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quinta-feira, 30 de julho de 2020

A METAFILOSOFIA NIETZSCHEANA

 

Draft para o livro Textos esparsos, ed. Dialética.



METAFILOSOFIA NIETZSCHEANA

 

 

 

Nietzsche foi perspicaz ao perceber que em um sentido importante o pior do cristianismo é aquilo que ele chamou de ideal ascético, que em sua época era o ideal de aliar-se masoquistamente à pobreza, à humildade, à castidade e a outras formas de autonegação, como forma de se obter um prazer doentio e pervertido. Para ele a função do ideal ascético é a de dar sentido ao sofrimento, pois sem sentido o sofrimento é insuportável. O ideal ascético tinha como seu maior mentor a figura do padre ascético, que se opunha à vida, valorizando a auto-mortificação, a autoflagelação, o auto-sacrifício. Essas atitudes que parecem suicidas são na verdade maneiras veladas de preservar a vida. E o seu objetivo último, para Nietzsche, é o de limitar o ser humano e envenenar as mentes do que ele chamou de homens superiores.

   Para ele, a assim chamada consciência moral resulta de uma internalização e espiritualização da crueldade. Como ele escreveu em uma importante passagem:

 

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro: a isso eu chamo de internalização do homem, pois é através dela que nele se origina aquilo que mais tarde será denominado sua “alma”. Todo o mundo interior, que em sua origem era fino e tenso como uma linha esticada, soltou-se e ampliou-se de tal maneira que ganhou profundidade, largura e altura, quando a descarga dos homens para fora foi inibida. Aqueles terríveis bastiões pelos quais o estado se protegeu dos antigos instintos de liberdade – entre eles sobretudo os castigos – teve como resultado que aqueles instintos do homem que vagava livre e selvagem se voltaram contra ele mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer da perseguição, do ataque, da mudança, da destruição, tudo isso voltou-se contra o possuidor de tais instintos: essa é a origem da “má-consciência”.[1]

 

Ou seja, o homem é por natureza uma espécie de criança má, que principalmente por força da civilização cristã, teve seus instintos internalizados e espiritualizados na forma da má-consciência.[2]

  Com tais observações Nietzsche antecipava sectariamente a psicanálise. Freud analisou algo próximo do que Nietzsche chamava de ideal ascético em termos de introjeção: pela introjeção, as pulsões relacionadas à sobrevivência do indivíduo e da espécie (mais tarde questionavelmente substituídas por eros e thanatos) seriam internalizadas e dirigidas para onde vieram, para o próprio ego (Ich) tornando-se no ego superego (über-Ich), no caso, consciência moral, sentimento de culpa possivelmente resultando na necessidade de autopunição. A introjeção torna-se assim parte dos mecanismos de autocontrole necessários ao processo civilizatório, que permitem ao homem distanciar-se de seu estado animal.

   A psicanálise freudiana nos permite refletir sobre a existência de formas sublimadas de internalização da agressividade e até mesmo notarmos que há instintos altruístas no ser humano, os relacionados à sobrevivência da espécie e não apenas do indivíduo, que poderiam contrabalançar o que Nietzsche chamou de crueldade. (Considere o caso do animal que se sacrifica pelas crias.) Seja como for, o simples recalcamento da agressividade, na medida em que esta não for racionalmente sublimada, possui um potencial destrutivo e no final das contas mesmo autodestrutivo. A emergência do nazismo foi um exemplo histórico disso. Um outro exemplo histórico foi o ocaso de Esparta. A educação repressora extremamente disciplinar dos espartanos lhes propiciava a capacidade de conquistar novos territórios, mas a inflexibilidade resultante dessa mesma educação lhes impedia de fazer acordos que lhes permitissem dominar esses novos territórios a longo prazo. Já sob o domínio romano é conhecida a descrição de rituais masoquistas de flagelamento, por vezes mortais, os quais recordam as considerações de Nietzsche.

   Não obstante, é preciso lembrar que Nietzsche também tinha uma visão em parte positiva do ideal ascético. Ele reconhecia que a prática científica o exige. Além disso, a própria filosofia depende dele, pois para existir ela demanda o homem inativo, contemplativo, não voltado para a ação. Como ele mesmo notou, a filosofia teria sido absolutamente impossível pela maior parte do tempo sobre a terra sem o terno de algodão de um falso conceber ascético.

