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sábado, 4 de maio de 2024

LEIBNIZ: INTRODUÇÃO

  DRAFT

 

VII

LEIBNIZ: IDEALISMO INFINITISTA

 

Difícil encontrar duas personalidades tão opostas quanto as de Spinoza e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). O primeiro tornou-se uma pessoa privada e moralmente impecável. O último foi um homem do mundo, que vivia sagazmente de seus serviços à nobreza da época. Gostava de dinheiro. Por um tempo teve três empregos simultaneamente. Passou a vida escrevendo a história da dinastia de Hanover, ganhando para isso, mas sem conseguir terminá-la. Filho de um professor, ele foi um grande polímata, com uma imensa variedade de conhecimentos. Mas acima de tudo filósofo e também um importante lógico e matemático, que juntamente com Newton inventou o cálculo infinitesimal – um talento que influenciou decisivamente sua maneira de filosofar. Leibniz publicou muito pouco, mas escreveu inúmeros textos e milhares de cartas em várias línguas, o que representa um sério problema para os intérpretes. Já foram publicados 47 volumes das obras completas de Leibniz e isso representa apenas metade do que escreveu. Devido a sua imensa variedade de “distrações”, ele dificilmente conseguia terminar alguma coisa. E ainda que sua filosofia contenha muitos insights profundamente instigantes, ele nunca conseguiu formulá-la de modo suficientemente sistemático. Na exposição introdutória que se segue precisarei ignorar os inúmeros problemas advindo das variações especulativas e indecisões argumentativas presentes na imensa obra de Leibniz.

   O objetivo precípuo da metafísica de Leibniz era conciliar a crença no Deus cristão com a ciência e cultura de sua época. Sua filosofia alia uma impressionante coerência interna a uma extrema implausibilidade factual, tendo sido por isso considerada demasiado imaginativa e bizarra até mesmo pelos seus contemporâneos. Mais além, por seu interesse em lógica e matemática ele influenciou filósofos analíticos como Gottlob Frege, Bertrand Russell e mesmo um contemporâneo nosso como Saul Kripke.

    Há uma convicção pessoal de Leibniz que merece ser lembrada. Ele acreditava que no caso de haver duas posições filosóficas opostas, mas interessantes, o mais provável seria que ambas tivessem algo de importante a dizer – algo que poderia ser resgatado por uma posição que abrangesse seus pontos de maior interesse, como ele mesmo tentou demonstrar em sua filosofia. O defeito mais comum, segundo ele, é o do espírito sectário, em que as pessoas, ao rejeitarem as outras, se apequenam... Ele tinha a consciência de que o pensamento de um filósofo não deveria ser medido pelos seus erros flagrantes e inevitáveis, mas pelos seus acertos prováveis.

 

1

 

Quero resumir aqui apenas as partes centrais da filosofia teórica de Leibniz. Antes de começar devo observar que para ele, como para Aristóteles, o enunciado fundamental é o predicativo singular, que tem a forma sujeito-predicado ou Fa, como o expresso pela frase “Sócrates é sábio”. Precisa ser assim porque nesse enunciado o sujeito pode se referir a uma substância e o predicado a uma propriedade, substância e propriedade sendo os constituintes metafísicos últimos de toda a realidade.

   Leibniz acreditava que enunciados com outras formas poderiam ser reduzidos a enunciados predicativos. Assim, um enunciado condicional como “Se algo é um cão, então esse algo é um animal” poderia ser reduzido a “O conceito de cão contém o conceito de animal”. E o enunciado relacional “Paris ama Helena”, que tem a forma aRb, poderia ser reduzido a “Paris ama e, por esse mesmo fato, Helena é amada”. Mas essa última redução já não parece mais convincente. O que ele está dizendo, mudando a posição das palavras, parece ser: “Paris ama Helena e, por esse mesmo fato, Helena é amada por alguém”, o que é duplamente relacional. Relações assimétricas como “João é pai de Maria” são particularmente resistentes à transformação em proposições meramente predicativas.

   Ao contrário do que Leibniz pensava, o mais comum é encontrarmos enunciados aparentemente predicativos que, devidamente analisados, demonstram ser enunciados relacionais. Por exemplo: “João é pai” parece predicativo. Mas suficientemente analisado esse enunciado se revela relacional, por exemplo: “João é pai de Maria, de José e de Carlos”. Afinal, ser pai significa ser pai de uma, duas ou mais pessoas (uma proposição n-ádica). Na lógica aristotélica enunciados relacionais eram facilmente interpretados como sendo predicativos.

   Mesmo sob o peso da objeção acima quero agora expor a teoria racionalista da verdade proposta por Leibniz, que é fundamental para a compreensão de seu sistema. Para ele uma frase predicativa é verdadeira quando o conceito de seu sujeito contém o conceito de seu predicado.[1] Nesse caso temos o que ele chamou de uma verdade da razão, que é um enunciado que sabemos ser necessariamente verdadeiro e cuja negação implica em contradição. Esse é claramente o caso de enunciados como, por exemplo, (1) “Sócrates é Sócrates”, (2) “O triângulo tem três ângulos”, (3) “Meu irmão é um homem (= ser humano)” e (4|) “2 + 2 = 4”. Eles podem ser considerados enunciados de identidade, possuindo a forma A = A. Em outras palavras: eles seguem o princípio da identidade e negá-los fere o princípio da não-contradição. Não posso afirmar “A = A & ~(A = A)”.

