter
alguma verdade, e ambos juntos parecem oferecer mais verdades do que
isoladamente.
O problema
é que não estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde essas
verdades se encontram, em que medida, e tampouco excluir dúvidas céticas sobre elas,
e menos ainda comparar os sistemas de modo conclusivo. Se tentarmos cotejar, por
exemplo, a filosofia de Heráclito com a de Parmênides, ou a de Spinoza com a de
Leibniz, entraremos quase no domínio da incomensurabilidade.
As razões da incomensurabilidade são facilmente
explicáveis: um primeiro filósofo parte do grupo de premissas (A) para chegar a
(M) um outro filósofo inicia do grupo de premissas (B) para chegar a (N). Não é
possível comparar nem os valores de (A) e (B), nem os valores dos procedimentos
para chegar aos resultados (M) e (N). Ao menos até o final do século XIX, quando
a filosofia ainda era o feito de indivíduos isolados, essa descrição é particularmente
apropriada.
A filosofia
se distingue da ciência por não ser capaz de satisfazer as condições C1,
C2 e C3. A condição C1 não tem sido satisfeita pela filosofia porque esta última não satisfaz
a sua pré-condição, que é a de consensualidade. Daí que com relação a C2
para a filosofia vale:
NC2: A filosofia
falha em satisfazer a condição de consensualidade,
Uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade
de
suas hipóteses pode ser alcançado dentro de sua
comunidade
crítica
de ideias.
E isso acontece porque de um modo ou de outro a condição de objetividade
não chega a ser satisfeita:
NC3 A filosofia
falha em satisfazer as condições de objetividade S3,
posto que o filósofo não é capaz, diante
da comunidade crítica
de ideias,
de estabelecer pressupostos fundamentadores sobre
os quais haja consenso.
Com efeito, o filósofo não é capaz de satisfazer os quatro pressupostos
fundamentadores da objetividade. Ele não é capaz de:
(i)
alcançar
aceitação geral quanto ao que
pode ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;
(ii)
assegurar
a outros filósofos que as suas
questões não são basicamente enganosas ou meros pseudoproblemas;
(iii)
obter consenso sobre a adequação de suas teorias (coerência interna
e externa);
(iv)
desenvolver
procedimentos de avaliação da verdade, isto é, argumentos aceitáveis por todos os especialistas, que
demonstrem que a sua teoria está em conformidade com o que ela tenta explicar,
seja qual for a sua natureza.
Como C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos (i)-(iv), fica claro que, em última
instância, a filosofia não se configura como ciência, pois não é capaz de satisfazer
de forma suficiente as condições de objetividade exigidas. No caso da antecipação
das ciências naturais, isso significa que a filosofia, em seu tempo, não foi
intrinsecamente capaz de satisfazer as condições impostas pelos métodos científicos,
para desgosto dos positivistas tradicionais. Afinal, são as condições de progressividade,
consensualidade e objetividade que expandem o horizonte científico para muito
além do que antes parecia possível.
Concluímos, pois, que essas três condições —
progressividade, consensualidade e objetividade — são as que correspondem
exemplarmente aos critérios que intuitivamente empregamos ao distinguir o que
pertence ao domínio da ciência daquilo que permanece restrito ao campo da
filosofia.
10. ALGUMAS
CONSEQUÊNCIAS DO QUE FOI PROPOSTO
Ao tratarmos a filosofia como um empreendimento antecipador da ciência,
a adoção da concepção geral da ciência recém-exposta conduz a alguns
desdobramentos interessantes.
Primeiramente, como os critérios propostos
para definir o que pode ser considerado ciência deixam em aberto os modos
concretos pelos quais uma investigação pode vir a ser considerada científica, a
identidade mesma da investigação que haverá de nascer da atividade filosófica
permanece
Sob essa concepção ampliada de
ciência, mesmo teorias especulativas de largo alcance – como a lei dos três
estágios de Comte, a tese de Max Weber sobre o desencantamento do mundo e suas
consequências, a metapsicanálise freudiana, a tese da dessublimação repressiva
de Herbert Marcuse. Para isso bastaria que fossem reforçadas e mesmo até mesmo corrigidas
por outras descobertas constitutivas de um pano de fundo de informações e métodos
que as tornasse capazes de alcançar acordo consensual em uma comunidade crítica
de ideias.
É nesse ponto que vale
considerar o conceito de consiliência, tal como desenvolvido por Susan Haack.
De acordo com ela:
O que eu quero dizer é que existe um mundo real, um “universo pluralista”,
para tomar de empréstimo a frase de James, e que todas as verdades sobre esse complexo
e variado mundo, de algum modo, se combinam.[46]
O pressuposto da unidade da realidade funciona aqui
como uma ideia normativa: se admitimos que a realidade é unificada, então
as teorias científicas devem ser capazes de se complementar e reforçar
mutuamente em sua relação com a verdade. O exemplo mais proeminente, dentre
muitos outros, é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética
mendeliana, que, por sua vez, corroboram e são corroborados pela teoria da
evolução natural, a qual é corroborada por dados paleontológicos e geológicos...
A inovação
de Haack consistiu em aplicar a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Se
diferentes subáreas da filosofia possuem elementos de verdade e se interligam, então,
pelo princípio da consiliência, esses elementos devem se reforçar mutuamente. Aplicando
a ideia de consiliência à suposição de que a filosofia é protociência, isso significa
que ideias pertencentes a áreas de conhecimento complementares a um certo domínio
da filosofia, sejam elas filosóficas ou não, devem ser capazes de reforçar as ideias
verdadeiras pertencentes a esse mesmo domínio e enfraquecer as ideias falsas. Essa
assunção nos leva a uma conclusão provocadora: a sobreposição de verdades
vindas múltiplas direções é capaz de apertar os nós da teia do conhecimento de
modo a aproximar gradualmente resultados inter-relacionados da especulação filosófica
de um consenso legítimo sobre sua verdade, ou seja, da ciência entendida aqui
como saber objetivo, consensualizável e objetivo. Se aceitarmos isso, então
muito do pensamento filosófico, especulativo ou não, pode, em princípio, contribuir para a ciência ou até mesmo tornar-se
científico, na medida em que puder ser reconstruído, depurado e desenvolvido de
modo a permitir um acordo consensual legítimo realizável sobre o que nele com razão
se pretende verdadeiro, sem ter de ser para isso fragmentado ou forçadamente
reduzido ao que não é.