   Essa percepção das repercussões filosóficas resultantes do diagnóstico nietzschiano do ideal ascético como sintoma de um adoecimento da civilização ocidental é um ponto importante e a meu ver correto. Podemos encontrar uma justificação para a inclinação ascética do filósofo: ele precisa viver a vida do pensamento, o que inevitavelmente demanda distanciamento e repressão das paixões e conflitos mundanos. Filósofos modernos de Descartes a Kant, por exemplo, não se casaram. O próprio Nietzsche praticou esse distanciamento e até muito mais do que outros. Por isso trata-se também de uma perda, pois como observou o Mefistófeles de Goethe, “toda filosofia é cinzenta; verde é apenas a árvore de ouro da vida”[3]. É por isso muito tentador justificar esse distanciamento necessário, mas frequentemente reativo (“mal resolvido”, no dizer vulgar) através da ideia de que o mundo sensível é destituído de valor. É parte da integridade e coragem intelectual de Nietzsche ter praticado esse distanciamento sem ter precisado para isso se tornar o que ele chamaria de um “negador da vida”.

   Pela característica própria de sua atividade filosófica é fácil àquele que a pratica deixar que o ideal ascético contamine suas próprias construções intelectuais. Com efeito, uma tese de maior importância e a meu ver bastante plausível a ser encontrada em Nietzsche é a de que o ideal ascético não só possibilitou, mas também corrompeu grande parte da filosofia ocidental. Podemos generalizar essa tese para muito da tradição ocidental, como o demonstram as observações que se seguem:

 

1.     O primeiro filósofo a ser corrompido pelo ideal ascético foi Parmênides, com a sua doutrina de que toda mudança é ilusória. Há aqui o prenúncio de teorias que serão fugas do mundo real, do visível, do sensível, do mundo heracliteano da mudança privilegiado por Nietzsche.

2.     Outro filósofo influenciado pelo ideal ascético foi Sócrates. Ele foi um precursor do padre ascético, com seu prazer sádico em destruir as crenças das outras pessoas em nome de algum conceito moral ideal. Sócrates era feio, nota Nietzsche, sem falar do fato de ser casado com uma mulher quarenta anos mais jovem que lhe dava muito trabalho e nenhum prazer. Nietzsche notou jocosamente ter sido ela a responsável pelo desenvolvimento filosófico de Sócrates, pois para não ter de conviver com ela ele preferia passar os dias conversando nas ruas, o que lhe permitiu desenvolver seu talento dialético.

3.     Platão, provavelmente homossexual, também foi um grande cultor do ideal ascético. O mundo visível, o mundo da vida, não era para ele o mundo real. A pouca realidade encontrada nesse mundo era a de deixar refletir nele o mundo das ideias eternas, imutáveis, pertencentes somente ao mundo inteligível. É certo que a doutrina das ideias tinha uma função predominantemente epistemológica. Ela tinha a função de explicar a predicação e, através disso, a nossa capacidade de síntese, a capacidade fundamental de dizer e pensar o mesmo de muitos. Contudo, é também verdade que o ideal ascético pode ser visto como a motivação clandestina para a hipóstase das propriedades como sendo ideias abstratas, eternas, imutáveis e constitutivas daquilo que podemos chamar de o mundo verdadeiramente real (ainda que Platão tenha sido um filósofo suficientemente sério para encontrar em sua doutrina graves defeitos, como o atesta a primeira parte do diálogo Parmênides). Aristóteles, que teve mulheres e filho, que era um biólogo e uma pessoa mais afeita ao senso-comum, prescindiu das ideias ou formas como universais, ao menos nas interpretações mais sofisticadas. Mas sua noção de uma substância material imperceptível como suporte das propriedades deixa-nos ainda hoje perplexos.

4.     O mais ascético dos filósofos pré-cristãos foi Plotino, que provavelmente sofria de hanseníase e tinha bons motivos para negar o corpo. Para Plotino a alma é má por encontrar-se interconectada com o corpo. Para ele a vida nesse mundo é degeneração, fracasso. Como o mal está no mundo e a alma foi feita para escapar do mal, pensava ele, devemos evadir-nos desse mundo.