   No exemplo (1) já temos uma identidade e não precisamos recorrer à análise para revelá-la. Mas nos outros exemplos sim. Para revelar a identidade no enunciado (2) “O triângulo tem três lados” precisamos analisar o conceito de triângulo, digamos, como “uma figura fechada, plana, com três lados”. Podemos com isso demonstrar a identidade envolvida substituindo o sujeito pela sua definição na primeira frase. O resultado fica sendo: “A figura plana fechada com três lados... tem três lados.” Mas isso é também uma frase de identidade, que pode ser formalizada como “A(B) = A”. Para o enunciado (3) “Meu irmão é um homem (é um ser humano)” precisamos substituir “meu irmão” por “o ser humano filho do mesmo pai que eu” na construção do enunciado “O ser humano filho do mesmo pai que eu... é um ser humano”, que é também um enunciado de identidade. Considere agora (4): “2 + 2 = 4”. Esse enunciado pode ser submetido a seguinte versão da prova leibniziana de que 2 + 3 = 4. Para tal nós definimos 2 como 1 + 1 (Df.i), 3 como 2 + 1 (Df.ii) e 4 como 3 + 1 (Df.iii). Depois fazemos a seguinte sequência de substituições:

 

1.    2 + 2 = 2 + 1 + 1 (Df.i)

2.    2 + 2 = 3 + 1 (Df.ii)

3.    2 + 2 = 4 (Df.iii)

 

Com isso temos uma análise finita de “2 + 2 = 4” como sendo uma frase de identidade. Vemos, pois, que todos os quatro enunciados acima são capazes de serem entendidos como sendo de identidade ou redutíveis a eles, demonstrando-se verdades da razão.

   A teoria da verdade de Leibniz parece encontrar sua óbvia limitação no que ele chamava de verdades de fato. Essas verdades são enunciados verdadeiros nos quais o conceito do predicado não parece estar de nenhum modo contido no conceito do sujeito. Exemplos são “Cabral descobriu o Brasil”, “Júlio Cesar morreu em 44 a.C.”, “Adão comeu a maçã…” Esses enunciados exprimem para Leibniz verdades de fato. Podemos negar verdades de fato sem contradição. “Cabral não descobriu o Brasil” é uma frase falsa, mas não a vemos como sendo contraditória, diversamente de “O triângulo não tem três ângulos”. Elas não se baseiam no princípio da identidade. E nós não as vemos como necessárias, mas como contingentes.

   Leibniz então se perguntou: por que nas verdades de fato o conceito do sujeito não parece conter o conceito do predicado? O bom senso responderia que isso não acontece simplesmente porque a teoria da verdade de Leibniz é limitada, aplicando-se apenas a verdades da razão e não a enunciados empíricos contingentes. A teoria da verdade aplicável a verdades de fato seria a velha teoria da correspondência, segundo a qual a verdade de um enunciado contingente consiste em sua adequação ao fato empírico ao qual ele se refere… Mas esse não é o caso de um racionalista como Leibniz! Para ele tudo deve poder ser de algum modo derivado da razão. O Deus de Leibniz é um ser absolutamente racional e não poderia ter produzido nada que fosse desnecessário ou supérfluo. Por isso, para ele tudo o que acontece no mundo precisa ter uma “razão suficiente”. Mas se é assim então tudo o que se predica verdadeiramente de um sujeito precisa pertencer intrinsecamente a ele, de modo a ser dele predicado com razão suficiente, ou seja, necessariamente. Mas como é possível que verdades contingentes como “Cabral descobriu o Brasil” possam ser vistas como satisfazendo sua definição de verdade? Leibniz tinha uma resposta para isso. Do ponto de vista humano essa frase é contingente; mas do ponto de vista divino ela é de algum modo necessária.

   Como isso é possível? Leibniz encontrou uma maneira tão engenhosa quanto inacreditável de generalizar sua teoria da verdade para as verdades de fato. Sua resposta está na distinção que ele fez entre análise finita e análise infinita. As verdades da razão demandam análises finitas. Já as verdades de fato demandam análises infinitas nas quais absolutamente tudo o que acontece com o objeto é explicitado. Uma frase como “Cabral descobriu o Brasil” teria a forma A(BCD…) = A. Mas quem pode saber disso? Nós, certamente, não. Para nós essa é uma verdade contingente, posto que a sua negação é perfeitamente concebível. A resposta era para Leibniz óbvia: Deus sabe e para ele essa não seria mais uma verdade percebida como contingente! Deus é onisciente. Por conseguinte, ele sempre soube que Cabral teria de descobrir o Brasil. Ele sabe que pertence ao conceito de Cabral o fato de ele descobrir o Brasil em 21 de abril de 1500 e tudo o mais que possa ter acontecido com ele nos mais ínfimos detalhes. Para Deus “Cabral descobriu o Brasil” é um enunciado de identidade no qual o predicado pertence ao sujeito.

