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quinta-feira, 30 de julho de 2020

AUSTIN E O PRIMADO DA ASSERÇÃO


 

 

 

 

2

 

AUSTIN E O PRIMADO DA ASSERÇÃO

 

 

J. L. Austin foi o autor de uma célebre distinção entre duas formas básicas de proferimentos: os constatativos, que são enunciativos ou descritivos, e os performativos, que realizam ações.[1] Mais tarde ele se convenceu, por argumento vários, que tal distinção não se sustinha sobre bases reais, o que o levou a abandoná-la, substituindo-a pela mais influente teoria dos atos de fala.[2] Penso que esse desenvolvimento de seu pensamento ilustra como, em filosofia, alguém pode encontrar-se diante de um achado importante, e então, sob a pressão de novas ideias explorá-lo de maneira insuficiente e inadequada, terminando por afastar-se dele, convencido de que se tratava de apenas mais um espectro ilusório na nebulosa selva conceitual.

   Pretendo fazer aqui uma breve reconstrução da distinção austiniana, que exponha mais claramente seu insight original, revelando seu lugar fundamental em um estudo filosófico das funções linguísticas. Um resultado filosoficamente relevante desse procedimento consistirá na sugestão de que a ideia clássica de um primado do modus assertórico – do logos apophantikós aristotélico – possa ser reinstaurada no próprio âmbito de uma pragmática das ações comunicativas, a mesma que o teria supostamente relativizado.

 

 

I

 

Consideremos primeiro, como forma de abordar a questão, as principais objeções que Austin fez a sua própria teoria.

   Uma primeira objeção é a da ausência de critérios gramaticais satisfatórios para distinguir os proferimentos performativos. O que mais se aproxima de um critério gramatical repousa na ideia de que onde o dizer é fazer, o dizer deve ser feito por alguém aqui e agora. Uma maneira abrangente de enunciá-lo seria a seguinte: Um proferimento é performativo quando o verbo ocorre na primeira pessoa do singular do presente do indicativo e na voz ativa, ou, nos casos em que isso não se dá, quando é possível parafraseá-lo (reduzi-lo, expandi-lo, analisá-lo) nessa forma. Essa forma, dita explícita, costuma ser formalizável como “(Eu) v (que) p”, onde v representa o verbo performativo (que define a força, o sentido de aplicação do proferimento) e p um conteúdo proposicional, como no exemplo “(Eu) aviso-te (que) o cão é feroz”.

   Contudo, esse critério gramatical para os performativos não é uma condição suficiente, posto que também os proferimentos constatativos a satisfazem: qualquer frase implicitamente assertiva é susceptível de ser apresentada sob a forma “Eu afirmo (declaro, digo...) que...”[3] Seria tal critério ao menos uma condição necessária? Parece que sim, mas então teríamos de interpretá-lo de maneira muito generosa. Podemos, em um suposto contraexemplo, imaginar uma língua primitiva na qual não exista a primeira pessoa; se Ollan, um falante dessa língua, fizer uma promessa, ele recorrerá à terceira pessoa do singular dizendo “Ollan promete que...”, subvertendo assim a exigência de que o verbo performativo venha na primeira pessoa. Pode-se convir que esse caso expõe uma mera limitação idiomática, eliminável pela adição ao critério gramatical da cláusula de que, nesses casos, o verbo deve poder ser apresentado na primeira pessoa quando vertido para línguas como a nossa, dotadas de mais precisos recursos expressivos. Mas não é preciso ir tão longe. Há casos em que não parece haver versão possível, mesmo em nossa própria língua: não existe a possibilidade de vertermos um insulto introduzindo o verbo insultar como performativo na primeira pessoa, de maneira a formar o proferimento “Eu te insulto...”. Pode-se também aqui tentar estender o critério, considerando prescindível que o verbo em questão seja o mesmo que define o sentido de aplicação do proferimento. Mas que dizer do “Estás fora”, dito em um jogo de roda, onde não encontramos paráfrase com verbo na primeira pessoa? Que fazer com expressões como "Hurra!”, “Viva!”, “Ai!”, onde sequer verbo há?

   Nada disso, a meu ver, tem a menor importância aqui. Pois a resposta à objeção não consiste em se elaborar um critério gramatical necessário e suficiente para os performativos, mas antes no reconhecimento de que a exigência de que fundamentemos a distinção através de critérios estritamente gramaticais é supérflua! Eles deveriam sê-lo se a distinção fosse ela mesma de natureza gramatical, o que não é o caso.

  Sob a perspectiva que quero propor, é lícito postularmos – seguindo uma sugestão inicial de Austin – que os critérios fundamentadores da distinção tenham a ver com a satisfação de condições de verdade versus a satisfação de condições de realização das ações. Nesse caso, o critério identificador (definitório) – entendendo-se com isso uma condição necessária e suficiente para a identificação – consistirá, para os proferimentos constatativos, no fato de eles serem verdadeiros ou falsos. Por outro lado, para os proferimentos performativos o critério identificador consistirá, usando a terminologia de Austin, no fato de eles serem felizes (bem-sucedidos) ou infelizes (malogrados) no fazer algo, no produzir um efeito sob determinação convencional.

   Tais critérios gerais, tais condições identificadoras, podem ser expostas em um esquema muito simples:

 

Proferimento:

Condição identificadora:

CONSTATATIVO:

é VERDADEIRO ou FALSO

(e não feliz ou infeliz)

PERFORMATIVO:

é FELIZ ou INFELIZ

(e não verdadeiro ou falso)

 

Com isso temos, prima facie, as condições necessárias e suficientes para a identificação da forma do proferimento; mesmo na língua imaginária acima aventada. A razão pela qual tendemos a considerar o proferimento “Ollan promete que...” como sendo performativo é que não é a sua verdade aquilo que deve ser preferencialmente reclamado, mas a satisfação das condições de sucesso do prometer.

   Encontrando-se o critério definitório já inteiramente presente na oposição entre condições de verdade e de felicidade, construir uma teoria da distinção não deve resumir-se em buscar outros critérios, mas principalmente em realizar uma adequada análise comparativa das relações entre a satisfação de condições de verdade e a satisfação de condições de felicidade no proferimento total. Faltou a Austin fazer isso de modo consequente, voltado que estava para uma análise de manifestações linguísticas relativamente contingentes.

   Reconhecer esse ponto não significa, é claro, abandonar as considerações gramaticais, mas admitir que é preciso subordiná-las a um contexto mais amplo de análise. Com efeito, embora a oposição constatativo/performativo não venha a se exaurir na simples forma gramatical do enunciado, a gramática de superfície costuma oferecer elementos orientadores, o que poderíamos – usando um termo wittgensteiniano – chamar de sintomas: sintomas gramaticais, que, por seu caráter dependente e convencional, não precisam refletir inteiramente a distinção. Precipitar-se na busca de um critério gramatical para uma distinção não essencialmente gramatical pode ser enganador; culpar a distinção pelo fracasso em encontrá-lo, injusto.

   Austin também buscou invalidar a condição não-gramatical fundamentadora da distinção, mostrando que ela dá lugar a vaguidades insuportáveis. A maior parte dos proferimentos constatativos, diz ele, são apenas aproximadamente (roughly), em certa medida (up to a point), em certos contextos (to some contexts), para certos fins e propósitos (to certain intents and purposes), verdadeiros. Exemplo disso é a frase “A França é hexagonal”, que pode ser verdadeira dita por um general e falsa dita por um cartógrafo.[4]

   Há neste argumento uma irritante confusão entre dois diferentes usos da palavra ‘verdade’; uma confusão que se desfaz quando distinguimos claramente entre eles. O primeiro é o que constitui o sentido próprio ou normal da palavra, que aparece em expressões como ‘verdadeiro em certo contexto (para certo fim e propósito)’; o segundo é um uso dependente ou adventício, que aparece em expressões como ‘aproximadamente (em certa medida) verdadeiro’. Em ambos os casos, a frouxidão típica da linguagem corrente nos permite dizer que predicamos a verdade de frases, quando na realidade a estamos predicando de coisas diversas.

  Quanto ao primeiro uso da palavra ‘verdade’, não advém qualquer vaguidade de sua aceitação. É sabido que o valor-verdade de muitas frases (das que contém indexicais etc.) depende também do contexto em que elas ocorrem. Por isso mesmo, e pelo fato de haver uma diversidade possível de frases que dizem o mesmo, geralmente aceitamos, para preservar o princípio da invariância da verdade, que seu genuíno portador não é propriamente a frase, mas o que a frase diz no contexto de seu proferimento, o que chamarei de conteúdo enunciativo. Assim, quando atribuímos um valor-verdade à frase “A França é hexagonal”, não estamos realmente atribuindo esse valor à frase, mas ao seu conteúdo enunciativo. Com isso a atribuição de verdade perde a sua pretensa ambiguidade e variabilidade, pois passa a ser vista como sendo feita de conteúdos enunciativos diferentes; dizemos que a frase “A França é hexagonal” é verdadeira dita pelo general e falsa dita pelo cartógrafo, mas o que realmente queremos dizer com isso é que supomos dois proferimentos em contextos diferentes, ou seja, dois conteúdos enunciativos intrinsecamente diversos, um é verdadeiro, o outro falso.

   Consideremos agora o uso da palavra ‘verdade’ no segundo sentido, de ‘aproximadamente verdadeiro’. Nesse caso, usamo-la de uma maneira adventícia, quase figurativa, atribuindo-a a um portador que não será outro senão todo um conjunto de ocorrências de uma mesma frase, independentemente dos diferentes conteúdos enunciativos que essas ocorrências veiculam. Neste sentido o que chamamos de verdade passa a admitir gradações: a “sentença” será dita mais verdadeira quanto maior for o número de conteúdos enunciativos verdadeiros de seu conjunto de ocorrências, e mais falsa quanto maior o número de conteúdos enunciativos falsos do mesmo conjunto. Esse uso dependente da palavra ‘verdade’ poder ocorrer, por exemplo, quando dizemos que a frase “A França é hexagonal” é apenas “parcialmente verdadeira”, ou que um dito como “O que está em cima é idêntico ao que está em baixo” possui “um pouco de verdade” etc. Em ambos os casos, o que queremos dizer é que somente uma parte das ocorrências sentenciais expressam conteúdos enunciativos verdadeiros.

   Não distinguindo os dois recém-esclarecidos usos da palavra ‘verdade’, Austin embaralha-os de maneira a precipitar-se em conclusões desarrazoadas. Ele retém do uso espúrio a ideia de que o portador da verdade seja a ocorrência ou o conjunto de ocorrências da frase, generalizando essa ideia mesmo para aqueles casos mais fundamentais, em que o portador da verdade é o que o proferimento diz, seu conteúdo enunciativo; e como é frequente que o conjunto de ocorrências seja apenas aproximadamente, parcialmente verdadeiro, ele conclui erroneamente que o conceito próprio de verdade costuma admitir gradações, que é geralmente inútil falar da verdade e falsidade de frases etc. Não seria difícil demonstrar que outros casos por ele exemplificados repousam em confusões semelhantes.

