Quem sou eu

Minha foto
If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA (3-4)

continuação...  

 

 

                                                        IV

 

               RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS

                                             DA FILOSOFIA

 

 

„Überall suchen wir das Unbedingte, und finden nur Dinge.“

[Em tudo buscamos o incondicionado, e o que encontramos são apenas coisas.]

Novalis

 

The aim of philosophy, abstractly formulated, is to understand how things, in the broadest possible sense of the term hang together in the broadest possible sense of the term.

[A finalidade da filosofia é entender como as coisas, no sentido mais amplo do termo, se adequam entre si no mais amplo sentido do termo.]

Wilfried Sellars

 

 

Por que Kant e Hegel são inevitavelmente chamados de ‘filósofos’, enquanto o mesmo não se aplica, com igual naturalidade, a Marx, que, mais (ou menos) do que um filósofo, foi considerado por Isaiah Berlin o verdadeiro fundador da sociologia?[1] Afinal, também a obra de Marx, como a história demonstrou, é profundamente especulativa e resistente a consensos sobre o que nela pode ser considerado verdadeiro.

     A resposta reside no escopo. Enquanto os sistemas de Kant e Hegel são omniabrangentes, buscando resolver uma questão filosófica por meio da solução de todas as demais, o pensamento de Marx se limita a uma filosofia política e social, moldada por reflexões econômicas e pelos dados empíricos fornecidos pela revolução industrial. Diversamente de Hobbes, Marx é tanto filósofo político quanto sociólogo, embora a ideia de que sua sociologia seja científica seja hoje amplamente considerada um exagero. Muitos exemplos semelhantes poderiam ser mencionados. É aqui que entra em questão outro aspecto da filosofia que não podemos deixar de mencionar: a abrangência. Os sistemas de Platão, Aristóteles, Kant e Hegel são universais em sua ambição. Eles partem da premissa de que a mente humana é, por natureza, orientada a compreender o todo. De onde vem esse ímpeto?

     O caso acima nos sugere que, embora possamos conceber a filosofia, em termos gerais, como uma forma conjectural caracterizada pela ausência de respostas definitivas, isso não esgota seus traços distintivos. Permanecem sem explicação certos elementos presentes nas caracterizações históricas da filosofia: a busca da sabedoria, o espanto originário, o frequente apelo a princípios de explicação cuja validade é cognitivamente controversa, bem como o impulso que objetiva integrar nossas experiências em uma visão abrangente, capaz de “resolver de modo convincente nossas grandes questões concernentes à realidade e o lugar que nela ocupamos”.[2] Foi esse impulso que motivou a elaboração dos grandes sistemas filosóficos, de Platão a Hegel. Nada disso se deixa compreender plenamente se reduzirmos a filosofia a um conhecimento público não consensualizável, ou a um empreendimento cognitivo antecipatório da ciência, como discutido no capítulo anterior.

     No presente capítulo, mostrarei que a resposta a tais questões pode ser encontrada quando, em vez de investigarmos a propriedade da investigação filosófica de não alcançar um conhecimento público consensualizável, tal como ocorre na ciência, perquirirmos o modo como a filosofia se originou. Essa abordagem leva-nos a comparar a filosofia com outra de suas relações próximas, qual seja, a religião.

 

 

1.     FILOSOFIA E RELIGIÃO: A ABORDAGEM

    GENÉTICA

 

Há duas características particularmente importantes que a filosofia compartilha com o pensamento religioso: a abrangência – entendida como a capacidade de incorporar os mais diversos elementos e aspectos – e a profundidade – referente ao nível de reflexão envolvido. A essas pode-se acrescentar a elevação, que diz respeito à ascensão espiritual, intelectual e moral, além de um esforço para trazer orientação à vida humana. Esses quatro traços podem ser encontrados de forma variada em filósofos religiosos como Plotino, Eriugena, Agostinho e Anselmo; podem ser de difícil caracterização, embora se encontrem aqui inter-relacionados.

     Religiões monoteístas, como a judaico-cristã, buscam atributos como abrangência, profundidade, elevação e direcionamento por meio da invocação de um Deus transcendente situado além do mundo da experiência, embora misteriosamente concebido como um ser pessoal que é a causa eficiente e sustentadora da realidade. Por essa via, tais religiões alcançam uma notável abrangência: o conceito de Deus ocupa o centro de uma doutrina que visa integrar nossas formas de compreender o mundo e o papel do ser humano nele, permitindo a derivação de normas para a orientação da conduta humana. Historicamente, muito da filosofia tem preservado aspirações similares de abrangência, profundidade, elevação e direcionamento, embora realizando-as na maioria das vezes sem o apelo a um Deus pessoal transcendente.

     Filósofos tradicionais foram movidos pela busca de abrangência, o que levou muitos de seus expoentes à construção de sistemas filosóficos amplos, voltados à explicação da realidade como um todo e, com frequência, à derivação de diretrizes gerais para a conduta humana, como exemplifica de forma notável o pensamento de Spinoza. Mesmo que as aspirações da filosofia do século XX não sejam tão elevadas, ainda persistem, como critérios de avaliação, elementos como amplitude de propósito, profundidade, elevação e nível, como se observa no caso da obra de Wittgenstein.

     Quanto à alegada profundidade e elevação, embora a filosofia não recorra ao sobrenatural da mesma maneira que a religião, ela frequentemente apela a princípios metafísicos de explicação que permanecem além das possibilidades concretas de experiência e de entendimento. Ainda que tais princípios não sejam seres espirituais, como os deuses das religiões, não raro se mostram difíceis de distinguir deles. Tal como os deuses, é comum que não possam ser plenamente compreendidos pelo entendimento humano, que possuam algum atributo mental e que se relacionem ao mundo sensível de maneira obscura e misteriosa. Para compreendermos a imensa relevância desses princípios metafísicos, basta considerarmos o lugar central que sempre ocuparam na história da filosofia. Eis uma breve lista, de Tales a Wittgenstein:

 

-         A água (Tales); o ilimitado (Anaximandro); o ar (Anaxímenes); a terra   (Xenófanes); o pensamento (Anaxágoras), a razão (Heráclito); o ser (Parmênides); os átomos (Demócrito); o número (Pitágoras), os quatro elementos e as forças do amor e do ódio (Empédocles).

-         as ideias, especialmente a ideia do Bem (Platão); o ser enquanto ser ou substância ou Deus (Aristóteles); o Uno (Plotino); a natureza (Scotus Eriugena); o Omni-Deus (Tomás de Aquino e outros filósofos medievais);

-         a substância pensante finita e infinita (Descartes); a substância-natureza-Deus (Spinoza); as mônadas (Leibniz); as ideias (Berkeley); o oceano noumênico com a sua coisa em si e o seu Eu transcendental (Kant); o Eu Puro (Fichte); o espírito absoluto (Hegel); a Vontade (Schopenhauer); a vontade para poder (Nietzsche); o Ser (Heidegger); o indizível (Wittgenstein).

 

 

O relacionamento entre filosofia e religião pode ser abordado, historicamente e geneticamente, por meio da consideração de princípios ou entidades-princípio – entes que geralmente atuam como fundamentos capazes de produzir, determinar ou sustentar as coisas. É amplamente reconhecido que a filosofia ocidental emergiu do solo da mitologia grega e da religião. Por volta de 600 a.C., a partir de Tales de Mileto, os pensadores gregos passaram a se tornar insatisfeitos com as explicações mitológicas dos fenômenos da natureza e da vida humana, substituindo-as por explicações filosóficas.

     Alguns historiadores da filosofia sugeriram que o contato com outras culturas, com seus deuses e valores distintos, poderia ter contribuído para enfraquecer a crença dos gregos em suas explicações mitológicas.[3] No entanto, esse fator, por si só, não parece suficiente para explicar o surgimento da especulação filosófica, uma vez que muitas culturas foram igualmente expostas a influências externas, sem que desenvolvessem qualquer tipo de filosofia – algumas, ainda, reagiram a tal exposição pelo revigoramento reativo de suas próprias crenças; considere, por exemplo, a sobrevivência do judaísmo em seus dois mil anos de diáspora.

     Uma explicação mais plausível para o nascimento da filosofia ocidental foi a proposta por W. K. C. Guthrie: a descoberta da ciência abstrata entre os gregos sugeriu à mente humana o uso da generalização.[4] Contudo, esse fator, por si só, não seria suficiente para produzir a emergência do pensamento filosófico, posto que generalizações do senso comum sobre fenômenos ordinários sempre existiram, como a de que o Sol nasce todos os dias ou, digamos, a de que a adição de dois objetos a outros dois resulta sempre em quatro objetos. Tais generalizações são tão evidentes que sempre foram sabidas, sem exigir reflexão filosófica.

     Em meu juízo, a razão mais completa para o nascimento da especulação filosófica ocidental, incorporando a explicação aceita por Guthrie, seria a seguinte: os gregos, muito em consequência de sua exposição a outras culturas, desenvolveram avanços científicos em aritmética, geometria, física e astronomia. Contudo, enquanto outros povos viam esses conhecimentos como meros instrumentos para fins práticos, os gregos foram os primeiros a considerá-los em abstração dessas finalidades, ou seja, como generalizações científicas.

     Essa atitude os capacitou a reconhecer as características intrínsecas desse tipo de generalização. Eles perceberam que as generalizações científicas possuem um poder explicativo que pode ir muito além do que é abertamente observável, alcançando a natureza oculta dos fenômenos, ao contrário do que ocorre com as generalizações de senso comum. Nesse contexto, compreenderam que a forma científica de explicação se fundamenta na existência de regularidades, tanto na natureza empírica quanto nos elementos formais. Tais regularidades não apenas se refletem nas generalizações, mas também permitem, quando empíricas, explicar fatos e fazer previsões (como o haviam demonstrado as predições astronômicas) e, quando matemáticas, justificar inferências (como nas provas dos teoremas), em um procedimento em certa medida análogo.

     Ao assumir a possibilidade de tais generalizações abstratas, sustentadas por inferências baseadas em regularidades dadas à experiência, seguidas de explicações e previsões, ou pela prova de teoremas com base em axiomas, os primeiros filósofos gregos teriam alcançado aquilo que chamo de ideia de ciência, tanto empírica quanto formal. Essa ideia envolvia procedimentos de inferência indutiva de leis gerais, acompanhados de explicação e previsão, além de estruturas inferenciais silogísticas que seriam posteriormente sistematizadas e formalizadas no Organon aristotélico.  Tratava-se de um novo tipo de explicação dos fatos, radicalmente diferente daquela proposta pelo antropomorfismo religioso.

     Diante disso, a questão que se impõe é: não teria sido a descoberta da mera possibilidade de substituir explicações religiosas por explicações baseadas em princípios ou leis, aplicáveis mesmo ao que era inobservável ou oculto na natureza, a centelha que acendeu o fogo da especulação filosófica nas mentes dos pensadores gregos pré-socráticos? A ideia subjacente que deve ter emergido da mente desses primeiros filósofos, que eram pessoas cientificamente instruídas, foi simplesmente a de que o mundo inteiro poderia ser explicado, não pelo apelo à vontade arbitrária dos deuses, mas por meio de regularidades semelhantes às reveladas pela ciência.

     É evidente que nenhuma das questões abrangentes por eles tratadas poderia ser abordada de forma verdadeiramente científica. Mas, ainda assim, elas se prestavam à abordagem especulativa, por meio de conjecturas respaldadas na ideia de ciência, além de resultados que, embora não passíveis de obter acordo consensual, eram intelectualmente estimulantes. A prática desse procedimento especulativo, oriunda de uma espécie de hedonismo intelectual no sentido elevado da expressão, constituiu a característica mais marcante da filosofia pré-socrática.