   Para que seja assim é também necessário que para Leibniz aquilo que individua um objeto sejam simplesmente todas as suas propriedades, o que inclui tudo o que lhe acontece. Assim, pertence necessariamente a Cabral ter descoberto o Brasil em 21 de abril de 1500, pois se ele não tivesse descoberto o Brasil ele não seria Cabral. Aqui importa sua distinção entre ter o conceito e ter um conceito. Só Deus tem o conceito completo de Cabral, pois conhece todas as suas propriedades. O que nós temos é apenas um conceito de Cabral – um conceito incompleto, perspectivo e mesmo variável.[2]

   Nesse contexto também uma importante distinção é a que Leibniz fez entre o ‘é’ da essência e o ‘é’ da existência. A teoria da verdade de Leibniz não se encontra comprometida com a afirmação de existência. Considere a frase “O Ciclope é um gigante de um olho só”. Essa é uma verdade da razão, um enunciado necessário pertencente à mitologia grega. Mas Ciclopes não existem. O ‘é’ em questão é um ‘é’ da essência e não da existência, dizendo-nos que é essencial ao conceito de Ciclope que Ciclopes sejam gigantes de um olho só.

   Essa consideração tem implicações para a análise infinita. Deus é capaz de conceber uma infinidade de mundos possíveis. Assim, há um mundo possível no qual Adão se recusou a comer a maçã, outro no qual ele comeu uma pera, outro no qual ele não foi tentado, pois Eva resistiu à sedução da serpente… Cada um desses Adãos é diferente, uma vez que eles possuem diferentes condições de individuação. Todos eles existem na mente de Deus, mas só um deles foi atualizado em nosso mundo, que foi o Adão que comeu a maçã. Uma consequência é que o enunciado “Adão comeu a maçã” é não só essencialmente verdadeiro, mas também existencialmente verdadeiro, dado que a condição de ter comido a maçã foi atualizada em nosso mundo. Mas o enunciado “Adão comeu a pera” é apenas essencialmente verdadeira na mente de Deus, tanto quanto “O Ciclope é um gigante de um olho só”, que é essencialmente verdadeiro na mente de Deus, mas existencialmente falso, posto que seu conteúdo não se encontra realizado em nosso mundo.

   Ainda um ponto importante é o princípio do melhor. Deus, sendo perfeito, não poderia ter escolhido realizar qualquer mundo possível. Por isso ele decidiu realizar o melhor dos mundos possíveis, que é o nosso. Nele existem coisas ruins como guerras e episódios infelizes, como o de Eva ter se deixado seduzir pela serpente... Mesmo assim, embora só Deus seja capaz de saber porque nosso mundo é o melhor, mundos melhores do que o nosso são logicamente inconsistentes e a única coisa que Deus não é capaz de transgredir são as leis da lógica (os únicos aos quais é dado esse direito são alguns lógicos contemporâneos). Por isso Deus não teve outra alternativa que não fosse a de escolher realizar o Adão que cedeu ao capricho de Eva, comendo a maçã da árvore proibida.

   Uma objeção que poderia ser feita é que se Deus, por sua perfeição, criou o melhor dos mundos possíveis, então ele teve de criar esse mundo. Ele não foi livre ao fazer isso. A resposta de Leibniz é a de que Deus ao criar este mundo não o fez forçado, mas por uma inclinação sem necessitação. É certo que a partir disso tudo o mais se seguiu através de uma imensa cadeia de necessidades; mas esse ato livre de criação serve como a justificação última para o caráter contingente das verdades de fato.

   As verdades de fato são o que são porque para que tudo o que se predica de um sujeito deva pertencer a ele Deus precisava ter uma razão suficiente para fazê-lo assim, mesmo que essa razão só seja compreendida por ele. Assim, a teoria da verdade de Leibniz implica no princípio da razão suficiente. Deus tinha em mente uma infinidade de Adãos, mas, movido pelo princípio do melhor ele escolheu realizar um só deles, qual seja, o Adão que comeu a maçã. Deus tinha em mente uma infinidade de Júlios Cesares, mas pelo princípio do melhor escolheu realizar somente aquele que lutou na Gália, atravessou o Rubicão em 49 a.C, derrotou Pompeu e foi assassinado em 44 a.C.

   Afora isso, o princípio da razão suficiente implica para Leibniz em mais um outro, que é o princípio da identidade dos indiscerníveis.[3] Nenhum objeto na natureza pode ser completamente idêntico a outro, nenhuma folha pode ser completamente idêntica a outra. E precisa ser assim, não só porque pelo princípio de individuação tudo o que acontecesse a um objeto também teria de acontecer ao outro, mas também porque Deus não teria razão suficiente para criar duas coisas absolutamente idênticas. Leibniz conta que se encontrava no jardim da Mme. N. quando apareceu um descrente colocando em dúvida o princípio da identidade dos indiscerníveis. Leibniz pediu ao homem para prová-lo encontrando duas folhas idênticas no jardim. O pobre homem procurou, procurou, mas não conseguiu encontrar, acabando por render-se ao princípio de Leibniz.

 

2

 

Passemos agora à questão da substância. Influenciado pela filosofia escolástica Leibniz via a substância como sendo aquilo que realmente existe. Sua definição era aristotélica: A substância é aquilo que pode ser sujeito de muitos predicados, mas que não pode ser predicado de sujeito algum. Mas então, o que é a substância? Leibniz excluiu a res extensa cartesiana pela seguinte razão. A substância, no sentido mais próprio, precisa ser algo que não pode ser dependente de nada mais para existir. A extensão, contudo, pode ser subdividida infinitamente. Assim, se admitíssemos que um corpo extenso fosse substância, ele dependeria de suas partes para existir, as quais seriam também substâncias e assim infinitamente. Mas a substância, por definição, não pode depender de nada (exceto de Deus) para existir. Se o mundo físico das coisas extensas não pode ser substancial, tudo o que resta são as mentes. Afinal, as mentes (para Leibniz) devem ser consideradas simples e, por isso mesmo, indivisíveis, o que as faz independentes das suas partes. E as mentes devem possuir, naturalmente, vida, tendo como características principais a percepção e a apetição (vontade).

