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quinta-feira, 30 de julho de 2020

WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO

Draft avançado de texto do livro Textos esparsos a ser publicado proximamente pela editora Dialética. 


WITTGENSTEIN E A GRAMÁTICA DO SIGNIFICADO

 

 

Ao escrever este resumo argumentado de minha tese doutoral,[1] defrontei-me com a seguinte dificuldade: como condensar o conteúdo de um trabalho sistemático, no qual os argumentos particulares só adquirem poder de convicção quando compreendidos em sua relação com o todo, sem simplificar em demasia e aparentar inconsciência das dificuldades envolvidas? Para que esse inconveniente fosse amenizado, segui a estratégia de me restringir a algumas ideias centrais envolvendo a noção de regra semântica, ideias que foram desenvolvidas nos capítulos I, VI e VII, abstraindo de muitas outras questões interpretativas a elas relacionadas.

   Começo enunciando a tese mesma. O objetivo inicialmente proposto foi, através de um trabalho de reconstrução racional que procedesse pelo esclarecimento de supostas relações entre os diferentes princípios semânticos sugeridos nos escritos de Wittgenstein, esboçar os traços gerais de uma “teoria do significado” filosoficamente relevante, concebida como uma elucidação genérica, ou, usando expressões do autor, uma representação sinóptica ou panorâmica (übersichtliche Darstellung) da gramática desse conceito – o que redundaria em um esquema conceitual esclarecedor do que precisa ser sabido para a compreensão do que se quer dizer com expressões quaisquer.

   Uma interpretação é uma seleção do que se julga ser demonstravelmente relevante num texto. Uma reconstrução racional consiste, basicamente, em uma interpretação que acrescenta novas premissas, que não constavam no texto original e o tornam mais instrutivo. Um trabalho inspirado ou influenciado por um certo texto é geralmente aquele que não só lhe adiciona premissas estranhas, mas também desconsidera tudo aquilo que for incompatível com tais adições. No caso de um texto tão ambíguo como o de Wittgenstein, pode ser difícil separar a segunda da terceira possibilidade. Embora existam aqui e ali incompatibilidades, ainda assim acredito que meu texto se encontra mais próximo da segunda do que da terceira alternativa. Ele objetiva recuperar um pouco da profundidade de um filósofo analítico cujo nível só é aproximado por Frege e cuja obra julgo muito superior à usual indigência da filosofia contemporânea.

   Há, na literatura secundária, pelo menos duas tentativas antigas de se extrair uma teoria do significado dos escritos de Wittgenstein: o livro de J. T. E. Richardson[2] e um artigo de Paul Feyerabend.[3] O resultado não especialmente elucidativo desses trabalhos deve-se, em meu juízo, à timidez reconstrutiva, ao modo demasiado interpretativo de aproximação das questões.

   O pressuposto orientador de minha reconstrução pode ser visto como um “principle of charity”, maximizador do corpus de frases verdadeiras. Esse pressuposto é o de que as diferentes sugestões feitas por Wittgenstein sobre a natureza do significado, as quais relacionam-no com o uso, com a sua explicação, com o método de verificação, com critérios, com regras da gramática, com um cálculo, e até mesmo com a correspondência de sentenças com fatos possíveis, devem ser preferencialmente vistas como diferentes meios de aproximação do mesmo problema ou de aspectos dele – diferentes figuras elucidativas – e não como incompatíveis tentativas de explicação, por vezes inconsistentemente agrupadas, ou que teriam sido abandonadas sempre que o filósofo se apercebia de sua inadequação, como se ele estivesse procedendo por um método cego de tentativa e erro.

   Uma maneira de ilustrar meu ponto de vista é evocando a parábola dos cegos e do elefante. Cada cego apalpa uma parte do elefante, descrevendo-o de maneira diferente: um diz que é uma corda, porque toca a sua cauda; outro abraça a sua perna afirmando tratar-se do tronco de uma árvore; outros, apalpando outras partes, dizem que se trata de um grande abanador, de um sifão, de um muro... Wittgenstein, pelo contrário, estava suficientemente consciente de estar se aproximando de uma mesma problemática por diferentes meios, sob diferentes ângulos, considerando a diversidade de seus aspectos, abandonando a perspectiva escolhida quando o poder de esclarecimento de suas analogias parecia esgotar-se, o que poderia ser pelo encontro de dificuldades que ele mesmo não sabia como contornar. Essa é uma razão do caráter alusivo de seus escritos; ele tomava o cuidado de não precisar nem generalizar suas sugestões ao modo dos cegos da parábola e de alguns de seus intérpretes, o que ocorre mesmo em suas sempre matizadas alusões aos “erros” do Tractatus.

 

 

I

 

Uma dificuldade metodológica que se apresenta sempre que tentamos uma reconstrução sistematizadora do que Wittgenstein escreve, diz respeito à sua concepção de filosofia. Trata-se da objeção, que hoje sabemos ser interpretativamente simplificadora, segundo a qual ele a teria concebido como desempenhando uma função meramente terapêutica, qual seja: a de uma atividade puramente crítica, constituída de simples descrições de casos de aplicação da linguagem. Tais descrições seriam capazes de produzir, pela mera apresentação de contra-exemplos, uma espécie de reductio ad absurdum de pretensas teses filosóficas, originadas de confusões conceituais locais, engendradas pela mente metafísica – o que excluiria qualquer atividade teorética ou explicativa. Tal concepção não é a minha, nem julgo sua assunção necessária.

   Apesar das aparências, veiculadas pelo fato de a filosofia do último Wittgenstein ser crítica no conteúdo e fragmentária na apresentação, a dificuldade metodológica aqui assinalada pode ser refutada; primeiro externamente, por considerações acerca do conteúdo de seus escritos, depois internamente, em alguma medida, por uma interpretação mais circunstanciada de suas considerações sobre a natureza da filosofia.

   Quanto aos escritos de Wittgenstein, é correto afirmar que a sua filosofia terapêutica não é capaz de ser produzida na ausência de pressupostos teoréticos, sejam eles explícitos ou não. Como observou Carl Hempel, em uma passagem que vale a pena traduzir:

 

Mesmo que a filosofia se limitasse, casuisticamente, a ajudar moscas individuais a escaparem de suas particulares garrafas papa-moscas, semelhante atividade filosófica ou terapia estaria ainda assim enformada em princípios gerais. Como uma mosca presa numa garrafa, um homem preso num labirinto pode ser conduzido para fora com seus olhos envoltos em uma bandagem: ele seguirá seu condutor cegamente e irá finalmente encontrar-se a si mesmo lá fora, mas ele não irá compreender como foi preso nem como foi trazido para fora. Mas não há nenhum análogo a esse modo de libertação física no caso da pessoa filosoficamente confundida em um labirinto. O único meio de trazê-la para fora é com seus olhos abertos, como que mostrando o caminho da saída, para usar uma expressão de Wittgenstein; ou seja, ela deve vir a entender qual a parte da armadilha que foi deixada em primeiro lugar e como evitar que o mesmo aconteça em outras situações semelhantes. E isso sempre requer ‘insights’ de um tipo geral, concernentes, por exemplo, a contextos linguísticos de um determinado tipo, cujas regras gerais são então projetadas no caso particular em questão.[4]

 

A eficácia da terapia provém do fato de o paciente se dar conta de que sua dificuldade é ocasionada por pressupostos que contradizem princípios cujo nível de generalidade e abstração deve equivaler ao das próprias ideias filosóficas criticadas, e isso se dá à revelia das supostas pretensões antiteoréticas de Wittgenstein.

   Isso é tornado evidente quando consideramos o conteúdo sugerido pelas anotações de Wittgenstein como, por exemplo, o argumento contra a possibilidade de uma linguagem originariamente privada. Uma observação de A. J. Ayer sobre a afirmação wittgensteiniana de que a filosofia não deve explicar, mas somente descrever, esclarece bem esse ponto:

 

Sua repetida preferência por descrições e não pela explicação e sua abstenção de teorias cuja prática ele assevera realizar e reivindica para os seus leitores, não são características de seu procedimento atual em qualquer estágio de seu desenvolvimento, inclusive nas Investigações Filosóficas. Que suas explicações sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições; suas teorias não deixam de sê-lo por serem encobertamente assentadas.[5]

 

Também P. F. Strawson e John Searle chamaram suas próprias elaborações de “descritivas”, embora elas sejam obviamente explicativas e teoréticas. Mas o que se pretende com esse modo de dizer é assinalar a natureza que prefiro chamar de metalinguística de uma investigação teorética que procede a uma pretensa exposição daquele nosso conhecimento tornado conceptual de regras tácitas naturalmente desenvolvidas, a maioria delas desde sempre já presentes no funcionamento da linguagem; pretende-se apontar o caráter não-revisionário da investigação; aconselhar que ela seja feita em um “modo formal” de discurso, que descole essas regras de sua aplicação concreta e praticamente motivada. A ênfase na descrição resume-se então a pouco mais que um playdoier por esse modo formal, no qual os referidos princípios de funcionamento da linguagem são descritivamente expostos – nada realmente diverso daquilo que W. V. Quine mais tarde chamaria de ascensão semântica (semantic ascent). Ora, não seria esse, mesmo na obra de Wittgenstein, também um intuito implícito?