Mesmo uma concepção filosófica da natureza da
filosofia, como a que está sendo desenvolvida no presente livro, poderia deixar
de ser meramente filosófica para se tornar científica caso, ao ser aplicada a
si mesma, se revele capaz de alcançar consenso legítimo quanto aos seus
resultados. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como em
grande parte uma protociência antecipadora da ciência, em conformidade com a concepção
progressivista-consensualista-objetivista aqui esboçada, resista às críticas e possa
ser desenvolvida de forma mais adequada e completa. Suponha, ainda, que no
futuro essa concepção venha a ser confirmada pela emergência de novos campos
científicos que substituam gradualmente nossas atuais conjecturas. Uma consequência
disso será que uma comunidade crítica de ideias acabará por aceitar a verdade da
ideia de que (i) a característica mais geral da filosofia é a de não ser
passível de obter consenso legítimo e objetivo quanto aos seus resultados; e
(ii) ao menos em seus centros de gravidade mais tradicionais, ela se configura
como uma protociência no sentido de ser capaz de se transformar-se em um campo
susceptível de acordos consensuais autênticos, tornando-se, assim, cientificamente
inobjetável. A ideia de que a filosofia é protociência terá, nesse caso,
satisfeito a condição geral de cientificidade que ela própria estabeleceu.
Como já foi notado, uma consequência relevante
de nossa concepção de ciência, no que tange à filosofia, é que ela justifica o
afastamento das peripécias cientificistas regressivas. Em muitos casos não
precisamos eliminar a abrangência de nossas visões filosóficas ao admiti-las como
substituíveis por uma diversidade de teorias científicas. Algo diverso disso também
pode ser esperado. Ao refletir sobre a interdependência dos problemas filosóficos
pertencentes a centros de gravidade da filosofia (como os da metafísica, da epistemologia,
da filosofia da mente, da teoria da ação, da ética...) recordo a observação de
um filósofo, possivelmente Wittgenstein, segundo o qual a dificuldade da filosofia
reside no fato de que seus problemas são tão interligados que um problema só poderá
ser inteiramente resolvido quando todos os outros também o forem. Embora essa observação
seja exagerada, ela revela uma maneira pela qual nossos problemas filosóficos centrais
podem dar lugar à ciência: não tanto por meio da construção de teorias diretamente
demonstráveis pelos fatos empíricos que pretendem explicar, mas por meio da consiliência,
ou seja, por meio do suporte veritativo que teorias são capazes de oferecer umas
às outras, pela sua cooperação explicativa, pelo melhor entrincheiramento do que
elas possuem de verdadeiro e, finalmente, por sua concordância, por mais indireta
que seja, com os fatos, sejam lá quais forem.
Há, finalmente, algumas conclusões a extrair da
constatação de que, em muito da investigação filosófica, o suporte interteorético
advindo da consiliência é capaz de prevalecer como meio de avaliação da verdade.
A primeira conclusão é que há poucas razões para abandonar a crença
otimista de que, mesmo nos domínios mais refratários da tradição filosófica,
cedo ou tarde seremos capazes de encontrar um caminho para um acordo consensual
legítimo, mesmo que seja por meio de completas reconstruções, transformações e
rejeições, ou mesmo por desfazer problemas por meio de uma crítica (terapia) da
linguagem. A existência de apenas cinco ciências básicas parece reforçar essa
expectativa. Por outro lado, há casos como as filosofias do processo – entre elas,
a filosofia política – cuja verdade, dependendo de uma história humana
imprevisível, contraria a possibilidade de passar a um estágio de consenso
generalizado.
A segunda conclusão é que, à
luz do princípio da consiliência, não há razão para se esperar que os problemas
centrais da filosofia se dispersem em uma multidão de microteorias sem qualquer
expectativa de consenso, ou então que sejam alcançados consensos legítimos, mas
que estes sejam sobre uma multidão de palpites microteóricos de escopo limitado
e mutuamente independentes. Ao contrário, espera-se que eles sejam abordados
por teorias científicas complexas, mais ou menos abrangentes, dotadas de status
epistêmico próprio e interconectadas entre si. Nesse cenário, apenas a forma
conjectural dos problemas tenderá a desaparecer e não tanto a sua abrangência.
Essa segunda
conclusão conduz a uma digressão sobre a situação atual da filosofia. Diversos
autores têm apontado para a principal falha da filosofia analítica anglófona atual.
Ela consiste em uma espécie de escolasticismo,[47] hoje
manifestada sob os rótulos de fragmentação,[48] cientismo[49] e
hiperespecialização[50] e
superficialização.[51] Como
Susan Haack escreveu, na filosofia:
Hiperespecialização impede o
progresso em vez de possibilitá-lo, pois significa que tempo e energia são
inevitavelmente desperdiçados em um nicho de problemas que não irão sobreviver
às teorias de meia-boca que lhes deram origem.[52]
Haack cunhou
a expressão “especialização prematura” para designar a forma mais prejudicial de
cientificismo fragmentador do campo do conhecimento. Como ela notou, a especialização
é bem-vinda nas ciências, cujos fundamentos sólidos permitem avanços cumulativos.