   Há também casos de proferimentos constatativos que, apesar de toda a explicitação contextual, são mesmo demasiado vagos para possuírem valor-verdade definido. Mas esses, além de serem geralmente considerados falhos, nulos, sem efeito, sem significação prática, eles são, contrariamente à sugestão de Austin, mais incomuns do que a imaginação filosófica pode nos levar a crer. Além disso, sua presença não torna a distinção vazia, tanto como a inexistência de uma linha precisa entre o azul e o verde não nos revela a necessidade de abandonar a distinção entre essas duas cores: que dois polos conceituais se delimitem por um continuum não os torna injustificados. Algo semelhante pode ser dito com respeito à natureza da oposição constatativo/performativo. Podemos fazer listas de verbos que comecem com os mais tipicamente constatativos, terminando com os mais tipicamente performativos. Eis uma delas:

 

1

2

3

4

5

6

Constato

Explico

Duvido

Reconheço

aviso

ordeno

Afirmo

Contradigo

Classifico

Asseguro

nomeio

demito

Descrevo

Provo

Consider

Aconselho

prometo

multo

 

Uma lista como essa sugere que a oposição constatativo/performativo é gradual, além de extremamente abrangente, aplicando-se aos mais diversos domínios da linguagem. Nesse caso, como nos anteriores, existem formas de vaguidade, mas elas não são insuportáveis, visto que encontram seu fundamento na vaguidade e gradualidade da própria daquilo que está em questão.

   Um outro argumento austiniano é o de que, com as diferentes formas de constatativo, como afirmações, declarações, descrições, comunicações, relatos... também estamos realizando (performing) ações. Com efeito, embora os constatativos sejam atos “de” (of) se dizer algo, e os performativos sejam atos realizados "ao” (in) se dizer algo, os atos “de” se dizer algo dos constatativos costumam acompanhar-se de atos realizados “ao” se dizer algo, ou seja, de ações interativas. De semelhantes considerações emerge a ideia de que os constatativos não passam de um mero subgrupo dos performativos.

   Assim expressa, a objeção nos induz a desconsiderar que nunca esteve em causa o fato trivial de que constatar é realizar uma ação interativa, um espécime do “fazer”. Falar é, obviamente, agir, e não seria necessária nenhuma teoria das forças ilocucionárias para ensinar-nos isso. A objeção é antes outra: a de que a forma do dizer do proferimento constatativo é um fazer pertencente ao mesmo gênero daquele dos performativos. Ou, em ainda outras palavras: a de que as condições para os constatativos confundem-se com as condições dos performativos. E aqui nossa resposta terá de ser negativa.

   A rejeição dessa objeção decorrerá se nos aproximarmos da questão orientando-nos a partir da perspectiva encontrada em Ernst Tugendhat. Com base em Anthony Kenny e Erik Stenius, esse autor distingue entre dois modi semânticos fundamentais, aos quais se reduziriam todas as frases: o teorético (assertórico) e o prático. Como observa Tugendhat, a frase assertórica baseia-se em condições de verdade (Wahrheitsbedingungen), tendo sido concisamente definida por Wittgenstein como sendo a frase que “mostra qual é o caso, se ela é verdadeira. E diz que assim é o caso”.[5] (T 4.022) Já a frase prática (imperativa, volitiva, intencional) baseia-se em condições de preenchimento (Erfüllungsbedingungen); ela “mostra qual é o caso, se ela é preenchida, e diz que assim deve ou haveria de ser o caso”[6]; ela visa a produção, a efetivação de um estado de coisas que ainda não existe. Na frase assertórica as palavras devem adequar-se ao mundo; no caso da frase prática é o mundo que deve adequar-se às palavras.

   Tugendhat acusou autores como Austin e Searle de terem descurado da perspectiva semântica, o que os levou, com a teoria das forças ilocucionárias, a perderem de vista a distinção e a multiplicar um tanto aleatoriamente os modi. Não obstante, é evidente que esses dois modi semânticos fundamentais de frase – o assertórico e o prático – detém uma correspondência com aquilo que Austin, sob a perspectiva de uma pragmática das ações linguísticas, chamou respectivamente de proferimentos constatativo e performativo.

   Contudo, se Austin esquece a perspectiva semântica, Tugendhat não aprofunda a perspectiva pragmática, que pode ser concebida de modo a envolver a primeira. Mais esclarecedora seria então uma análise abrangente, que considerasse tanto os aspectos semânticos quanto os aspectos pragmáticos dos dois modi. É o que me proponho fazer a seguir. Para tal, minha estratégia consistirá em começar esclarecendo as condições semânticas implícitas em distinções como a de Tugendhat, passando então ao estabelecimento das condições pragmáticas; farei isso partindo do modus assertórico em direção à ação constatativa e depois partindo do modus prático em direção à ação performativa. Ao final compararei o conjunto das condições estabelecidas para os proferimentos constatativos com o conjunto das condições estabelecidas para os proferimentos performativos assim obtidos, o que evidenciará a existência de diferenças essenciais envolvidas.

   Comecemos com o modus assertórico. Segundo uma conhecida caracterização de Frege, a asserção se faz por referência à satisfação de três condições.[7] A primeira delas é:

 

(α -i) “Acesso ao pensamento”: o que poderíamos chamar de apreensão ou concepção de um conteúdo enunciativo.

 

Trata-se de um acesso ao que Frege chama de pensamento (proposição), e que (para evitar um desnecessário comprometimento com a sua interpretação ontologicamente realista do mesmo) prefiro chamar de conteúdo enunciativo. Esse acesso pode ser tanto aquisitivo quanto criativo. Ele é aquisitivo no caso de conteúdos como os do saber científico, que podem ser independentemente deparados por outros sujeitos em situações semelhantes, donde dizemos, com Frege, que a sua apreensão (fassen) é “passiva”, que eles podem ser “encontrados”, “descobertos”; já o acesso é criativo quando os conteúdos não podem ser independentemente deparados por outros, mesmo que eles se encontrem em situações semelhantes, como ocorre nos casos das produções fictícias da imaginação, da arte; nesse caso, preferimos dizer que eles são “inventados”, “criados”.[8] Finalmente, o acesso a um conteúdo enunciativo pode ser feito sem que entre em consideração o valor-verdade do dito conteúdo. É perfeitamente possível que eu pense em meu exemplar do romance Wuthering Heights como encontrando-se na estante, sem considerar se ele realmente lá está.

   A segunda condição consiste em:

 

(α-ii) Reconhecimento da verdade do conteúdo enunciativo ou pensamento apreendido ou concebido: o ato judicativo.

 

Trata-se da adição de uma pretensão de verdade ao conteúdo enunciativo pensado.

   Sei que meu pensamento de que o exemplar de Wuthering Heights se encontra na estante é verdadeiro porque recém coloquei-o lá; ou então, sei que o pensamento é falso, i.e., que é verdadeiro que o livro não se encontra na estante, pois acabei de emprestá-lo.

   Se adiciono um valor-verdade ao meu pensamento de que o livro se encontra na estante, o que realizo é um juízo acerca de algo. Trata-se de um ato psicológico-intencional, pelo qual reconheço a satisfação ou não das condições de verdade do conteúdo enunciativo, no caso acima, a comprovada aplicabilidade de uma regra ou procedimento verificacional. Uma característica notável das condições semânticas (a-i) e (a-ii) é que a sua satisfação não é contemporânea ao proferimento: o juízo é realizado independentemente do proferimento, como consequência de verificações anteriores a ele próprio. Em contraste, veremos que as condições pragmáticas são geralmente contemporâneas ao proferimento.

   Quando se pretende comunicar um juízo, deve-se satisfazer também condições pragmáticas, que são as de interação, de estabelecimento de uma relação interpessoal. Esse é já o caso da terceira e última condição assinalada por Frege, cuja satisfação nos faz passar do juízo à asserção:

 

(α-iii) Manifestação do juízo; o ato de afirmar (de asserir).

 

Ação linguística que externaliza o conteúdo enunciativo acrescido de sua pretensão de verdade: a asserção p. d.

   Essa condição é cumprida no exemplo considerado por ocasião da afirmação: “Meu exemplar de Wuthering Heights encontra-se na estante”; havendo manifestação de um conteúdo enunciativo com pretensão de verdade, é essa pretensão aqui não mais um ato intencional de natureza psicológica, mas sua inscrição linguística na ação comunicativa.

   Pode-se, obviamente, asserir sem se ter ajuizado e sem se ter realmente a intenção de expressar o juízo; nem por isso deixará de haver pretensão de verdade ou força assertórica inscrita no proferimento. Mas o que Frege chamava de força assertórica, a pretensão de verdade decorrente de certas manifestações linguísticas, só se torna interessante por resultar também da satisfação das duas primeiras condições. Embora possamos conceber que algumas asserções, embora satisfazendo (α-iii), não satisfaçam as condições (α-i) e/ou (α-ii), não é possível conceber que simplesmente nenhuma das asserções feitas em nossa linguagem às satisfizesse, pois se esse fosse o caso a própria noção de asserção perderia sua razão de ser: como seria possível falar de asserções, de afirmações, se os usuários da linguagem em momento algum fossem capazes de pensá-las, de reconhecê-las como verdadeiras?

   O reconhecimento da existência de condições para os constatativos que não precisam ser concretamente satisfeitas, mas que nem por isso deixam de ser relevantes, nos sugere a vantagem de uma abordagem abrangente, que recorra ao que chamarei de proferimentos exemplares: ações comunicativas típicas, que exemplificam idealmente um modus ou função da linguagem, servindo de modelo para a sua identificação, na medida em que satisfazem todas as condições que lhe possam ser relevantes. Muitas ações comunicativas podem satisfazer apenas uma parte dessas condições; mas nem por isso elas deixam de ser classificáveis como realizadoras da mesma função linguística dos proferimentos exemplares, pois elas podem ser interpretadas como casos incompletos ou degenerados dos últimos. A condição para a inclusão de um desses casos no modus ou função reduz-se, pois, ao fato de ele compartilhar, com os proferimentos exemplares, da satisfação de condições mínimas necessárias para a função linguística em questão. E isso é assim porque o preenchimento de tais condições nos permite depreender a potencialidade que um tal proferimento incompleto tem de vir a satisfazer todas as condições relevantes para uma certa função, mais do que outras. Assim, um proferimento pode satisfazer somente (α-iii), mas ele será considerado constatativo na medida em que com isso tiver a maior potencialidade de satisfazer também (α-i) e (α-ii).