   Parece que sim, pois é possível evidenciar que o sentido por ele dado à palavra ‘teoria’, e com ele o de todo um grupo de palavras semanticamente interdependentes, como ‘explicação’, ‘descrição’, ‘hipótese’, ‘tese’... afasta-se do sentido técnico usual, o que, como em outros casos de termos por ele usados em sentido peculiar, pode confundir o intérprete.

   Com a palavra ‘teoria’, hoje sabemos, Wittgenstein geralmente tinha em mente a espécie científica de teoria. Intérpretes como S. S. Hilmy e a dupla G. P. Baker & P. M. S. Hacker mostraram que ele queria criticar a assimilação do trabalho do filósofo à concepção e ao método da ciência, tendo em mente uma crítica às concepções de filosofia de Russell, William James, e mais ainda o positivismo dos filósofos do Círculo de Viena. Como notaram Baker e Hacker:

 

A objeção de Wittgenstein ao ‘teorizar’ em filosofia é uma objeção à assimilação da filosofia, em método e em produto, a uma ciência teorética hiperfísica. A filosofia não é hipotético-dedutiva. Mas, se esmeradas refutações ao idealismo, solipsismo ou behaviorismo, envolvem um esforço teorético, Wittgenstein se engaja nele.[6]

 

Essa interpretação é corroborada pelo uso positivo do conceito de teoria que Wittgenstein por vezes faz. Em Zettel, § 144, ele escreve: “nós temos agora uma teoria, uma teoria ‘dinâmica’ da frase, da linguagem, mas ela não nos parece uma teoria”. Com isso ele quer se opor a algo como a “filosofia científica” de Russell, que propõe teorias hipotéticas à semelhança da ciência, bem como suas “explicações” e “teses”. Em escritos inéditos, observa Hilmy, Wittgenstein chega a empregar uma expressão extravagante para o que ele faz, chamando-o de “teoria da relatividade da linguagem”. Trata-se, em tais casos, da teoria entendida como uma descrição de traços fundamentais da gramática de termos centrais a nosso entendimento do mundo, termos gerais e de aplicação sobremodo complexa. Essa “teoria” que não vem estruturada como um sistema arquitetônico no sentido kantiano, mas antes no sentido schopenhaueriano – referido, aliás, pelo próprio Wittgenstein – de um sistema que se desenvolve como um organismo, em uma discussão aporética, indefinida.

   O conceito mais característico dessa dimensão construtiva da filosofia terapêutica é o de apresentação panorâmica, que é como tento traduzir a expressão “übersichtliche Darstellung”. A apresentação panorâmica, escreve Wittgenstein, “designa a forma de nossa representação, a maneira como vemos as coisas” (PU 122). Para ele a falta dessa visão geral é importante fonte de erros, razão pela qual torna-se filosoficamente relevante a tarefa de encontrar (finden) os elos existentes entre os conceitos e mesmo de inventá-los (erfinden), estabelecendo-se assim uma ordem possível (PU 122, 132). A representação panorâmica é, por assim dizer, uma fotografia aérea da gramática lógica de conceitos filosoficamente relevantes; do mesmo modo que a fotografia, ela destaca os traços mais fundamentais, perdendo em nitidez quanto aos detalhes menos relevantes. A elucidação filosófica pode consequentemente assumir uma forma semelhante ao que Strawson quis entender com a expressão ‘metafísica descritiva’, cuja função é a de oferecer-nos elucidação das relações vigentes entre nossas estruturas conceituais mais relevantes, um esclarecimento capaz de nos prover de maior transparência semântico-conceitual, de uma compreensão mais clara de nossos enunciados (WWK p. 223, PU 90). Tal representação panorâmica não pode ser outra coisa senão o resultado de um empreendimento teorético. Transcrevendo mais uma vez as palavras de Baker e Hacker: “Se a filosofia é uma questão de representação panorâmica, então deve haver sistema. Pois uma sinopse não pode se constituir de uma casual coleção de aperçus. Se ela não é abarcante, ela é ao menos sistemática”.[7]

   Não é então forçoso concluir, como fez Anthony Kenny[8], que Wittgenstein defende simultaneamente duas concepções incompatíveis de filosofia, uma crítica e terapêutica e outra mais construtiva e ortodoxa, posto que uma análise mais aproximada tende a desfazer a suposta tensão existente entre elas. Com sua insistência no aspecto terapêutico, o que Wittgenstein pretendia não era excluir a possibilidade da teorização autenticamente filosófica, mas censurar a pressa dos filósofos em fabricar fabulações especulativas que um mapeamento suficientemente cuidadoso dos fatos linguísticos teria tornado completamente dispensáveis. (BB p. 19)

   Parece assim claro que a crítica à metafísica pressupõe ela própria, implicitamente, uma outra metafísica, ainda que “descritiva”, a qual baseia seu maior poder de convicção nos pressupostos comuns da linguagem. E isso é assim porque terapia e representação panorâmica, atividade crítica e atividade teorética, são como duas faces inseparáveis da mesma moeda filosófica, cabendo a fatores extrínsecos às questões mesmas que o filósofo decida se concentrar mais em um ou em outro lado desta.

   Admitida essa duplicidade, pode-se ainda argumentar que a importância de uma teoria do significado, entendida simplesmente como uma representação panorâmica da gramática constitutiva desse conceito, também resida em funções terapêuticas, as quais se realizariam em dois níveis. Em um nível mais geral, a terapia se aplicaria criticamente a certos modelos de “teoria do significado”, como o objetualista, o causal, o representacional... Em um outro nível, mais específico, a função terapêutica de semelhante representação panorâmica poderia ser assim definida: desde que para a compreensão do significado de qualquer frase já precisamos ter de antemão uma compreensão implícita do que o significado seja, a elucidação do conceito geral de significado explicitaria pressupostos que de outro modo poderiam ser equivocamente alterados em considerações sobre o significado de outros termos filosoficamente relevantes – pressupostos que uma vez explicitados funcionariam como instrumentos heurísticos no correto esclarecimento dos significados próprios desses termos.

 

 

II

 

Feitas essas considerações preliminares, passo ao tema do primeiro capítulo, que é um exame da identificação feita por Wittgenstein entre o significado de uma expressão linguística e o seu uso ou aplicação. O papel central da identificação, junto à relativa transparência do conceito de uso tornam esse um ponto de partida adequado.

   Na fórmula “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem” (PU 43; PG 23; BB p. 69), a noção de significado é suficientemente clara: trata-se de significados de expressões linguísticas, não só de palavras, mas também de frases, pois essas são também “instrumentos para aplicações específicas” (PU § 291). Não se trata, ademais, simplesmente daquilo que costumamos chamar de significado lexical ou literal das expressões, concebido como aquele normalmente considerado na abstração dos contextos – tanto materiais quanto representacionais e linguísticos – em que elas são aplicadas. Em Wittgenstein, o significado de uma expressão é sempre intencional- e contextualmente considerado. Ele está intrinsecamente ligado ao que se “intenciona dizer”, ao que se “quer dizer”, ao que “se pode ter em mente” com a expressão em um sentido que, veremos, não é meramente psicológico, mas função de regras ou convenções. Esse elemento cognitivo-intencional, por sua vez, é em geral e em alguma medida contextualmente dependente, pois é o contexto, em sentido amplo, que esclarece o conteúdo intencionado, permitindo a determinação mais completa do que se “quer dizer”. Considere-se, por exemplo, uma frase como “Antônio visitou Calpúrnia”. Ela tem um significado lexical, mesmo que não saibamos quem são Antônio e Calpúrnia, nem quando e por que Antônio a visitou. Tal não é possível quando temos em mente o sentido mais determinado da palavra ‘significado’ que Wittgenstein quer considerar. Para ele, quando não se tem “algo a dizer” com uma frase, quando ainda não se tem aberto o caminho de sua vinculação ao contexto, ela deixa de servir ao seu fim, deixando de ser significativa no sentido relevante do termo. Daí fica mais fácil entender a razão pela qual ele diz que “é no uso que as palavras vivem”; que o uso é “seu sopro vital”; que elas só ganham sentido “no fluxo da vida” (Z 135; PU 432). É por seu necessário prolongamento cognitivo-intencional, pelo fato de este “querer dizer” ter uma relação necessária com contextos particulares que determinam o pleno significado da expressão, que o significado tem propriamente a ver com o uso.