   A essas substâncias simples de caráter mental Leibniz deu o nome de mônadas (do grego monas, que significa unidades). Elas são simples, pontuais, indivisíveis e por isso mesmo indestrutíveis. O universo é constituído de uma infinidade de mônadas que possuem percepções, ou seja, “representações no simples daquilo que é composto ou daquilo que lhe está fora”.[4] Tal como a substância aristotélica, a mônada leibniziana possui um correspondente da forma, que se encontra em seu aspecto mental, e um correspondente da matéria, que é sua potencialidade, por Leibniz chamada de matéria prima.

   Como só a substância mental é real, o espaço não pode ser real, nem o tempo. Sendo Deus perfeito ele criou um número infinito de mônadas, as quais, pelo princípio da identidade dos indiscerníveis, deveriam ser todas diferentes entre si. O que chamamos de universo nada mais é do que uma infinidade de mônadas. Enquanto Spinoza era frugal e só aceitava uma substância, Leibniz era esbanjador e admitia um número infinito de substâncias.

   Mas então, como explicar a solidez de uma rocha? Também aqui Leibniz não encontra problemas. Ele faz uma comparação com o arco-íris. As cores parecem existir, mas são meros reflexos de gotículas de água. Assim, agregados de infinitas mônadas mentais produzem a impressão de corpos físicos extensos como a rocha, que não passam de “fenômenos bem fundados” (phaenomena bene fundata). Leibniz é um filósofo idealista.

   Há uma série de propriedades das mônadas que são sui generis. A mais curiosa é que elas são “sem janelas”: elas não interagem umas com as outras, mesmo que assim lhes pareça. Elas não podem interagir porque relações não possuem a forma predicativa, e já sabemos que para ele as relações são ilusórias, não possuindo existência própria. A conclusão de Leibniz é que cada mônada, cada substância individual, já tem desde sempre a sua história completamente determinada por Deus. Além disso, a causalidade é impossível: basta considerarmos que as relações causais são originariamente temporais, a causa vindo antes de seu efeito, e entenderemos que Leibniz tem razão ao desclassificá-las. A única exceção é Deus, que é causa externa do mundo.

   Uma outra propriedade impressionante que Leibniz descobre nas mônadas é a capacidade que cada uma delas possui de espelhar todo o universo em todos os detalhes e em todos os tempos. Como ele escreve:

 

Ora, esse enlace, essa acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz cada substância simples ter relações que exprimem todas as outras e ser, portanto, um espelho vivo e perpétuo do universo.[5]

 

Esse espelhamento do universo não pode ser feito por meio de relações, mas pelas propriedades intrínsecas das mônadas. Assim, se a e b são mônadas, elas não se associam na forma aRb, mas na forma Fa e Fb, onde os F substituem os R tomando o lugar de propriedades fenomenais intrínsecas das mônadas.

   Uma outra propriedade das mônadas é que cada uma delas reflete o universo sob um ponto de vista particular, caracterizado por Leibniz como sendo a clareza e a distinção perceptual de aspectos das coisas movida pela apetição das mônadas. Explicando: cada mônada tem maior ou menor clareza e distinção diferentemente distribuída para coisas diferentes. Isso é importante porque se cada mônada reflete em si todo o universo então elas não parecem se diferenciar entre si, o que fere o princípio da identidade dos indiscerníveis; contudo, como cada uma reflete o universo sob um ponto de vista diferente, elas se diferenciam entre si nesse aspecto. É a diferença de ponto de vista que distingue cada mônada de todas as demais.

   Há uma outra maneira pela qual as mônadas diferem, que é pela sua posição na hierarquia das mônadas.

   As mais inferiores são as mônadas nuas. Agregados harmônicos de infinitas mônadas mais inferiores fazem derivar o que percebemos como sendo os corpos físicos, o mundo vegetal, os corpos dos animais e nossos próprios corpos. Essas mônadas têm percepção completamente inconsciente, não possuindo memória. Cada uma delas percebe o mundo infinitamente, mas de modo totalmente inconsciente. E um objeto físico qualquer é fundado em um número infinito de mônadas. A extensão, melhor dizendo, a impressão de extensão, era para Leibniz resultado da repetida continuidade de uma força de resistência e impenetrabilidade que constitui o que chamamos de matéria, que quando tornada força ativa produzia o movimento. Ultrapassando Descartes, Leibniz foi contemporâneo de Newton, preferindo tornar a extensão resultado da ação de forças físicas, mesmo que de modo vago e obscuro.

  O próximo nível é o das mônadas animais. Essas almas animais são capazes de percepção e memória. Elas percebem o mundo sob perspectivas particulares, mesmo assim confusas. Leibniz comparou a percepção confusa com o rugido das ondas do mar, que não permite que se ouça cada som separadamente. Assim, o corpo de um elefante é constituído de infinitas mônadas nuas, percebidas por uma mônada mestra, que é a sua mente animal. Essa última mônada é dominante em relação ao agregado de mônadas do qual se deriva o que é percebido como sendo o corpo do animal. Essa é uma sugestão mais sensível do que a de Descartes, segundo o qual os animais não passavam de autômatos.