Já na filosofia, a especialização prematura ocorre porque seus fundamentos, embora
dogmaticamente aceitos por seus praticantes, carecem de solidez. O resultado é
que as “hipóteses curiosas” que esses filósofos inventam não conduzem a lugar algum,
além de ocupar seus adeptos – que Haack descreve com ironia como cliques autopromotoras,
cartéis de citação entre pares e produtores de literatura de nicho, só acessíveis
aos seus cúmplices... – por um bom número de anos até que o tédio se instala e
elas são abandonadas, sendo então substituídas por novas conjecturas igualmente
estéreis,[53] sem que
problema algum fique resolvido.
Pior
do que isso, eu acrescentaria, é quando essas microteorias sobrevivem e se
subdividem indefinidamente em submicroteorias. Um exemplo emblemático é a
teoria metalinguística da referência de nomes próprios, na filosofia da
linguagem. A ideia central, formulada há décadas, é que um nome próprio se
refere por meio de uma descrição do tipo “o portador de N”, em que N é o
próprio nome. Essa proposta é claramente insuficiente, quando não francamente
circular, pois tudo o que consigo aprender quando me dizem que o portador do
nome ‘Aristóteles’ é que o nome ‘Aristóteles’ deve possuir um referente (caso
contrário, não seria um nome próprio). Ainda assim, criou-se até hoje dezenas
de variações conceituais e metodológicas desse pequeno palpite teórico
implausível, sustentando uma discussão especializada que só não parece estéril
para os especialistas que despenderam anos nela envolvidos. Fenômenos semelhantes
podem ser encontrados no interior de outros domínios da filosofia, como a metafísica,
a filosofia da mente, a ética, etc.
O problema com esses procedimentos é que eles
não são tão inócuos quanto parecem, posto que eles além de não serem mais do
que exercícios intelectuais que permitem a filósofos acadêmicos discutir,
escrever e publicar, muito facilmente bloqueiam o surgimento de inovações disruptivas
capazes de reconfigurar todo o campo de investigação ao refazer os fundamentos,
uma vez que tais inovações seriam destrutivas para toda uma indústria de
questiúnculas filosóficas.[54]
Gostaria
de fazer aqui um pequeno aparte para lembrar que estou me restringindo à
discussão de inovações disruptivas. Inovações não-disruptivas costumam ser bem
acolhidas, pois são facilmente avaliáveis e não ameaçam o trabalho dos
especialistas nem a hierarquia intelectual. Por isso, é possível encontrar excelentes
estudos históricos e investigações pontuais – como os que figuram, por exemplo,
na Stanford Encyclopedia of Philosophy. As exceções, no entanto, apenas
confirmam a regra.)
Voltando
ao que estava dizendo, embora se possa admitir que esses procedimentos sirvam
para “sustentar a conversação” (“keep the conversation going”, no dizer
de Richard Rorty), possuindo ao menos um valor motivacional, na prática eles
funcionam como obstáculos, e não como estímulos, à produção de desenvolvimentos
verdadeiramente disruptivos em filosofia. Tenho uma experiência pessoal que
ilustra bem esse ponto. Refiro-me ao meu livro How do Proper Names Really
Work?, publicado pela editora De Gruyter em 2023. Trata-se do
resultado final de uma investigação que começou por volta de 2007 e da qual
resultaram várias outras publicações.[55] Creio
ser ele um exemplo concreto de como toda uma crescente plêiade de hipóteses e teorias
resultantes de especialização precoce em teoria da referência pode ser desmantelada
por meio de uma cuidadosa reconfiguração dos fundamentos teóricos tidos pela mainstream
como intocáveis, incluindo, aí, o legado de figuras sacralizadas como Saul Kripke.
Curiosamente, a teoria complexa que emergiu dessa investigação nada tem a ver
com a forma fragmentária, por vezes altamente formal e especulativa, à qual
estamos habituados. Tampouco se encaixa em moldes conhecidos, aproximando-se, no
entanto, da ciência, não por mimetismo metodológico, mas pela densidade
explicativa e pela coerência interna que alcança.
Não é possível
explicar essa teoria aqui, mas posso dar uma ideia. Ela se fundamenta em esquemas
de regras de identificação de nomes próprios que substituem os antigos feixes
de descrição e que são extremamente flexíveis em sua aplicação. Devidamente associados
a nomes próprios, esses esquemas são preenchidos por regras que os transformam
em designadores rígidos, o que acaba por dissolver o contraste entre nomes
próprios e descrições definidas. O que distingue essa teoria em termos de
cientificidade é sua operacionalidade: se a regra de identificação de um nome próprio
for implementada como programa em um computador, juntamente com os dados relativos
às condições de aplicação por ela possivelmente requeridas, o sistema será capaz
de reconhecer o portador do nome. Isso seria impraticável para as teorias
anteriores, todas dependentes de uma compreensão dogmática de fundamentos
precários, oriundos de um dos dois campos opostos, liderados, respectivamente, por
John Searle (internalismo descritivista, com viés empirista) e Saul Kripke
(externalismo causal-histórico, com viés formalista).
Em minha opinião, trata-se de um trabalho
profundamente disruptivo, que seria impossível de ser realizado se, durante
todos esses anos, eu não vivesse em quase completo isolamento, sem ser forçado
a agradar ninguém nem a competir, publicando um artigo após outro em um ritmo
industrial.
Contudo,
até onde sei, o livro não recebeu qualquer atenção da parte dos especialistas na
área, talvez por não ter vindo de cima para baixo em uma hierarquia que, há
muito, se tornou infértil. O caso ilustra bem um efeito do que Haack denunciou.
A filosofia fragmentária, feita de palpites teóricos que se acumulam e se
multiplicam em discussões cada vez mais escolásticas, acaba por se tornar uma barreira
à avaliação e aceitação de teorias filosóficas robustas e mais próximas da
ciência. A situação real da filosofia do século XXI é, no mínimo, de estagnação.
Contra essa conclusão, alguém me objetou que
há novidades, como a lógica do grounding, o knowledge-first e o enativismo,
que seriam, afinal, aquisições significativas! Trata-se, porém, de mais uma
ilusão que remete à observação de Wittgenstein: uma época pequena enxerga o mundo
a partir de sua própria, minúscula perspectiva.