   Uma investigação da natureza desse significado cognitivo, dessa utilização contextualmente determinada dos enunciados, justifica-se muito particularmente em filosofia, dado que as perplexidades semântico-conceituais que permeiam qualquer reflexão filosófica não dizem respeito simplesmente aos significados lexicais ou literais. Elas dizem respeito às confusões e aos equívocos que as semelhanças entre múltiplas e variadas acentuações cognitivas de significação permitem que sejam produzidas nos contextos linguístico-representacionais de argumentações metafísicas.

   Passemos agora a uma análise da noção de uso na equivalência entre significado e uso. Como essa equivalência parece intuitivamente fazer sentido, e tendo o primeiro termo da relação – a palavra ‘significado’ – o sentido exposto anteriormente, a estratégia argumentativa seguida consistiu em analisar os diversos sentidos da palavra ‘uso’ em busca daquele sentido privilegiado, em que ela satisfizesse a identificação sugerida.

   ‘Uso’ não significa, evidentemente, o que poderíamos denominar uso episódico de uma expressão: o uso entendido como a ocorrência, a realização espaciotemporalmente localizada de um proferimento. Se assim fosse, uma mesma expressão teria um significado diferente a cada vez que fosse proferida, o que é absurdo. Não se trata, também, do uso arbitrário, não-convencional, como o de Humpty-Dumpty, cuja presunção era a de achar que suas palavras significavam simplesmente o que ele quisesse que significassem. Afinal, se as palavras significassem tudo o que quiséssemos, elas não seriam capazes de significar mais coisa alguma. Se não se trata do uso arbitrário, trata-se então do uso correto. Mas o que é o uso correto? Ora, o uso em conformidade com regras capazes de determinar sua correção. Mas há um sentido em que essa sugestão deve ser recusada; é quando o uso em conformidade com regras é entendido como um mero uso episódico correto. Nesse caso, mesmo que ele seja o uso correto, segundo regras, ele continuará sendo uma outra ocorrência espaciotemporal a cada nova aplicação da mesma expressão, devendo, pois, alterar-se, tornar-se outro o seu sentido a cada aplicação, o que obviamente não se dá.

   Não obstante, a palavra ‘uso’ não funciona somente na designação de uma simples ocorrência espaciotemporal de algo. Na linguagem ordinária, ‘uso’ (Gebrauch) é uma palavra que muitas vezes funciona como abreviação de ‘modo de uso’ (Gebrauchsweise). É possível dizer: “Eu fiz uso da [usei a] palavra A de acordo com seu uso”. Nessa frase a palavra ‘uso’ ocorre duas vezes. Em sua primeira ocorrência ela designa somente um uso singular da palavra A, a realização espaciotemporal, não sendo aqui possível substituir ‘uso’ por ‘modo de uso’. Mas na segunda ocorrência sim. É possível que se diga: “Eu fiz uso da palavra de acordo com o seu modo de uso”. Importante é notar que algo paralelo ocorre quando procuramos substituir a palavra ‘uso’ pela palavra ‘significado’ na frase acima. Na primeira ocorrência a substituição não faz sentido. Não faz sentido dizer: “Eu fiz significado da [signifiquei a] palavra A de acordo com seu uso”. Na segunda ocorrência da palavra ‘uso’, entretanto, a substituição é perfeitamente legítima. Pode-se dizer: “Eu fiz uso da palavra A em concordância com seu significado [modo de uso]”. Com efeito, ao menos no caso de palavras em geral, só faz sentido identificar significado e uso quando este último é entendido como uma forma abreviada de se falar do modo, da maneira pela qual a expressão é aplicada. É Wittgenstein quem por vezes toma o cuidado de dizê-lo. Em várias passagens de seus escritos ele identifica significado com o modo ou a forma como a palavra é usada. “Um significado de uma palavra”, diz ele em Sobre a Certeza, “é um modo de sua aplicação (eine Art seiner Verwendung)” (ÜG 61).

   Mas o que é o modo de uso? o modo de aplicação? Há na linguagem uma paráfrase adequada para o que essas expressões querem dizer? Consideremos o seguinte exemplo. Alguém recebe em casa um aparelho eletrônico. Na embalagem encontra-se um folheto explicativo intitulado: “MODO DE USO”. Esse título vem, como de costume, seguido de uma série de instruções sobre a maneira como o aparelho deve ser utilizado. Aqui o sentido da expressão se toma transparente: ‘modo de uso’ é o nome que se dá a uma prescrição, a uma regra ou conjunto de regras, comumente interligadas, de cuja explicitação as instruções dão conta. Esse também é o caso quando se fala dos modos de aplicação de uma ferramenta, que se diferenciam pela diversidade das regras de manuseio. O que se tem em mente são sempre prescrições: regras especificadoras dos usos episódicos.

   A aplicação do mesmo raciocínio à identificação wittgensteiniana nos leva a perguntar se todo o sentido que ela possa ter não se reduz a uma identificação entre o significado, o modo de uso, e certas regras, que seriam regras de uso. Há para tal sugestão prós e contras a serem discutidos. A favor dela está o fato de que o significado da palavra não se reduz a um simples acontecimento espaciotemporal, à diferença do uso episódico. O mesmo podemos dizer das regras. Somente a aplicação da regra é um acontecimento espaciotemporal singular, mas não a regra mesma, designada pela expressão de regra (Ausdruck der Regel), a qual se deixa conceber ao modo de uma função que se instancia em suas aplicações episódicas. Também fala a favor da identificação o fato de que percebemos que pertence à natureza das regras serem, digamos assim, doadoras de significado. A regra-signo (Zeichenregel) “=>” orienta-nos forçosamente para a direita, o que lhe dá algum sentido. A doação de significado é uma propriedade constitutiva das regras: onde há regra há sentido, mesmo que seja um sentido que sob o aspecto comparativo é cognitivamente irrelevante, como no caso das regras gramaticais de uma língua.

   Vejamos agora as objeções. Embora Wittgenstein chegue a dizer, ao menos em uma passagem das Lectures de 1930-32, que o significado de uma palavra (expressão, frase) consiste nas regras gramaticais que a ela se aplicam,[9] ele costumava evitar uma identificação direta. Assim, em Sobre a Certeza ele escreveu que o significado, sendo o modo de aplicação, corresponde a regras (Cf. ÜG 62). E segundo o relato de Moore em suas anotações das Lectures de 1930-33, ao lhe perguntarem se o significado de uma expressão não seria uma lista de regras, Wittgenstein teria respondido com a insinuação de que uma tal concepção poderia estar associada a uma reificação, através da qual o significado estaria sendo tratado como se fosse algo visível. Essa observação deixa-se interpretar como uma crítica a uma suposta perda da plasticidade inerente ao significado cognitivo-intencional, que teria de ser admitida no caso de ele ser identificado a uma regra ou lista de regras.

   Nas mesmas anotações feitas por Moore na passagem que antecede a anteriormente considerada e cuja importância foi aliás apontada por E. K. Specht, Wittgenstein aproxima significado e regra de uma maneira mais informativa: “o significado de qualquer palavra singular em uma linguagem é ‘definido’ (defined), ‘constituído’ (constituted), ‘determinado’ (determined) ou ‘fixado’ (fixed) pelas regras da gramática, com as quais ela é usada naquela linguagem”.[10] A questão cuja resposta pode ser esclarecedora toma-se, por conseguinte: o que se pode entender por determinação (definição, constituição, fixação) do significado ou modo de uso pelas regras da gramática? Essa questão pressupõe a resposta a uma outra: o que são as regras da gramática?

   Sendo assim, abandonarei provisoriamente a questão da determinação do significado por regras para considerar a noção wittgensteiniana de regra gramatical. Com a expressão ‘regra da gramática’ ele quer se referir, como observou E. K. Specht, ao que é expresso por frases declarativas a priori: frases que se diferenciam das frases empíricas costumeiras devido à sua necessidade e direta evidência.[11] No dizer do próprio Wittgenstein: “reconhecer uma frase como absolutamente certa significa usá-la como regra gramatical. Com isso se a priva de incerteza”. (BGM p. 88) O que está em questão não são, porém, tanto as regras altamente genéricas, como as da lógica formal, mas regras mais ou menos específicas, como as expressas pelas frases seguintes, recolhidas dos textos de Wittgenstein:

 

(i)           O vermelho é uma cor.

(ii)         Duas cores não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo.

(iii)       Branco é mais claro do que preto.

(iv)       5 é um número.

(v)         A soma dos ângulos de um triângulo é de 180°.

(vi)       2 . 2 = 4.

(vii)     A ordem ordena seu cumprimento.

(viii)    A água ferve a 100° C.