     Dada a influência do modelo científico, seja ele empírico ou formal, não é surpreendente que, no nascimento da filosofia grega, o primeiro filósofo da tradição ocidental, Tales de Mileto, fosse também astrônomo e matemático de notável competência. Conta-se que previu o ano de um eclipse solar e desenvolveu o teorema que leva seu nome. Sua hipótese de que a água seria o princípio, a arché (ἀρχή), isto é, o princípio, o começo, a causa eficiente e sustentadora de todas as coisas, foi a primeira tentativa de substituir explicações baseadas na vontade dos deuses por abordagens mais próximas de uma explicação não antropomórfica, fornecida pela ciência.

     Certamente, uma tal explicação não poderia ser formulada em termos extremamente científicos, pois lhe faltaria o tipo de acordo consensual que vimos ser distintivo da ciência. Nem Tales nem seus sucessores tinham condições de alcançar a compreensão científica de uma questão tão abrangente quanto a dos constituintes e determinantes últimos da natureza, já que tais consensos dependem da realização de observações sofisticadas, inconcebíveis na época. Ainda assim, os pensadores pré-socráticos eram, pelo menos, capazes de especular filosoficamente sobre tais questões, oferecendo vislumbres conjecturais acerca da natureza das coisas. Suas sugestões, embora indeterminadas, incompletas e em certos casos profundamente equivocadas, eram ainda assim capazes de ordenar, dirigir e mesmo aprofundar nosso entendimento da realidade.

     O que filósofos como Tales e, com maior refinamento e profundidade, Heráclito e Parmênides, estavam produzindo, eram ideias esquemáticas, esboços explicativos, concepções vagas e sugestivas, ou seja, formas embrionárias de teorias sobre o que frequentemente assumia o papel de causas eficientes e sustentadoras do mundo que experienciamos. Inicialmente, tratava-se de coisas sensíveis, como a água ou a terra, mas logo essas entidades se tornaram mais evanescentes, como o ar invisível de Anaxímenes, e, mais para adiante, foram consistentemente substituídas por princípios não acessíveis aos sentidos – como o ilimitado de Anaximandro, o número de Pitágoras, a razão de Heráclito, o ser de Parmênides. Tais entidades foram inevitavelmente substituídas por inúmeras outras hipóstases que permearam a história da filosofia. Irei aprofundar a análise desses princípios, mas, antes, é necessário considerar algumas ideias de Auguste Comte, que, se bem entendidas, podem nos oferecer uma orientação valiosa.

 

 

2.     A LEI COMTIANA DOS TRÊS ESTÁGIOS

 

A consideração histórica do fato de que a filosofia nasceu como substituto das explicações da mitologia e da religião traz à memória a assim-chamada “lei dos três estágios”,[5] formulada por Auguste Comte como uma ordenação da longa jornada da mente humana, que passa da superstição à ciência.[6]  Pretendo recorrer a essa lei adiante. No entanto, como creio que essa lei é de considerável relevância, proponho atualizá-la em alguns pontos, respondendo, na próxima seção, às objeções mais influentes contra ela.[7]

     A lei dos três estágios pode ser entendida em três planos distintos:
 

(a) Nível do desenvolvimento da cultura humana em suas diversas ramificações;

(b) nível do desenvolvimento da mente individual;

(c) nível do desenvolvimento da sociedade humana como um todo.

 

No nível mais abrangente, como uma lei geral que rege o desenvolvimento da cultura humana, a lei dos três estágios torna-se particularmente importante. Segundo Comte, em conexão com a emergência das ciências básicas (ver cap. III, sec. 3), a cultura humana atravessa três fases sucessivas: o estágio religioso ou fictivo, o estágio metafísico ou abstrato e, por fim, o estágio científico ou positivo. Eis um esquema orientador:

 

                                                                                           Subestágios:

                                             Estágios:                               (i) animista   

(1)  religioso ou fictivo         (ii) politeista

                    Níveis:                                                           (iii) monoteista

                    a) cultural        (2) metafísico ou absoluto

                                             (3) científico ou positivo

Lei dos

três              b) individual     (1), (2) e (3)

estágios

                    c) social            (1), (2) e (3)

 

O estágio religioso ou fictivo é o ponto de partida necessário para a evolução cultural humana. Ele é dominado pelo antropomorfismo: a mente humana projeta suas próprias características sobre o mundo externo na tentativa de explicar as anomalias da natureza. Fenômenos naturais, sobretudo os desviantes, são explicados como manifestações da vontade de seres dotados de poderes sobrenaturais: os deuses ou o Deus. O conhecimento acerca desses seres sobrenaturais, supostamente adquirido nesse estágio, é tido como absoluto. Contudo, esse suposto conhecimento é meramente ilusório, não sendo produto da razão, mas tão somente da imaginação.

     O estágio religioso desdobra-se em três subestágios, cada um com um nível de abstração superior. No primeiro, o subestágio animista, objetos físicos como árvores, animais e corpos celestes, são vagamente concebidos como dotados de vida, paixões, vontade e entendimento. No segundo, o subestágio politeísta, tais objetos são substituídos por deuses, seres vivos semelhantes aos humanos, porém imortais e sobrenaturais, normalmente invisíveis, que costumam intervir arbitrariamente no curso da natureza, inclusive na vida humana (os gregos viam os homens como o brinquedo dos deuses). Por fim, no subestágio monoteísta, as divindades do politeísmo são condensadas em um único Omni-Deus, característico da tradição judaico-cristã.

    Comte viu esse movimento como um progresso cultural da mente dentro da ordem teológica, tendendo a uma abstração unificadora das causas explicativas dos fenômenos.  Nesse estágio, a mente começa o processo de substituição da imaginação pela razão. (No plano individual, o estágio religioso corresponde à infância; nele somos como crianças que acreditam na existência de um mundo mágico, ainda incapazes de distinguir plenamente o real do imaginário.)

     O segundo estágio, chamado de metafísico (que considero extensível à tradição filosófica em geral), é, para Comte, apenas transicional. Ainda assim, representa um avanço notável, pois os princípios explicativos deixam de ser atribuídos a divindades sobrenaturais e passam a ser buscados na própria natureza. No entanto, embora esses princípios costumem ser apresentados como pertencentes à ordem natural, manifestam-se de maneira oculta. Eles são chamados de poderes naturais, propriedades essenciais ou entidades abstratas.

     Exemplos de tais princípios eram, para Comte, o flogisto, que antecedeu a química moderna, e o éter, nos estágios iniciais da física. Tais conceitos, segundo ele, têm um caráter essencialmente equívoco. Eles deveriam fornecer uma explicação natural dos fenômenos como princípios científicos, ou seja, como regularidades mantidas entre fenômenos, mas falham nesse propósito. Por outro lado, não podem ser concebidos como agentes pessoais sem que se recaia no estágio teológico. São, portanto, o que Comte, muito convenientemente, chamou de abstrações personificadas (abstractions personnifiées), expressão que revela a tensão interna desses conceitos.

    Mais adiante, testaremos essa ideia, aplicando-a de forma mais ampla às entidades-princípio evocadas pelos filósofos. (O estágio metafísico, no plano individual, corresponde à adolescência, quando construímos ideações as mais diversas, geralmente críticas, sem suficiente apoio na realidade.)

     Comte tinha uma visão bastante crítica sobre o valor dos dois primeiros estágios, o teológico e o metafísico, no que diz respeito ao conhecimento do mundo real. Para ele, ambos são basicamente dependentes da imaginação, e nem as explicações nem as previsões que deles derivam podem ser consideradas genuínas. Sua utilidade deriva sobretudo dos efeitos sociopsicológicos que produzem, pois contribuem para a estruturação da sociedade e do pensamento, além de nos encorajarem a enfrentar dificuldades e atenuar a ansiedade diante do que escapa ao nosso controle.

     Afora isso, há uma consequência prática de imensa importância a longo prazo: é apenas por meio dessas construções conceituais ilusórias que o caminho para o estágio científico é preparado.[8] A mente humana, pensava Comte, não pode investigar sem ser guiada por alguma teoria. Os estágios teológico e metafísico fornecem ideias e teorias que, embora equivocadas, permitem à razão iniciar a investigação e, movida pela ilusão de conhecimento, perseverar na observação cumulativa dos fatos, o que, ao final, acaba por conduzir à ciência.

     O exemplo mais expressivo desse procedimento foi a transição da astrologia para a astronomia: a longa, persistente e sistemática observação dos corpos celestes, motivada pelo desejo de prever o destino humano, levou ao desenvolvimento de mensurações matemáticas que, por sua vez, criaram as condições para o surgimento da astronomia como ciência.

     Para Comte, o estágio metafísico é uma fase intermediária e provisória, que não passa de uma laboriosa preparação para a emergência do estágio positivo. É somente neste último que a ciência se consolida como a única forma adequada de investigação, enquanto as antigas questões teológicas e metafísicas são abandonadas e anatematizadas como irrespondíveis e estéreis.

     No estágio positivo ou científico, o conhecimento deixa de buscar verdades absolutas e passa a ser entendido como relativo, reconhecendo a falibilidade inerente a toda investigação humana.[9] A pretensão de explicar o mundo como um todo é reconhecida como uma ilusão. Só podemos compreender seus constituintes fundamentais, tarefa que cabe às ciências básicas. Afinal, como aplicar conceitos que visam classificar os constituintes do mundo ao mundo como um todo? Além disso, os fenômenos deixam de ser explicados pela imaginação e passam a ser compreendidos essencialmente pela razão. Esta, por sua vez, abandona a busca por causas essenciais ocultas, concentrando-se na descoberta de leis, ou seja: regularidades verificáveis entre os fenômenos. O conhecimento dessas regularidades permite explicar de forma realista as associações entre fenômenos e inferir a ocorrência de outros, possibilitando, assim, a realização de predições. Esse poder de prever conduz a um domínio efetivo – e não meramente imaginário – sobre a natureza. A explicação pelo “porquê” é aqui substituída pela explicação pelo “como”. (No plano individual, o estágio positivo corresponde à maturidade do ser humano adulto, que entende as coisas como realmente são e pouco se deixa influenciar pela imaginação.)

     Também é importante lembrar que a transição do estágio metafísico para o estágio científico ocorreu em épocas distintas para cada ciência básica e sob formas diversas. Isso resultou em uma progressão escalonada, o que nos leva a reconhecer que grande parte de nosso saber ainda permanece, em muitos aspectos, em um estágio “metafísico”, a despeito do otimismo excessivo de Comte.

     Para Comte, a lei dos três estágios também se manifesta no desenvolvimento da mente individual, o que revela sua raiz biológica. Como ele observou, todos nós somos teólogos quando crianças, posto que em parte vivemos (ou vivíamos) em um mundo imaginário, povoado por seres míticos como fadas e bruxas... Na adolescência, tornamo-nos metafísicos quando, ainda sem pleno domínio dos fatos, acreditamo-nos capazes de explicar, pelo uso da razão, sem conhecimento suficiente dos fatos, elaborando explicações as mais infundadas e acreditando nelas com convicção.[10] Por fim, quando nos tornamos adultos (na medida em que realmente chegamos a isso), nos tornamos, segundo ele, “físicos”, aceitando apenas o conhecimento positivo, firmado e confirmado por meios científicos.

     Finalmente, a lei dos três estágios também se manifesta ao nível da organização social e de suas práticas. Contudo, essa manifestação depende da efetiva consolidação dos estágios no âmbito da cultura. Ora, considerando que as ciências básicas foram inevitavelmente constituídas em épocas subsequentes, posto que o desenvolvimento de uma ciência mais complexa e menos ampla pressupõe, em grande medida, o avanço de outra mais simples nos princípios, porém mais ampla e inclusiva, e que o progresso técnico necessário à mudança social costuma ser consequência do desenvolvimento teórico da ciência, é razoável supor que o impacto social da formação das ciências básicas na “positivação” da organização econômica e social seja antes um fenômeno tardio.