É verdade que a lógica do grounding oferece
instrumentos mais precisos para a compreensão de uma ideia já presente em
Aristóteles. Embora relevante para a lógica, sua aplicação filosófica está
longe de ser disruptiva. Quanto ao Knowledge-First, que remonta ao livro
de Williamson sobre conhecimento, trata-se, em meu juízo, de uma confusão elefantina,
sustentada por outras confusões. Não se pode negar que Williamson é sofisticado;
ou reinventa, com exagero lugares-comuns (como no caso de seu argumento da
antiluminosidade) ou se apóia em confusões já bem estabelecidas, que turvam a verdadeira
noção de conhecimento, como o injustamente célebre argumento de Gettier.[56]
Quanto ao argumento de Gettier, que parece refutar
a definição tradicional de conhecimento
como crença verdadeira justificada, a resposta não é difícil. Basta uma leitura
atenta do primeiro capítulo do livro Pyrrhonian Reflexions on Knowledge and
Justification, de Robert Fogelin, complementada pelo artigo do autor do
presente livro, que aprofunda e contextualiza essas ideias com maior rigor.[57] Ali se encontra, em meu
juízo, a verdadeira solução do problema de Gettier, que em sua intuição de
fundo é bastante óbvia. Essa solução emerge de uma reformulação dialógica mais
complexa e refinada da velha definição tripartite, segundo a qual a justificação
oferecida precisa por quem pretende conhecer precisa ser aceita como suficiente
para tornar a proposição verdadeira por parte de um avaliador que possui
informação mais completa no momento de sua avaliação (o avaliador pode ser a propria
pessoa que pretende conhecer em um momento posterior).
Quanto
ao enativismo, no que ele tem de verdadeiro, ele já existia muito antes, quando
Piaget investigou o estágio sensório-motor (1936), sem precisar, como fazem os enativistas
contemporâneos, rejeitar o papel da representação simbólica. Considere o seguinte
argumento da mente estendida[58], frequentemente aceito
pelos enativistas: A pessoa A se recorda da data de um concerto. A pessoa B,
que não tem boa memória, anota a mesma data em seu caderninho. Com base nessa informação,
ambos, A e B, assistem ao concerto. A conclusão enativista é (1): o que está no
caderno de B constitui parte de sua crença, da mesma forma que a lembrança
de A! O corolário enativista é (2), derivado de (1): o caderninho com a data é
uma parte da mente de B, só que localizada fora do corpo de B! O problema é que
reconhecer que a mente é capaz de se utilizar de recursos externos – da calculadora
à inteligência artificial – capazes de auxiliá-la e até aumentar
exponencialmente suas possibilidades, o que é evidente, não é o mesmo que afirmar
que esses recursos externos fazem parte da mente. A impressão de um “achado”
decorre aqui de um abuso da linguagem; uma projeção antropomórfica primitiva, que
remete ao homem paleolítico, que acreditava que as plantas continham espíritos.
Só que ceder a essa tentação em nossa época é uma atitude intelectualmente infantil.
Se a herança que nos coube é tão pouca, então a filosofia se encontra em maus
lençóis.
Nada disso me força a discordar
da mensagem de Susan Haack, em sua essência. O atual sistema acadêmico de “filosofia
da mão para a boca”, longe de tornar as pessoas mais críticas, as limita e entorpece.
O diagnóstico final é de decadência ou,
como Haack prefere, de um verdadeiro “desastre intelectual” cujas raízes estão
no desaparecimento da inovação filosófica profunda nas universidades detentoras
da hegemonia na produção científico-cultural. Há muita verdade nessa
avaliação. Afinal, o último filósofo ainda vivo capaz de inovação disruptiva de
quem consigo me lembrar é Jürgen Habermas.
Ainda
assim, permanece legítima a esperança de que a filosofia, por natureza disruptiva,
renasça como a fênix de suas próprias cinzas. (Lembrando que, para que isso aconteça,
é preciso que a fênix seja antes consumida pelo próprio fogo.)
Haack identificou as causas próximas dessa decadência
– as causas remotas, creio eu, são de outra ordem. Ela notou que, antes da
Segunda Guerra Mundial, sobrava espaço para publicações nas revistas filosóficas.
Imperava uma ética segundo a qual só publicava quando se tinha algo importante
a dizer. A ideologia do publish or perish, hoje multiplicada pela Internet,
alterou radicalmente esse cenário, praticamente paralisando a possibilidade do
inesperado, que ultrapassa a avaliação quase automatizada de editores limitados
e constitui a inovação profunda (que editor hoje aceitaria uma obra com a estrutura
do Tractatus Logico-Philosophicus?) Haack notou sintomas de corrupção
intelectual, como a publicação de “artigos salame” (escritos por múltiplos
autores) e de incentivos perversos, que podem, em nosso caso, ser exemplificados
pelas ridículas “olimpíadas de filosofia”. Ela também notou que a universidade americana
atual é cada vez mais gerida por CEOs, que precisam mostrar resultados e forçar
a todos o engajamento com a pesquisa. Com isso, a filosofia passou a ser tratada
como se fosse uma ciência em progresso, pior ainda, como se fosse uma investigação
técnica em constante desenvolvimento: todos precisam ser filósofos e produzir inovações.
Mas onde todos precisam ser filósofos, ninguém
pode ser filósofo. A filosofia, em seu sentido mais elevado, exige compromisso intelectual,
tempo para o ócio criativo, cultura ampla e diversificada, longa aquisição de conhecimento
em projetos que podem exigir muitos anos de reflexão, além de alguma forma
incomum de talento específico. Um sistema que exige produtividade constante em
projetos compartilhados torna esse ideal inviável. O resultado é uma persiflage
minimalista do verdadeiro labor filosófico – o que todos podem fazer sem grande
preparo.