(ix)       Eu não posso sentir as dores dos outros.

(x)         Eu sei que sou um homem.

(xi)       Eu tenho duas mãos.

(xii)     Todo bastão tem um comprimento.

(xiii)    Isso é uma cadeira.

(xiv)    Paciência se joga só.

 

Típico dessas frases é que elas expressam convenções naturalmente radicadas em nossa forma de vida, que se tornam hábito e que no funcionamento dos sistemas linguísticos (jogos de linguagem) que as pressupõem não se fazem passíveis de dúvida, uma vez que elas costumam fundamentar o que neles ocorre (o que não significa que elas precisem para tal se tornarem verdades absolutas, verdades fora desses sistemas). Como Wittgenstein escreve:

 

Toda frase de experiência pode funcionar como regra, se ela é, como a parte de uma máquina, tornada imóvel, de modo que toda representação gira em torno dela e ela se torna parte de um sistema de coordenadas e independente dos fatos. (BGM p. 437)

 

Com isso, na práxis desses sistemas elas se fazem tautológicas, não-informativas e, portanto, no dizer de Wittgenstein, “destituídas de sentido”.[12]

   Essas frases gramaticais diferem de expressões de regras como as da lógica formal no sentido de que diferentemente dessas, elas dizem respeito a domínios ou regiões mais ou menos específicas da linguagem, podendo ser, para fins filosóficos, tematizadas em uma espécie de “lógica informal”. As frases (i), (ii) e (iii), por exemplo, expressam regras pertencentes ao que Wittgenstein chama de linguagem das cores; as frases (iv), (v) e (vi) expressam regras pertencentes à linguagem da matemática; a regra expressa em (vii) fundamenta jogos de comando; as outras, por sua vez, são constitutivas dos sistemas de linguagem da física (viii), das sensações (ix), da identificação pessoal, como (x) e (xi), da mensuração e identificação de objetos materiais, como (xii) e (xiii) etc. A frase (xiii), “Isso é uma cadeira”, é uma frase gramatical quando concebida como ocorrendo no contexto de uma definição ostensiva de um certo tipo de objeto; ela torna-se no caso a expressão que exemplifica uma regra da gramática, da qual o próprio objeto próximo e bem visível participa como elemento constituidor. Nesse caso ela pode ser também substituída por uma definição mais completa, que prescinda do contexto, como a definição verbal: “Uma cadeira é um objeto com tais-e-tais propriedades”.

   As regras da gramática constituem sistemas de regras que formam regiões mais ou menos especificas da linguagem, as quais são geralmente denominadas, quando mais específicas, jogos de linguagem ou práticas linguísticas (cap. III). Podemos chamar de Jogos de linguagem (entre outras coisas) quaisquer fragmentos identificáveis da linguagem que se deixem identificar como sistemas localizados de regras ou convenções geralmente implícitas, as quais são tidas como simples ou básicas no âmbito do próprio jogo. Eles são basicamente constituídos de quatro elementos: signos, participantes, contexto e regras ou convenções, as quais associam signos, participantes e contexto em conexões significativas. Podemos atomizar de muitas maneiras o todo da linguagem em jogos de linguagem cada vez mais simples, e depois construí-la outra vez pela combinação e ampliação dos últimos. Ainda que imperfeita, é aqui oportuna a comparação feita por Wittgenstein entre a linguagem e uma nebulosa:

 

O quadro que temos da linguagem do infante é aquele de uma nebulosa massa de linguagem, sua língua materna, circundada por discretos e mais ou menos distintos jogos de linguagem, as linguagens técnicas. (BB p. 81)

 

Vemos também que a maior especificidade das regras da gramática é razão de sua relevância semântica: o significado precisa ser algo característico de um signo ou combinação de signos. Regras muito gerais, como as da lógica formal, não costumam possuir o grau de especificidade requerido para individuar o significado, especialmente quando o que queremos levar em conta é a multiplicidade de suas extensões intencionais contextualmente determinadas. Esse ponto pode ser ilustrado se compararmos o processo de compreensão do significado de uma expressão com o trabalho de um carteiro na procura de um certo endereço. Itens como o país e a cidade, mesmo que imprescindíveis, são excessivamente genéricos; eles são de muito pouca valia, quando já não vêm pressupostos. Também nossas frases de conteúdo empírico seguem regras consideradas pela lógica formal, que por sua generalidade são insuficientes para individuar seus significados. O que permite ao carteiro chegar efetivamente onde deve são os itens mais específicos do endereço, como os nomes da rua e o número da residência onde mora o destinatário, já que muitas cartas para recipientes diversos podem ser enviadas para um mesmo país ou cidade. Algo similar se dá com o que poderíamos chamar de individuação semântica de uma expressão; para que ela seja possível é necessário recorrer a regras ou combinações de regras cuja aplicação se circunscreve à expressão da qual queremos determinar o significado ou a sinônimos dela.

   Como Wittgenstein escreveu: “o lugar da palavra na gramática é seu significado”. (PG 23) Com efeito, se algo o localiza, são as regras mais específicas da gramática. São elas as responsáveis pelas finas modulações semânticas que importam à filosofia como terapia. Esse lugar da palavra na gramática é ocupado pelos significados que lhe são próprios, razão pela qual um significado pode ser identificado com:

 

Um uso da palavra de acordo com as regras do jogo de linguagem na qual ela está sendo inserida, um jogo enraizado em nossa forma de vida.

 

O contexto intencional mais amplo nos permite identificar o jogo de linguagem no qual a palavra está sendo usada, e jogos de linguagem são dependentes de nossa forma de vida (Lebensform), um conceito semelhante ao conceito de mundo da vida (Lebenswelt) de Edmund Husserl.[13] Esse lugar pode variar. Uma mesma palavra pode ser usada em diferentes jogos de linguagem. E é fácil para o filósofo confundi-los em sua busca de sínteses especulativas. A função anti-metafísica da terapia filosófica consiste em desfazer essas confusões, mostrando como as palavras são realmente usadas. Com isso trazemos as palavras de suas férias filosóficas de volta para o seu labor cotidiano.

   Voltemos agora à questão que estávamos há pouco considerando, ou seja, à questão da determinação do significado pelas regras da gramática, ou ainda, à questão de uma possível identificação entre significado e algo “do tipo de uma regra” (etwas Regelartiges).

   Na raiz da crítica wittgensteiniana a um enrijecimento do significado por listas de regras, parece estar um raciocínio como o seguinte: o número ilimitado de proferimentos com significações diversas que podem ser gerados em nossa linguagem, e mesmo a pluralidade daquilo que podemos “ter em mente” ao empregarmos uma expressão, exige que a noção de regra, se identificada com o significado, seja mais abrangente que a de algo como uma simples convenção ou hábito. Mesmo que se trate de uma lista fixa de convenções, ela é, não obstante, uma convenção, e que dominássemos listas ilimitadas de convenções seria, por razões não somente medicinais, inconcebível.

   Consideremos então, novamente, a ideia de que o significado seja determinado pelas regras da gramática, as quais resultam, decerto, de hábitos convencionados. O que significa em tal caso dizer que elas determinam (constituem, fixam, definem) o significado em proferimentos concretos?

   Naturalmente, não se trata aqui da determinação do uso episódico da expressão, de sua ocorrência, pois isso não é, como já vimos, o significado. Em uma tentativa de esclarecer o que significa aqui ‘determinar’, podemos recorrer também à analogia do aparelho eletrônico acompanhado de uma série de instruções intituladas “Modo de uso”. Podemos, obviamente, dizer que as prescrições ou regras da série determinam, fixam, constituem o modo de uso. Elas não costumam fazê-lo, porém, na independência umas das outras: mais frequente é que elas devam ser inter-relacionadas, por exemplo, que elas formem uma sequência interligada, na qual o seguimento de uma regra dependa do seguimento de outra (ex.: uma regra identifica um objeto e na sequência outra regra lhe atribui uma propriedade). Característico disso é que as regras se concatenam, se combinam; que um uso ou modo de uso pode consistir, não em uma regra só, mas em uma combinação de regras convencionadas, e que essa combinação, embora possa já vir preestabelecida, possa ser também, em princípio, ilimitadamente variável.

   Com isso parece que encontramos a chave para a resposta à questão do sentido da palavra ‘determinação’, quando Wittgenstein nos diz que as regras da gramática determinam o significado: o significado de uma expressão, seu modo de uso, é uma combinação de regras individuadoras do significado, regras constitutivas da gramática específica de um jogo de linguagem ou de uma apropriada região da linguagem. Semelhante combinação não é vista como uma ocorrência singular, não se reduzindo a um acontecimento espaciotemporal, como o próprio significado. E como semelhantes combinações podem ser indeterminadamente variadas, a plasticidade e ilimitação do que queremos entender por significado segue preservada. Esclarece-se assim em que sentido o significado pode ser considerado algo “do tipo de uma regra” (etwas Regelartiges).