    Comte sugeriu que, no plano da organização social, o estágio teológico durou até o fim da Idade Média, caracterizando-se por uma sociedade autoritária e militarista, dominada por ministros religiosos e monarcas. Após a Reforma Protestante, as ideias metafísicas passaram a orientar a sociedade, instaurando o império das leis e dos direitos abstratos. Somente após a Revolução Francesa e com o advento da Revolução Industrial, em um período em que todas as ciências básicas alcançaram a sua “positivação” ou já estavam no processo de alcançá-la, tornou-se possível a afirmação do estágio positivo ou científico no nível da organização social. Esse novo período seria marcado pela emergência de uma sociedade pacífica, na qual a vida econômica dos indivíduos passa a ocupar o centro das atenções. Nessa sociedade, a ciência é destinada a assumir um papel determinante, devendo conduzir a uma estrutura social organizada e regulada por uma elite de cientistas, encarregada de aplicar o conhecimento positivo à administração da vida coletiva.

 

 

     3. UMA BREVE AVALIAÇÃO DA LEI DE COMTE

 

A lei dos três estágios foi sempre alvo de críticas. Algumas delas, como a acusação de rigidez e dogmatismo, além do descrédito excessivo às formas não-positivas de pensamento, sem falar em distorções como o otimismo exagerado e um certo reducionismo característico do positivismo, parecem-me bem justificadas. Mas nada disso invalida, em termos gerais, a genialidade de sua visão. Rejeitá-la in totum seria jogar fora o bebê junto à água da bacia. Outras objeções parecem-me injustas e pretendo respondê-las.

     A primeira delas, levantada por Jürgen Habermas, sustenta que a lei dos três estágios é ela mesma metafísica, uma vez que teria sido formulada a priori, sem respaldo em fatos observacionais.[11] Isso pode ser demonstrado falso. Comte afirmou explicitamente e demonstrou em seus escritos que sua lei resulta de um exame atento dos fatos relativos à evolução da cultura humana e à emergência das ciências básicas, articulado a reflexões consistentes sobre a natureza humana.

    Também de fácil resposta é a objeção complementar de que a própria lei não pode ser adequadamente inferida, posto que se baseia em uma única instância histórica, ela mesma inacabada – a de nossa civilização. A lei dos três estágios pode ser justificada como resultado de uma inferência indutiva, mais especificamente, a inferência à melhor explicação (IBE). Trata-se da única abordagem capaz de reunir, sob um mesmo arcabouço interpretativo, uma miríade de fatos socioculturais ao longo de sua evolução histórica. Com efeito, é precisamente porque essa lei confere maior coerência à progressão histórica da cultura humana e porque tal coerência é corroborada pela nossa compreensão dessa trajetória que ela tende a se imprimir em nossas mentes como uma explicação inicialmente plausível e natural. Ademais, porque a lei pode ser gradualmente confirmada, refutada ou, mais provavelmente, corrigida e aperfeiçoada por uma cuidadosa investigação dos fatos histórico-culturais, tanto passados quanto futuros, ela pode tornar-se, no final, não menos passível de validação empírica do que, por exemplo, a teoria da evolução biológica.

     Uma segunda objeção é que, quando aplicada à explicação dos três estágios em um nível social, a lei de Comte não é capaz de dar conta da ordem de emergência das ciências. Afinal, a matemática já havia emergido entre os gregos no estágio teológico, e a astronomia e a física já tinham emergido quando a sociedade ainda se encontrava no estágio metafísico.

   Assim como a primeira objeção, Comte também respondeu explicitamente a essa crítica. Segundo ele, cada ciência básica só pode nascer após os estágios metafísico e teológico terem se completado em seus respectivos domínios. Contudo, dado que há uma ordem de pressuposição entre essas ciências, elas não podem alcançar suas respectivas positivações simultaneamente. Como consequência, espera-se que, no plano social, os estágios se consolidem apenas no final, como resultado da soma das transformações parciais ocorridas em diferentes áreas do saber, o que também deve implicar transformações decorrentes da aplicação dessas ciências.

   Essa ideia pode ser ilustrada por meio de uma analogia: uma criança pode antecipar alguns traços da mente do adulto, assim como o adulto pode preservar aspectos da adolescência e mesmo da própria infância, sem que isso nos leve a confundir suas identidades. (Infelizmente, Comte foi exageradamente otimista quanto ao tempo da evolução: os estágios se sobrepõem uns aos outros, e, se há mais do que as ciências básicas à espera, então o estágio científico da sociedade ainda hoje encontra-se longe de se consolidar.)

     Uma terceira e mais importante objeção reside no uso que Comte fez da palavra ‘lei’, que, para muitos, é abusivo e enganoso. A singularidade dos eventos analisados, aliada à vaguidade e à incerteza dos processos envolvidos, não nos autoriza a empregar essa venerável palavra; como observou Karl Popper, talvez o melhor que possamos fazer seja falar de tendências (trends) socioculturais.[12]

     A resposta a essa objeção consiste em lembrar as palavras de Aristóteles ao considerar a investigação ética: “É próprio do homem instruído buscar a precisão em cada classe de coisas apenas na medida em que a natureza do assunto o permite.”[13] Em outras palavras, cada espécie de conhecimento requer uma forma de precisão condizente com sua natureza. No domínio da história sociocultural humana, o que chamamos de “lei” deve assumir um caráter tendencial, a menos que sejamos tomados por um cacoete precisionista que nos leve a exigir da explicação dos grandes movimentos socioculturais o mesmo grau de precisão das ciências duras.

     É certo que Comte não descobriu leis no sentido das ciências naturais, mas sim tendências, válidas em termos vagos e probabilísticos. Daí que sua contribuição foi a identificação de uma regra natural tendencial, perfeitamente aceitável como lei dentro das condições de vaguidade que caracterizam a ciência social por ele considerada. A forma própria de uma lei socio-histórico-cultural precisa, inevitavelmente, ser a de uma tendência genérica.

    Não é razoável esperar que uma lei dessa natureza possua a mesma precisão e ausência de exceções das leis das ciências naturais. Seu enunciado não pode oferecer mais do que uma probabilização de certos resultados, dado o número imenso de variáveis que podem intervir no processo. O mesmo vale para grandes insights sociológicos, como o do desencantamento do mundo proposto por Max Weber: sua abrangência em um terreno complexo o torna tão vago quanto deve ser. Pensar que a vaguidade compromete o status científico de uma lei social não passa de preconceito.

     O que mais distintivamente caracteriza o enunciado de uma lei não é uma precisão absoluta – afinal, nenhuma lei estatística satisfaria tal critério –, mas sim a nossa assunção de que a generalização expressa em seu enunciado é de natureza não acidental. O suposto caráter não-acidental da regularidade afirmada pela generalização pode ser admitido como a única característica comum a qualquer tipo de lei. A ciência, nesse sentido, precisa de um termo para cobrir todos os tipos de generalização que presumimos não resultarem do acaso, e a palavra ‘lei’ é a mais adequada para desempenhar essa função.

    Sob esse ponto de vista, a lei dos três estágios passa a atender à condição de lei com pretensão científica. Parece razoável, por exemplo, predizer que em um outro mundo possível habitado por seres humanos biologicamente idênticos a nós e submetidos a circunstâncias similares, no processo de se tornar uma sociedade em pleno desenvolvimento científico e tecnológico, seguiria uma ordem similar de estágios no desenvolvimento de seus ramos e formas de conhecimento em vez de, por exemplo, saltar diretamente para o estágio científico. Assim, devemos admitir que estamos tratando de uma lei no sentido liberal: uma tendência sociocultural necessária. Da mesma forma, é plausível admitir que certas civilizações, em determinado estágio e sob determinadas condições, se ponham a construir pirâmides. Tal lei socioantropológica poderia ser, digamos, enunciada como: “Sociedades que atingem certo grau de complexidade econômica, política e simbólica tendem a construir grandes monumentos piramidais como expressão de poder, religiosidade e ordem cósmica”.

     Concluímos, portanto, que sob uma interpretação suficientemente tolerante e flexível, a ideia de que o progresso civilizatório humano deve seguir os três estágios acima descritos permanece plenamente defensável. Nosso próximo passo será considerar a filosofia tradicional, munidos das ideias recém-adquiridas, de modo a explorar suas possibilidades.

 

 

4. FILOSOFIA COMO UMA INDAGAÇÃO TRANSITÓRIA

ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA     

 

Se substituirmos o que Comte chamava de metafísica pela palavra ‘filosofia’, aplicando-a à tradição filosófica, o que inevitavelmente associamos a um empreendimento puramente conjectural, podemos sumarizar a visão do lugar da filosofia tradicional entre religião e ciência por meio do seguinte esquema:

     

         RELIGIÃO                  FILOSOFIA                   CIÊNCIA

         (explicação                  (explicação                       (explicação

         por deuses)                  por princípios)                  por leis)

 

A despeito do evidente apelo metafilosófico dessa ideia, Comte não a aplicou de forma abrangente aos domínios centrais da filosofia, seguramente devido a um conhecimento deficiente dessa história.[14] Seus exemplos de princípios metafísicos pertencentes à pré-história das ciências positivas, tais como o flogisto, antes da química, e o éter, na física nascente, são corretos. Mas, em princípio, os exemplos poderiam ter sido facilmente estendidos a pensadores tão remotos quanto os pré-socráticos.[15]

     Para colocar a perspectiva evolucionária sugerida pela lei dos três estágios a serviço de uma análise dos princípios metafísicos, o primeiro passo é explicitar as propriedades mais distintivas das entidades mentais que a religião reivindica como sobrenaturais ou divinas. Essas propriedades, que denomino teomórficas, serão aqui reduzidas a quatro:

 

(i)               Transcendência física: Entidades mentais constituídas por uma substância essencialmente distinta da matéria física comum, e dotadas de superioridade extrema. (o Deus cartesiano, por exemplo, é uma substância pensante infinita);

(ii)             Hipermentalidade: Os poderes mentais dessas entidades são alterados e estendidos, talvez infinitamente (elas podem predizer o futuro, algumas são oniscientes etc.);

(iii)          Hiperfisicalidade: Os poderes físicos dessas entidades encontram-se alterados e podem ser estendidos, talvez infinitamente (elas podem mudar o destino humano, contradizer leis naturais ou realizar feitos impossíveis à matéria ordinária).

(iv)           Idiossincrasia mental-corporal: As entidades geralmente mentais ou não se associam necessariamente aos corpos físicos ou, quando eventualmente associadas a eles, não o são necessariamente, nem dos modos usualmente conhecidos por nós (elas podem não ter corpo físico sensível, habitar seres não-vivos, transitar livremente entre corpos ou habitar muitos deles simultaneamente).

 

 

Típico das propriedades teomórficas é que elas não são acessíveis à nossa experiência ordinária, seja física ou mental. Ainda assim, à exceção da transcendência física, parece possível concebê-las secundariamente, por meio da ampliação e da modificação de conceitos derivados de nossa experiência comum.

     Essas propriedades podem ser compreendidas como condições de identificação, que nos permitem descrever e, eventualmente, reconhecer o sobrenatural e o divino. É importante notar que nem todas precisam estar presentes simultaneamente.

     Filósofos atomistas materialistas sempre se viram em papos de aranha quando se tratava de explicar os deuses ou o Deus, pois, para eles, tal explicação teria de ser física. Para Demócrito, possivelmente um ateísta precoce que floresceu por volta de 400 a.C., os deuses eram eidola (εἴδωλα): átomos físicos extremamente finos e leves, capazes de penetrar em nossas mentes e produzir delírios e êxtases religiosos. Para ele, a vida não existiria após a morte, pois os átomos sutis de nossas mentes se dispersariam. Para Epicuro, um atomista menos afoito, que viveu durante o difícil período helenista, a vida também não existia após a morte, mas os deuses existiam, formados por átomos sutis, vivendo eternamente em estado de perfeição e serenidade, sem qualquer interesse pelos assuntos humanos. Seus deuses, ao menos, satisfaziam a condição de hiperfisicalidade. E para Hobbes, um materialista mecanicista moderno que foi educado por um pastor calvinista, Deus seria o mais puro, simples e invisível espírito corpóreo. Para ele, se Deus age sobre o mundo, ele também deve ser feito de matéria, o que exclui a propriedade de transcendência física.[16]

     Por outro lado, filósofos dualistas, de Platão a Descartes, tinham, nesse aspecto, uma liberdade conceitual muito maior: ao admitir a transcendência física, podiam aceitar com mais naturalidade todas as demais propriedades teomórficas.