   Em um terceiro nível temos as mônadas racionais. Espíritos racionais, como as almas dos seres humanos e os anjos, são capazes não só de perceberem o mundo sob pontos de vista particulares e de possuírem memória, mas são capazes de apercepção, que é o termo que Leibniz tinha para a consciência, que ele distinguia da mera percepção, que não precisa ser consciente.[6] Mesmo assim, embora tenhamos percepção de todo o universo, quase todo esse conhecimento é inconsciente.

   Com a noção de apercepção Leibniz (assim como Locke com o conceito de reflexão) estava antecipando as teorias contemporâneas da consciência que requerem estados mentais de ordem superior. Segundo David Armstrong, o primeiro proponente das teorias de ordem superior, esses estados se tornaram necessários para a regulação de sistemas cognitivos mais complexos. Segundo essas teorias a consciência dos estados mentais de primeira ordem dependem de sua cognição por estados mentais de segunda ordem. Para os defensores dessa teoria, um estado mental se torna consciente quando é objeto de uma cognição (percepção, para Armstrong, e pensamento para David Rosenthal) de nível superior. Por exemplo: se sinto uma muito leve dor de dente durante o dia, eu só me torno consciente dela quando penso nela. A mesma coisa deve acontecer com outros estados mentais ditos conscientes, como emoções e pensamentos. Mas a cognição de segunda ordem, segundo Rosenthal, não é consciente, a menos que se torne objeto de uma cognição de terceira ordem e assim por diante. O pensamento que está no topo, escreveu ele, nunca é consciente, o que explica a impossibilidade de uma forma completa de consciência e mesmo a dificuldade que temos em aceitar sua teoria.

 

3

 

Um outro conceito que Leibniz antecipou foi o de inconsciente, com a sua ideia de que quase a totalidade da percepção das mônadas é inconsciente. Tratam-se de petites perceptions, incapazes de ultrapassar o limiar da consciência. Somente no século XX com Freud, nas circunstâncias controladas do tratamento psicanalítico, o conceito de inconsciente foi mais detalhadamente e profundamente explorado.

   Há, finalmente, a mônada-Deus, que possui percepção absoluta do mundo inteiro sob todos os pontos de vista e absoluta apercepção. Nós somos limitados em nossos julgamentos por nossas perspectivas limitadas. Só Deus é capaz de julgar sob todas as perspectivas e com ilimitada sabedoria.

   As mônadas tem apetição, movimento, e aspiram à perfeição. Por essa razão o mundo se move em direção a Deus. Em nosso melhor mundo possível, quando algo de ruim ocorre (uma Guerra, uma catástrofe…), é apenas para que algo de melhor venha a acontecer mais tarde.

   Se as mônadas são sem janelas então por que elas parecem interagir umas com as outras? Por que eu pareço ser capaz de mover as mônadas que constituem o meu braço, ou me comunicar com outras mônadas mentes? A resposta de Leibniz foi feita por oposição ao ocasionalismo de Malebranche, que fazia sucesso na época. Malebranche rejeitava com boas razões o interacionismo de Descartes. Sua solução, porém, consistia na ideia de que Deus interfere a cada momento, fazendo com que acontecimentos no mundo exterior ocorram e fazendo com que logo a seguir a alma tome conhecimento deles e reaja, tendo a impressão de que essa reação está produzindo um movimento corporal, que é outra vez causado por Deus. O que Descartes entendia como interação passou a ser entendido como uma impressão de interação.[7]

   Leibniz não gostava dessa ideia, que fazia de Deus um trabalhador incansável. A sua solução foi tão simples quanto fantástica. Trata-se de sua famosa harmonia pré-estabelecida. Quando Deus criou o universo ele causou previamente tudo o que cada mônada perceberia ad aeternum. Deus fez isso como um perfeito relojoeiro, fazendo com que cada mônada por toda a eternidade aparentasse se relacionar com as outras, assim como relógios bem sincronizados são capazes de marcar a mesma hora.

 

4

 

Um outro tópico importante diz respeito à disputa com Newton em relação à física. Newton foi um físico incomparável, mas Leibniz lhe era superior como filósofo. Leibniz objetou contra a ação à distância implícita na ideia da força gravitacional de Newton. Aqui Leibniz antecipou especulativamente um pressuposto que só foi resgatado pela teoria generalizada da relatividade, qual seja, a ideia de que não existe uma força gravitacional atuando à distância. O que existe, sabemos hoje, é um encurvamento do espaço-tempo, que aumenta na proximidade dos corpos físicos e que faz com que corpos caiam ou entrem em órbita, como acontece com os planetas em relação ao sol.

   Leibniz também parece ter tido razão contra Newton em suas objeções à concepção absolutista do espaço e do tempo defendidas pelo último. Para Newton, espaço e tempo são absolutos e infinitos. O espaço é como um container infinito dentro do qual se encontram os objetos materiais, os eventos, as forças físicas… E com o tempo se sucede a mesma coisa: os eventos ocorrem no tempo, mas o tempo é absolutamente independente desses eventos. Espaço e tempo seriam para Newton o sensorium dei, ou seja, o meio pelo qual Deus ganha consciência do universo e se faz capaz de ordená-lo.