   Uma outra analogia corrobora a sugestão. Um lance feito no decorrer de uma partida de xadrez não é um ato destituído de sentido. Há nele uma espécie qualquer de significado. Em que consiste o sentido do lance? Certamente, não na regra simples, na regra básica pela qual ele é movido, pois nesse caso todos os lances com a mesma peça, em quaisquer circunstâncias, teriam o mesmo significado (o que sob uma perspectiva mais restrita é verdade). Mas o significado de um lance feito em uma partida de xadrez para aquele que o realiza, o seu significado “intencional”, constitui-se antes na estratégia que é por ele pensada, ou seja, no cálculo estratégico que ele faz: esse cálculo nada mais é do que uma avaliação de variadas combinações de possíveis regras unitárias que poderiam ser aplicadas nos movimentos seguintes – no caso de um jogador profissional, não só complexas combinações eventuais de regras básicas, mas também estratégias (combinações conhecidas de regras básicas) das quais ele já tem domínio prévio. Se fosse perguntado pelo sentido de um lance realizado, o jogador responderia com uma descrição da combinação ou estratégia que ele tem em mente. Ora, também um lance (um proferimento) em um jogo de linguagem poderia ter seu significado identificado com algo como uma combinação de regras. – Com isso parece esclarecer-se mais um princípio semântico de Wittgenstein, o de que “o significado da expressão é aquilo que a explicação do significado explica” (PU 560). A explicação do significado nada mais é do que uma explicitação, ainda que vaga e incompleta, das regras ou combinações de regras para a aplicação da expressão em contextos de jogos de linguagem.

   Tais considerações devem se afigurar de algum modo familiares aos leitores da fase intermediária de Wittgenstein. Afinal, uma combinação de regras nada mais é do que um cálculo. Quando fazemos uma complexa operação aritmética, o cálculo não é mais do que uma combinação de regras mais elementares, as quais sabemos de cór. A isso objetar-se-á talvez que a ideia de que a linguagem funciona como um cálculo, ou, nas palavras de Wittgenstein, de que “o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo”, foi por ele abandonada e substituída pelo conceito mais flexível de jogo de linguagem, o que foi uma pedra de toque das interpretações, desde o livro de Pitcher até o comentário de Backer e Haker de 1980.

   Essa interpretação, hoje sabemos, é incorreta. Sempre fora motivo de embaraço o fato de que Wittgenstein continuasse a fazer um uso positivo do conceito de cálculo, mesmo nos escritos posteriores à introdução da noção de jogo de linguagem, como se evidencia (em contradição com a conhecida crítica do § 81) nos §§ 26 e 559 das Investigações Filosóficas e em certas passagens dos escritos sobre os fundamentos da psicologia. A razão disso ficou esclarecida na cuidadosa investigação do Nachlass publicada por S. S. Hilmy em 1987. Nela é mostrado como Wittgenstein usou nesses escritos as palavras ‘cálculo’ e ‘jogo de linguagem’ intersubstitutivamente. Como observou Hilmy:

 

No começo dos anos 30 ele tinha já claramente em um sentido abandonado o que pode ser chamado ‘o modelo do cálculo do Tractatus’. No entanto, ele continuou a usar o termo ‘cálculo’ em um sentido positivo para caracterizar a linguagem, e fez isso também na década de 40, longo tempo depois do chamado ‘período transicional’ do começo dos anos 30.[14]

 

O fato é que, quando Wittgenstein critica a noção de linguagem como cálculo nas Investigações, e mesmo bem antes, como na página 25 do Blue Book, ele não está atacando a ideia implícita de uma combinação de regras, mas uma série de associações indesejáveis que a palavra ‘cálculo’ traz à tona, principalmente as ligadas à noção de cálculo lógico, constituído por regras exatas, rígidas, explicitamente definidas. Mas tal não costuma ser o caso das regras implícitas, inexatas e facilmente alteráveis de nossos jogos de linguagem cotidianos. Como escreveu Hilmy: “Quando Wittgenstein critica a concepção da linguagem como cálculo, é com referência a um cálculo de uma espécie ideal, exata, e, mais especificamente, a espécie de papel que este cálculo ideal desempenhou no Tractatus”.[15]

   Quando examinamos os exemplos de cálculo com a linguagem apresentados no período intermediário de sua filosofia vemos que Wittgenstein usa a palavra em um sentido não-rigoroso, como quando se fala do cálculo estratégico feito em um jogo de xadrez, em um jogo de cartas, do cálculo que um jogador de futebol faz ao passar a bola. Também em tais acepções a palavra ‘cálculo’ preserva o sentido de uma combinação de regras. Assim, não há a menor evidência de que Wittgenstein tivesse rejeitado a ideia de que os lances dos jogos de linguagem envolvessem cálculos no sentido fraco de combinação de regras que são locais, que podem facilmente admitir alteração e invenção, que podem ser imprecisas, que não demandam de seus usuários que eles estejam em condições de explicitá-las verbalmente. Pelo contrário: só essa suposição justifica que, no § 558 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein reafirme que a função de um símbolo deva se mostrar no decorrer do cálculo.

   Com isso torna-se justificada uma reconsideração das passagens em que Wittgenstein dá exemplos de cálculo, em busca de uma melhor compreensão de como regras gramaticais podem determinar o significado, o modo de uso, caso essa determinação consista na combinação de tais regras. Afinal, ele parece em certos momentos dizer exatamente isso, como ao afirmar que “O sistema de regras, o qual determina um cálculo, determina desse modo também o ‘significado’ do signo”. (PB 152)

   Antes de considerar alguns exemplos de cálculo neste sentido fraco sugerido pelo próprio Wittgenstein, gostaria de introduzir um esclarecimento geral, não acerca do tão polemicamente problematizado conceito de seguir uma regra (cap. V), mas acerca do conceito mesmo de regra, entendido como aquilo que as diferentes expressões de regra expressam em comum. Sem dúvida, se é possível estabelecer uma expressão de regra para uma regra particular, a qual é ela própria geral, embora de âmbito mais restrito, não há razão para se rejeitar que possa haver uma expressão do que seja a regra em geral, conquanto essa expressão seja uma manifestação linguística de nossa intuição comum, deixando a linguagem “como ela está”.

   Contrariamente ao que se possa pensar, a reconstrução da noção de regra sob essa chave não se opõe às críticas wittgensteinianas ao essencialismo. Primeiro, porque a existência de expressões conceituais cujos casos de aplicação detêm meras semelhanças de família entre si (cap. VIII) não implica que todos os nossos conceitos gerais devam se fragmentar em casos de aplicação aparentados, nem que subconceitos de conceitos polissêmicos não possam ser eles próprios conceitos gerais unitários com expressões conceituais próprias. O próprio Wittgenstein considera essa última possibilidade ao contrastar o conceito de número, cujos casos de aplicação são múltiplos e aparentados, com o conceito precisamente definível (“streng umschriebenen”) de número cardinal (PG 70). Segundo, porque certas críticas ao realismo ontológico como, por exemplo, ao tratamento que nele é dado a entidades abstratas como se elas fossem impalpáveis sombras (empíricas) de coisas empíricas (BB p. 17, BGM p. 63), não precisam ser interpretadas como anti-essencialistas. Elas não impedem que uma concepção de essência possa ser resgatada como dizendo respeito à simples convenção, ao universal visto como algo próximo daquilo que Locke chamou de “essência nominal” (Cf. BGM p. 64-5) (como no caso de um conjunto modelar de condições de similaridade replicáveis de que guardamos memória), ou ainda, com relação a uma “essência real”, como algo que só as regras da gramática manifestam, dado que “A essência vem expressa na gramática” (“Das Wesen ist in der Grammatik ausgesprochen” (PU 371)), logo, como algo cuja inteligibilidade requer pleno resgate através de nossas convenções (PU 92, 97, BGM pp. 64-5) – algo que não parece demandar infalibilidade.[16]

   Consideremos então o que deve ser normalmente a expressão da regra em geral. Ela se baseia na ideia de que uma regra pode geralmente ser analisada como uma relação entre uma condição (ou grupo de condições) C e a ação A, que é a ação de segui-la, de tal modo que, dada a condição C, segue-se a ação (ou grupo de ações) A, não importando, para as considerações que pretendemos fazer, proceder a uma determinação precisa das espécies de relações que possam estar envolvidas – como C pode ser chamado de uma prescrição, podemos cognominar tal relação simplesmente de “relação prescritiva”. Desse modo, qualquer regra pode ser concebida como um caso da fórmula ou expressão geral de regra:

 

C => A

 

Nessa fórmula, C deve ser visto como o type de uma condição qualquer, e A como o type e uma ação, entendendo por ação-type, não uma entidade abstrata, mas uma classe aberta das ações-token aspectualmente similares entre si. Embora uma expressão de regra da gramática não tome necessariamente essa forma, ela pode em geral ser simplificadamente assim parafraseada. Por exemplo: A frase gramatical “A ordem ordena seu seguimento”, pode ser parafraseada como “Quando for dada uma ordem, deve-se agir segundo o que ela ordena”; a frase gramatical “A água ferve (sob condições normais de pressão etc.) a 100° C” pode ser parafraseada como “Quando a temperatura da água chegar a 100° C podemos concluir que ela ferverá” (leis são as regras da ciência natural).