     Se, seguindo Comte, desejamos conceber as entidades-princípio metafísicas como algo que paira entre a divindade sobrenatural e a regularidade das leis científicas, então, devemos entendê-las como consistindo de algo situado entre:

 

A.   O que é teomórfico – isto é, aquilo que possui uma ou mais das quatro propriedades teomórficas descritas anteriormente.

B. O que é natural – isto é, aquilo que possui propriedades físicas, psicológicas, ou mesmo formais (como as dos objetos matemáticos), ordinariamente reconhecidas pelo senso comum e, possivelmente, também pela ciência. Afinal, a ciência também pode ser entendida como uma extensão do senso comum, conquanto esse seja do tipo que chamei de modesto (mooreano).

 

Feita essa admissão, encontramo-nos preparados para distinguir alguns tipos básicos de entidades-princípio metafísicas. O primeiro é:

 

(a)    [+A+B]: entidade-princípio metafísica híbrida (ou inflacionada). A formulação de um conceito metafísico que visa designar um princípio desse tipo é semanticamente dependente, ainda que de forma elusiva, das duas ordens de propriedades: teomórficas e naturais. Por um lado, envolve propriedades teomórficas, constitutivas do sobrenatural; por outro, incorpora propriedades naturais, físicas, mentais ou formais – acessíveis à experiência ordinária, seja pelo senso comum ou pela ciência (a qual, por sua vez, pode fornecer-nos acesso a leis científicas). É nesse contexto que emergem as verdadeiras “abstrações personalizadas”.

 

O Deus sive Natura de Spinoza pode servir como exemplo de entidade-princípio metafísica híbrida. Para esse filósofo, o que existe é Deus, ou substância, que é, simultaneamente, natureza. Enquanto natureza, essa substância é acessível a nós por meio de seus atributos essenciais: extensão (pela experiência do físico) e pensamento (pela experiência do mental), o que lhe confere, aparentemente, o status de entidade-princípio natural [+B]. Todavia, essa concepção não é tão isenta de antropomorfismo quanto parece. Como cada modo finito de extensão precisa ser acompanhado por um correspondente modo mental, isso implica que todas as coisas físicas (como um círculo, uma pedra, uma vassoura) também são mentais, possuindo, supostamente, algum grau de senciência. Isso demonstra que a natureza spinoziana abriga uma certa idiossincrasia mente-corpo. Mais além, a natureza, como “Deus”, é hipostasiada como capaz de amar-se a si mesma com amor infinito[17], o que significa que o Deus de Spinoza também possui algum tipo de propriedade teomórfica de hipermentalidade [+A], ainda que não seja transcendente. O resultado é, portanto, uma entidade-princípio do tipo [+A++B].

     Outro exemplo de um primeiro princípio híbrido, rico e multicolorido, é o Periphyseon (Da Natureza) de Scotus Eriúgena (séc. IX). Para esse filósofo, a natureza passa por quatro divisões. A primeira é a natureza que cria e não é criada. É Deus, o ser perfeitíssimo e incognoscível, origem de todas as coisas. A segunda é a natureza criada que cria. São arquétipos da sabedoria divina – as formas eternas que atuam como causas eficientes de todas as coisas. A terceira é a natureza como o mundo que é criado e não cria. Ela corresponde ao mundo sensível, ou seja, a tudo o que é gerado no espaço e no tempo. Embora não possua poder criador, nele manifesta-se Deus por meio de teofania. Finalmente, chegamos à natureza que não é criada nem cria. Ela é Deus como o termo final da criação, quando a natureza se reintegra à sua fonte.

     Considerando o conceito de natureza em Scotus Eriúgena, percebemos que, por um lado, ela se identifica com o Deus pessoal cristão, com as formas platônicas e com a união de tudo a Deus no fim dos tempos [++A]. Mas a natureza criada que não cria é o mundo sensível [+B]. O resultado parece ser do tipo [++A+B], já que Deus não deixa de ser transcendente. Se admitirmos uma unidade no conceito de natureza, o hibridismo exuberante de Eriúgena torna-se tão flagrante que parece encerrar uma inconsistência – uma tensão conceitual insuperável que sempre impressionou os críticos e que contribuiu para levar à condenação do livro pela igreja, por suspeita de politeísmo.

     Outra entidade-princípio mista, que, de algum modo, nos recorda a natureza de Scotus, é o conceito de espírito (Geist) em Hegel, que é hipermental (posto que é a origem de toda a realidade) [+A], possuindo idiossincrasia mente-corpo (posto que toda a realidade pertence a ele) [+A]. Em contrapartida, ele deve desdobrar-se a si mesmo em um processo que adiciona teses, antíteses e sínteses segundo leis dialéticas impessoais [+B], constituindo a natureza como espírito adormecido [+B], que, através de nós é redescoberta como constituinte do espírito absoluto. Mas como o espírito hegeliano não é transcendente, eu o classificaria como [+A++B]. O idealismo absoluto não é tão religioso quanto possa parecer.

     Outro exemplo de entidades-princípio com algum elemento híbrido, ainda que essencialmente mentais, seria o mundo das mônadas de Leibniz. Para esse filósofo, o mundo real é composto por um número infinito de pontos mentais, chamados mônadas. Cada mônada contém suas próprias leis impessoais, e embora seja “sem janelas”, ela se relaciona a todas as outras mônadas do universo por meio de aparências espaço-temporais, entendidas como phanomena bene fundata, capazes de refletir a estrutura real do universo [+B?]. De outro lado, cada mônada é uma força viva, possuindo algum grau de percepção e consciência, que se estende perspectivamente e em maior ou menor medida, a todo o universo das mônadas. Consequentemente, mônadas também possuem traços teomórficos, como idiossincrasia físico-mental (já que os objetos materiais são apenas aparências fenomenais que resultam de agregados de mônadas) e hipermentalidade (porque mônadas são sempre mentais, oniscientes e, em si mesmas, transcendentes, mesmo quando sua onisciência é inconsciente, como no caso das mônadas nuas) [+++A]. O resultado parece ser [+++A+B?]

     Por fim, é preciso observar que o elemento B não precisa pertencer exclusivamente ao mundo físico ou ao mundo mental, podendo também ser de natureza formal (embora um filósofo naturalista possa defender que o elemento formal também é, de algum modo, redutível ao empírico). Um exemplo emblemático é o do número concebido como entidade-princípio na filosofia de Pitágoras. Para os pitagóricos, assim como para nós, o número é uma entidade natural, cujas propriedades são ordinariamente acessíveis [+B]. No entanto, o número é também imaterial e possuidor de poderes hiperfísicos: dele derivam o bem e o mal, o masculino e o feminino, entre outras polaridades fundamentais.

     Como vimos, a quantidade relativa de [+A] e [+B] pode variar e muito irá depender da interpretação. O Deus sive Natura spinoziano é quase naturalista [+A++B], enquanto as mônadas distinguem-se por suas propriedades teomórficas [+++A+B?]. A natureza enriquecida de Scotus Eriugena parece situar-se próxima ao meio [++A+B], o que também ocorre com o misticismo pitagórico, pois, se a ele adicionarmos a metempsicose, o resultado parece ser [++A+B], dependendo da interpretação.

   A maioria dos princípios-entidades da metafísica especulativa é, aliás, de um tipo inflacionado, ao aludir simultaneamente a propriedades teomórficas e naturais.

     O próximo tipo de princípio metafísico tem a forma

 

(b)   [–A–B]: entidades-princípio elusivas (ou deflacionadas). A formação de um conceito metafísico destinado a designar um princípio desse tipo é explicitamente concebida como desprovida de qualquer dependência semântica em relação a propriedades teomórficas ou naturais (físicas, mentais ou talvez formais), tal como elas são ordinariamente experienciadas e reconhecidas pelo senso comum e pela ciência.

 

Como consequência dessa estratégia explicativa, o princípio-entidade torna-se, enquanto tal, incognoscível. De fato, ou a palavra-conceito empregada para nomeá-lo é completamente destituída de sentido, ou (como normalmente é o caso) algum sentido lhe é atribuído externamente, por meio do contexto, ou de maneira equívoca, a partir de uma eliminação inconsistente de referências originárias.

     Historicamente, o primeiro exemplo de uma entidade-princípio metafísica elusiva parece ter sido o Uno de Plotino, concebido como totalmente inalcançável pelos nossos poderes cognitivos, situado além do pensamento e da linguagem. Contudo, o Uno pode ser aproximado pela sua negação – pelo que ele não é –, já que não corresponde a nada que possa ser conhecido, exceto pela ordem e pela beleza do mundo, que apontam para algo superior, e pela rara experiência mística de união do ser com a sua origem.

    O exemplo mais notório de entidade-princípio elusiva, porém, é o mundo noumênico de Kant, que sustenta o mundo das aparências fenomenais. Entre seus habitantes mais ilustres estão a coisa em si, refletida no polo externo de nosso aparato cognitivo, e o Eu transcendental, refletido no polo interno do mesmo.

   Na primeira metade do século XX, surgiram outros exemplos de princípios elusivos, como o conceito wittgensteiniano do indizível (das Unaussprechlichen), que aponta para aquilo que não pode ser dito, mas apenas mostrado (o místico), e o conceito heideggeriano de Ser, entendido como aquilo que fundamenta tudo aquilo que é (das, was allem Seienden zugrunde liegt), somente aproximável pelos meios metafóricos da linguagem poética. Heidegger, aliás, produziu uma antropologia social sob a forma de prédicas quase religiosas, nas quais o termo ‘Deus’ foi substituído por ‘Ser’.

     O princípio do tipo deflacionário tem a vantagem de não correr o risco de ser demonstrado como internamente inconsistente. Mas o preço dessa segurança é alto: ele deixa de ser propriamente um conceito, o que torna sua própria inteligibilidade objetável. Essa vacuidade semântica pode, eventualmente, contaminar o restante do discurso filosófico com vacuidade retórica, como, em boa medida, a obra de Heidegger acabou por demonstrar.

     Há modos pelos quais estratégias inflacionárias e deflacionárias podem ser combinadas no processo de constituição de conceitos metafísicos. Considere o caso do conceito de Vontade (der Wille) em Schopenhauer. Em princípio, ele equivale à coisa em si, que Kant estabeleceu como um X incognoscível que sustenta o mundo das aparências sensíveis. Nesse caso, o suposto designatum de seu conceito só poderia assumir a forma [–A–B].

     Contudo, só isso não bastaria para satisfazer as intenções filosóficas de Schopenhauer. Segundo ele, pela experiência do corpo percebemos que, por trás das aparências sensíveis, o que realmente existe é a Vontade: uma força cega, constante e destrutiva, que se manifesta diretamente em nossa experiência interna da vontade de viver. Essa vontade, por sua vez, é entendida como capaz de se expressar na totalidade do mundo, tanto no mundo orgânico quanto no inorgânico.

    A estratégia de Schopenhauer torna possível que a coisa em si, inicialmente inofensiva, se manifeste como uma perversa vontade cósmica que permeia toda a natureza e constitui, para ele, a verdadeira fonte do interminável sofrimento humano. Assim, aquilo que de início era para ser concebido como da forma [–A–B], adquire propriedades que o transformam em um princípio dotado de caráter de uma lei natural universal [+B], ao mesmo tempo que, em sua manifestação como uma vontade de viver, incorpora traços teomórficos, isto é, idiossincrasia mente-corpo e algum tipo de hipermentalidade [+A].