   Leibniz respondeu apelando para o princípio da identidade dos indiscerníveis e para o que hoje chamaríamos de um princípio da verificação. Esse princípio é nos diz que enunciados que por razões lógicas não podem ser tornados verdadeiros ou falsos simplesmente não fazem sentido. Ele respondeu a Newton dizendo que se o espaço fosse infinito, sendo o universo finito, então ele poderia estar situado em uma outra região do espaço sem que pudéssemos saber qual. O universo poderia até mesmo mover-se de uma região para outra do espaço infinito e não teríamos meios de verificar essa mudança. Se o tempo, por sua vez, fosse algo infinito dentro do qual os eventos se sucedem, o universo poderia ter se iniciado antes ou depois no interior do tempo, o que também não poderia ser verificado, pois diante da infinitude não teríamos como saber que antes ou depois seriam esses. Afora isso, Deus não teria qualquer razão suficiente para escolher situar o universo em uma região do espaço ou em um período do tempo. Afora isso, uma região do espaço infinito seria idêntica a uma outra região do espaço infinito, o que também fere o princípio da identidade dos indiscerníveis.

   O argumento contra Newton é bastante forte. Ele seria menos convincente se Leibniz não tivesse uma outra concepção do espaço e do tempo para concorrer com a posição newtoniana: a teoria relacional que veremos a seguir.

   Para Leibniz, espaço e tempo só existem porque existem corpos, eventos e forças físicas. Para ele o espaço é uma ordem de coexistências, enquanto o tempo é uma ordem de sucessões. Essa é a essência de sua teoria relacional do espaço e do tempo. Eles são dependentes das coisas que constituem o universo.

   Sob essa perspectiva, o que chamamos de espaço resulta de corpos materiais e eventos mais ou menos próximos, acima, abaixo, ao lado, com distâncias medidas pela repetição de uma mesma relação espacial. O mesmo acontece com o tempo: o antes, o depois e a simultaneidade dependem das coisas que pré-existem, pós-existem e co-existem. Como diríamos hoje, o tempo depende de eventos físicos; o tempo começou a ser medido pela repetição cíclica desses eventos, como os dias e as estações dos anos, tendo mais tarde se tornado precisos pela invenção de relógios, também eles cíclicos. Se corpos materiais, eventos e forças físicas não existissem, espaço e tempo não existiriam.

   Ao admitir que espaço e tempo são relacionais e considerando que relações para Leibniz não existem, espaço e tempo são para ele ideais: eles não possuem realidade própria. São, como ele escreveu, fenômenos bem fundados, produzidos pelos variados pontos de vista das mônadas. Mas como a monadologia é uma teoria só aceitável em meio às disputas teológicas da época de Leibniz, fazemos bem em separá-la da teoria relacional do espaço e do tempo. O próprio Leibniz fez isso ao apresentá-la em sua famosa discussão com Clarke, um seguidor de Newton.

   Um resultado da concepção relacional foi para Leibniz o horror ao vazio. Ele discutiu a experiência de Torricelli, que encheu de mercúrio um tubo fino de vidro com um lado fechado, mergulhando o lado aberto em uma cuba cheia de mercúrio. Como o mercúrio é muito pesado, parte dele descia dentro do tubo deixando um vácuo absoluto atrás de si. Leibniz respondeu que não se trata de um verdadeiro espaço vazio, pois “o vidro tem poros muito sutis através dos quais os raios de luz, os do imã e outras matérias muito finas podem passar”.[8]

   Seria interessante ver como a disputa entre espaço e tempo absolutos e relacionais pode ser projetada na física contemporânea. Segundo a teoria da relatividade restrita, medições de tempo precisam ser feitas sempre com relação a um sistema dito inercial, na qual elas se baseiam, e isso vem de encontro à concepção relacional de Leibniz. Um problema maior consistiria na comparação com a teoria da relatividade generalizada. É possível a um defensor contemporâneo de Leibniz dizer que os corpos e eventos físicos se relacionam espaço-temporalmente através da gravitação, de modo que o espaço-tempo só pode existir até onde existir gravitação. Assim, um espaço completamente “fora” do universo não poderá existir, o mesmo podendo se dizer do tempo.

 

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Um último tópico a ser abordado diz respeito à oposição entre o ultra-racionalista Leibniz e seu contemporâneo mega-empirista John Locke com respeito ao conhecimento inato.

   Sendo um modelo de filósofo empirista, Locke rejeitou qualquer espécie de conhecimento inato. Nossa mente, quando nascemos, é como uma folha de papel em branco e todo nosso conhecimento é obtido a posteriori, através da experiência indutiva. Vemos o sol nascer todos os dias e, por indução, concluímos que ele também nascerá amanhã e, generalizando, todos os dias. Locke estendia o empirismo mesmo à matemática e a lógica. Um exemplo é o princípio da não-contradição, considerado por Aristóteles o mais fundamental da lógica. Segundo esse princípio “um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido”. Para racionalistas como Leibniz, nós já nascemos com a disposição para seguir esse princípio. Para Locke é diferente: nós aprendemos os conceitos de cachorros e gatos, de vermelho e amarelo, etc. para então percebermos que cachorros não podem ser gatos, nem vermelhos podem ser amarelos… Isso nos leva a concluir que um enunciado como “Isso é um cachorro” não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido. No passo seguinte nós generalizamos, concluindo que um enunciado qualquer não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Como ainda iremos ver, até mesmo o princípio da não-contradição é, para um empirista como Locke, aprendido através da experiência empírica!