   Tendo isso em mente, podemos perguntar: identifica-se a ação própria do modus assertórico, considerado como asserção de um juízo do falante, isto é, supondo a satisfação das condições fregeanas (α-i)-( α-iii), com a ação que satisfaz um proferimento constatativo exemplar? A resposta deve ser negativa. Se o proferimento constatativo – como, de resto, o performativo – deve ser investigado como “o proferimento total na situação de fala total” (Austin), ele deve ser entendido como uma ação comunicacional completa, o que é mais do que uma frase assertórica proferida. Faz-se necessário examinarmos a satisfação de condições pragmático-interativas subsequentes. Uma delas é a de adequação daquilo que ultrapassa o falante, i. e., do ouvinte e do contexto. A essa condição de comunicabilidade chamo de condição de acessibilidade da asserção:

 

(α-iv) A asserção deve ser feita em contexto adequado, sendo acessível a um ouvinte em condições adequadas para a sua recepção.

 

Deve haver uma audiência (ouvinte, ouvintes, o próprio falante) que esteja em condições de compreender a asserção, que ainda a desconheça etc. E deve haver um contexto adequado, o que pode ser entendido em um sentido amplo, que inclua o pano de fundo necessário à transmissão da informação. Com efeito, pouco sentido fará eu afirmar que o livro se encontra na estante, se não houver ninguém para ouvir-me, se o ouvinte não souber português, se já tiver conhecimento do juízo, se houver uma parede de vidro entre nós, se não houver estante, livro etc.

   Pode-se considerar que tal condição de comunicabilidade da asserção também não é estritamente necessária; é perfeitamente possível asserir (dizer, afirmar, declarar) na ausência de uma audiência, como o indicam expressões como “monologar”, “pregar em um deserto”, “falar para as paredes”... Não obstante, mesmo que essa condição não seja essencial, é importante considerá-la, visto que à semelhança do que vimos na condição anterior, não se poderia dar sentido à noção de asserção no caso em que todas nossas asserções fossem proferidas em situação de solilóquio. Essa consideração mostra que asserções proferidas em solilóquio só podem sê-lo em sentidos secundários, dependentes, incompletos, enfraquecidos, parasitários do termo. Isso mostra outra vez a importância de uma análise das condições de proferimentos exemplares, que servem de paradigma para uma dada função ao satisfazerem todas as suas condições relevantes. Mesmo assim, com exceção da condição (a-iii), as outras condições já examinadas também não são estritamente imprescindíveis aos constatativos: posso realizar um proferimento sem que haja alguém para ouvi-lo e sem tê-lo realmente pensado ou ajuizado, e mesmo assim, ele poderá ser identificado como um constatativo, como uma afirmação (num sentido enfraquecido). Não obstante, é completamente inconcebível que todas as nossas asserções fossem assim, pois em tal caso não teríamos mais realmente asserções.

   Mesmo o que foi considerado até aqui é insuficiente para dar conta de todas as condições mais importantes a serem satisfeitas por uma ação comunicativa constatativa exemplar; tal proferimento também requer que o falante “tenha consciência do que está fazendo”, que ele tenha ao menos uma certa intenção informativa, pertencente ao gênero das intenções comunicacionais. Assim, acrescentamos às condições anteriores ainda a seguinte condição psicológica básica:

 

(α-v) Intenção do falante de compartilhar informativamente seu juízo com o ouvinte, de participá-lo do juízo.

 

Se digo a alguém que o meu exemplar de Wuthering Heights se encontra na estante é porque tenho basicamente a intenção de fazer com que o ouvinte também venha a saber disso.

   Essa intenção é a de informar, que é o mesmo que compartilhar o juízo, no sentido de fazer com que o ouvinte “leia” diretamente no proferimento, acrescido de sua pretensão de verdade, o mesmo conteúdo enunciativo que o falante nele “inscreveu” após ter realizado o juízo.

  Apesar de sua importância, pode-se ponderar que a condição (a-v) é de nível psicológico e portanto contingente, inessencial, à semelhança da quarta condição. Com efeito, não é necessário que o falante tenha a intenção de compartilhar o juízo para que se dê um proferimento constatativo. Isso pode ser ilustrado por um episódio de um conhecido conto de fadas. À noite, crendo-se isolado na floresta, o anão chamado Rumpelstiltskin canta e dança em torno de uma fogueira soletrando alto o seu nome, certo de que ninguém o está ouvindo; ao fazê-lo, porém, ele comunica involuntariamente o nome a um mensageiro da rainha que o espreita, o que permite que no dia seguinte essa última “adivinhe” o seu verdadeiro nome. Não há aqui qualquer intenção informativa, pois a última coisa que Rumpelstiltskin queria era que a rainha viesse a descobrir seu nome. Mas nem por isso o proferimento deixa de ser uma ação comunicativa constatativa.

   Também aqui, mesmo que nem todo falante possua intenção comunicacional ao proferir um constatativo, não parece concebível que proferimento constatativo algum satisfizesse a condição (α-v): poderíamos, se jamais comunicássemos juízos com a intenção de fazê-lo, chamar tais ações de proferimentos constatativos? Parece que não, pois embora nem todo proferimento dito constatativo venha acompanhado de uma intenção informativa ao nível psicológico, ele é dito constatativo por ser reconhecido como uma forma incompleta, derivada ou degenerada daqueles casos em que essa intenção existe. Sendo assim, o que em todos eles podemos reconhecer é a possibilidade da ocorrência de uma intenção informativa em nível psicológico. Essa intenção potencial pode ser corretamente chamada de uma pretensão, entendida como uma finalidade linguisticamente ou mesmo contextualmente manifesta, capaz de ser lida na força do proferimento total, no complexo gramático-conceitual que ele em seu contexto evoca, finalidade essa que é a de produzir em alguém a tomada de consciência de que algo é caso, o que inclui a pretensão de verdade, a força assertórica.

   Podemos, por conseguinte, substituir (α-v) pela seguinte reformulação não-psicológica e necessária da mesma condição, que chamarei de:

 

(α-iii’) Deve mostrar-se inscrita na ação comunicativa a pretensão de se compartilhar informativamente um conteúdo enunciativo com pretensão de verdade.

 

Se digo que o livro se encontra na estante, vem inscrita no proferimento total uma intenção informativa potencial, mesmo que falte o ato psicológico ou a sua expressão integral. Chamo a essa pretensão de interativo-informativa ou simplesmente de informativa. Não há exagero nisso. Afinal, a pretensão de verdade mencionada na condição (a-iii) nada mais é do que a potencialidade do proferimento de veicular uma intenção de atribuição de verdade a um certo conteúdo enunciativo; é, pois, só por essa relação com uma atividade cognitiva virtual que faz sentido falarmos de ‘pretensões de verdade’ ou de ‘pretensão’ em geral. Além disso, se aceitamos a noção de uma pretensão de verdade em nível linguístico-conceitual, por que não ampliá-la, admitindo uma pretensão de informar a verdade? Finalmente, em seu sentido mais completo, a pretensão de verdade não parece ser realmente separável de uma pretensão de informar a verdade, como o indica a sua própria natureza linguístico-conceitual.

   Podemos dizer que a condição (α-iii’) engloba a condição (α-iii). Estritamente pensada, (α-iii) é a condição de uma externalização do conteúdo enunciativo com a sua pretensão de verdade, com a sua força assertórica; (a-iii’) adiciona a isso apenas a pretensão de compartilhar informativamente esses itens. Considere-se o exemplo seguinte: “Quero informar-te que o livro se encontra na estante”; não há aqui somente a explicitação do juízo, mas a pretensão expressa no pronome e nas pessoas verbais, de informar outra pessoa. Mas essa pretensão deve existir, mesmo quando verbalmente inexplícita, como no proferimento “O livro está na estante”. Ela ainda existe, por convenção, mesmo não havendo juízos, intenções ou ouvintes.

   O que foi até aqui considerado certamente não exaure a análise das condições e subcondições que poderia ser considerada. Poderíamos detalhar, por exemplo, condições contextuais de inteligibilidade, de cooperação, condições de reconhecimento de intenções pelo ouvinte e sua contraparte no falante, mas nada disso é necessário à plausibilidade do presente argumento.

   Examinando as condições até aqui discutidas, podemos ver agora mais claramente o que permanece indispensável à forma constatativa da ação comunicativa. Basta considerarmos a singularidade da condição (α-iii), elaborada como (α-iii’): a pretensão de interação informativa, de compartilhamento ou participação comunicativa de algo como sendo o caso, que pode ser diretamente lida na manifestação assertórica do juízo. Essa é a condição mínima necessária, comum a todos os constatativos, a ela se subordinando outras condições de interação, como (a-iv) e (a-v), que servem para conduzir o juízo à sua comunicação. Daí advém a possibilidade de definirmos, unificando sob uma perspectiva teleológica (em sentido não-psicológico), a forma de ação própria de todo e qualquer proferimento que envolva idealmente a satisfação das condições (α). Trata-se, para evitarmos falar de uma “intenção não-psicológica”, da condição de que venha inscrita na forma do proferimento uma pretensão de interação informativa. Tal pretensão pode ser explicada como uma forma de ação na qual se inscreve a finalidade de participação informativa de um certo conteúdo enunciativo asserido, ou seja, de compartilhamento de uma possível representação, cognição ou tomada de consciência de algo como sendo o caso, que é a consciência da satisfação de condições de verdade, da verificação.

   Com efeito, se alguém profere um constatativo, se alguém diz que o gato está sobre o tapete, que está chovendo, que sente fome, a finalidade primeira da ação é tornar também o ouvinte ciente disso.

  Com isso chegamos ao esquema seguinte, que resume o que há de imprescindível ao proferimento dito constatativo:

 

Proferimento:

Pretensão, força, forma de ação:

CONSTATATIVO

INTERATIVO-INFORMATIVA

Finalidade, inscrita no proferimento, de compartilhamento informativo de um conteúdo enunciativo asserido com um suposto ouvinte.

 

 

Vejamos agora em que resulta a aplicação do mesmo procedimento na busca de condições a serem satisfeitas por proferimentos performativos exemplares.

   Se a frase prática é a que “mostra qual é o caso, se ela é preenchida, e diz que assim deve ou haveria de ser o caso”, a comunicação de conteúdos enunciativos deixa de ser fundamental. O que merece ser considerado passa a ser as condições para a concretização de um estado de coisas, o que aponta para algumas condições de felicidade básicas que chamarei de realizativas, cuja satisfação dá ao proferimento o que poderia ser chamado de uma força (significação) realizativa, diversamente das condições ou forças anteriores, cuja finalidade era mais propriamente informativa.

   O que chama particularmente atenção é o fato de que aqui também pode ser estabelecido um mesmo número de condições, que são paralelas e semelhantes às condições para os proferimentos constatativos, embora não idênticas a elas. Penso que teriam sido a semelhança e o paralelismo entre as condições dos dois grupos um dos fatores que permitiram que Austin os confundisse.

   A primeira condição é semântica e análoga à do acesso ao conteúdo enunciativo em Frege:

 

(β-i) Apreensão ou concepção (frequentemente esquemática ou potencial) de um certo conteúdo enunciativo.