    Isso ocorre mesmo quando Schopenhauer recorre ao velho expediente filosófico de negar o que já fez depois de já tê-lo feito. Por essa razão, seu conceito de vontade pode ser entendido como resultante de uma composição conceitual da forma [+A(–A–B)+B] (os parênteses servindo para delimitar o núcleo originário do processo de constituição conceitual).

     Buscando alternativas entre [+A+B] e [–A–B], entre princípios híbridos e elusivos, ainda encontramos mais duas possibilidades conceituais fundamentais:

 

(c)    [+A–B]: entidade-princípio teológica. A constituição de um conceito destinado a designar um princípio desse tipo depende, semanticamente, de propriedades teomórficas, não acompanhadas de propriedades naturais.

 

Essa combinação parece imprópria para a filosofia, posto que nos conduz diretamente de volta ao domínio da religião: entidades-princípios que são fisicamente transcendentes e/ou hipermentais e/ou dotadas de uma idiossincrasia mente-corpo, sem qualquer apelo a explicações naturalistas, correspondem precisamente a entidades espirituais, como deuses, tótens e afins. Ainda assim, podemos pensar em filósofos medievais como Anselmo da Cantuária e Tomás de Aquino, como filósofos que como religiosos recorriam a Deus como uma entidade-princípio do tipo [+A–B].

     Mas não seria um imaterialista como o bispo Berkeley, um defensor filosófico dessa combinação? Afinal, para ele tudo o que existe são espíritos e suas ideias? Creio que não. Em sua concepção, ideias suficientemente intensas e permanentes não se distinguem da natureza perceptível que nos cerca, o que, segundo ele, é confirmado pelo senso comum. Nessa interpretação, tais ideias suficientemente intensas seriam entidades naturais do tipo [+B][18], que, em conjunto com as ideias divinas e outras, formariam o tipo [+A+B].

     Mas há ainda uma última alternativa, que consiste simplesmente na recusa do elemento teomórfico:

 

(d)   [–A+B]: entidade-princípio naturalista. A constituição de um conceito filosófico destinado a designar um princípio desse tipo depende, semanticamente, de propriedades naturais reconhecidas pelo senso comum e, eventualmente, pela ciência, sejam elas físicas, mentais ou formais.

 

A distinção entre um princípio naturalista e uma lei científica reside apenas no caráter filosófico-especulativo do primeiro. Essa diferença repousa na ausência de possibilidade de consenso quanto aos resultados, frequentemente vagos e impalpáveis, dos princípios filosóficos naturalistas.

     A especulação pré-socrática é rica em exemplos desse tipo, como a tese de Anaximandro, segundo a qual a Terra está suspensa no vazio, e a de Empédocles, que propôs que os seres humanos evoluíram dos animais, já discutidas no capítulo III.

     O exemplo mais famoso de princípio natural é a teoria atomista dos filósofos materialistas Leucipo e Demócrito, segundo a qual as coisas concretas são constituídas por porções de matéria eternas e invisíveis. Para Demócrito, os átomos possuem formas distintas, responsáveis por diferentes propriedades da matéria. Embora os átomos possam ser “teoricamente” divisíveis, pois possuem formas, tamanhos e pesos, eles permanecem fisicamente indivisíveis.[19] Certamente, dado que a hipótese dos atomistas resulta de reflexão baseada em nossa experiência ordinária das coisas físicas e carece de qualquer apelo a elementos teomórficos, o conceito filosófico de átomo entre os gregos, à semelhança de seu equivalente científico moderno, pertence ao tipo [–A+B].

     Princípios naturalistas são os que revelam mais prontamente seu caráter protocientífico, uma vez que ocorrem com mais frequência nas antecipações mais remotas das ciências naturais, hoje bem desenvolvidas. No caso do atomismo, seu modelo de desenvolvimento segue o mesmo padrão discutido nos exemplos do capítulo III: o atomista antigo não podia identificar as propriedades de seus átomos, mensurá-las, ou observar os seus traços de modo a obter consenso sobre seus resultados, como fazem os físicos contemporâneos com as partículas elementares. Ainda assim, podiam especular sobre sua existência, formulando teorias que assumiam a estrutura comum às teorias atômicas. Afinal, a ideia de que a matéria não é divisível de forma contínua, mas composta por unidades discretas de muitas formas, é compartilhada tanto pelas concepções atomistas da Antiguidade quanto pelas teorias modernas.

     Parece que quanto mais distante de sua realização científica está a ideia que o filósofo busca alcançar, mais teomórfica tende a ser a explicação. No entanto, os atomistas gregos demonstraram que há exceções. O materialismo, como vimos, não exclui a possibilidade da existência de deuses materiais. Materialismo e o atomismo não contradizem necessariamente o teísmo, mas a tensão entre essas posições torna-se evidente quando consideramos que a matéria é geralmente definida como aquilo que possui massa e ocupa espaço, o que torna a transcendência inexplicável. Um Deus invisível e onipresente é, nesse contexto, muito difícil de conciliar com o materialismo.

     Outro exemplo de princípio naturalista é o ser de Parmênides, uma vez que é destituído de características teomórficas. Para Parmênides, o “caminho da verdade” é o caminho daquilo que é. Substantivando o que é como o ser (τὸ ὄν), ele lhe atribui os predicados de unicidade, eternidade, imutabilidade, indivisibilidade, homogeneidade, redondidade e limitação, tratando-o como pertencente à physis (φύσις), embora acessível apenas ao pensamento, e não aos sentidos. Além disso, como pensar o não-ser é, para ele, absolutamente impossível, o ser torna-se o único objeto do pensamento, “pois o mesmo que é para ser pensado é ser” (τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι).

     A ideia de Parmênides de hipostasiar a palavra ‘Ser’ foi uma invenção conceitual genial, a arché definitiva, pois ela poderia ocupar o lugar de qualquer outra. O ser passaria, desde então, a ocupar o lugar de uma “metáfora universal”, capaz de substituir qualquer coisa que o filósofo desejasse insinuar, mas para o que ainda não dispunha de palavras adequadas.

     A estratégia de Parmênides exemplifica a sugestividade semântica não-determinadora, que parece inevitável ao discurso filosófico: a vaguidade e a polissemia do argumento, somadas à suspeita de inconsistência entre as diferentes propriedades atribuídas ao ser, abrem espaço para um número indefinido de chaves interpretativas, nenhuma delas inteiramente satisfatória.

     Meu palpite interpretativo, talvez insólito, é que o ser parmenideano poderia ser melhor compreendido se fosse identificado com o que hoje chamaríamos de a totalidade dos pensamentos (proposições) concebíveis, tanto verdadeiros quanto falsos.  Afinal, Parmênides nunca escreveu que não se pode dizer o falso, que o pensamento falso não é ou que não pode ser, como Platão e outros o interpretaram.[20] Minha interpretação, por implausível que pareça, pelo menos satisfaz o princípio de caridade ao salvar a maioria das afirmações de Parmênides sobre o ser, como irei mostrar.

     Consideremos, em primeiro lugar, a totalidade dos pensamentos concebíveis, verdadeiros e falsos. Mesmo os pensamentos formais pertencem ao mundo natural, no sentido de não apresentarem características teomórficas [+B][21]  Essa totalidade de proposições é, certamente, tudo o que pode ser pensado, isto é: “o que é para ser pensado”.

     Como Frege nos mostrou[22], esse conjunto total de pensamentos é também eterno (ou atemporal), imutável, imperceptível e, em certo sentido, indivisível e homogêneo – em contraste com o mundo acessível aos sentidos. Mas então, o que resta como tentativa de enunciar o impossível não-ser (μὴ εἶναι)? Ora, apenas as sentenças que não podem ser pensadas, as sentenças sem sentido (como “Sábado está na cama” e “Meu irmão morreu depois de amanhã”) e as contraditórias (como “Todos os quadrados são redondos”). Essa distinção permite justificar o famoso dictum de Parmênides: “não se pode pensar o que não é.” Por fim, segundo essa interpretação, o “caminho da verdade” admite que pensamentos falsos possam ser pensados – o que torna o ser parmenideano imune à objeção platônica de que Parmênides não poderia dizer o falso.[23]

     Supondo que essa paráfrase seja correta, o ser de Parmênides pode ser concebido como uma antecipação não-transcendentalista daquilo que Platão tentou alcançar com a sua hipótese de um mundo de ideias; dos estoicos com a sua doutrina do lekton (a matéria incorpórea veiculada por signos linguísticos); de C. S. Peirce com a sua categoria de terceiridade; e de Gottlob Frege com o seu reino de pensamentos atemporais e imutáveis (os sentidos das frases assertivas verdadeiras e falsas).

     Se essa leitura for válida (provavelmente não menos do que outras), temos um exemplo notável de antecipação especulativa de temas que filósofos posteriores tentaram desenvolver de forma mais sofisticada, ainda que com margem de sucesso muito limitada. Mesmo que todas essas doutrinas diferenciem-se entre si, não estamos autorizados a descartar a hipótese de existirem intuições relevantes que, no desfecho final da investigação, nos permitam alcançar, talvez de modo bastante inesperado, acordos consensuais suficientes.

     Ainda um exemplo do tipo [–A+B] é a teoria dos três estágios proposta por Comte e, mais dificilmente, sua fetichista religião da humanidade [–A(+A)+B]. (Afinal, parece que nos preocupamos com o que acontece com desconhecidos que vivem do outro lado do mundo ou que viverão no futuro.)

     Concepções naturalistas são particularmente interessantes, pois podem, em certos casos, ser evidenciadas como especulações antecipadoras da ciência, sem incluir intenção teomórfica deceptiva. Trata-se de construções conceituais voltadas exclusivamente à satisfação de nossa curiosidade especulativa sobre questões que ultrapassam nossas presentes possibilidades de avaliação consensual. Esses casos sugerem que a posição depreciativa de Comte – segundo a qual a indagação “metafísica” é mero produto da imaginação, sem qualquer consequência além de preservar, por meio de esperança e ilusão, a disposição para a investigação – era demasiado pessimista.

     Vale notar, por fim, que a estratégia naturalista também pode ser combinada com outras ao longo do processo argumentativo de estabelecimento de um princípio filosófico e da sua correspondente constituição conceitual. Esse parece ser o caso do conceito platônico de ideia ou forma. Para tornar esse conceito concebível, Platão precisou recorrer a analogias extraídas da experiência ordinária, começando por um uso inovador da palavra ‘ideia’ (ἰδέα), que, no grego antigo, significava forma, aparência, aspecto, e era proveniente de ἰδεῖν, que significa ver. (Algo bastante distinto do conceito psicológico contemporâneo de ideia).

     Esse recurso poderia sugerir uma adição naturalista [+B], mas a assunção platônica de que o mundo das ideias é completamente independente do mundo visível ou sensível [+A] inviabiliza essa possibilidade. Além disso, as ideias platônicas não apresentam as características teomórficas de hipermentalidade e hiperfisicalidade. Contudo, elas ainda assim possuem características de transcendência: embora não sejam mentais, situam-se além do mundo sensível. Há também um equivalente à idiossincrasia que, se não é mental-corporal, é ao menos transcendental-corporal. É que elas também são entendidas como causas do mundo sensível, que só possui realidade por participar (μέθεξις) dessas ideias ou por imitá-las (μίμησις). Há, portanto, um elemento teomórfico na doutrina das ideias, o que nos permite crer que elas possam ser melhor concebidas como princípios do tipo [+A–B].