É como se todos os que estudam música fossem obrigados
a compor, ou como se todos os que estudam pintura devessem ser pintores. Isso é
possível, em ponto pequeno. Mas Beethoven e Michelangelo foram não só pessoas particularmente
dotadas e conscientemente e inteiramente comprometidas com um ideal de perfeição[59],
mas também resultados históricos de um meio propício ao seu florescimento, o que,
em certa medida, vale também para Platão e Aristóteles, Kant e Hegel, e para qualquer
filósofo contemporâneo que aspire à filosofia como expressão de uma cultura superior.
Talvez valha aqui lembrar o que
aconteceu com a filosofia, e mesmo com a ciência austríaca e alemã após a Segunda
Guerra Mundial. Embora Paris fosse o centro das artes na primeira metade do
século XX, Viena era o centro da ciência e da cultura em geral, particularmente
a Universidade de Viena. Com o advento do nazismo, os seus melhores cientistas,
em grande parte judeus, tiveram de emigrar. Freud, vienense, refugiou-se da Inglaterra;
Karl Popper, na Nova Zelândia; os participantes do Círculo de Viena, em sua
maioria, nos Estados Unidos... Kurt Gödel, o gênio matemático que formulou os
teoremas da incompletude, embora não fosse judeu, era próximo de intelectuais
judeus e foi atacado em 1939 por jovens nazistas no centro de Viena. Sua esposa,
Adele, o salvou corajosamente com o auxílio de um guarda-chuva, e creio que também
foi graças a ela que ele acabou conseguindo pousar a tempo em Princeton, onde se
juntou a Albert Einstein. A Universidade de Viena foi assim esvaziada de seus talentos.
O mais curioso, porém, é o que aconteceu depois
da guerra. Após a guerra, nenhum deles foi convidado a retornar a Viena. Os que
os substituíram, por um misto de vaidade, inveja e medo de expor a própria mediocridade,
não desejavam voltar a viver à sombra de pessoas muito mais talentosas. Os
poucos que ousaram regressar, como o grande físico Erwin Schrödinger, foram mal
recebidos pela comunidade acadêmica. O resultado foi devastador: tendo perdido suas
cabeças, a Universidade de Viena nunca mais conseguiu recuperar o nível anterior.
Algo assim também aconteceu com as universidades de língua alemã.
Também é curioso o fato de que os dois melhores
filósofos alemães da segunda metade do século XX, eu diria, Habermas e
Tugendhat, nasceram e viveram suas infâncias antes da guerra, um período em que
o clima cultural era profundamente distinto. O que esses exemplos revelam é que
a cultura é algo frágil, difícil de surgir e ainda mais difícil de preservar. Se
a estrutura hierárquica da universidade não se renovar de maneira criativa, ela
deixa de ser uma fonte viva de inovação cultural. E se isso vale para as ciências[60],
vale ainda mais para uma atividade tão suspeita como a da filosofia, que serve
ao aprimoramento do intelecto crítico e facilmente precisa tomar para si o papel
de questionar o inquestionável.
Como a crítica
à filosofia atual é um tema delicado que não se enquadra no objetivo deste
texto, não desejo me alongar sobre ele. Lembro apenas do breve estudo de Harry Frankfurt
sobre o fenômeno por ele denominado de bullshit, definido como a produção
de construções intelectuais por vezes muito sofisticadas, mas sem qualquer compromisso
com a verdade. Trata-se de um efeito colateral da ampliação do acesso a
cultura, que gerou um contingente cada vez maior de pessoas que embora cultas, não
têm nada de relevante a dizer.[61]
Na
verdade, o impasse atual da filosofia analítica anglofônica (praticamente a
única que restou) não decorre da má-fé ou da leviandade do fabricante de bullshit.
Trata-se, antes, de uma história de decadência iniciada nos bairros mais nobres
da cidadela filosófica, uma vez que a decadência começa sempre de cima.
Em sua busca
de originalidade, os melhores filósofos analíticos de segunda linha, se
comparados com gente como Frege, Wittgenstein e Russell, formados em um mundo
extremamente hierárquico e elitista (no bom e no mau sentido) – entre eles os
positivistas lógicos exilados nos Estados Unidos e, posteriormente, nomes como
Quine, Kripke e Putnam, inventaram objeções engenhosas e ideias ousadas contra
os gigantes que os antecederam. Embora essas ideias tenham valor como desafios à
lá Hume, elas são, em sua essência, profundamente equivocadas. Como o
aceite dos efeitos dessas objeções abriam um imenso campo para a especulação
fragmentada, e como praticamente não apareceram respostas satisfatórias a elas,
ou o caminho para essas respostas nunca foi trilhado de boa vontade, tais
ideias passaram a condição de sabedoria herdada. Refiro-me, por exemplo,
à rejeição do verificacionismo, à rejeição da distinção analítico-sintético, a
invenções como a do necessário a posteriori, à crítica à definição tripartite do
conhecimento com base no problema de Gettier, ao externalismo semântico e
epistêmico, entre outras.[62]
Ao lançar esses desafios e ideias sem submetê-los a uma crítica adequada, esses
filósofos cortaram o galho em que se sentavam, do que resultou o stalemate
da filosofia analítica contemporânea. Afinal, não se pode construir muita coisa
útil sobre bases falsas. O resultado é uma desatenta coletivização de objeções e
construções insuficientes ou equivocas, um jogo vazio e fútil, cuja irrelevância
só é percebida de fora para dentro por qualquer pessoa lúcida. Pessoas verdadeiramente
conscientes, para não se deixarem iludir, manter-se-ão distantes.
Se esse processo continuar, o que restará disso
é o que Max Weber vislumbrou como o desfecho inevitável do desencantamento do
mundo (Entsauberung der Welt): um avanço contínuo da racionalização,
burocratização e dessacralização da vida humana. Weber via esse destino cono
sendo o do último homem da “noite polar da mais gélida escuridão”[63],
que ele definiu como: “Especialista sem espírito, sensualista
sem coração, uma nulidade que ainda assim imagina ter conquistado
um nível de humanidade nunca antes alcançado.”[64] As
realizações intelectuais desse homem poderão muito bem culminar em um enxame de microfilosofias e subfilosofias a
infestar o que já foi reverenciado como o “templo do saber”.