 

Trata-se da apreensão pelo falante do conteúdo enunciativo do que é para ser o caso, do conteúdo de um efeito visado. Por exemplo: se desejo pedir a alguém que ponha o exemplar de Wuthering Heights na estante, é porque concebo ou ao menos posso conceber o fato de o livro ser colocando na estante ou o estado de coisas de ele lá se encontrar; se me desculpo por ter pisado no pé de alguém, é porque posso conceber o efeito psicológico visado.

   Note-se que tal acesso ao conteúdo enunciativo do que há de ser o caso não precisa ser contemporâneo ao proferimento. Além disso, não exercendo aqui o mesmo papel fundamental, é frequente que tal conteúdo não seja pensado em suas particularidades, podendo sê-lo esquematicamente, de maneira vaga ou incompleta, ou ao menos como algo, um “não sei bem o que” cuja possibilidade é, não obstante, concebível. Por exemplo: se uma pessoa, chegando à cidade de Natal, pergunta onde fica o hotel Vila do Mar, certamente ainda não sabe como encontrá-lo, mas já deve ter alguma informação acerca da região onde ele se localiza, sobre o que espera encontrar sob esse nome, ou, ao menos, o que é um hotel, como localizar um tal objeto etc. Se a pessoa não souber nada disso, então por certo ela não sabe o que diz nem o que quer.

   A próxima condição que os proferimentos performativos devem preencher é análoga à da atribuição de valor-verdade ao conteúdo proposicional nos constatativos. Trata-se de:

 

(β-ii) Pretensão de que o conteúdo enunciativo em questão seja factualmente realizado: a pretensão prática.

 

Chamo aqui de pretensão prática ou realizativa a intenção psicológica de que um certo conteúdo enunciativo seja factualmente efetivado, de que o estado de coisas a ele correspondente se realize, se concretize. Um exemplo é a minha intenção de que certo livro seja de fato colocado na estante. A pretensão realizativa dos participantes (de que o mundo se adeque ao pensamento) para os performativos é análoga à pretensão de verdade (de que o pensamento se adeque ao mundo) para os constatativos, podendo ambas dar-se mentalmente como intenções, ou então inscreverem-se tipicamente como pretensões, como intenções potenciais, nos próprios proferimentos.

   Com isso podemos passar a uma condição correspondente à da asserção p. d., à condição do proferimento performativo ou prático:

 

(β-iii) Ação linguística de externalização da pretensão prática quanto a um certo conteúdo enunciativo: proferimento prático.

 

Exemplo disso é o proferimento: “Peço que o livro seja colocado na estante”. Note-se que a pretensão prática vem inscrita no próprio proferimento ou ao menos em seu contexto, não necessitando vir acompanhada da intenção psicológica correspondente, decorrendo seu sentido tão-somente da potencialidade que o proferimento real demonstra de veiculá-la, de evocá-la.

   A consideração do ato de fala total também exige a adição de outras condições pragmáticas ou interativas, como a condição de acessibilidade do proferimento prático:

 

(β-iv) A manifestação da pretensão realizativa deve ser feita em contexto adequado, sendo acessível a um ouvinte em condições adequadas de recepção, capaz de reagir de maneira que o conteúdo enunciativo a que se liga a pretensão seja factualmente realizado.

 

Deve haver uma audiência (ouvinte, ouvintes, e em certos casos mediatamente o próprio falante) em um contexto tal que ela esteja em condições de fazer com que se dê a realização do estado de coisas previsto no conteúdo enunciativo de que haja a concretização de seu correspondente factual, seja ele o que for. Se peço que o livro seja colocado na estante, uma condição interativa disso é a de que haja alguém em circunstâncias tais que possa reagir ao pedido. Essa condição, diversamente de (b-iii), não é estritamente necessária, como também não o são (b-i) e (b-ii), aplicando-se a palavra ‘performativo’ em um sentido dependente, nos casos em que tais condições não são satisfeitas.

   Há, por fim, uma condição intencional análoga à condição (α-v) dos performativos, que é:

 

(β-v) Intenção do falante de produzir, através do ouvinte (no ou por ele), a realização factual do conteúdo enunciativo que ele pretende que seja factualmente realizado.

 

Por exemplo: ao pedir a alguém que certo livro seja colocado na estante, costumo ter a intenção de que o livro seja realmente colocado na estante por essa pessoa. Pode ser que eu tenha uma outra intenção, digamos, a de chamar a atenção da pessoa para o livro, mas nesse caso o conteúdo enunciativo que desejo efetivar (ex: “Tão extraordinário quanto Shakespeare!”) também será outro, inferível a partir do contexto. Isso não importa, como também não importa analisar aqui intenções subsidiárias como a do reconhecimento da pessoa de que eu tenho tal intenção etc.

   A intenção ou pretensão prática, considerada em (β-ii) e expressa em (β-iii), era a de que o conteúdo proposicional se concretizasse factualmente, de que se produzisse um correspondente dele no ouvinte, no mundo externo, ou mesmo no próprio falante. Agora trata-se da mesma intenção, mas com uma adição relevante: a de que isso se dê através da interpretação do proferimento pelo ouvinte.

   Também aqui a intenção não precisa ser de ordem psicológica, o que se estende à pretensão prática por ela abrangida, pois isso só é esperado em proferimentos modelares. Podemos por isso reformular a condição (b-v) de modo a formar uma condição comunicacional não-psicológica, uma intenção apenas potencial, i.e., algo que vem inscrito na forma do proferimento total, no complexo gramático-conceitual que ele contextualmente evoca, ou ainda, como uma pretensão, legível no proferimento, de concretizar factualmente, através do ouvinte a pretensão realizativa quanto a um certo conteúdo enunciativo. Evitando conotações psicológicas, chamo a isso de pretensão interativo-realizativa.

   Assim entendida, a condição torna-se:

 

(β-iii’) Deve mostrar-se inscrita na ação comunicativa a pretensão de realização factual através do (no ou pelo) ouvinte, de um certo conteúdo enunciativo com pretensão realizativa.

 

Se digo a alguém: “Peço-te para colocar o livro na estante”, explicito linguisticamente com o verbo performativo na primeira pessoa, com o pronome pessoal, o elemento interativo específico da pretensão de interação realizativa. Mas esse pode ser o caso mesmo em performativos implícitos, por exemplo, no proferirento “O livro poderia ser posto na estante”, onde o contexto se encarrega de evidenciar qual é a pretensão de interação realizativa.

   A ação expressa em (b-iii’) pode, certamente, ser considerada como incorporando a pretensão realizativa quanto ao conteúdo enunciativo, própria da condição (b-iii), sendo frequente que elas não venham linguisticamente distinguidas. (b-iii’) é também uma condição necessária, presente em tudo aquilo a que chamamos de performativo. Considerando o que chamamos de pretensão interativo-realizativa em termos de uma forma de ação, podemos também explicá-la como uma ação que tem a finalidade convencionalmente fundada de concretizar factualmente, através de um ouvinte, a pretensão realizativa ou prática quanto a um certo conteúdo enunciativo.

   Posso resumir o que é imprescindível ao proferimento dito performativo com o seguinte esquema:

 

Proferimento:

Pretensão, força, forma de ação:

PERFORMATIVO

INTERATIVO-REALIZATIVA

Finalidade, inscrita no proferimento, de

realização factual de um certo conteúdo

enunciativo através de um suposto ouvinte.

 

Estamos agora em condições de responder a Austin. Se o argumento dele é correto, então os proferimentos constatativo e performativo não são essencialmente diversos. Ora, como o que há de essencial nos proferimentos é, para os constatativos, a pretensão interativo-informativa, e, para os performativos, a pretensão interativo-realizativa, se Austin está certo então essas pretensões ou ações não se distinguem essencialmente. Mas sob a luz das análises acima efetuadas a diferença é clara. Podemos resumi-la sob a afirmação de que a ação de finalidade informativa, que é a primeira pretensão, diz respeito à transmissão informativa de um juízo, devendo resultar em um juízo que é basicamente um meio para a consecução de fins (podemos comparar tal ação à passagem de um bastão em uma corrida olímpica, à passagem de um tijolo do ajudante ao pedreiro). Em contrapartida, a ação de finalidade realizativa deve resultar em um efeito, na realização de um estado de coisas que é antes de tudo um fim, mesmo que sirva para outros fins (detendo certa analogia com o ato de segurar uma pessoa que está escorregando, com o murro de um boxeador...).

   Contudo, se o que queremos saber é se a diferença é essencial, tais considerações podem não bastar. E mister irmos mais além, verificando se a distinção se mantém ao nível mais específico dos possíveis efeitos visados nas múltiplas formas de ação performativas; só então saberemos se ela é efetivamente generalizável.

   Vejamos. No caso da pretensão informativa, a finalidade da ação é produzir no ouvinte um efeito, a cognição de um conteúdo enunciativo com pretensão de verdade, a qual é por ele diretamente “lida” no proferimento. No caso da pretensão realizativa, a finalidade da ação também é a de produzir, através do ouvinte (no ou por ele), um efeito, uma realização factual. Só que em tal caso o efeito possui uma natureza mais variada. Podemos compendiar essa variedade dos efeitos performativos considerando basicamente o envolvimento da efetivação (ou impedimento de efetivação) de três espécies de ação:

 

(a)   Ações físico-mecânicas. Tais ações podem ser movimentos corporais e ações sobre objetos. Exemplos de movimentos corporais são gestos; exemplo de ação sobre objetos é a de se colocar o livro na estante.

 

Nesses casos a ação nada tem a ver com o resultado da ação de finalidade informativa, pois a cognição de um conteúdo enunciativo com pretensão de verdade não é, obviamente, uma ação físico-mecânica.

 

(b)  Reações afetivo-volitivas. Exemplo de uma reação afetiva intencionada pelo falante é o tipo de efeito emocional produzido no ouvinte por uma ofensa; exemplo de uma reação volitiva é a intencionada em um ato de encorajamento, que visa animar alguém, motivar sua vontade. Também aqui a ação realizativa nada tem a ver com a ação de finalidade informativa enquanto tal.

 

(c)   Efeitos cognitivos. Não é o caso mais típico, mas também é possível que haja uma intenção realizativa que vise, através do ouvinte, um efeito cognitivo na pessoa deste. Se, por exemplo, um professor de história pede aos seus alunos para imaginarem quais poderiam ter sido os resultados sócio-econômicos da mortandade provocada pela peste negra no século XIV, o efeito por ele visado poderá ser a tomada de consciência, por parte dos ouvintes, de um certo estado de coisas, a dizer, a realização de juízos pelos ouvintes, a apreensão autônoma, da parte deles, de certos conteúdos enunciativos com pretensão de verdade.

 

Podemos ter, por fim, efeitos mistos, advindos de combinações entre (a), (b) e (c), como ocorre em atos de fala determinantes de efeitos sócio-institucionais complexos (exs: casamento, batismo, excomunhão).

   Comparemos agora esses efeitos com os da ação de finalidade informativa. Nos casos (a) e (b) as diferenças são profundas e evidentes. Mas no caso (c) há realmente uma proximidade entre as duas formas de ação discutidas, pois aqui os performativos também visam um efeito cognitivo. Questão: é essa proximidade tão importante a ponto obstaculizar a diferenciação entre uma e outra forma de ação?