   Também importa notar que os termos C e A não devem ser considerados em separado. A é sempre o modo de ação que se segue da condição C, pois nem toda ação que exemplifica A é a de seguir a regra em questão. Assim, um acontecimento empírico que exemplifique Al, mas que não siga as condições determinadas por Cl, não será considerado seguimento da regra Cl => Al, o que vale, mutatis mutandis para Cl, caso a sua presença não seja considerada prescrição para Al. Uma maneira de se tornar essa interdependência explícita é escrever:

 

C(A) => A(C)

 

Essa observação torna evidente que falar do type A(C) da ação de seguir uma regra já é falar da própria regra, mesmo que de uma perspectiva determinada, que faz perceptível só um dos termos. Isso nos permite concluir que não podemos, quando identificamos o significado com o modo de uso, ao invés de identificar tal modo de uso com a regra de uso, objetar pela suposição de que o modo de uso seja simplesmente o type de usos episódicos corretos, das ações-token de seguir a regra, e não a regra mesma, pois trata-se aqui da mesma coisa: o type de uma ação de seguir uma regra deve continuar a ser concebido como toda a regra, ainda que sob a perspectiva explicitadora da ação-type de segui-la.

   A fórmula geral acima considerada pode ser um instrumento útil em uma elaboração do que Wittgenstein poderia ter dito sobre tipos de regras. Com relação ao modo de ação de seguir a regra, ela nos permite distinguir dois tipos gerais de regra conversíveis entre si:

   Tipo I: é o daquelas ações nas quais a ação-type A é o esquema de uma ocorrência empírica, que embora sendo originariamente de ordem psicológica é geralmente também algo que resulta em uma ação no mundo externo. Exemplo do tipo I é a ação reflexa de pisar no freio diante de um sinal vermelho. Aqui usualmente dizemos que a regra é seguida.

   Tipo II: é o daquelas ações nas quais a ação-type A esquematiza um processo cognitivo (um ato mental), qual seja, o da tomada de consciência, da cognição, da constatação da existência de determinada entidade ou estado de coisas, o que resulta de certas condições C dadas, aqui chamadas de critérios. Exemplo disso é o caso de um motorista que, vendo o sinal mudar para o verde, toma consciência de que pode prosseguir. Nesses casos não costumamos dizer que a regra é seguida, mas aplicada.

   Sobre essa distinção devemos primeiro notar que as regras de um tipo são conversíveis em regras equivalentes do outro tipo: regras do tipo I, realizadoras da ação (digamos “Se o sinal está vermelho, pise no freio”) podem ser facilmente convertidas em regras do tipo II (por exemplo: “Se o sinal está vermelho, toma-se consciência de que se deve pisar no freio”) que são representadoras da ação e vice-versa. Segundo: é muito claro que as ações humanas normalmente envolvem os dois tipos. Se nossas regras fossem apenas do tipo I, nossos comportamentos teriam a forma de reflexos, de automatismos, de habituações não acompanhadas de atividade consciente. Se todas as regras fossem apenas do tipo II, nós seríamos seres puramente contemplativos. Como a maioria de nossas ações é também consciente, segue-se que se trata de ações que combinam os dois tipos de regra acima mencionados.

   A aplicação dessa distinção ao que Wittgenstein diz é esclarecedora. Ele considera exemplos dos dois tipos de regra. Exemplos do primeiro tipo são ações que constituem mero resultado de adestramento, como pode acontecer quando a linguagem é aprendida. Trata-se de regras puramente performativas. Seguir essas regras não é propriamente um ato cognitivo, mas um ato cego, involuntário. No segundo caso, que é o que mais nos importa, os exemplos relevantes têm a ver com o que Wittgenstein chamou de modos, métodos de verificação: regras verificacionais que para ele, até mesmo nas Investigações Filosóficas, permanecem essencialmente ligadas ao que “queremos dizer” com os nossos enunciados (Cf. PU 353). A relação entre a regra de verificação e o significado como uso (aplicação) explicar-se-ia pelo fato de ela poder ser identificada com o modo de aplicação, entendido como a maneira pela qual genericamente se justifica o emprego do proferimento assertivo. Tais regras são essencialmente cognitivas, pois o resultado último da aplicação da regra ou método de verificação é a cognição da existência de um estado de coisas.

   A isso liga-se uma outra noção importante: a de critério. Basicamente, critérios nada mais são do que condições (não importando o tipo) que, uma vez dadas, permitem a aplicação de uma regra de identificação de objeto, de atribuição de propriedade ou de verificação de configurações factuais no mundo, permitindo a cognição dessas configurações como efetivamente dadas, a formação de juízos; critérios podem ser, pois, critérios de verdade de juízos ou asserções. Critérios possuem uma ambiguidade semântica. Eles podem ser entendidos como condições independentemente dadas que satisfazem regras, ou então como condições internas às regras estabelecendo o que pode ser demandado para sua satisfação. No último caso eles são também chamados de regras, de regras criteriais, pois, como já vimos, um critério C só se concebe como C(A), que é um modo, uma perspectiva pela qual a regra total é concebida.

   Entre outros, um exemplo presente na página 28 das Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935, onde Wittgenstein relaciona explicitamente critério e regra de verificação, corrobora essa interpretação:

 

Os diferentes modos de se verificar “Choveu ontem” nos ajudam a determinar o significado. Ora, uma distinção poderia ser feita entre ‘ser o significado de’ e ‘determinar o significado de’. Que eu me lembre que choveu ontem me ajuda a determinar o significado de “Choveu ontem”, mas não é verdade que “Choveu ontem” significa “Eu me lembro que...”. Nós podemos distinguir entre critérios primários e secundários de que está chovendo. Se alguém pergunta “O que é chuva?”, você pode apontar para a chuva caindo, ou derramar alguma água de uma caneca. Esses constituem critérios primários. Pavimentos molhados constituem um critério secundário e determinam o significado de ‘chuva’ de um modo menos importante.[17]

 

Note-se que o apontar para a chuva caindo tem aqui uma função semelhante ao apontar para uma cadeira e dizer: “Isso é uma cadeira”. Essa pode, como já vimos, ser uma frase gramatical expressa em uma definição ostensiva, o que é também exprimível sob a forma verbal: “A presença de tais e tais critérios (Cl) nos mostra que estamos diante de uma cadeira (Al)”. Também esclarecedora é, no caso acima, a distinção entre critérios primários (definitórios) e secundários ou sintomas, os quais se constituiriam de modo adventício, probabilizando, mas não trazendo a certeza da existência do estado de coisas em questão (BB pp. 24-25). Internamente interpretados, os diferentes critérios redundam em modos de se “ter em mente” o sentido cognitivo da frase. Isso não nos precisa conduzir, segundo Wittgenstein, a uma dissolução da unidade de sentido da frase. O modo de verificação – e com ele o significado da frase – pode ser concebido como sendo único, já que critérios secundários são sintomas de algo mais central, que é o critério primário, dado na observação que é tida como sendo direta (Cf. WWK pp. 158-9).

   A conhecida identificação feita por Wittgenstein, em sua fase intermediária, entre o significado de uma frase e o seu modo de verificação é, pois, complementar a mais um princípio semântico seu, segundo o qual os critérios “dão a nossas palavras seus sentidos comuns”. (BB p. 57) De fato, se os critérios são condições antecedentes de regras cognitivas, e se essas regras criteriais são regras de verificação, então torna-se natural que eles sejam determinadores do significado.