 

 

     5. CONCLUSÕES

 

O reconhecimento dessas possibilidades revela, especialmente no caso examinado do ser de Parmênides, que a vaguidade e a obscuridade podem ser justificáveis em filosofia, sobretudo quando um filósofo tenta dizer algo que ultrapassa os recursos conceituais disponíveis. Pensadores como Parmênides, Heráclito, Kant, Hegel e Wittgenstein, entre outros, enfrentaram esse desafio. Como H. H. Price observou, em uma passagem bastante sugestiva:

 

Podem muito bem existir algumas coisas que, na terminologia avaliável em certo tempo, só possam ser ditas obscuramente; ou em uma metáfora ou (o que é ainda mais perturbador) em um oxímoro ou em um paradoxo, isto é, em uma sentença que rompe com as regras terminológicas existentes e que, em seu sentido literal, é absurda. O homem que as diz pode, é claro, estar confundido. Mas é possível que esteja dizendo algo importante. Nesse caso, seus sucessores podem ser capazes de adivinhar o que ele está tentando sugerir. As regras terminológicas podem, ao final, mudar. E a metáfora selvagem ou o paradoxo ultrajante de hoje pode tornar-se a platitude de depois de amanhã.[24]

 

Embora eu não creia que filósofos possam pensar algo preciso ou adequado que eles não possam também expressar em uma linguagem suficientemente precisa e adequada (a linguagem é sempre plástica o bastante), parece evidente que filósofos frequentemente têm intuições relevantes, embora imprecisas e conceptualmente insuficientes, que só conseguem formular em termos igualmente imperfeitos. A moral dessas considerações é que, por mais contraditórias, mal concebidas e mesmo inacreditáveis que sejam as estratégias construídas a partir de princípios-entidade inflacionários e deflacionários, elas podem apontar para algo importante ainda oculto sob o véu de nossa ignorância. Ideias filosóficas sugestivas, mesmo que incorretas, são como sinais no caminho, capazes de nos indicar a direção.

     Finalmente, uma última palavra sobre a questão da abrangência. Vimos que a abrangência encontrada na filosofia – aquela que carrega consigo a densidade própria do que é profundo – deriva de uma motivação que também é central à religião: o desejo de encontrar uma explicação integrada do mundo como um todo, bem como do lugar que o ser humano pode nele ocupar.

    Contudo, essa aspiração não deve ser vista como uma herança infeliz de uma busca impossível. Em filosofia, como Kant demonstrou em sua doutrina das ideias da razão, essa aspiração desempenha uma função direcionadora indispensável. Além disso, ao considerarmos que as questões centrais da filosofia contemporânea estão, em alguma medida, inter-relacionadas, torna-se plausível pensar que a abrangência, quando preservada dentro dos limites adequados (por difícil que seja determiná-los), constitui uma aspiração legítima.

    Mesmo quando entendemos a filosofia como um esforço antecipador da ciência, o direcionamento voltado para o todo, o ímpeto em direção à maior abrangência, profundidade, elevação e direcionamento permanecem justificados, pois a própria ciência também pode, em princípio, reivindicar tais direitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                          V

 

A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE

 

Il me semble que la philosophie est un véritable chant qui n’est pas celui de la voix, et qu’elle possède le même sens du mouvement que la musique.

[Parece-me que a filosofia é um verdadeiro canto que não é o da voz, e que ela tem o mesmo sentido de movimento que a música.]

                                                   Gilles Deleuze

 

 

Até agora, comparamos a filosofia com duas outras atividades culturais fundamentais, a ciência e a religião, mostrando que, historicamente, ela tem se situado, de algum modo, entre ambas. A tradição filosófica ocidental não é apenas um esforço antecipador da ciência, pois ao longo de sua trajetória demonstrou conservar motivações oriundas do pensamento religioso – não apenas pela amplitude especulativa de seus objetivos teóricos e práticos, mas também pelo seu frequente apelo a princípios explicativos que, como o Deus ou os Deuses, permanecem de algum modo para além de nossa compreensão. Chegamos agora ao momento de comparar a filosofia com uma terceira atividade cultural fundamental: a arte.

     Com base na reconhecida proximidade entre filosofia e arte, alguns filósofos adotaram a tese de que a filosofia é, em sua essência, uma forma de arte. Como sugeriu J. H. Gill, um advogado dessa posição, a filosofia:

 

Não é como uma lente, através da qual nós penetramos e escrutinamos a realidade, nem como uma lâmpada, com a qual exploramos dimensões e horizontes da existência humana até então desconhecidos, mas como um prisma com o qual são criados fascinantes e provocativos modelos conceituais e esculturas de pensamento.[25]

 

Há algo de verdadeiro que levou J. H. Gill a essa posição extrema, algo que merece ser investigado. No que se segue, considerarei a interface entre filosofia e arte, com o objetivo de avaliar a importância dos aspectos estéticos da filosofia, sobretudo em sua história.

    Quero sugerir que, em certa medida, a tradição filosófica ocidental pode ser vista como uma atividade derivada de motivações artísticas, por trabalhar com um material cognitivo de modo semelhante ao que a arte faz com um material intuitivo-emocional, o que torna a filosofia, em alguma medida, uma espécie de “arte da razão”. Para tornar essas ideias plausíveis quero começar distinguindo dois tipos de similaridade entre filosofia e arte:

 

 (a) similaridades externas, ou seja, aquelas que são devidas à utilização de recursos estéticos em filosofia, os quais não precisam estar sempre presentes.

 (b) similaridades internas, ou seja, similaridades de natureza entre as duas práticas culturais, as quais estão sempre e inevitavelmente presentes.

 

 

1.     O SABOR ESTÉTICO DE ALGUNS ESCRITOS

FILOSÓFICOS: SIMILARIDADES EXTERNAS

   

Chamo as similaridades entre filosofia e arte de externas quando o filósofo se vale de meios literários evidentes. Há diversas razões para uma abordagem literária das questões filosóficas. Uma delas é que um discurso literário permite transmitir insights de forma mais eficaz e impactante, mobilizando a atenção do interlocutor.

    Contudo, a razão mais profunda parece ser outra: com frequência filósofos se veem diante de uma disjunção exclusiva: ou avançam por um caminho linear, sustentado por argumentos que, embora rigorosos, revelam-se insuficientes ou falhos, ou optam por uma forma de expressão mais alusiva, deliberadamente ambígua, cujos contornos vagos abrem espaço para múltiplas interpretações, ainda que, em contrapartida, ofereçam menor densidade informativa.

   Nesse contexto, torna-se legítimo recorrer a um discurso metafórico no qual as palavras e suas combinações evocam sentidos que transcendem seus significados literais. Considere, por exemplo, os seguintes aforismos de Heráclito:

 

Só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo.

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e da lira).

A harmonia invisível é mais forte do que a visível.

O que está em cima é idêntico ao que está embaixo.

 

O que Heráclito busca, por meio desses aforismos, é expressar ideias profundas por meio de formulações sintéticas e polissêmicas. Frases como essas inspiraram filósofos posteriores, como Hegel, com a ideia de uma dialética histórica ou de que a razão governa o mundo.

    Outro exemplo são os símiles, mitos e alegorias usados por Platão ou, em outro registro, por um filósofo-artista como Nietzsche. Também o estilo pode ser um veículo de polissemia filosófica. Um filósofo analítico como W. V. O. Quine soube explorar seu estilo refinado para conferir polissemia a alguns trabalhos. Já o metafísico analítico Donald Williams possuía um estilo mesmerizante incomparável, que lhe permitia escapar de compromissos decorrentes de uma precisão excessivamente rígida. Cito esses exemplos sem sequer mencionar filósofos dito “continentais”, como Martin Heidegger, com seu uso retórico (muitas vezes indébito) da linguagem filosófica no desenvolvimento de sua antropologia filosófica, ou Walter Benjamin, estilista igualmente singular, cuja prosa densa e evocativa se constrói por meio de imagens, analogias e alusões que suscitam múltiplas interpretações.

     Há também o uso de metáforas: muitos dos problemas abordados por Wittgenstein foram aproximados por meio de metáforas como ‘semelhanças de família’, ‘alimentação unilateral’, ‘linguagem como uma grande cidade antiga’, sem mencionar conceitos centrais como cálculo, jogo, gramática e terapia, de definição problemática.

     Esses casos ilustram como a linguagem pode ser decisiva e poderosa em filosofia, não como mero ornamento, mas como instrumento legítimo de expressão e de elaboração conceitual. Também a construção de vocabulário técnico, como a desenvolvida por Kant e Hegel, além de necessária, cumpre uma função estética: a complexidade terminológica e a densidade conceitual desses sistemas não apenas organizam o pensamento, mas produzem um efeito de elevação e solenidade que marcou profundamente a recepção de suas obras.

     Mas não é só isso. A própria estrutura do discurso filosófico pode desempenhar uma função estética. Um exemplo é a enumeração das proposições no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, que, ao refletir a hierarquia lógico-conceitual, contribui para a experiência estética do texto. Outro exemplo é o tratamento axiomático que Spinoza conferiu à sua filosofia na Ética. Embora essa escolha formal pretenda ilustrar o ideal racionalista levado ao extremo, ela pode ser vista, em última instância, como um adorno dispensável — um artifício que, em vez de esclarecer, tende a dificultar a compreensão e pouco acrescenta à demonstração.

    Esses variados recursos estéticos são arte: arte na filosofia, à qual pertencem como veículos. Mas nem por isso devem ser confundidos com a filosofia em si. O uso desses recursos literários na filosofia parece externo ao empreendimento filosófico propriamente dito.

     Para compreender por que o uso de recursos artísticos externos não faz da filosofia uma forma de arte, basta considerar que mesmo uma alegoria complexa, como o mito da caverna em Platão, pode ser interpretada e traduzida literalmente, o que, por empobrecedor que seja, não descaracteriza o resultado como filosofia. Podemos também recorrer, por comparação, ao caso da religião. Esta frequentemente se valeu de recursos artísticos externos para desempenhar funções pedagógicas e exortativas. Não são apenas narrativas mitológicas, como a Teogonia de Hesíodo, mas também a Bíblia – textos literários de maior ou menor qualidade estética (J. L. Borges observou que os judeus reuniram toda a sua literatura em um único livro: a Bíblia). No entanto, ninguém concluiria daí que a Teogonia ou a Bíblia devem ser classificadas como obras de ficção, ou que a religião possa ser reduzida a uma forma de arte. Se é assim com a religião, se ela pode concebivelmente existir sem ser adornada por meios artísticos, por que haveria de ser diferente com a filosofia?

   Além disso, é preciso observar que há filósofos que prescindiram dos adornos estéticos mencionados anteriormente. Exemplos notáveis são o que nos chegou de Aristóteles e a obra de Tomás de Aquino, apenas para citar os mais famosos, nos quais é difícil identificar qualquer elemento estético proeminente. A Metafísica de Aristóteles, talvez a mais influente obra de toda a história da filosofia, foi descrita por um de seus melhores intérpretes como uma “mixórdia”: uma barafunda especulativa, confusa e, ao mesmo tempo, fascinante.  

 

 

2.     SIMILARIDADES INTERNAS ENTRE FILOSOFIA E ARTE

 

Não obstante, é possível considerar que também há similaridades internas – o que chamo de similaridade de natureza – entre a filosofia e a arte. Embora a filosofia não se configure como uma forma de arte, ela incorpora elementos estéticos intrínsecos e indispensáveis. Essa é a tese que pretendo tornar plausível no que se segue.

     Uma primeira similaridade interna entre filosofia e arte é que a finalidade de ambas se encontra essencialmente nelas mesmas. Como percebeu Kant, o belo gera um prazer desinteressado – uma característica que se estende à arte em geral. Em menor medida, a filosofia também pode ser apreciada por si mesma. (Um excepcionalista como Martin Heidegger, por exemplo, via a filosofia como “nobre demais” para se prestar a fins práticos.) No entanto, a relevância dessa similaridade não deve ser superestimada. Diversamente do caso da arte, por força de suas outras dimensões, a filosofia mantém uma relação menos indireta com finalidades práticas: as concepções filosóficas que adotamos, sobretudo as que rejeitamos, influenciam, ainda que indiretamente, nossos modos de julgar e agir. Esse aspecto normativo foi tematizado de diversos modos ao longo da tradição filosófica. Ainda assim, o prazer desinteressado pode ser reconhecido como um elemento estético intrínseco à tradição filosófica.