   Também aqui a resposta deve ser negativa. Quando afirmo algo, a finalidade da asserção é informar, compartilhar o mesmo juízo com o ouvinte, que o interpreta, que o “lê” (enquanro eu o “inscrevo”) no proferimento. Mas não é isso o que acontece no proferimento performativo no qual o efeito visado é cognitivo, pois nessa ação o modo de produção do juízo é diferente. Quando, digamos, peço ao ouvinte para realizar uma ação que resulte na cognição de que algo é o caso, quando peço a uma criança para somar 16 + 16, não estou compartilhando informativamente (reprodutivamente, mimeticamente) meu juízo de que 16 + 16 = 32 com ela. O que estou tentando fazer é que o meu proferimento atue nela como um estímulo desencadeador de um processo mental autônomo, que resulte na produção de um conteúdo enunciativo pretendido, que no caso é constituído pela própria cognição do juízo de que 16 + 16 = 32. Note-se que em tais casos sequer é preciso que o falante tenha tido prévio acesso ao conteúdo enunciativo que ele quer produzir, mas apenas que ele possa conceber sua possibilidade: não é preciso que eu já saiba que a raiz quadrada de 14.641 é 121 para que possa pedir a alguém para calculá-la. Em contrapartida, se realizo o proferimento informativo, o constatativo “A raiz quadrada de 14.641 é 121”, devo em geral conhecer plenamente o conteúdo enunciativo, sua pretensão de verdade, e devo ter a pretensão de participar isso informativamente, coisas que de um modo ou de outro já se encontram inscritas no proferimento, precisando ser apenas mimeticamente reproduzidas na leitura que o ouvinte dele faz.

   Com isso podemos finalmente concluir que as semelhanças que existem entre a ação de finalidade informativa e a ação de finalidade realizativa, entre as duas formas gerais de pretensão interativa, são superficiais. Elas são ações inteiramente distintas e normalmente inconfundíveis.

   Comparemos agora, para finalizar, nossos resultados com as condições de felicidade propostas por Austin no capítulo II de seu livro. Tal comparação revela por que ele achava difícil ver um fundamento para a distinção. O que ele expõe como condições de felicidade, caracterizadoras dos performativos, não é, como deveria ser, algo similar ao acima sugerido grupo (b) de condições realizativas para os proferimentos performativos. Suas condições de felicidade resumem-se em: (A.l) seguimento de procedimentos convencionais; (A.2) adequação de pessoas e circunstâncias; (B.l e B.2) correção e completude; (C.l) ocorrência de pensamentos, sentimentos, intenções; (C.2) coerência no comportamento subsequente. Acontece que também as ações de finalidade informativa dependem do seguimento correto de regras, da adequação de pessoas e contextos, da ocorrência de pensamentos etc. As condições de Austin formam um conjunto que é geralmente comum a ambas as formas de ação linguística, estando já presentes em ambos os grupos (α) e (β) de condições, sendo consequentemente incapazes de diferenciar tais formas substancialmente. Com esses meios não se admira, pois, que Austin não veja como encontrar uma diferença essencial entre constatativos de performativos. Finalmente, resta notar que não é correta a sugestão austiniana de que os constatativos diferem dos performativos por serem atos “de” se dizer algo, enquanto os últimos deveriam ser atos realizados “ao” se dizer algo; essa seria antes a diferença que existe entre as condições assertivas e semântico-explicitadoras, como (α-iii) e (β-iii), constituindo atos “de” se dizer, e condições pragmático-interativas como (α-iii’) e (β-iii’), que constituem atos realizados “ao” ou “em” se dizer algo.[9]

   Talvez por estar profundamente impressionado com a extraordinária riqueza de formas de interação convencionalmente mediadas por ele descobertas entre os performativos, Austin foi levado a investigar condições de interação no lugar onde deveria estar investigando condições realizativas. Logo no início ele perdeu de vista o que importava distinguir, plantando assim as sementes da confusão.[10]

   A análise por mim realizada continua exposta a mais uma objeção geral de Austin: a de que os proferimentos constatativos também dependem da satisfação de condições de felicidade, enquanto os performativos também dependem da satisfação de condições de verdade. Em outras palavras: as condições das duas formas gerais de ação anteriormente consideradas se sobrepõem, não sendo realmente separáveis.

   É verdade que o estabelecimento de novas condições de satisfação para as duas funções gerais contém uma resposta a essa objeção, enquanto baseada nas recém-criticadas condições austinianas de felicidade. Mas nem sempre é ou parece ser assim. Por exemplo: a existência de atos de fala indiretos que são primariamente constatativos e secundariamente performativos, ou vice-versa, é uma virtual fonte de dificuldades. Para introduzir uma análise de tais casos e mostrar como as dificuldades que aqui se apresentam podem ser contornadas, gostaria de começar examinando dois proferimentos cujo paralelismo teria, para Austin, o poder de mostrar que afirmar e prometer são atos de natureza similar:

 

(a)   “Minha câmera fotográfica está com defeito”, dito quando o falante não tem câmera   alguma.

(b)   “Prometo dar-lhe minha câmera fotográfica”, dito nas mesmas circunstâncias.

Segundo uma bem conhecida maneira de analisar, o enunciado (a), um pretenso constatativo, só é verdadeiro ou falso sob a condição de que o enunciado que ele pressupõe, “Eu possuo uma câmera fotográfica”, seja verdadeiro. Austin concorda com isso. Como o falante não possui câmera fotográfica, (a) é para ser considerado, não como um proferimento falso, mas sim vazio, nulo, sem valor. E como o fato de o falante ter uma câmera não é condição de verdade do proferimento (a), mas do enunciado pressuposto “Eu tenho uma câmera fotográfica”, a satisfação de tal condição de verdade é vista por Austin como uma condição para que o proferimento (a) não seja malogrado, ou seja, como uma condição de felicidade deste proferimento. Com isso temos uma condição de felicidade a ser satisfeita por um proferimento supostamente constatativo. Consideremos agora o exemplo (b). Ele é um proferimento performativo vazio, insincero. Que o falante tenha uma câmera fotográfica é condição de verdade do enunciado pressuposto “Eu possuo uma câmera fotográfica”, o qual precisa ser verdadeiro para que o proferimento (b) seja feliz. Assim, do mesmo modo que o constatativo (a) deve satisfazer também condições de felicidade, o proferimento performativo (b) pressupõe a satisfação de condições de verdade, o que parece inviabilizar a escolha de tais condições como critérios diferenciais.

   Para ambos os casos há um meio simples de salvar a distinção. Basta considerar a existência de dois níveis de condições, só sendo possível a satisfação das condições do primeiro nível quando as condições do segundo nível já foram satisfeitas. Elas são: (1) o nível das condições cuja satisfação é imediatamente requerida com base na forma do proferimento; (2) o nível das condições cuja satisfação é requerida pelas sentenças pressupostas, o que se dá pela existência do que é por elas afirmado. Ora, o que importa para a distinção constatativo-performativo é, em exemplos como os acima, que se pretenda satisfazer as condições para o nível (1), pois são essas que, nas formas não vazias dos proferimentos, poderão tornar (a) um constatativo indefectivelmente verdadeiro ou falso e (b) um performativo bem-sucedido ou não.

   Em adição a esse meio simples de salvar a distinção, há um outro meio simples, que é o de considerar que condições dos grupos (α) ou (β) estão sendo respectivamente satisfeitas pelos exemplos (a) e (b). Isso mostra que (a) possui pretensão interativo-informativa, satisfazendo a condição indispensável (α-iii’); o que (a) não satisfaz é uma parte da dispensável condição de acessibilidade (α-iv), relativa a um detalhe da adequação contextual, no caso, a condição de que o falante possua uma câmera fotográfica. Igualmente, (b) satisfaz a condição indispensável para os performativos, que é a de possuir a pretensão interativo-realizativa (β-iii’); contudo, como o falante não possui câmera fotográfica, o proferimento também não satisfaz parte da dispensável condição de acessibilidade (β-iv), relativa ao mesmo detalhe da adequação contextual. Não se trata, pois, de uma dificuldade real e incontornável.

   Os exemplos considerados também trazem à baila o seguinte problema: o proferimento (a) é falho, vazio, não chegando a ser verdadeiro ou falso – como então podemos chamá-lo de constatativo? Uma solução seria a de que nos recusássemos a considerar (a) um proferimento. Mas a solução mais natural e tolerante (que não é a de Austin), consiste em se ampliar os critérios de identificação, de maneira que os proferimentos constatativos deixem de ser somente aqueles efetivamente verdadeiros ou falsos, e passem a ser quaisquer proferimentos em cuja forma possa ser lida uma pretensão de verdade. Essa solução já foi por nós implicitamente adotada desde a introdução das condições (α-iii) e (α-iii’). O recurso à pretensão (intenção potencial) permite ampliar a classe dos constatativos de modo que ela venha a abranger, por exemplo, enunciados indecidíveis, mas dos quais se depreende uma pretensão interativo-informativa, como seria o caso de proferimentos como “Há seres vivos em outras galáxias”. Uma ampliação similar também deve ser feita com o critério para os performativos. Tudo o que é necessário é que eles tenham uma pretensão interativo-realizativa, não que a tenham ou não realizado. Isso permite a inclusão de casos como o de uma promessa feita para o futuro, da qual ainda se espera o cumprimento etc.

   Retomando à objeção austiniana: Para os dois exemplos dados, bastou para respondê-la nossa análise dos dois grupos (a) e (b) de condições. Mas há casos nos quais isso parece não bastar. Considere-se a advertência: “Cuidado: o touro vai atacar!” O enunciado complementar “O touro vai atacar!” tem pretensão de verdade, ainda que isso tenda a não ser considerado. O que nos faz dizer que um tal proferimento é uma advertência, um performativo?

 

 

II

 

Penso que o caminho para uma solução geral para semelhantes dificuldades foi curiosamente apontado pelo próprio Austin, ainda que logo a seguir abandonado sob a alegação, insuficientemente justificada, de que ela hipostasia casos marginais extremos. O que Austin sugere é que: (a) com os proferimentos constatativos nós abstraímos aspectos ilocucionários do ato de fala e nos concentramos no locucionário e na correspondência com os fatos (daí a pretensão de verdade); (b) com os proferimentos performativos damos o máximo de atenção à força ilocucionária e abstraímos da dimensão de correspondência com os fatos.[11] Se for assim, o que faz a distinção constatativo/performativo deixa de ser unicamente a presença de um ou de outro aspecto indicativo da forma de ação para tornar-se o aspecto que o proferimento enfatiza.