   Com tais considerações em mente, analisarei primeiramente exemplos de cálculo, de combinações de regras, trazidos pelo próprio Wittgenstein. Uma série crescentemente complexa de tais exemplos encontra-se no Brown Book, o que pode ser lido quase como uma tentativa filosófica de mostrar como nossa linguagem natural poderia ser construída a partir de jogos de linguagem mais simples. Um exemplo é o caso do jogo de comando do § 33 em que, como resposta a articulações simbólicas como “aacaddd”, o ouvinte faz uma sucessão de movimentos diversamente direcionados em correspondência com cada letra diferente, e de comprimentos diferentes como consequência da possibilidade de repetição de uma mesma letra. O exemplo de Wittgenstein que me proponho a analisar é, contudo, o da multiplicação “F” presente nas Lectures de 1930-32:

 

F 123

    753

    369 x

  615 y

861 z

92.619

 

Vale reproduzir o comentário de Wittgenstein:

 

F é uma regra da gramática ou um cálculo feito no papel; mas partes individuais do trabalho podem ser feitas de acordo com um dos cálculos mencionados. Assim, o passo x é para mim uma definição; o passo y é uma hipótese, mas o primeiro estágio deste, 5 x 3 = 15, é de novo uma definição. O resultado é uma hipótese. Uma outra pessoa poderá fazer o cálculo e chegar ao resultado diferentemente. Os passos individuais são regras da gramática e o processo como um todo é uma regra da gramática.[18]

 

Wittgenstein considera aqui não só as regras típicas da gramática, que ele chama de definições. Elas são regras de hábito em cuja aplicação o erro, se houvesse, seria imediatamente corrigível, a exemplo das regras da tabuada. Ele chama de regra da gramática também a completa combinação dessas regras, o cálculo, que, sendo passível de erro, é por ele chamado de hipótese.

   Digna de nota é também a possibilidade de se reduzir não só os passos do cálculo, como o cálculo como um todo, à fórmula geral da regra, pois as condições intermediárias podem, no caso, por serem secundárias, ser abstraídas. Uma combinação de regras, embora não seja um hábito ou uma convenção, pode nesse sentido ser considerada, como o próprio Wittgenstein o faz, como uma regra; afinal, também ela é “do tipo de uma regra”. Também é importante notarmos que a fronteira entre regras de hábito, que se condicionam como tais, e suas combinações, é gradual e variável: uma combinação de regras pode, por exercício, passar a ser concebida como uma regra unitária – compare-se, por exemplo, a habilidade aritmética de uma criança a de um adulto, ou a de um adulto com a de um savant.

   Podemos agora procurar em Wittgenstein casos de combinações de regras, de cálculos que se aproximem do que realmente se passa na linguagem cotidiana, tanto de combinações performativas quanto de combinações que constituam regras cognitivas. Um caso de cálculo com regras performativas é apresentado por ele mesmo em um diálogo com Friedrich Waismann. O exemplo trata do que poderia ser uma combinação de regras realizada para a compreensão da ordem: “Traga-me a gasolina”. Convém traduzir:

 

O modo como nós usamos os signos constitui o cálculo [...] há entre o modo de aplicação de nossas palavras na linguagem e um cálculo, não algo como uma mera analogia; eu posso de fato conceber o conceito de cálculo de tal maneira que a aplicação da palavra cai sob ele. Eu quero logo explicar como entendo isso. Tenho aqui uma garrafinha de gasolina. Para que serve? Para lavar. Ora, nela está colado um rótulo com a inscrição ‘gasolina’ [...] Ora, essa inscrição é um ponto-de-apreensão (Angriffspunkt) para um cálculo, quero dizer, para a aplicação. Eu posso lhe dizer: “Traga a gasolina!” E através dessa inscrição é dada uma regra, segundo a qual o senhor pode proceder. Se o senhor traz a gasolina, então está lá de novo um passo naquele cálculo que é determinado por regras. (WWK p. 168)

 

Em primeiro lugar, não custa notar que no início desta passagem o modo de uso ou aplicação é identificado com o cálculo. Em seguida há o que Wittgenstein chama de ponto-de-apreensão do cálculo. Chegar a perceber a inscrição é o resultado de seguir uma regra de comando, mas a inscrição mesma é um novo ponto-de-apreensão, que serve de condição para uma nova ação (raciocinada) de seguir outra regra (a de trazer a garrafinha de gasolina), o que produz no todo, tal como no exemplo aritmético, uma combinação de regras. As regras em questão poderiam exemplificar a expressão de regra gramatical listada anteriormente: “Uma ordem ordena a sua execução”, não se distinguindo categorialmente dela. Elas devem ser, todavia, ainda mais específicas, i. e., regras que são tidas como “simples”, de hábito, em um jogo de linguagem muito localizado, que assume, por exemplo, a regra expressa por: “Uma garrafa costuma conter o que o seu rótulo descreve”.

   Procuremos agora exemplos de regras cognitivas como regras verificacionais. No parágrafo 25 das Lectures de 1930-32 há inicialmente uma observação na qual Wittgenstein faz um uso equivalente das palavras ‘significado’, ‘verificação’, ‘lugar do símbolo em um cálculo’ e mesmo ‘modo de uso’, que cito com o fito único de dar confirmação textual à minha tese da existência de uma certa unidade intrínseca no pensar wittgensteiniano, por oposição à tendência banalizadora de interpretá-lo segmentando-o em compartimentos estanques:

 

Se você quer saber o significado de uma sentença, pergunte pelo modo de verificação. Eu sublinho o ponto de que o significado de um símbolo é o seu lugar no cálculo, o modo como ele é usado! (grifos meus)

 

No exemplo que se segue a essa observação Wittgenstein relaciona a diversidade das verificações particulares de uma sentença declarativa com a unidade de seu significado:

 

Atender para o modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge venceu a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, não é uma disjunção: “Eu vi a corrida ou eu li o resultado ou [...]” É mais complicado. De fato, se nós retirarmos qualquer dos modos de verificação do enunciado, nós alteramos seu significado. E, se nós retirarmos todos os modos de verificação, nós destruiremos o significado.[19]

 

A regra que preside uma verificação particular efetivamente realizada constitui uma nuance intencional da asserção – ao que alguém mais exatamente havia tido em mente com essa última. Como é possível que esse elemento cognitivo-intencional enfatizado sofra variações em diferentes asserções, é razoável considerar que as regras contingentes que o constituem se derivem de um modo de verificação mais fundamental, que tenha por base critérios primários e observação considerada direta. Digamos, pois, que alguém leia o resultado em um jornal. É razoável pensar que um significado cognitivo, diríamos, o conteúdo proposicional da asserção, é salientado, mesmo havendo um conteúdo fundamental, que seria o conteúdo da observação direta do acontecimento, embasando essa possibilidade em jogos de linguagem tematizadores do que se passa no mundo externo. (Ver WWK pp. 158-9).

   O mesmo exemplo também sugere que as regras criteriais determinadoras do cálculo sejam regras da gramática, exprimíveis em frases gramaticais. Embora o procedimento investigativo de Wittgenstein não lhe possibilite um esclarecimento sistematizador, é razoável pensar que, na gramática constitutiva do sistema de regras que é esse jogo de linguagem específico, haja regras simples como: “A equipe cujo barco chega primeiro vence a corrida”, a qual, traduzida na forma de uma regra criterial, torna-se algo como: “Ver o barco de uma equipe chegar em primeiro lugar é (em circunstâncias normais) critério primário para a cognição do fato de ela ter vencido a corrida”.[20] Essa regra pode ser então combinada com a regra para a identificação da equipe de Cambridge, formando uma regra composta, a qual verifica o enunciado “Cambridge ganhou”. Semelhante era o caso de nosso exemplo anterior, a multiplicação “F”. A multiplicação “5 x 3 = 15” (do mesmo modo que “2 x 2 = 4”) é uma regra gramatical na qual “5 x 3 =>” é critério para a cognição do resultado “15”; “F” ou “753 x 123 =>” pode ser analisada de modo a derivar uma composição de critérios, dentre os quais costuma tomar parte “5 x 3 = 15”, para que se chegue ao resultado 92.619. O procedimento, o cálculo, verifica a frase “753 x 123 = 92.619”.

   Também procurei demonstrar essa possibilidade em jogos de linguagem cognitivos simples, como o report-game concebido em um artigo de Erik Stenius.[21] Nesse jogo, um ajudante de jardineiro deve informar sobre a situação de um local de um canteiro, aplicando uma regra de identificação a uma planta que se encontra nesse local, regra essa que deve ser conjugada a uma regra de predicação, somente aplicável quando a planta está florida. Combinações de critérios de identificação e de predicação constituiriam aqui a condição antecedente, uma composição criterial justificadora da aplicação de uma combinação de regras, qual seja, da regra verificacional para o fato de a planta estar florida. Somente após a aplicação da regra de identificação a regra de predicação pode ser aplicada.