     Um segundo ponto de convergência entre filosofia e arte diz respeito àquilo que podemos chamar de função integradora da arte. Esta busca integrar nossa vida sensível e emocional, permitindo-nos harmonizar sentimentos e ampliar, enriquecer e refinar nossa experiência afetiva. Algo análogo pode ser dito da tradição filosófica: ela também exercia uma função integradora, não da esfera sensível e emocional, mas do que já se denominou “vida do pensamento”. No entanto, essa consideração exige uma delimitação cuidadosa. Afinal, também a religião desempenha uma função integradora, vinculada à nossa visão de mundo e ao nosso lugar nele – e nem por isso se torna uma “arte da espiritualidade”. E quanto à ciência? Também ela cumpre uma função integradora no que tange à organização interna dos domínios de nosso conhecimento do mundo.

     Também parece que a filosofia realiza, com o material abstrato dos conceitos, algo análogo ao que a arte realiza por meio do material sensível da intuição. A arte, como se costuma dizer, é a expressão particular e sensível do universal. Seria, então, a filosofia uma espécie de expressão inteligível do universal? Mas em que sentido? Na produção e fruição da arte, é a imaginação sensível que se põe em ação; já na filosofia podemos encontrar uma forma de “imaginação”, melhor dizendo, de criação intelectual, que se mobiliza. Nesse sentido, a filosofia poderia ser chamada de uma arte da razão, em contraste com a costumeira arte dos estados sensório-emocionais.

     Seja como for, à função integradora do intelecto junta-se outra similaridade interna entre a filosofia e a arte: a da criação intelectual. A criação, traço característico da arte, requer imaginação – e como a arte, a filosofia é, em boa medida, um trabalho da imaginação, melhor dizendo, de criação conceitual. Trata-se aqui de uma resposta ao thauma (θαῦμα), termo grego que designa o espanto, a surpresa, a admiração, o maravilhamento e a perplexidade diante do mundo – sentimento que, segundo Aristóteles, se encontra na origem do pensamento filosófico.

     Aqui, a filosofia se empenha em revelar as mais inesperadas possibilidades de reorganização de nosso universo intelectual, o que P. F. Strawson chamou de metafísica revisionária.[26] Isso se evidencia em sistemas metafísicos transcendentais, como a construção teomórfica do mundo em Plotino, na filosofia do processo de Eriúgena, no progresso dialético do absoluto em Hegel, ou, ainda, para dar um exemplo contemporâneo, na teoria da pluralidade dos mundos de David Lewis.[27] Tais sistemas não mostram como o mundo efetivamente é (a despeito da intenção de seus autores), mas como ele poderia ser ou – possivelmente (mas muito improvavelmente) – como ele é. Esse aspecto é particularmente interessante, pois, ainda que não equipare a filosofia à arte, evidencia o quanto o elemento criativo, próprio da expressão artística, pode estar presente na prática filosófica.

    A filosofia é mais criativa que a ciência e menos que a arte. E a criatividade da filosofia decorre, em grande parte, de sua dimensão artística. Tome-se, por exemplo, a doutrina da iluminação em Agostinho; para ele, as verdades eternas residem na mente de Deus, e o acesso a essas verdades exige que sejamos iluminados por uma luz espiritual – assim como o sol ilumina o dia com sua luz física. A metáfora é artística, o propósito, religioso; o argumento, filosófico.

     A criação artística não se limita à produção da harmonia e da beleza convencionais, mas também se volta para o contraste inesperado – aquilo que Walter Benjamin, em sua leitura de Baudelaire, chamou de vivência do choque (Schockerlebnis) – capaz de provocar, em cada um de nós, uma reorganização dos valores emocionais que associamos, de forma acrítica, à realidade. A criação filosófica, por sua vez, também pode gerar tais contrastes ao operar com o material cognitivo de conceitos abstratos. É o que fez David Hume, por exemplo, ao formular seus argumentos céticos sobre a indução, o mundo externo e o próprio sujeito. Não apenas os céticos, mas até mesmo os sofistas, aderiam ao artifício do choque intelectual.

     Que dizer, então, do que Strawson chamou de metafísicas descritivas? Filosofias como as de Aristóteles, Tomás de Aquino, Duns Scotus, Guilherme de Ockham, John Locke, Thomas Reid, G. E. Moore, P. F. Strawson e John Searle, que, fiéis ao senso comum, não se propunham a reorganizar imaginativamente nosso entendimento do mundo, mas a apresentá-lo tal como ele realmente parece ser? Esses pensadores estavam mais próximos do vértice científico do triângulo metafilosófico. Ainda assim, há um componente artístico inegável na função integradora de suas construções, no prazer desinteressado que são capazes de suscitar e no apelo a entidades-princípio metafóricas – como ainda veremos.

     Parece, pois, ser possível admitir uma dimensão esteticizante intrínseca à filosofia, ao menos em sua acepção tradicional.

 

3.     CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS

Embora não se possa negar que a boa arte tenha a ver com a verdade, a relação é indireta. Ela é capaz de ampliar nossa consciência, tornando-nos mais abertos à compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. (Hitler dizia apreciar Wagner, mas jamais suportaria Brecht.)

     A filosofia, contudo, mantém uma relação mais direta com a verdade: ela tem a ver com a busca por ela. Mesmo os filósofos da variedade cética procuravam estabelecer a verdade de suas refutações. E os sofistas, como os pós-modernos, não precisam ser levados a sério.

     Embora o elemento veritativo presente na filosofia não produza um efeito linearmente progressivo e acumulativo de conhecimento nos mesmos moldes da ciência, ele é, como já observamos (cap. III), capaz de preencher, de forma cada vez mais estreita, um espectro de possibilidades de verdade. Com efeito, como já sugerimos, se a filosofia costuma ocupar os lugares epistêmicos deixados em aberto por domínios científicos ainda desconhecidos, é plausível supor que as ramificações das alternativas especulativas em um dado domínio da filosofia tenham um limite, o que pode não acontecer com a arte.

     Não obstante, tanto a filosofia quanto a religião permanecem mais próximas da arte quando contrastadas com a ciência. Como explicar? A teoria psicanalítica pode aqui auxiliar-nos. Segundo ela, a arte, a religião e a filosofia, assim como o pensamento que produz os sonhos, o trabalho da imaginação neurótica e seus sintomas, têm em comum o fato de serem produtos do que Freud chamava de processo primário (primäre Vorgang) do pensamento, uma forma de pensamento baseada no princípio do prazer, mais do que no princípio da realidade.[28]

    No processo primário, as emoções ou cargas (Besetzungen) afetivas deixam de estar firmemente ligadas às suas representações originais. Com isso, as cargas ligadas a representações inconscientes e pré-conscientes tornam-se passíveis de serem cedidas a outras representações, de um ou de outro modo associadas às primeiras, o que faz com que essas outras representações se tornem conscientes, produzindo prazer pela diminuição dos níveis de tensão endopsíquica.

    É importante notar que os mecanismos pelos quais as cargas de representações não-conscientes são cedidas a representações capazes de se tornarem conscientes são essencialmente dois: o deslocamento (Verchiebung), pelo qual a carga de uma representação reprimida R é cedida a uma representação não reprimida R1, a qual por força disso é capaz de burlar a censura e se tornar consciente, e a condensação (Kondensation), pela qual cargas de múltiplas representações “R, R1... Rn”. são cedidas a uma representação R, que se torna consciente por ter concentrado essas energias. Um exemplo de deslocamento é o  jovem apaixonada por um homem que lhe é proibido e que sonha ter-lhe dado seu pente (R) no lugar de entregar-se amorosamente a ele (R1). A condensação ocorreria se ela tivesse sonhado que aquele homem havia esquecido uma parte de sua indumentária (R) na casa dela (R no lugar de “R, R1...Rn”). O deslocamento, pensava Freud, é produto do inconsciente, pois a nova representação não chega a ser vista como substituto da antiga, enquanto a condensação pode bem ser produto do pré-consciente, pois a pessoa é facilmente capaz de se tornar consciente das representações que foram resumidas em uma única, que as embaralha e confunde.

     Como consequência desse processo, as representações que emergem na consciência são combinadas aqui de forma muito mais flexível do que no processo secundário (sekundäre Vorgang), característico do nosso raciocínio prático e científico, baseado no princípio da realidade, no qual as cargas se encontram fixamente ligadas às suas respectivas representações. Isso explica as combinações improváveis de representações que compõem nossos sonhos. Mas isso também explica, em alguma medida, a sugestividade semântica presente na arte e na filosofia, uma vez que são produtos do processo primário, que envolve condensação e/ou deslocamento tanto na produção quanto na compreensão e na fruição.[29]

     Podemos agora compreender em que medida a filosofia é em que medida ela deixa de ser produto do processo primário. Ela emerge desse processo à medida que se aproxima da religião e da arte, mas se configura de maneira muito mais próxima do processo secundário ao alinhar-se à ciência.

     Para ilustrar consideremos, primeiro, a imagem do Angelus Novus, interpretada por Walter Benjamin:  Horrorizado, o anjo é impelido pela tempestade do progresso, rumo ao futuro; com a face voltada para o passado, ele observa, impotente, a história como uma sequência de ruínas. Aqui está um exemplo de filosofia aproximada à arte, do processo primário pelo qual a imagem é uma condensação vívida do que sabemos sobre o passado humano, brutalmente incivilizado e destrutivo.

     Considere agora, como contraste, o “cogito ergo sum” de Descartes. Ele tem mais a ver com o processo secundário, pois revela uma aproximação à verdade científica consensual. Afinal, é impossível para mim pensar que eu não existo enquanto penso. Essa descoberta do “eu sou, eu existo” é importante por se tratar de um raríssimo candidato sério a uma proposição necessária a posteriori – uma verdade cuja evidência se revela na própria experiência do pensamento.

     Outra questão relevante é compreender o que distingue a arte como produto do processo primário. Um sonho, por exemplo, enquanto sequência de representações estranhamente combinadas, resulta, dos mecanismos de condensação e deslocamento. No entanto, o sonho geralmente carece de valor estético. Há, portanto, na obra de arte algo a mais — um ingrediente estético — que resiste ao esclarecimento puramente psicanalítico.

     Nesse sentido, a proposta do expressivista R. G. Collingwood parece atingir o cerne da questão.[30] Em uma leitura psicanaliticamente orientada de sua teoria, a arte verdadeira — que ele denominou arte própria — cumpre uma função moral: ela traz à consciência representações carregadas de sentimentos socialmente reprimidos, refinando-os. Esse refinamento não se limita ao artista, mas se estende ao público, contribuindo para a cura de um dos maiores males sociais — aquele que ameaça sua própria destruição — a saber, a insuficiente ou faltosa autocompreensão.

     Para ilustrar: quando Machado de Assis em As memórias póstumas de Brás Cubas, apresenta Brás Cubas como um defunto vaidoso e refinado que narra suas façanhas entre os vivos. Ele nos revela que passou um período em Coimbra, onde assimilou ideias e valores europeus — que, na narrativa, acabam por revelar-se meros adornos sociais. Na prática, Brás Cubas é pusilânime: é amante da esposa de um político influente, orgulha-se de jamais ter precisado trabalhar e almeja a glória pessoal ao inventar um emplastro capaz de curar todos os males da alma e do espírito — não por altruísmo, mas por vaidade. O que Machado de Assis faz, com sua ironia sutil e penetrante, é expor a imoralidade das elites brasileiras, que se pretendem esclarecidas, mas que na realidade adotam uma postura de autocomplacência e insensibilidade social. A estória resulta obviamente do processo primário da imaginação, mas carrega um componente moralizante e edificante. Quando bem compreendida, essa narrativa nos torna mais atentos às contradições sociais que nos cercam e mais sensíveis à complexidade humana tão magistralmente retratada por Machado.