   A importância dessa sugestão foi notada por Jürgen Habermas, que buscou recuperá-la em uma “reconstrução” da teoria dos constatativos, com a qual pretendeu incorporá-la à arquitetônica de sua pragmática universal. Ele sugeriu que o proferimento constatativo é aquele que tematiza o seu conteúdo proposicional, dando-lhe uma pretensão de verdade, o que é característico do uso linguístico cognitivo e dos atos de fala que em sua classificação foram chamados de constatativos. Já os proferimentos performativos tematizam o aspecto da relação interpessoal, a pretensão de correção dos proferimentos, o que ocorre no uso linguístico interativo, que é típico dos atos de fala que ele chamou de regulativos.[12] Sem querer discutir a sugestão de Austin, que faz um uso pouco elucidativo das noções de aspectos locucionário e ilocucionário eu quero, antes de propor uma nova versão baseada nas considerações anteriores, justificar-lhe a necessidade com um breve comentário crítico acerca da reconstrução habermasiana.

   Diversamente do que Habermas sugere, o que os proferimentos constatativos devem tematizar é, pela nossa análise, não só um conteúdo proposicional, mas também a sua pretensão de verdade e ainda a pretensão de informá-la, o que inclui então a tematização de uma relação interpessoal! Por outro lado, pela mesma análise, é o caráter realizativo da ação performativa, e não o seu caráter interativo, igualmente presente nas condições para os constatativos, aquilo que a caracteriza.

   A favor de tais considerações fala a ausência de uma razão séria para se supor que o proferimento constatativo não possa, também ele, tematizar a universalmente visada relação interpessoal. Em defesa de sua posição, Habermas alega que o caráter acessório da relação interpessoal nos constatativos se manifesta no fato de que a forma explícita da asserção (“Eu afirmo que...”) é gramaticalmente correta, mas, se contraposta à forma abreviada, de todo inútil (‘ganz ungebrauchlich’)].[13] À parte o exagero, pois não é tão infrequente encontrarmos constatativos que começam com verbos como ‘comunicar’, ‘afirmar’, ‘descrever’ etc. na primeira pessoa, podemos encontrar também casos de performativos, como ordens, que poucas vezes adquirem sua forma normal, e ainda outros, como ofensas, dissuasões, alarmes, para os quais ela não existe.

   Ainda assim, o fenômeno demanda algum esclarecimento: admito que, à diferença de verbos como ‘ordenar’, ‘batizar’, ‘prometer’, verbos como ‘afirmar’, ‘constatar’, ‘julgar’... são relativamente redundantes, no sentido de que posso ouvir uma frase e saber que o proferimento deve ser constatativo sem que ela possua um verbo constatativo, e mesmo na falta de um contexto específico que me evidencie seu caráter constatativo; contudo, é menos provável que eu possa ouvir um proferimento e saber de que performativo se trata, se ele não for proferido em um contexto apropriado, a me mostrar a especificidade de sua pretensão realizativa, de sua força ilocucionária.

   Uma explicação razoável seria seguinte. As relações interpessoais visadas nas ações comunicacionais constatativas são mais naturais, mais uniformes e muito menos diversificadas, enquanto as relações interpessoais visadas pelos performativos são em um número muito maior e convencionalmente bem mais diferenciadas. Disso decorre que para os performativos a necessidade de explicitação da especificidade da relação interpessoal, de modo a fazer possível a determinação do efeito convencional visado, é muito maior, enquanto que do lado dos constatativos, sendo essa necessidade menor, e sendo eles tão frequentes, convencionou-se tornar a explicitação da relação interpessoal normalmente prescindível. Mas sendo assim, a infrequente tematização linguística da relação interpessoal nos constatativos é resultante de uma convenção perfeitamente contingente, não tendo a ver com a natureza própria dos constatativos, não significando que neles o elemento interativo não precise ser igualmente considerado.

   O que Habermas quer com a sua sugestão é, certamente, assimilar uma dicotomia de nível mais elementar à sua classificação mais complexa dos atos de fala, forçando-a a ajustar-se artificiosamente a um esquema tricotômico, que lhe adiciona a classe dos atos de fala por ele chamados de expressivos, tematizadora da veracidade como pretensão de validade universal.

   Com base nas análises anteriores, eis o que creio que se pode extrair, ao menos provisoriamente, das considerações feitas até aqui.

   Com efeito, podemos encontrar associações ou amálgamas de elementos constatativos e performativos nas ações e interações comunicativas. Isso ocorre particularmente em performativos que contêm uma dimensão constatativa, como em certos atos de fala indiretos (ex: “Você sempre se atrasa!”). Apesar disso a distinção se preserva. Isso acontece porque podemos geralmente distinguir um desses elementos como sendo comunicacionalmente tematizado, enfatizado, distinguido, posto em relevo na ação comunicativa. Daí ser melhor dizermos que o proferimento é constatativo, quando ele tematiza comunicacionalmente a pretensão interativo-informativa, com correspondente abstração de possíveis elementos performativos associados (razão pela qual o percebemos como uma ação com pretensão de verdade, com força assertiva). Por outro lado, chamamos o proferimento de performativo quando ele tematiza comunicacionalmente a pretensão interativo-realizativa, o que se dá pela correspondente abstração de possíveis elementos constatativos associados. Essa frequente duplicidade e considerações comparativas de intensidade ajudam a explicar a vaguidade e gradualidade da distinção, além de dar por suposta a existência de casos indecidíveis.

   À luz dessas considerações, os atos de fala referidos por Habermas como expressivos devem ser classificados, ou como constatativos, se tiverem pretensão de informar o ouvinte (ex: “Sinto sua falta”) ou como performativos, se tematizarem a sua influência sobre o ouvinte (ex: “Desejo que fiques”), ou ambas as coisas. A pretensão de veracidade que Habermas atribui aos atos expressivos certamente existe, mas ela não parece surgir ao nível mais elementar das pretensões de verdade e de correção.

   Temos, pois, uma solução geral para a objeção de que ações constatativas e performativas possam se integrar umas às outras de modo a se tornarem indistinguíveis. Essa solução ainda dá lugar a uma questão de esclarecimento, referente ao que chamamos de tematização comunicacional, que é aquilo que faz com que se leia nos proferimentos ditos constatativos uma pretensão de informar a verdade, e nos proferimentos ditos performativos uma pretensão de interagir realizativamente. Como identificar a tematização comunicacional? Para tal, podemos recorrer a indicadores contidos na forma linguística dos proferimentos; assim, “Eu afirmo que...” costuma ser constatativo, com pretensão de verdade, “Eu peço que...” costuma ser performativo, sem a referida pretensão. Mas tais indicadores também devem poder ser dados pelo contexto do proferimento, não precisando vir linguisticamente explicitados, como no caso de certos atos de fala indiretos. Considere-se, como exemplo, o ato de fala indireto, “(Devo informar que) o farol sinalizador de mau tempo foi aceso”, expresso em tais circunstâncias que deva ser entendido como uma advertência para embarcações menores não deixarem o porto. Embora contendo, do ponto de vista linguístico, indicadores de asserção, o proferimento é envolvido por indicadores contextuais que nos permitem inferir uma certa dimensão performativa como sendo comunicacionalmente tematizada. Nesse caso, os interlocutores não se preocupam, em primeira linha, com o valor de verdade do proferimento (embora ele o tenha), pois indicadores contextuais fazem com que certa ação de finalidade interativa seja privilegiada. Não há, pois, indicadores absolutos da tematização comunicacional, sendo isso em última instância decidido na praxis de cada jogo de linguagem. O importante, em todos os casos, é a espécie de ação preferencialmente intencionada pelos interlocutores no proferimento, o que nos constatativos é claramente revelado pela presença da pretensão de verdade. 

   Em substituição ao esquema do início deste artigo, o esquema que se segue expõe as condições, os critérios gerais de identificação que fazem a distinção entre as ações comunicativas de tipo informativo – os constatativos – e as ações comunicativas de tipo realizativo – os performativos – construíndo-os de maneira corrigida e generalizada, evitando assim os mal-entendidos suscitados pelo esquema inicial:

 

Proferimento:

Condição de identificação:

CONSTATATIVO,

INFORMATIVO,

ASSERTÓRICO,

COGNITIVO...

Tematização comunicacional de uma pretensão

ou ação interativo-informativa.

(pretensão de verdade).

PERFORMATIVO,

REALIZATIVO,

PRÁTICO,

INSTRUMENTAL...

Tematização comunicacional de uma pretensão

ou ação interativo-realizativa.

(pretensão realizativa ou prática)

 

   A distinção é bastante clara para a grande maioria dos casos. Mas ela pode não parecer mais tão transparente em outros casos, demandando análises particularizadas. Vejamos alguns deles[14]:

 

(i)    Embora os atos de fala diretivos sejam geralmente não-problemáticos, o caso das perguntas merece algum destaque. Não possuindo pretensão de verdade, elas devem ser classificadas entre os performativos. Com efeito, perguntas são ações realizativas que devem produzir de maneira não-informativa no ouvinte a tomada não-compartilhada de consciência (geralmente por atualização de dados mnêmicos) de algo como sendo o caso, de maneira a se obter sua manifestação em uma resposta. Essa resposta, por sua vez, pode ser vista como sendo um ato constatativo dependente, que visa compartilhar informativamente tal consciência com aquele que fez a pergunta. Embora a cognição da resposta pelo falante-ouvinte costume ser o efeito último visado com a pergunta, como o falante não está compartilhando informativamente, através do ouvinte, um juízo, o proferimento não pode ser considerado constatativo. (Considere-se o caso em que se faz a pergunta para se confirmar a verdade de um enunciado, ex: “O romance Wuthering Heights foi escrito por Emily Brönte, não?”).

(ii)  Como se dá com atos de fala comissivos, como o de prometer? Eles também são, certamente, performativos. Ao prometer, o falante quer produzir no ouvinte a tomada de consciência da promessa, visando essencialmente o deu comprometimento com a realização da ação. Contudo, o ato não comunica informações sobre estados de coisas; ele próprio é um estado de coisas do qual o ouvinte toma consciência, participando na produção do comprometimento com a realização de uma certa ação futura, a qual poderá obviamente conter atos cognitivos...

(iii)                    Os atos de fala ditos expressivos dividem-se. Alguns são constatativos: uma pessoa pode estar descrevendo um acontecimento interno com o objetivo de informar, digamos, ao consultar um médico, e isso pode ser falso, não só porque a descrição pode ser mentirosa, mas porque também aqui – analogamente ao caso de proferimentos observacionais – há possibilidades de engano (ex: confundo meus sentimentos ao tentar descrever as impressões deixadas por um filme de Peter Greenaway).[15] Contudo, uma pessoa também pode expor um acontecimento interno com o objetivo de produzir uma outra espécie de reação, quando grita para pedir ajuda, quando agradece a alguém etc., proferindo assim um performativo. É possível, enfim, que certos atos expressivos tematizem simultaneamente tanto a pretensão informativa quanto a realizativa. Isso não vale como objeção, pois não há qualquer razão para que nossa compreensão da distinção deva excluir a existência de casos intermediários ambíguos.