 

Se mesmo no mundo antigo o ideal ascético já impregnava a filosofia, faz-se previsível um aprofundamento dessa tendência com a vitória do cristianismo. A lista torna-se então muito longa, indo de Agostinho a Hegel, passando por Descartes, Spinoza, Leibniz e Kant.

   Considere, por exemplo, um filósofo teórico quase contemporâneo como Edmund Husserl, que foi uma pessoa de fé religiosa. É evidente que sua crença deve ter tido influência em sua aceitação de um platonismo de significados e de sua teoria da intuição categorial das essências (uma intuição intelectual), bem como de sua sugestão de um Eu transcendental fundador.

   Podemos especular o que Nietzsche teria considerado da filosofia de um pensador com temática parecida com a sua, como Heidegger. Este último definia o homem como um ser-para-a-morte, no sentido de que a consciência de sua finitude é determinadora de suas atitudes diante da existência. Em seus últimos anos ele pareceu ter se refugiado em um esteticismo quase místico, que via a linguagem poética como a casa do ser e o mundo tecnológico o lugar do esquecimento do ser, da renúncia à busca pelo fundamento último, ao verdadeiro filosofar. Em sua entrevista para a revista Spiegel ele concluiu que só um Deus poderia nos salvar. Sem dúvida, esse poderia ser visto ao menos em parte como mais um exemplo de negação da vida, sendo a substituição da pesquisa filosófica cada vez mais por uma retórica filosófica parte do culto de mais uma forma de ideal ascético em filosofia. Heidegger é, sob esse ponto de vista específico, um filósofo pré-nietzscheano que acabou por refugiar-se em uma retórica irracionalista, com a qual buscava aproximar-se de um substitutivo de Deus que ele chamava de Ser.

   Finalmente, podemos encontrar traços do ideal ascético no início da filosofia analítica contemporânea, em um filósofo como Frege, com o seu mundo de sentidos eternos e atemporais. Mais ainda, podemos encontrar traços fortes do ideal ascético em muitos filósofos analíticos contemporâneos do mais alto nível, como Michael Dummett (católico) e Saul Kripke (judeu praticante, filho de um rabino), que dentro de suas obsessões formalistas sofrem de um certo grau de horror mundi. Não são muitos os filósofos analíticos que resistiram a importar algum traço distorsivo do ideal ascético em suas filosofias, embora alguns, como Bertrand Russell e John Searle, me pareçam praticamente não afetados por ele. É que nossa crescente cultura científica torna essa forma de distorção capaz de envolver a crença em um além-mundo cada vez mais difícil de ser realizada, assim como nosso mundo tecnológico, que diminui a necessidade da repressão pulsional, torna o ideal ascético cristão cada vez mais raro.

   A influência perversa do ideal ascético sobre a filosofia pode ser bem demonstrada na ontologia. A moderna teoria ontológica dos tropos intenta inverter a equação platônico-aristotélica. O ser enquanto ser, o que em primeiro lugar existe, não são ideias ou formas, mas tropos, que nada mais são do que propriedades espaciotemporalmente localizáveis, começando com qualidades sensíveis como formas, solidez, cores, sons, externas ou internas, incluindo mesmo as quatro forças físicas fundamentais (gravidade, a força eletromagnética, força forte e força fraca[4]), as quais, mesmo que dispersas no espaço, não deixam de ser localizáveis. A melhor maneira de se aplicar essa ideia consiste em se admitir que universais dizem respeito a conjuntos de tropos que podem ser construídos com base em quaisquer tropos precisamente similares a um certo tropo escolhido como modelo.[5] E objetos materiais nada mais são do que combinações de tropos espaciotemporalmente localizadas. Assim, pela teoria dos tropos tenta-se construir o geral, o abstrato, o “não-sensível”, a partir do sensível: ao invés de construir o mundo de cima para baixo, como Platão pretendeu, a teoria dos tropos objetiva construir o mundo de baixo para cima, como uma forma de empirismo radical. Essa é, obviamente, uma teoria ontológica muito mais compatível com o pensamento de Nietzsche.