     Esse ingrediente moralizante, elevador do espírito e refinador de nossa sensibilidade pode, acrescento, fundamentar-se ora no deslocamento, ora na condensação. No primeiro caso, temos o que se pode chamar de arte apolínea; no segundo, de arte dionisíaca. Assim, por comparação, a tragédia Antígona é mais apolínea do que Medéia, em que tudo aquilo que poderia permanecer inconsciente se revela de forma explícita, fundamentando-se na condensação. As pinturas impressionistas de Pierre-Auguste Renoir e Claude Monet são apolíneas em pinturas leves, alegres e sociais no primeiro caso, e contemplativas no segundo, edificantes em ambos (Renoir disse que queria pintar a beleza, pois a vida já é plena de dor e sofrimento). Nelas, não há sombra de crítica à miséria presente na França, ou ao colonialismo que sustentava a riqueza e a sofisticação da alta classe ali representada. Essa arte se funda no deslocamento. A crítica social, por sua vez, emerge com toda a força no expressionismo dionisíaco de Van Gogh e Paul Gauguin (pace Nietzsche), fundado na condensação. Do mesmo modo, a literatura sutil de Herman Melville ou Thomas Mann é apolínea se comparada à de Henry Miller ou Charles Bukowski. E O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, é apolíneo frente ao último concerto de Béla Bartók, cuja densidade sonora e intensidade emocional evocam o trágico dionisíaco. Os exemplos se multiplicam. O ponto é que o ingrediente estético — seja em sua vertente positiva ou negativa, edificante ou crítica — é sempre capaz de refinar nossa sensibilidade moral. Esse seria também o papel da arte na filosofia, como se vê na alegoria do anjo da história de Walter Benjamin, cuja riqueza de camadas simbólicas pode ser interpretada como expressão dionisíaca e trágica resultante do trabalho de condensação.

     Antes de concluir, gostaria de retornar à questão das similaridades internas entre arte e filosofia, chamando a atenção para o recurso às metáforas conceituais, especialmente às que denominamos entidades-princípios. Elas devem ser semanticamente sugestivas, mesmo quando concebidas em termos naturais. O recurso a Deus, por elas substituído, resultava do processo primário operando no domínio da mística e não da arte. Mas a arché dos pré-socráticos já contava com um elemento estético, pois sua função maior era, sem dúvida, a de proporcionar um prazer intelectual desinteressado, diversamente da religião. O mesmo pode ser dito do ser de Parmênides, das ideias de Platão, da substância imaterial de Aristóteles, do Uno de Plotino, da substância pensante de Descartes, da coisa-em-si kantiana, do absoluto de Hegel, da essência fenomenológica de Husserl, do Ser de Heidegger, do indizível do primeiro Wittgenstein e mesmo (não se enganem), do pensamento e do conceito em Gottlob Frege.

     Introduzindo alguma terminologia, podemos dizer que esses termos conceituais podem ser considerados metafóricos ou hipostasiados. Um termo conceitual ‘metafórico’ o é no sentido de ocupar o lugar de outro termo, ou seja, devido ao deslocamento (Verschiebung); já um termo conceitual é ‘hipostasiado’ no sentido de que ele ocupa o lugar de uma multiplicidade de outros termos, ou seja, devido à condensação (Verdichtung). Nesse sentido, a metáfora e a hipostasia funcionam como os usuais meios de expressão dados ao filósofo, que é pela transferência dos sentidos originais de certas palavras de uso comum para outros significados filosoficamente mais densos ou interessantes. A filosofia tradicional, nesse sentido, não se sustenta sem componentes metafóricos ou hipostasiados fundamentadores, construídos por meio do processo primário. Assim se concertiza o ingrediente estético interno à filosofia.

     Um problema surge quando nos perguntamos se a função metafórico-hipostasiadora de certos termos, expressões conceituais e nomes de entidades-princípios internos à filosofia é, na verdade, a mesma coisa que a função de conferir a seus objetos atributos como abrangência, profundidade, elevação e direcionamento. Se assim for, o elemento metafórico-hipostasiador interno (e até mesmo o externo) confunde-se com aquilo que orienta a filosofia para o vértice místico-religioso do triângulo metafilosófico, dado que, como vimos, são essas as características que mais o definem (cap. IV). Nesse caso, a função estética, que nos parecia essencial e autônoma, deixa de se distinguir de uma derivação da função místico-religiosa!

     O problema só desaparece quando percebemos que tanto a arte quanto a religião compartilham uma raiz comum enquanto produções do processo primário. Essa raiz comum, entretanto, não apaga suas diferenças constitutivas, uma a da função de seu ingrediente esteticizante (de prazer desinteressado, de refinamento dos sentidos...), outra a função misticizante (de busca de explicações abrangentes, de orientação de vida...), se assim o quisermos.

     É nesse ponto que, casualmente, nos deparamos com o que pode ser o fundamento da sugestão profunda de Hegel, segundo a qual a arte, como expressão sensível do absoluto (tese), e a religião, como representação simbólica do absoluto (antítese), são expressões antitéticas que só se deixam superar pela expressão conceitual e racional do absoluto oferecida pela filosofia (síntese).[31] A sugestão hegeliana se deixa desmistificar quando reconhecemos que a filosofia pertence secundariamente ao processo primário, tendo como origem o efeito de sua aproximação aos vértices culturais opostos da religião e da arte no triângulo metafilosófico – ambos igualmente determinados pelo processo primário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] “O verdadeiro pai da história econômica moderna e, aliás, da sociologia moderna, na medida em que um só homem possa reivindicar esse título, é Karl Marx”. Isaiah Berlin: Karl Marx, p. 151.

[2] Nicholas Rescher: Philosophical Dialetics, p. 11.

[3] Cf. G. Reale, A History of Ancient Philosophy, vol. I, p. 14.

[4] Guthrie, W. K. C., A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 36 ss.

 

[5] Prefiro traduzir ‘état’ de forma não literal por ‘estágio’, de modo a transmitir a impressão de progressão intencionada por Comte.

[6] Uma lei dos três estágios foi primeiramente proposta por A. Turgot em suas Réflexions sur la Formation et la Distribution des Richesses (1750). Contudo, para Turgot, ela era voltada ao desenvolvimento material e econômico, nada tendo a ver com os estágios culturais de Comte, sua ideia mais original. Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vols. I e V. Ver também, Discours sur l’esprit positif, cap. I. Uma boa seleção traduzida encontra-se na col. Os pensadores.

[7] O desenvolvimento da assim-chamada lei dos três estágios por Comte tem sido frequentemente mal-entendido. Sua plausibilidade é defendida por W. Schmaus em “A Reappraisal of Comte’s Three-State Law.”

[8] Sem querer, Richard Rorty capturou, perversamente, algo dessa função ao sugerir que o objetivo da filosofia é “manter a conversação fluindo” (keep the conversation going) em uma espécie de gênero cultural sem objetivo cognitivo de encontrar a verdade, como se fôssemos um bando de papagaios satisfeitos por podermos gritar, trinar e cacarejar intelectualmente em conjunto. E, de certo modo, ele estava certo: muito do que na academia se chama ‘filosofia’ não vai além disso. Essa me parece a principal razão da grande influência que Rorty tem exercido: ele permite reduzir o nível, tornando as coisas muito mais fáceis e menos trabalhosas, o que permite que todos participem sem maiores esforços ou preocupações heurísticas. Cf. seu livro Philosophy and the Mirror of Nature, último capítulo.

[9] Karl Popper observou que não poderíamos reconhecer a verdade absoluta, caso a encontrássemos, uma vez que tudo o que conhecemos pode, em princípio, falseável.  Ver Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, cap. 2.

[10] Segundo Jean Piaget, o raciocínio hipotético-dedutivo com o uso da lógica proposicional ocorre tipicamente na fase das operações formais a partir dos 11 ou 12 anos de idade, embora fatores educacionais possam hoje apressar esse desenvolvimento.

[11] J. Habermas, Erkenntnis und Interesse, p. 92.

[12] Ver K. R. Popper, The Poverty of Historicism, cap. IV.

[13]  Ética a Nicômaco, livo 1, cap. 3, 1094b.

[14] A história da filosofia era muito menos compreendida no século XIX do que é hoje, dado que não existia uma literatura crítica, nem traduções confiáveis, nem parâmetros de rigor interpretativo a serem seguidos.

[15] A filosofia dos pré-socráticos, que poderia exemplificar perfeitamente o alcance das ideias de Comte sobre a natureza do que ele chamava de metafísica, não poderia ser diretamente endereçada por ele. No tempo em que ele viveu, somente os especialistas conheciam os fragmentos perdidos, dispersos em citações antigas. Só com a colossal obra de Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, publicada em 1922, na qual as citações dos textos perdidos foram reunidas e enumeradas, a comunidade filosófica conseguiu ter acesso a eles. É possível que hoje saibamos mais sobre os pré-socráticos do que Aristóteles sabia em seu tempo.

[16] Thomas Hobbes, Leviatã, Parte IV, capítulo 25 e capítulo XXXIV.

[17] Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, livro V, prop. 35.

[18] Note-se que para Berkeley esse não é só percipi, mas também percipi possi. Como ele escreveu, “Se nós dizemos, por exemplo, que a mesa em que eu escrevo existe, isso é apenas dizer que se eu estivesse em meu estúdio, eu poderia percebê-la, ou que algum outro espírito presentemente a percebe”. Principles of Human Knowledge, sec. 3.

[19] Para uma discussão, ver W. K. C. Gutthrie, A History of Greek Philosophy, vol. II, p. 396).

 

[20] A sugestão de que, para Parmênides, não é possível dizer o falso se deve a uma interpretação posterior, baseada no fato de que o falso é o que não é e que não se pode pensar o que não é. Ver Platão, Sofista, 236e-264c.

[21] Suspeito que possam ser reduzidos a algo mental e, em última análise, a algo físico, como tropos de pensamento numéricos ou quaisquer tropos que lhes sejam equinumerosos.

[22] Gottlob Frege, “Der Gedanke”.

[23] Uma objeção cabível seria a de que conteúdos proposicionais não seriam naturais, pois não são nem físicos nem psicológicos. Essa objeção seria justificada em uma interpretação platonista da natureza desses conteúdos, como a de Frege. Mas ela não vale para uma interpretação nominalista. Se o conteúdo proposicional for analisado, digamos, como uma representação mental (um tropo) ou qualquer outra qualitativamente similar a ela, então ele pode ser reduzido a uma concepção fisicalista.

 

 

[24] “Clarity is not Enough” in, H. D. Lewis (ed.), Clarity is not Enough, p. 40.

[25] “Philosophy as Art”, Metaphilosophy, p. 141. Ver também Deleuze e Guattari em Qu’est-ce que la Philosophie? J. H. Gill tentou confirmar a sua proposta historicamente, mostrando o papel central das metáforas estéticas nos grandes sistemas filosóficos, mas o magro resultado sugere mais a conclusão oposta.

[26] Strawson distinguiu entre uma metafísica descritiva, que busca entender e esclarecer as estruturas conceituais que usamos para pensar sobre o mundo, e uma metafísica revisionária, que se propõe a alterar ou substituir essas estruturas por outras mais adequadas ou coerentes. Ver P. F. Strawson, The Bounds of Sense:An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason, Preface.

[27] David Lewis: On the Plurality of Worlds.

[28] Ver Sigmund Freud, Traumdeutung, chap. VI (“Die Traumarbeit”).

 

[29] Note-se que o processo primário não é suficiente para caracterizar a arte. Se assim fosse estaríamos dispostos a admitir que sonhos são manifestações artísticas apenas pelo fato de que seus conteúdos manifestos estão relacionados a seus conteúdos latentes por meio de deslocamento e condensação.

 

[30] The Principles of Art.

[31] G. W. F. Hegel,  Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, vol. III, parte III, Der absolute Geist, Sec. 556-577.

Nenhum comentário:

Postar um comentário