(iv) Performativos institucionais costumam ser parte da concretização de um fato social de natureza disposicional, como o “Sim” em uma cerimônia de casamento, que efetiva compromisso com uma variedade de normas de ação envolvendo aspectos afetivos, volitivos etc.

Certos proferimentos vereditivos – as declarações representativas de Searle – também nos podem equivocar. Esse é o caso da decisão de um juiz de que o réu é “culpado”. O juiz afirma, com base nas provas disponíveis, um estado de coisas que crê ser verdadeiro, mas simultaneamente produz (independentemente do conteúdo da asserção ser ou não verdadeiro) um outro estado de coisas, que consiste no fato institucional de que o acusado passa a ser legalmente e tratado como culpado. Aqui costuma se dar, mais uma vez, a tematização simultânea das dimensões constatativa e performativa.

   Considerando as coisas em um nível mais abrangente, parece ainda que uma associação entre as duas formas gerais de ação comunicacional é em última instância necessária no âmbito do processo interativo como um todo, o que também pode confundir. Essa conclusão decorre de uma reflexão acerca da natureza dos próprios usuários da linguagem. Parece que assim como o ser humano, na qualidade de agente racional, combina necessariamente as disposições básicas de ação e contemplação, assim também acontece com a linguagem: os processos de interação comunicativa só se completam, só adquirem um “sentido racional”, se refletirem a combinação dessas duas disposições naturais, o que se faz pela associação simultânea ou pela alternância sequencial de suas funções informativa e realizativa.

   Essa necessidade se evidencia, quanto aos constatativos, se considerarmos seu lugar no todo diacrônico do processo interativo que se desdobra entre os interlocutores, posto que comumente os elementos performativos associados vêm explicitados em um outro proferimento a ele ligado, como em “O gato está de novo afiando as unhas no tapete; você quer retirá-lo de lá?” Isso também se dá no curso da relação interpessoal, ou determinado pelo contexto. Suponhamos que alguém simplesmente diga: “O gato está sobre o tapete”. Não é concebível que a pessoa diga isso com o objetivo único de fazer com que o ouvinte saiba que algo é o caso e nada mais; pode até ser que ela não tenha consciência da associação de seu ato com um objetivo prático, mas ele precisa existir. Em caso de dúvida, caberá a pergunta: “Por que você disse isso?” E a resposta não poderá ser literalmente “Porque eu quis” ou “Porque eu gostaria de levá-lo a saber que o gato está sobre o tapete, sem supor que isso possa ter o menor efeito sobre você”. Geralmente, a resposta à questão “Por que você disse isso?”, se não for elíptica, consistirá em um esclarecimento de elementos performativos adicionais implícitos. E se tal não se der, caberá a invectiva: “Mas não faz sentido (não há justificação racional para se) dizer isso!”.

   Algo semelhante, de um ponto de vista sincrônico, não processual, pode ser dito sempre acerca dos performativos. Tais proferimentos não são, nem da parte do falante, nem no que diz respeito às reações do ouvinte, ocorrências automáticas, como na linguagem das abelhas, mas atos complementados por atos mentais intencionais, conscientes, havendo nisso mais do que a simples consciência do que deve ou havería de ser o caso: se uma pessoa disser “Por favor, abra a janela”, ela fará depender seu proferimento de certos atos cognitivos, como os de identificação do ouvinte, do contexto, de componentes descritivos (explícitos ou não) do proferimento, da comparação entre situações presentes e futuras, da racionalidade geral do ato etc., coisas que ela implicitamente considera, o mesmo se dando com o próprio ouvinte. Pode ser que a linguagem tenha começado com performativos nos quais os atos de consciência fossem rudimentares, como no grito de alerta dos pássaros. Mas não deve ter-se passado muito tempo antes que tudo se tornasse muito mais complexo.

 

 

III

 

Visando complementar as considerações precedentes, quero adicionar algumas outras acerca da teoria dos atos de fala, mais precisamente, acerca das noções de ato locucionário e ilocucionário.

   Para Austin um proferimento é normalmente composto de atos locucionário e ilocucionário. O ato locucionário é o “de” se dizer algo com significado, enquanto que o ato ilocucionário é aquele que realizamos “ao” dizermos algo, incluindo segundo ele não só as ações performativas, mas também as constatativas de afirmar, relatar, descrever etc.

   Austin decompôs o ato locucionário em: (i) um ato fonético, de emissão de fonemas, (ii) um ato fático, de emissão de uma sequência gramaticalmente estruturada de palavras, e, o que mais importa, (iii) um ato rético, em que essas palavras dizem alguma coisa sobre algo, isto é, apresentam sentido e referência na acepção fregeana dos termos, o que pode envolver o próprio contexto do proferimento. Essa noção de ato rético – que, por pressupor os outros atos, não difere essencialmente do próprio ato locucionário em sua completude – foi alvo de questionamento por parte de comentadores influentes.

   Uma dificuldade notável é a seguinte. Atos de fala, ou adotam uma forma como “(Eu) v (que) p”, que é a mesma do pretenso critério gramatical que encontramos nos performativos e constatativos explícitos, ou podem ser reduzidos a ela ou a algo semelhante. Isso evidencia que os atos de fala podem ser analisados como possuindo uma estrutura dupla, constituída, de um lado, pelo componente de conteúdo enunciativo, explicitado em “...(que) p”, e, de outro, por um componente ilocucionário, explicitado em “(Eu) v...”, o qual especifica o sentido de aplicação, o sentido prático estabelecendo o tipo de interação no proferimento, aquilo que Austin chamava de sua força ilocucionária. Ora, sendo esse último componente também de natureza fonética e fática, ele deveria poder ser também rético, i.e., dotado de sentido e referência. Mas, se assim fosse, esse componente especificador do sentido de aplicação deveria possuir (não só em performativos como “Eu ordeno...”, mas mesmo em constatativos, como “Eu afirmo...”), além da força ilocucionária, sentido e referência, expressando o pensamento de que o falante ordena, afirma etc., e supostamente referindo-se à ocorrência da ordem, da afirmação etc. Mas – de que ocorrência se trata? Certamente que não de uma inessencial ocorrência subjetiva, de um ato mental do falante. A referência também não deve ser o próprio componente ilocucionário, que assere que promete, que cumprimenta, que afirma (!) etc., auto-referencialmente, pois pensar assim seria confundi-la com o juízo dos interlocutores, com base nesse componente, de que foi feita uma promessa, uma afirmação etc. A melhor alternativa, se desejamos manter tal conceituação, parece ser a de considerar o componente ilocucionário como tendo uma função metacomunicativa, sendo a sua referência o componente de conteúdo enunciativo a ele associado junto a seu sentido, adicionado ao sentido de aplicação, a força ilocucionária que ele expressa com respeito a esse mesmo conteúdo, a qual mostra-se no pensamento de que o falante ordena, afirma etc.

   Ainda uma objeção central, tal como John Searle a apresentou, é a de que, por ter caracterizado o ato rético por recurso a relatos em oratio obliqua como “Ele disse que p”, Austin contamina o ato locucionário com forças ilocucionárias, particularmente com a força assertiva, caindo em contradição com considerações feitas por ele mesmo em outras passagens.[16] Mas uma diferente leitura do texto mostra que Austin pode não estar querendo dizer o que aparenta. Ele escreve, com efeito, que o ato rético é o que relatamos em asserções do tipo “Ele disse que p”, e isso pode ser muito naturalmente entendido no sentido de que relatamos o ato ilocucionário (geralmente assertivo) de alguém, como pretende Searle. Mas o ato rético que relatamos em “Ele disse que p” também pode ser entendido como uma maneira de se dissociar o conteúdo semântico de p da referência usual de p, segundo o método fregeano. Nesse caso, ao asserir “Ele disse que p” de fato relatamos um ato locucionário através da frase p, um ato que é o de “expressão de sentido e referência”; mas p é uma “frase-que”, uma frase subordinada em discurso indireto, a qual, segundo uma análise fregeana, refere-se primariamente ao seu sentido (ao pensamento que veicula, seu conteúdo proposicional), e só secundariamente à sua referência, perdendo nisso o seu caráter assertórico.[17] Parece-me assim provável que Austin, leitor de Frege, tenha realmente tendido a conceber o ato rético como o de expressão de um conteúdo proposicional, e não como o de sua asserção, mas que possa ter falhado em exprimir isso de maneira inequívoca.

   Searle sugeriu uma melhoria que desfaz a confusão ou inadvertência de Austin com respeito à diferença entre ato locucionário e asserção. Essa melhoria evita ambiguidades, e consiste na substituição da noção de ato rético ou locucionário pelo que Searle chama de ato proposicional: o ato de expressar uma proposição,[18] Disso resulta seu esquema, que exponho lado a lado com o de Austin:

 

DIVISÕES DO ATO DE FALA:

Para Austin

os atos são:

Para Searle

os atos são:

LOCUCIONÁRIO:

Fonético, fático, rético

(no lugar do constatativo)

de proferimento (de palavras, de frases)

PROPOSICIONAL

ILOCUCIONÁRIO

(no lugar do   

performativo)

ILOCUCIONÁRIO

PERLOCUCIONÁRIO

PERLOCUCIONÁRIO

 

Num ato de fala explícito da forma “Eu v (que) p” ao invés do ato rético, o que temos é a ocorrência do componente proposicional p, que não expressa asserção alguma, mas um simples ato proposicional.

   Com isso Searle pretendeu libertar a teoria dos atos de fala dos últimos resquícios da velha distinção entre constatativo e performativo, que pareciam persistir atavicamente na indefinição da caracterização austiniana do ato locucionário. Com o isolamento do componente proposicional, mesmo os verbos especificadores de proferimentos constatativos, como declaro, afirmo, comunico, descrevo etc., passam a expressar unicamente o componente ilocucionário do ato de fala, não podendo ser confundidos com o ato proposicional.

   Searle admite com isso o primado de um elemento proposicional, no sentido de considerá-lo geralmente presente nos atos de fala, mas sem admitir um primado semelhante para a asserção. Não obstante, uma reflexão acerca de sua solução me dá a ocasião de firmarmos em mais um aspecto a readmissão do lugar fundamental do modus assertórico, já evidenciada em minhas considerações a favor da dicotomia constatativo/performativo e cuja relativização por Austin já foi falsamente apontada como o resultado revolucionário da teoria dos atos de fala.

   A tais resultados chegamos quando buscamos esclarecer a natureza do suposto “ato proposicional”. Tal ato é, certamente, um ato parcial, assim como o ato de girar a chave é parte do ato de dar partida ao motor. A diferença é que, enquanto o ato de girar a chave pode ocorrer separado do ato de dar partida, não parece que um ato proposicional chegue a fazer sentido em inteira separação de possíveis atos assertóricos ou judicativos completos ao qual possa pertencer, o que lança dúvidas mesmo sobre a conveniência de o chamarmos de ato. Como notou Peter Geach, “possivelmente um pensamento é assertórico em seu caráter, a menos que ele perca esse caráter ao ocorrer como elemento em um pensamento mais complicado”.[19] Isso parece ser geralmente válido, não só com relação aos proferimentos constatativos, mas, como será demonstrado, em certo sentido mesmo com respeito a aspectos implícitos dos performativos.