Um caso
de declínio cultural, mascarado sob pretensão acadêmica foi inigualavelmente
descrito por Edward Gibbon em sua história da deterioração e colapso do Império
Romano:
A autoridade de
Platão e Aristóteles, de Zenão e Epicuro, reinava ainda nas escolas; e seus sistemas,
transmitidos com cega deferência de uma geração de discípulos a outra, frustravam
qualquer tentativa generosa de exercer os poderes ou ampliar os limites da mente
humana. Os primores dos poetas e oradores, ao invés de se inflamarem por si
mesmos, inspiravam apenas frias e servis imitações… O nome de “poeta” fora quase
esquecido; aquele de “orador” foi usurpado pelos sofistas. Uma nuvem de críticos,
compiladores e comentadores obscurecia a face do saber, e, em breve, seguiu-se
ao declínio do gênio a corrupção do gosto.[65]
Deve o futuro de nossa filosofia assemelhar-se à decadência descrita por
Gibbon? Não necessariamente! Afinal, Weber também acreditava na possibilidade de
autorregeneração da cultura como chave para a abertura da jaula de ferro da
racionalização/burocratização imposta pelo desencantamento do mundo no interior
da sociedade capitalista, por meio de “um grande renascimento de velhas ideias
e ideais”.[66] Assim, a presente falta de inovações disruptivas
na filosofia não precisa (nem sequer pode!) ser vista como destino. Na segunda parte
do seu artigo, Susan Haack propôs caminhos alternativos. Ela destacou a importância
de um tratamento abrangente dos problemas e de um procedimento por aproximações
sucessivas. Em vez de dividir para conquistar, conquistar para não precisar dividir.
Como Wittgenstein certa vez observou para si mesmo:
Não se envolva em problemas parciais, mas sempre alce voo para onde há visão
livre do todo o grande único problema, mesmo se essa visão ainda não é clara.[67]
Afora isso, há algo que a hiperespecialização contemporânea tornou quase
impossível, mas que, para a produção de inovações disruptivas, é essencial: o desenvolvimento
de uma cultura filosófica sólida, o que significa, no mínimo, conhecer profundamente
os principais clássicos como parte da formação intelectual, além da aquisição de
uma cultura humanista e científica abrangente em seus fundamentos.
Platão sugeriu que, em sua República, as pessoas começassem estudando
matemática e outras matérias, acumulando até mesmo a experiência prática da
vida real, de modo que só aos cinquenta anos alguém poderia se tornar o rei-filósofo.
A filosofia vinha depois.
Uma razão frequentemente citada para as
dificuldades contemporâneas da filosofia é o fato de que o aumento exponencial
do nosso conhecimento tenha tornado esse movimento impossível. Ou talvez não! Afinal,
o que tem progredido exponencialmente não é tanto a ciência, como a tecnologia.
E quem sabe se uma crise social suficientemente séria, junto à IA e a outros
progressos tecnológicos, não salvará a alta cultura de seu opróbrio? Afinal, segundo
Hegel, a necessidade da filosofia só pode nascer em épocas de crise, quando o
poder de unificação desaparece da vida dos homens e as oposições, perdendo a
sua viva semelhança e a reação recíproca, se tornam independentes.
Após todas essas queixas, é hora de voltar aonde
estávamos antes. Uma terceira conclusão, indicada pela interdependência reforçadora
da pretensão de verdade das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas
filosóficas em áreas como epistemologia, metafísica e ética, apenas por analogia
com o que aconteceu com muitas conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências
como a física, a química ou a biologia, as quais se mostraram simplesmente demasiado
rudimentares ou errôneas, conservando apenas um valor histórico residual.
Nas ciências naturais, a começar pela física, ocorreram
rupturas epistêmicas profundas, separando a emergência desses corpos científicos
da indagação filosófica pré-científica que a antecedeu, geralmente falsa e não
consensualizável. Contudo, em níveis mais avançados e sofisticados de
conhecimento como, por exemplo, na construção de objetos materiais pelo hilomorfismo
aristotélico (Cf. Koslicki[68]),
o suporte interteorético proporcionado pela consiliência se torna uma marca cada
vez mais recorrente da verdade. Nesses casos, é plausível supor que a transição
da filosofia para a ciência ocorra de forma muito mais gradual, uma vez que
envolve aperfeiçoamentos e correções de ideias inter-relacionadas, sem o salto abrupto
para o inteiramente novo.
Isso implica que a especulação
filosófica em seus domínios centrais – como a teoria da substância em Aristóteles,
sua ética, o cogito cartesiano, a teoria relacional do espaço em Leibniz,
a teoria das qualidades primárias e secundárias em Locke, a teoria dos conceitos
em Kant... – pode, como sempre se suspeitou, possuir relevância veritativa mais
permanente.
Ainda que não saibamos exatamente como avaliar
essas verdades, é plausível que elas se acumulem ao longo do tempo, até que consensos
suficientemente robustos permitam corrigir erros e promover, de forma mais urbana
e discreta, aprimoramentos convincentes. Reconhecer esse fenômeno é importante para
compreender o valor das disciplinas filosóficas fundamentais em sua dimensão
histórica, frequentemente negligenciadas pelo cientismo positivista.
[1] Para uma exposição das recaídas platônicas de Aristóteles,
ver o “platonismo aristotélico, ver W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy,
vol. V. cap. XIII. Ver também A. E. Taylor, Aristotle.
[2] A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p.
4.
[3] J. L. Austin, Philosophical Papers,
p. 232.
[4] O livro intitulado How to do Things with Words? foi
publicado postumamente em 1962.
[5] Philosophische Untersuchungen, I, sec. 126.