   O mais curioso é que essa teoria, propondo uma completa inversão dos valores ontológicos, só foi resolutamente proposta na segunda metade do século XX por um insight tão genial quanto simples de Donald Williams,[6] mais tarde tendo sido desenvolvida e, infelizmente, atenuada por outros. Por que essa teoria não foi proposta antes, digamos, durante a Idade Média, no lugar do nominalismo? Afinal, mesmo naquela época já existiam instrumentos conceituais suficientes para a sua formulação. Embora a resposta possa ser mais complexa, ela me parece envolver em grande medida a crítica nietzscheana ao ideal ascético. A ontologia dos tropos se opõe à contaminação da ontologia pelo ideal ascético que se deu no realismo, pelo menos a partir de Platão. Ela também se opõe à negação ascética do problema do realismo que se constitui nos nominalismos que rejeitam a ideia de que expressões conceituais tenham referentes próprios. Ela dá um valor fundamental aos objetos da percepção, ao mundo visível, e se propõe a fazer derivar dele o mundo inteligível. Ela poderia ter sido proposta mesmo pelos filósofos antigos. Por que isso nunca aconteceu?

   Cabe aqui a objeção: não teriam as doutrinas realistas (platônica e aristotélica), assim como a sua antítese nominalista, apenas reprimido por mais de dois milênios o que seria a solução mais plausível do problema dos universais e do problema da substância, a qual sempre esteve ao nosso alcance e que hoje é chamada de a teoria dos tropos? Parece que essa última teoria só encontrou lugar na ontologia contemporânea pelo fato de nossa filosofia se deixar menos influir pelas distorções do ideal ascético, sendo a resistência que ela ainda encontra, ao que parece, uma mera resultante do peso de dois mil anos de tradição.

   Por outro lado, embora influenciando a filosofia, a aceitação e mesmo defesa do ideal ascético pode atingir muito pouco as ideias de filósofos interessados em questões menos associadas à vida humana, naquilo que mais lhe dá valor, do mesmo modo que o cristianismo doentio de Pascal não atingia as suas contribuições para a matemática enquanto tais.

   Para sermos mais justos, consideremos a doutrina das ideias de Platão uma última vez. Importa pouco que o ideal ascético tenha participado de sua gênese, uma vez que o objetivo central da doutrina era linguístico-epistemológico-ontológico, buscando explicar nossa capacidade de predicar, ou seja, como nos é possível dizer o mesmo de muitos. Foi um mérito da doutrina platônica ter sido a primeira tentativa de responder mais detalhadamente à questão da unidade do múltiplo, mesmo que pela postulação de um mundo inteligível separado do mundo sensível. Desvalorizar a doutrina platônica com base apenas no ascetismo reativo do qual ela emerge, sem uma cuidadosa avaliação dos argumentos, seria cometer uma falácia genética.

 

 



[1] Friedrich Nietzsche: Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift, II, 16. Creio que Nietzsche, influenciado pelo que aprendeu da história das civilizações antigas, exagerava a agressividade própria do ser humano, que é grandemente determinada pela cultura. Mas isso pouco importa aqui.

[2] Creio que Nietzsche, influenciado pelo que aprendeu da história das civilizações antigas, exagerava a agressividade própria do ser humano, que é grandemente determinada pela cultura. Mas isso pouco importa ao que pretendo mostrar aqui.

 

[3] “Grau, teurer Freund, ist alle Theorie und Grün des Leben goldener Baum”. Faust I, Studienzimmer.

[4] Keith Campbell chamou-as de “quasi-tropes”, uma vez que não são qualidades percebidas. Seja como for, segundo a definição aqui sugerida elas são tropos de qualquer modo. Cf. seu livro Abstract Particulars. Oxford: Blackwell, 1990, p. 91.

[5] Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy. Newcastle Upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2018, apêndice do capítulo IV.

[6] Donald Williams: “On the Elements of Being” I, Review of Metaphysics, 7(1), pp. 3–18; On the Elements of Being II, Review of Metaphysics, 7(2), pp. 171–92. 1953.




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