   Com relação aos proferimentos constatativos, normalmente, quando temos um conteúdo enunciativo (ato proposicional), ou ele vem diretamente asserido, ou é mencionado no interior de alguma asserção. Isso torna-se claro se examinarmos os próprios exemplos de Searle. O primeiro deles é a asserção “Sam fuma”, onde o ato assertórico e o ato proposicional coincidem. O segundo exemplo é: “‘Sam fuma’ é um enunciado”, onde o conteúdo enunciativo ‘que Sam fuma’ é mencionado no interior de uma asserção metalinguística. Ainda outro exemplo é “Se Sam fuma, ele terá a sua vida abreviada”, onde a asserção é sobre disposições do organismo de Sam, podendo ser substituída por “(Afirmo que) Sam possui disposições tais que, se...”.

   Algo próximo a isso pode ser dito acerca do papel de conteúdos enunciativos (ou de atos proposicionais) no interior de proferimentos classificados como performativos. Considere-se os exemplos “Sam fuma?” e “Sam: peço que não fumes!” Aqui os conteúdos enunciativos não asseridos. Eles não se encontram, obviamente, no interior de uma asserção, pois performativos não possuem valor-verdade. Mas isso não quer dizer que o conteúdo enunciativo não esteja, ainda assim, sendo utilizado no âmbito da realização de juízos correspondentes a asserções não explicitadas: como já vimos, um performativo só é efetivamente compreendido se o ouvinte puder identificar a situação, o falante, a si mesmo, os conteúdos enunciativos envolvidos etc. O ouvinte deve identificar certo conteúdo enunciativo em questão como aquilo que o falante pretende que ele, como ouvinte, realize. Isso significa que o ouvinte, no ato de compreender o proferimento, deve realizar mentalmente aquilo que se explicita linguisticamente como uma conversão geralmente válida do proferimento performativo para a terceira pessoa, onde este se transforma num constatativo, atribuindo-lhe então pretensão de verdade. Para esclarecer: se o falante A pergunta ao ouvinte B:

 

Sam fuma?

 

e B realmente compreende o proferimento, então B deve apreender simultaneamente a verdade do que exprime a frase assertiva:

 

A pergunta a B: “Sam fuma?”,

 

na qual vem mencionado o conteúdo enunciativo da pergunta. No segundo exemplo, no proferimento “Sam: peço que não fumes!”, Sam deve apreender como verdadeira a asserção “A pede a Sam que este não fume”. Algo assim vale também para os falantes: também o falante A deve, sabendo o que faz, saber que “A pergunta a B: ‘Sam fuma’?”, por exemplo, é um enunciado verdadeiro, para poder, concomitantemente ao proferimento, intencionar a realização da ação informativa subsidiária de tornar isso também consciente ao ouvinte.

   Assim, mesmo entre os performativos, o conteúdo enunciativo (ato proposicional) só tem lugar se implicar em um ato assertivo que o contém: o proferimento no qual ocorre o conteúdo enunciativo é compreendido como implicando uma asserção que o contém, nele se vendo a manifestação não explicitada do juízo correspondente, a sua asserção implícita. Aliás, é precisamente a possibilidade de semelhantes tomadas de consciência da parte do ouvinte ser o que explica por que não soa incorreto dizer que também com os performativos nós comunicamos algo. Pois comunicar é também informar. Em performativos onde isso não se dá, como o “Abre-te Sésamo” dito por Ali-Babá, recusamo-nos a admitir que algo foi realmente comunicado.

   Uma possível objeção seria a de que semelhantes asserções, por não virem linguisticamente explicitadas no proferimento, sendo apenas implicadas por ele, não seriam propriamente atos. Mas a isso pode ser respondido que um conceito tão estrito de ato não pode ser adotado em uma teoria dos atos totais de fala. Se o adotarmos, não poderemos admitir nem atos de fala implícitos nem indiretos. E a objeção deverá estender-se também aos próprios atos proposicionais, quando esses não vêm linguisticamente explicitados, incluindo-se entre aquilo que a compreensão do proferimento por parte dos interlocutores implica. Se admitimos que os proferimentos geralmente contêm atos proposicionais, então devemos admitir que eles contêm, de modo semelhante, as referidas manifestações assertóricas implícitas.

   Essa conclusão serve para reforçar o que já foi sugerido. Uma dimensão constatativa de ações de finalidade informativa deve ter lugar em todas as ações comunicativas completas, sendo a satisfação de suas condições de verdade tematizada nos proferimentos constatativos e desconsiderada, ainda que presente, no entendimento dos proferimentos performativos.

   Quanto à noção de ato ilocucionário, trata-se do que Austin chamou de ações realizadas “ao” se dizer algo, caracterizando-se pela força ilocucionária nelas contida, visando um efeito ilocucionário convencionalmente determinado, e pressupondo, para sua ocorrência, um ato locucionário “de” dizer. A noção de ato ilocucionário não pode ser restringida à efetivação do que denominamos força realizativa, relativa ao cumprimento das condições para a concretização não-informativamente auferida de um estado de coisas, pois a força ilocucionária diz respeito a convenções para o estabelecimento de relações interpessoais, abrangendo desse modo tanto forças realizativas quanto assertóricas. Como “força interativa”, a força ilocucionária deve abranger então elementos convencionais de interação comuns às duas classes (a) e (b) de condições.

   Teorias podem, é claro, dividir a linguagem sob os mais diversos pontos de vista; mas do ponto de vista aqui considerado, a noção de força ilocucionária é insuficientemente perspícua para dar conta da natureza própria das forças realizativas, posto que reduz a tese de que dizer é fazer ao truísmo elementar de que dizer é estabelecer relações interativas.

 

 

 

 

 

 

 



[1] J. L. Austin: How to do Things with Words, Cambridge: Cambridge University Press, 1975 (1962), cap. I e segs. Um resumo da teoria é apresentado na conferência radiofônica reproduzida em “Performative utterances”, in: J. L. Austin, Philosophical Papers, Oxford: Oxford University Press, 1979.

[2] Cf. J. L. Austin: How to Do Things with Words, particularmente o capítulo XI.

 

[3] J. L. Austin: How to do Things with Words, p. 65. Austin apresenta também exemplos curiosos, como “I bet him (every morning) six pense that it will rain” e “On page 49 I protest against the verdict” (p. 64), que são proferimentos constatativos com verbos tipicamente performativos na primeira pessoa.

 

[4] Cf. J. L. Austin, p. 143.

[5] Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, sec. 4.022

[6] Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einfiihrung in die sprachanalytische Philosophie, Suhrkamp: Frankfurt, 1975, p. 512.

[7] Gottlob Frege: “Der Gedanke”, in G. Frege, Logische Untersuchungen, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976, p. 35.

[8] Com isso dilui-se uma pseudo-questão, que é a de se saber se os pensamentos são descobertos (Frege) ou criados (Popper): uns são descobertos, outros criados, nos sentidos aludidos, os únicos que essas palavras podem adquirir em um tal contexto.

[9] Ainda uma possível fonte de confusões é que proferimentos constatativos diversos podem assumir diferentes formas “de” e “ao” dizerem algo, satisfazendo diversamente suas condições. Exemplos: se faço uma descrição (de uma paisagem, de uma sala), trata-se geralmente de uma conjunção de declarações pretensamente verdadeiras; se conto uma lenda, costumo manter pretensão de verdade relativa a um domínio ficcional; se comunico algo, há geralmente envolvida uma expectativa com respeito à espécie de fato que poderei expor etc.

[10] Compare com J. L. Austin: “Performative-Constative”. Habermas sugere que Austin tentou assimilar as condições de verdade às condições de correção de normas interativas: “Parece-me que Austin confunde a pretensão de validade de verdade proposicional, que deixa-se entender primariamente no sentido de uma correspondência de enunciados com fatos, com a pretensão de validade de correção normativa, que de modo algum se deixa esclarecer em uma teoria correspondencial”. Ver “Was heisst Universalpragmatik?”, in: K. O. Apel (ed.), Sprachpragmatik und Philosophic, Frankfurt: Suhrkamp 1976, p. 236.

[11] J. L. Austin: How to do Things with Words, pp. 145-6.

[12] Cf. Jürgen Habermas: “Was heisst Universalpragmatik?”, p. 238 ss.

[13] Habermas: “Was heisst Universalpragmatik?”, p. 23

[14] Cf. a classificação austiniana dos atos de fala no último capítulo de seu livro.

[15] Um erro clássico consiste em se pensar que enunciados acerca da experiência subjetiva são incorrigíveis. A experiência interna sensorial e emocional é susceptível de erros, embora geralmente menos que enunciados de observação direta. O seguinte exemplo de erro sensorial foi apresentado por Feyerabend: “Então sonhei certa noite que estava tendo uma sensação muito agradável em minha perna direita. A sensação tornou-se mais forte e comecei a acordar. Ela se tornou ainda mais forte, e enquanto eu acordava percebi que havia sido todo o tempo uma intensa dor. A própria sensação tornou-me claro que durante todo o tempo eu havia sentido uma dor profunda, a qual eu erroneamente havia tomado por um sentimento agradável”. (Paul Feyerabend: Zeitverschwendung, Suhrkamp: Frankfurt 1995, p. 159). Pode-se contra-argumentar que o que importa é a impressão da sensação agradável, ainda que falsa; mas esse contra-argumento vale tanto quanto o de dizer que o que importa na percepção de um objeto externo não é o objeto percebido, mas a impressão do objeto percebido, ainda que falsa.

 

[16] J. R. Searle: “Austin on locutionary and illocutionary acts”, in: Philosophical Review, 1968, pp. 411-12.

[17] Cf. J. L. Austin: How to Do Things with Words, p. 96. Austin toma de empréstimo idéias e vocabulário fregeanos não só na definição de ato rético como ato de emissão de construções vocabulares com certo sentido e referência, mas logo em seguida a essa definição, quando ele faz uso de recursos fregeanos para diferenciar o ato rético do fonético: “He said: ‘The cat is on the mat’” [estando em discurso direto] reports a phatic act, whereas “He said that the cat was on the mat” [que está em discurso indireto] reports a rhetic act. (...)” (p. 95). Ora, isso parece paralelo à observação fregeana de que no discurso direto usamos aspas para referir-nos às palavras de outrem, enquanto no discurso indireto usamos a “frase-que” subordinada para referir-nos ao pensamento (conteúdo enunciativo), sem com isso asseri-lo. (G. Frege: “Über Sinn und Bedeutung”, pp. 28, 36-37, paginação original.)

[18] J. R. Searle: Speech Acts, London 1969, p. 24.

 

 

[19] P. Geach: “Assertions”, in: P. T. Geach, Logic Matters, Oxford: Oxford University Press. 1972, p. 262.

 


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