[6] Ver Auguste Comte, Cours de Philosophie
Positive, Oevres, vol. I. Não sigo a sua classificação em detalhes, posto que ele
cometeu ao menos dois erros evidentes: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada)
entre as ciências básicas e a exclusão da psicologia, que ainda era praticamente
inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de classificação, porém, permanecem
válidos.
[7] Alguém poderia objetar que a ideia de uma ruptura epistêmica
que distinga ciência de pré-ciência é enganosa, posto que os critérios usuais de
cientificidade realmente não nos permitem identificá-las. Isso pode ser o caso
dependendo do critério envolvido. No que se segue quero defender que não encontramos
qualquer dificuldade em identificar essas rupturas intuitivamente, e que o critério
de cientificidade a ser sugerido no presente capítulo é capaz de resgatar essa intuição,
possibilitando uma mais clara identificação das rupturas epistêmicas que, como
veremos, só ocorrem quando os resultados de todo um domínio da investigação se
demonstram consensualmente alcançáveis.
[8] J. R. Searle notou que é um erro acreditar que porque objetos
da experiência interna têm um modo de existência ontologicamente subjetivo, eles
também devem ser epistemicamanete subjetivos, impossibilitando seu acesso pela ciência.
Exemplo: a aracnofobia é um fenômeno ontologicamente subjetivo, mas
epistemicamente objetivo. Ver seu Mind, Language and Society: Philosophy in the
Real World, pp. 43-45..
[9] Fragmento 2, Diels-Kranz 28 B2.
[10] Aristóteles, Metafísica 1005b 19 ss.
[11] Note-se que a formalização dos princípios apenas convida
à confusão.
[12] Aristóteles, Física, livro
VI, 2.
[13] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield, The Presocratic Philosophers, pp.
133-134.
Ver discussão
[14] Karl Popper, “Back to the Pre-Socratics”, em
seu livro, Conjectures and Refutations, p. 138.
[15] Anthony Kenny, A New History of Western
Philosophy, vol. I, p. 25.
[16] O primeiro a desenvolver essa hipótese, hoje
em descrédito entre os cosmólogos, foi R. C. Tolman em seu clássico Relativity,
Thermodynamics, and Cosmology, sec. 174, p. 439 (1934). A sugestão de Tolman
é hoje questionada, tendo surgido outras ainda mais ambiciosas e igualmente hipotéticas
como a do Big-Bang causado pelo choque entre membranas tridimensionais.
[17] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield
(eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 140-142.
[18] Ver Anthony Kenny, A New History of Western
Philosophy, vol. I, pp. 22-23. Para a saudação de Charles Darwin, Kenny remete
o leitor ao apêndice da sexta edição de The Origin of Species.
[19] Platão, República, IV, 446a ss.
[20] Platão, Phaedrus 246a ss.
[21] Paul D. McLean: The History of Neuroscience in Autobiography, vol.
II, cap. 20.
[22] S. Freud, The Ego and the Id.
[23] Aquinas on Mind, pp. 4-5.
[24] Como é sabido, a existência de Deus, da Alma e da liberdade
era, para Kant, postulada pela razão prática, ainda que não pudesse sê-lo pela razão
pura. Para ele a moralidade dependia da aceitação desses postulados.
[25] Trata-se aqui de uma referência, não ao senso comum ambicioso
que se contradiz com a ciência (como “O sol gira em torno da terra” ou “o tempo
é sempre o mesmo para qualquer observador”), mas ao senso comum do dia-a-dia, que
é pressuposto mesmo para que possamos fazer ciência, como “meu corpo existe”, “Há
outros seres humanos” ou “A terra existe há muito tempo”. Ele é contínuo à ciência,
que seria impossível se rejeitássemos tais pressupostos. D. M. Armstrong o
chamou de senso comum mooreano, em referência ao artigo de G. E. Moore, “A Defense
of Common Sense.” Ver Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy, cap. II. Ver também “The Long Arm of Common Sense”,
de Susan Haack.
[26] Keith Lehrer, Theory
of Knowledge, p. 7. Ver também W. James, Some Problems of Philosophy,
p. 23.
[27] Aquinas on Mind. (Routledge 1994), p. 5.
[28] Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de Kenny, mas não com a sua conclusão.
Meu objetivo é mostrar que acreditar que a tese progressista põe em perigo a abrangência
da filosofia é confundir a natureza das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente
alcançáveis) eventualmente destinadas a substituir os problemas centrais da filosofia,
que são questões cuja natureza desconhecemos, com os empreendimentos das ciências
particulares já existentes, cuja natureza já conhecemos.
[29] Friedrich
Nietzsche expôs insights importantes acerca disso em Humano,
demasiado humano, cap. IV, sec. 165.
[30] Walter Isaacson, Einstein, his Life and Universe
(Simmon & Schuster 2008), p. 122.
[31] See J. Passmore, “Philosophy”, in Paul Edwards,
The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.
[32] Ver K. R. Popper, Conjectures and Refutations,
pp. 339-340. O exemplo
standard de falsificação decisiva usado por Popper é a deflexão da luz das
estrelas observada no eclipse de 1919. Ironicamente, precisamente esse tipo de
teste seria mais tarde considerado demasiado inconfiável para ser significativo
quando tomado em isolamento (Cf. Martin Gardner, Relativity Simply Explained,
Dover 1962, pp. 96-7).
[33] See K. R. Popper, The
Logic of Scientific Inquiry, cap. II
[34] “What is Science?”,
p. 42 (meu itálico). A ciência, como um corpus de conhecimento, como o que os cientistas
fazem e como uma instituição, escreveu J. Ziman, “não pode ser tratada separadamente,
mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre diferentes planos
cartesianos” (ibid. p. 42).
[35] John Ziman, Conhecimento Público, p. 24
[36] “The Sociology of Science, cap. 13,
p. 267 ss.
[37] The sociology of science, p. 270.
[38] Ver J. Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa ideia e por chamar
minha caracterização da ciência de “consensualista”, não estou de modo algum sugerindo
que a ciência seja matéria de alguma espécie de decisão consensual arbitrária.