   Leibniz, pelo contrário, defendia que nós nascemos com uma multidão de inclinações, disposições, tendências ou virtualidades inatas, que incitadas pela experiência se transformam em conhecimento a priori, posto que não dependem de experiência indutiva. A palavra hoje mais utilizada é ‘disposição’. Uma propriedade de algo é disposicional quando só aparece no caso de serem dadas certas circunstâncias específicas, geralmente não presentes. Esse é o caso do sal de cozinha. Ele tem a propriedade disposicional de se dissolver se for misturado à água. Para Leibniz, o mesmo acontece com as assim chamadas ideias inatas. A sua analogia, por oposição à analogia lockeana da folha de papel em branco, é a de um bloco de mármore homogêneo com veios.[9] Tudo o que o escultor – ou seja, a experiência – precisa fazer é escavar nos veios, o que fará aparecer a estátua de Hércules – a ideia inata – que se encontrava oculta no bloco de mármore. Uma vez exposta, a estátua pode ser agora polida – melhor dizendo, a ideia inata pode ser colocada em palavras. É através do apelo a disposições inatas que um racionalista explicaria nossa capacidade para aprender e explicitar linguisticamente coisas como a aritmética e a geometria euclideana, assim como os princípios lógicos. E essa é uma posição bem corroborada pela psicologia contemporânea.

   Contudo, como justificar a verdade dessas ideias disposicionalmente inatas? A resposta de Leibniz é que, sendo feitos à imagem de Deus, possuímos um entendimento semelhante ao dele, embora infinitamente inferior, que se baseia no acesso disposicional a um conhecimento verdadeiro e a priori, que mesmo pressupondo a experiência não é dela originado. Se considerarmos o desenvolvimento da psicologia, por exemplo, a psicologia genética de Piaget, seremos levados a concluir que o tempo deu razão a Leibniz com respeito à disposição inata para a formação de conceitos e princípios que podem ser chamados de a priori no sentido de que embora pressupondo a experiência não se originaram dela. Mas ele não deu razão a Leibniz com respeito à verdade necessária dessas ideias ou princípios. O conhecimento a priori é, no entendimento de racionalistas contemporâneos como Laurence Bonjour, falível, ou seja, ele pode ser demonstrado falso pela experiência.[10] Aliás, a principal motivação de empiristas como Locke era a de garantir a flexibilidade de nosso entendimento, necessária ao desenvolvimento da ciência. Mas é exatamente essa flexibilidade aquilo que é preservado pela admissão da falibilidade do conhecimento a priori.

   O último ponto foi bem percebido e exposto de maneira incisiva por Karl Popper, um filósofo da ciência defensor do racionalismo, para quem um filósofo como Locke defendia uma teoria simplista do “balde mental”, à qual ele opunha sua teoria do holofote do conhecimento. Ele comparou nossas disposições inatas com as dos animais no fenômeno chamado de imprinting. Um ganso tem o que Popper chamou de uma “teoria” (disposicionalmente) inata: a de que o primeiro objeto móvel que ele encontrar diante de si após as primeira horas do nascimento é para ser seguido, posto que é “sua mãe.” Geralmente a “teoria” é verdadeira: esse objeto é realmente a sua mãe. Mas a “teoria” se demonstra falsa quando, por exemplo, esse primeiro objeto móvel forem as botas do pesquisador. Nesse caso, o pequeno animal irá perseguir as botas do pesquisador durante todo o seu crescimento, como se elas fossem a sua mãe em um processo irreversível.

   Popper comparou o caso dos animais caso com o dos humanos. Para ele a diferença é que, diversamente dos animais, enquanto nós compartilhamos com eles disposições inatas para formar teorias sobre o mundo, nós somos flexíveis o suficiente para abandoná-las quando a experiência às refuta. Procuramos então criar outras hipóteses teóricas que não se demonstrem refutáveis pela experiência. As disposições inatas podem ser o começo de tudo, mas não são o fim de tudo. O fim de tudo está no conhecimento científico.

   A última pergunta a ser respondida diz respeito à razão pela qual nossas disposições inatas para o conhecimento são falíveis. A resposta é simples. Elas são resultado da evolução natural. A seleção dos mais aptos faz com que sobrevivam aqueles indivíduos que possuem uma disposição, digamos, a de seguir o primeiro objeto móvel que se encontra diante deles como sendo a sua “mãe”, uma vez que esses espécimes serão os capazes de crescer e se reproduzir, passando essa disposição para a sua prole. Com o tempo todos os membros da espécie passam a possuir essa disposição.