   O que se deixa concluir das considerações precedentemente esboçadas é a plausibilidade da ideia de que a identificação entre o significado e o uso possa ser concebida como uma identificação entre o significado e algo do tipo de uma regra: regras, combinações de regras mais ou menos específicas da gramática de jogos de linguagem, as quais também podem possuir o caráter cognitivo próprio das regras criteriais ou verificacionais. O significado cognitivo de uma sentença declarativa, seu conteúdo proposicional, pode ser em princípio entendido como o modo fundamental de sua aplicação, o qual é redutível a uma regra ou complexo de regras verificacionais cuja existência e aplicação efetiva é uma condição justificadora de seu proferimento atual em asserções, ou seja, de seu uso episódico.[22] O apelo ao uso perde com isso o indesejável tom de misticismo semântico que os aforismos wittgensteinianos por vezes parecem insinuar. O que mais justifica tal apelo, porém, é a sua função heurística, de situar a questão logo de início na práxis efetiva da linguagem, que preside a conexão necessária entre o significado e o contexto, entre o significado literal e as suas múltiplas e variadas ramificações cognitivo-intencionais, que são aquilo que realmente mais interessa à filosofia terapêutica.

   A sugerida unificação de princípios semânticos comprova a posteriori sua própria possibilidade. À objeção: “Por que Wittgenstein nunca tentou uma tal exposição argumentada e sintética da gramática do conceito de significado?”, talvez devamos responder: por motivos vários, como incertezas, contradições, lacunas argumentativas... Mas talvez também por motivos não muito diversos daqueles pelos quais Platão sempre se recusou à tentativa de fazer o mesmo com a sua doutrina das ideias, cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de seu pensamento.

   Espero que esse resumo tenha tornado plausível a ideia de que os escritos de Wittgenstein ocultam, ou pelo menos estranhamente sugerem, estruturas racionais muito mais complexas, que são as fontes reais de seu permanente interesse e influência, mas que subsistem nos textos como intuições fragmentariamente explicitadas, sem que seu autor tenha tido meios ou mesmo buscado articulá-las sistematicamente. Uma adequada explicitação, organização e desenvolvimento de semelhantes estruturas deverá pôr a descoberto um outro corpo de ideias, nem sempre coerente com as suposições do autor, mas mais poderoso, em virtude de sua capacidade de impor-se à razão, do que aquilo que intérpretes de certa época e de certas correntes de pensamento nos haviam feito imaginar.

 

 

Lista de abreviações:

 

TLP: Tractatus Logico-Philosophicus, WWK: Wittgenstein und der Wienner Kreis (Wittgenstein e o Círculo de Viena) BB: The Blue and the Brown Books (Os Livros Azul e Marrom) PU: Philosophische Untersuchungen (Investigações Filosóficas) Z: Zettel, ÜG: Über Gewissheit (Sobre a Certeza). As obras de Wittgenstein abreviadamente referidas são as do Werkausgabe de 1984 da editora Suhrkamp, com exceção dos The Blue and Brown Books, quando se usou a, edição inglesa de Rush Rhees (1975).

 

 



[1] C. F. Costa: Wittgensteins Beitrag zu einer sprachphilosophischen Semantik, Konstanz: Hartung-Gore Verlag 1990.

[2] Em The Grammar of Justification: An Interpretation of Wittgenstein’s Philosophy of Language. London 1976. Richardson defendeu que “toda uma teoria do significado pode ser retirada da ideia de que o significado é o uso” (p. 45) e, em concordância com o que irei expor, concluiu que a teoria criterial exemplifica a teoria do significado, pois critérios são convenções semânticas constitutivas de jogos de linguagem e justificadoras da aplicação da palavra nestes (p. 126).

[3] Paul Feyerabend. “Philosophical Investigations”, in: George Pitcher (ed.): Wittgenstein: The Philosophical Investigations. London 1968, pp.104-150.

 

[4] Carl Hempel, “Rudolf Carnap, Logical Empiricist”, in Synthese, Vol. 25, 1972-3, p. 264.

[5] A. J. Ayer: Ludwig Wittgenstein, p. 137. Chicago 1986. Ver também S. S. Hilmy: The Later Wittgenstein: The Emergence of a new Philosophical Method. Oxford 1987, pp. 208-9.

[6] Baker & Hacker: Wittgenstein, Understanding and Meaning. Oxford 1980, p. 489.

[7] Ibid., p. 489.

[8] “Wittgenstein on the Nature of Philosophy”, in Anthony Kenny, The Legacy of Wittgenstein. Oxford 1984. Para esse autor coexistem na obra do segundo Wittgenstein duas concepções de filosofia, uma terapêutica, enquanto a outra “parece bem mais com algumas das tradicionais, mais imperialistas, visões da filosofia” (p. 43), buscando “abrangência de entendimento, uma visão clara do mundo” (p. 39).

[9] Desmond Lee (ed.): Wittgenstein’s Lectures, 1930-1932. Oxford 1980, p. 85.

[10] G. E. Moore, “Wittgenstein’s Lectures in 1930-33”, in: Philosophical Papers, London 1963, p. 257. Cf. também E. K. Specht: Die Sprachphilosophischen und ontologischen Grundlagen im Spätwerk Ludwig Wittgensteins, Kantstudien Erganzungsheft 84, Köln 1963, cap. V.

[11] E. K. Specht: “Wittgenstein und das Problem des ‘a priori’”, in: Revue Internationale de Philosophie, 88/89, 1969, pp. 167 ss.

[12] Se essa última afirmação for tomada literalmente, o que não me parece necessário, a acusação de ser sem sentido aplicar-se-ia também a minha própria tentativa de propiciar uma representação panorâmica, “teorética”, dos princípios gramaticais constitutivos do conceito geral de significado.

 

[13] Cf. meu livro Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy. Newcastle upon Tyne, 2018, cap. III, sec. 8.

[14] S. S. Hilmy, The Later Wittgenstein: The Emergence of a New Method. Oxford, 1987, p. 98.

[15] S. S. Hilmy, Ibid. p. 106.

 

[16] A atitude de Wittgenstein que, pendendo para o nominalismo, só aborda muito tangencialmente a questão dos universais, evidencia-se na evasiva colocação de Friedrich Waismann: “Não é como se quiséssemos negar a existência do zero e reconhecer apenas a do signo. (Pense no que pode significar a frase ‘O zero não existe’!). Nós passamos apenas a um outro domínio da gramática, onde somos sujeitos a menos perigos. Nós não fugimos do abstrato para o concreto; nós queremos somente considerar as coisas, uma única vez, sem preconceitos”. Logik, Sprache, Philosophie. Stuttgart 1977, p. 131.

[17] Wittgenstein’s Lectures 1932-1935. A identificação do significado cognitivo da frase com o seu método de verificação foi bastante criticada mais tarde, não só por membros do Círculo de Viena como Carl Hempel, mas também por filósofos como W. V. Quine. Trata-se, porém, de objeções ao próprio tratamento inicialmente dado pelos membros do Círculo à ideia de Wittgenstein. Uma investigação mais cuidadosa mostra que a ideia original de Wittgenstein era muito mais flexível e mais fácil de ser tornada resistente às objeções. Cf. Claudio Costa, Philosophical Semantics,  2018, cap. V.

[18] Alice Ambrose (ed.). Wittgenstein’s Lectures, 1932-1935. Oxford 1979, pp. 96-97.

[19] Alice Ambrose, § 25.

[20] Estou deixando de lado o papel do juiz, uma vez que em circunstâncias normais há concordância com o que os espectadores veem.

[21] Erik Stenius. “Mood and language-game”, in: Synthèse 17 (1967), p. 263 ss. Ver também Ernst Tugendhat e Ursula Wolf: Logisch-semantische Propädeutik. Frankfurt 1983, pp. 235-6. Exceções a essa forma genérica de verificacionismo podem ser reinterpretadas e evidenciadas como sendo aparentes. Exemplo: Se podemos considerar João como tendo sido corajoso, embora ele tenha morrido sem ter podido demonstrar a sua coragem (não havendo qualquer outra razão para que creiamos nisso), parece então que temos um enunciado significativo, mesmo que inverificável – o que conduz à sugestão de que não é necessária uma regra de verificação para que tenhamos um enunciado significativo, bastando que sejamos capazes de reconhecê-la, caso ela nos for dada (Dummett). Tal sugestão parece-me desnecessária, pois o conteúdo proposicional acima considerado não é significativamente enunciável ou asserível, tendo apenas um mero significado lexical. Temos apenas a impressão de que asseri-lo é possível, dado que podemos isolar tal conteúdo e inseri-lo, por exemplo, em asserções modais como “É possível que João fosse corajoso”, que se assemelham à pseudo-asserção “João era corajoso”, que não faz sentido. Uma tal asserção modal é perfeitamente significativa, dado que para ela temos procedimentos verificacionais (basta, para tal, ter verificado que João era um ser humano, pois se era humano, pode ter sido corajoso).

[22] Uma maneira de ver semelhante encontro em A. J. Ayer, para quem especificar o uso, entendido como o significado de uma sentença declarativa, é descrever os estados de coisas que a verificam. Cf. The Concept of Person. London 1963, pp. 22-23.

 



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