Nossa experiência coletiva tem mostrado que é somente porque fatos que concebemos
como independentes de nós mesmos podem ser verificados por nossas proposições,
que somos capazes de alcançar acordo interpessoal sobre o valor-de-verdade dessas
proposições no interior de uma comunidade crítica de ideias.
[39] Ver “Science, Conjectures, and Refutations”, in Popper:
Conjectures and Refutations.
[40] Ver video no Youtube: “James Randy on Astrology.”
[41] Há exceções explicáveis, como
a de Nietzsche. A mais curiosa foi talvez a de Wittgenstein, que quase não conhecia
filosofia, mas tinha excelentes ouvidos e praticamente dirigia as exposições semanais
em Oxford, onde se reunia o melhor da filosofia analítica. Com um pé na universidade
e outro no mundo da vida, que ele experienciou em profundidade, ele percebia claramente
quando os filósofos transgrediam os limites da linguagem natural e a importância
disso, daí ter inventado sua “filosofia terapêutica”.
[42] De acordo com Kevin Mulligan, Peter Simons,
e B. Smith, em “What is Wrong with Contemporary Philosophy?”, muitos filósofos
contemporâneos preferem o formalismo abstrato a engajar-se com a confusa, complexa
natureza do mundo real.
[43] Cf. Dylan Evans, Emotions: The Science
of Sentiments.
[44] Ver Susan Haack “The Fragmentation of Philosophy: The Road
to its Reintegration.”
[45] “Afterword: Must do Better”, in The Philosophy
of Philosophy, pp. 249-280.
[46] Susan Haack: “The Fragmentation of Philosophy: The Road
to its Reintegration”, in The Fragmentation of Philosophy, p. 15. Em seu
uso do conceito de consiliência, Haack foi influenciada pelo trabalho do biólogo
Edward Wilson.
[47] Jenny Teichman, “Don’t be Cruel or Reasonable”, in Polemical
Papers, p. 134. Ver também D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental,
p. 398. O original inglês foi publicado em 1987.
[48] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy:
The Road to Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, cap. 1. Ver também
“Kevin Mulligan, Peter Simons, and Barry Smith, “What is Wrong with Contemporary
Philosophy”.
[49] Ludwig Wittgenstein, The Blue and the
Brown Books, p. 18. Ver também de Susan Haack, “Scientistic Philosophy: No; Scientific
Philosophy: Yes”.
[50] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy:
The Road to Reintegration”.
[51] Já se observou que Slavoj Zizek é inteligente o bastante
para ser um bom crítico, mas não o suficiente para produzir uma construção
teórica consistente.
[52] Susan Haack, “The Fragmentation of
Philosophy; the Road to its Reintegration, p. 20.
[53] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to
Reintegration”, p. 21. É curioso notar que metafilósofos pertencentes ao atual mainstream,
como Timothy Williamson (2022) ou os autores de An Introduction to Metaphilosophy
(2013), não citam os bem fundamentados textos críticos de Susan Haack.
[54] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to
Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, pp. 5-14.
[55] Claudio Costa, “A Meta-Descriptivist Theory of Proper
Names, Ratio, 2011, 259-281, “How do Proper Names Really Work? (Cutting
the Gordian Knot”, in Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical
Philosophy (CSP 2018), Cognitivismo Semântico (Appris 2022).
[56] Knowledge and Its Limits
[57] Para Fogelin, meu artigo fortalece (“strength”)
suas ideias. Ver Claudio Costa, Lines of Thought, cap. V.
[58] Adapto esse argumento de A. Clark e D. Chalmers. “The extended Mind”. A diferença
essencial é que existe um abismo intransponível entre o biológico-natural e os
artefatos eletrônicos por nós produzidos.
[59] Nietzsche lembrou a imensa dificuldade que Beethoven
tinha para compor, que exigia dele refazer as estrofes inúmeras vezes até que elas
se tornassem incomparáveis.
[60] Não são poucas as críticas à ausência de
desenvolvimentos disruptivos na física teórica fundamental no mundo da técnica
nos últimos 60 anos
[61] Harry Frankfurt: On Bullshit
[62] Sei disso por tê-las refutado. A refutação do
anti-verificacionismo é baseada no verificacionismo sugerido por Wittgenstein,
que foi desfigurado pelo Círculo de Viena, que acabou com razão por rejeitá-lo.
frágil demais para merecer resposta por escrito. A defesa do verificacionismo junto
à distinção analítico-sintético e contra o necessário a poateriori, encontram-se
em Philosophical Semantics, cap. VI. A defesa de uma versão modificada da
definição tradicional de conhecimento, capaz de destruir o problema de Gettier
sem deixar restos, encontra-se em Lines of Thought, cap. V, e a crítica
ao externalismo semântico encontra-se em How do Proper Names Really Work? e
na segunda parte de Cognitivismo semântico. Quanto ao dialeteísmo, achei
que não valeria a pena refutar por escrito.
[63] Max Weber. Political Writings. Ed. Peter
Lassman, Cambridge University Press 1994, xvi. A demagificação do mundo foi uma
das grandes ideias de Weber: o mundo era originariamente visto como repleto de magia
e dominado por instituições religiosas. Com o aparecimento das ciências, ele
foi sendo aos poucos demagificado e essas instituições passaram a um papel secundário.
Contudo, há algo de perturbador nesse processo, pois como escreveu o poeta Stefan
George: “Só pela magia a vida continua desperta” (“Nur durch Magie bleibt das
Leben wach”).
[64] Max Weber: The Protestant
Ethic and the Spirit of Capitalism. Trad. port. A ética protestante e o espírito
do capitalismo, p. 236.
[65] The History of the Decline and Fall of
the Roman Empire, cap. 2 (on genius).
[66] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo,
p. 236.
[67] Personal notebooks, 1931.
[68] Form, Matter, Substance.

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