   Mas por que tais disposições herdadas podem ser falsas? Para isso tenho uma sugestão. É porque também elas foram consequência de um processo indutivo. Na evolução, no curso do tempo, sempre novos indivíduos são expostos às mesmas circunstâncias, sendo selecionados aqueles que possuem as disposições que lhes permitam sobreviver e se multiplicar. Se essas disposições forem cognitivas, elas serão base de um conhecimento a priori. Mas sob o ponto de vista lógico esse processo seletivo é de natureza indutiva. É só pela repetição de circunstâncias similares com consequências similares que terminamos por produzir disposições cognitivas particulares. Temos a impressão de que tal processo não pode ser indutivo porque estamos acostumados com induções feitas por sujeitos cognitivos como nós mesmos. Mas isso não é necessário. Uma máquina é perfeitamente capaz de ser programado de modo a realizar induções sem necessidade de processo cognitivo. O mesmo se dá na formação de disposições através da evolução de uma espécie. Chamo a isso de indução evolucionária ou indução da espécie. Como alguns biólogos sugeriram, uma espécie pode ser tratada como se fosse um indivíduo que se estende no tempo, assim como um formigueiro pode ser tratado como um indivíduo. Do ponto de vista da formação de disposições cognitivas, uma espécie se transforma e evolui através da indução evolucionária. A conclusão epistemológica importante disso é que temos uma explicação da falibilidade do conhecimento a priori: como o mecanismo de formação das disposições inatas é indutivo, e como todo o conhecimento que advém da indução é falível, os resultados cognitivos dessas disposições podem ser sempre falseados por novas experiências.

   Uma última questão: estamos com essa ideia de uma indução da espécie esposando uma forma radical de empirismo? Creio que não. Mesmo que as disposições inatas sejam derivações indutivas da “experiência” da espécie, elas são mesmo assim inatas, atuando de modo a constituir pontos de partida estruturantes e direcionadores de nosso aprendizado. Seria mais correto dizer que estamos preconizando uma espécie de naturalismo, o que nos faz recordar de um racionalista como Spinoza. Parece claro que a oposição histórica entre racionalismo e empirismo está sendo aos poucos superada.   

 

6

 

Para Leibniz o critério de identificação de um objeto consiste na totalidade de suas propriedades. O problema é que só o Deus de Leibniz, caso exista, será capaz de aplicar tal critério. O critério de identificação de objetos materiais a ser usado por nós mesmos deve ser suficientemente econômico para caber em nossas mentes. Os dois maiores candidatos ao papel de critério de identificação são no caso de objetos materiais a localização espaço-temporal e as propriedades essenciais. Esse é o caso, por exemplo, do critério de identificação do Taj Mahal. Esse monumento tem um critério de localização espaço-temporal: desde o término de sua construção em 1653 ele se localiza junto à cidade de Agra no norte da Índia. Mas ele também possui como critério de identificação propriedades essenciais, no caso, a de ser um belíssimo mausoléu de mármore branco com formas bem conhecidas, construído pelo imperador Shah Jahan para sua terceira esposa... A razão para privilegiarmos a localização espaço-temporal e propriedades ditas essenciais como critérios é intuitiva. Mas para convencer o cético podemos ir além, considerando o que as enciclopédias dizem. Qualquer enciclopédia que tenha um artigo sobre um nome conhecido como o Taj Mahal irá disponibilizar a localização espaço-temporal e os caracteres essenciais como critérios fundamentais para sua identificação.[11]

   Elementos espaço-temporalmente localizadores e essencialmente caracterizadores são os que nos permitem identificar objetos materiais. Eles precisam se fazer suficientemente presentes, mesmo que uma determinação mais precisa, capaz de aclarar casos limítrofes, seja impossível. Tal determinação mais precisa, felizmente, costuma ser desnecessária. Afinal, mesmo que não sejamos capazes de estabelecer se em mundos possíveis nos quais a Índia não possuía sultões ou no qual o Taj Mahal não foi construído como um mausoléu o Taj Mahal existiu realmente, os critérios acima são perfeitamente capazes de realizar seu trabalho no que concerne ao nosso mundo. Ao menos nas circunstâncias de nosso mundo, tal como nos foi dado conhecê-lo, podemos afirmar que o Taj Mahal existe.

   Observações semelhantes valem para os critérios de identificação de pessoas. Aqui devem ser adicionados critérios psicológicos de permanência, como o da memória, o das disposições de caráter e o das habilidades, também sendo impossível resolver casos limítrofes, mesmo assim sendo os critérios usuais perfeitamente funcionais para os casos ordinários.[12] A linguagem natural é naturalmente vaga e se desejarmos um maior nível de precisão bastará inventarmos novos nomes com novos critérios de identificação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “...em toda proposição afirmativa verdadeira, necessária ou contingente, geral ou singular, a noção do predicado se encontra de algum modo contida na noção do sujeito (o predicado está incluido no sujeito).” Leibniz. Carta à Arnauld, 14 de Julho de 1686.

[2] G. W. Leibniz: Discurso de Metafísica sec. 8.

 

[3]  Esse princípio não deve ser confundido com o princípio da indiscernibilidade dos idênticos, que nada tem de metafísico. Segundo esse último princípio, se os nomes a e b se referem à mesma coisa então qualquer propriedade de a também se será propriedade de b e vice-versa.

[4] G. W. Leibniz: Princípios da natureza e da graça, sec. 1.

[5] G. W. Lebniz: Monadologia, 56.

[6] G. W. Leibniz: Monadologia, sec. 14.

 

[7] Os argumentos de Malebranche são mais sofisticados do que possa parecer nesse resumo. Ver Nicolas Malebranche: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2022 (Internet).

[8] G. W. Leibniz: Correspondência com Clarke, sobre a sec. 7.

[9] G. W. Leibniz: New Essay on Human Understanding, Prefácio..

[10] Laurence Bonjour: 

[11] Claudio Costa: How do Proper Names Really Work? (Berlin: De Gruyter 2023), cap. III.

[12] Claudio Costa: “Definindo identidade pessoal”. In Arquiteturas conceituais (Belo Horizonte: Dialética 2022) cap. 20.

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